A lei da noite (2017)

Por André Dick

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Pode-se sentir que em geral há uma preocupação grande com o que Ben Affleck possa ter sido ou vir ainda a ser. Em 2016, depois da polêmica em torno de Batman vs Superman, ele se transformou num dos atores mais visados, principalmente quando decidiu anunciar que iria dirigir The Batman. Este A lei da noite acabou atraindo um comportamento crítico em geral que parecia mais interessado no que ele estaria planejando do que de fato apresenta aqui, e, por problemas de divulgação, acabou se transformando numa falha significativa de ignição na bilheteria. Em seguida, foi anunciada sua saída da direção do novo filme do super-herói de Gotham, trazendo ainda mais indefinição sobre o seguinte fato: esta seria sua obra a ser esquecida?
A lei da noite possui uma das narrativas de gângster mais focadas num personagem, no caso Joe Coughlin (Ben Affleck), um veterano da I Guerra Mundial e filho de Thomas (Brendan Gleeson), capitão da polícia de Boston. Ele está apaixonado por Emma Gould (Sienna Miller), amante do gângster Albert White (Robert Glenister), e pratica atividades criminosas, para preocupação do pai. Pela narração, sabemos que ele não quer mais trabalhar para ninguém como fez durante a Guerra.

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O mafioso Maso Pescatore (Remo Girone) chantageia Joe justamente para matar o rival White. Depois de contratempos, Joe é levado a Ybor City, Tampa, Florida, com o parceiro Dion Bartolo (Chris Messina), onde conhece Graciela Corrales (Zoe Saldana), a irmã de um homem de negócios do local cubano. Ele se aproxima do xerife do local, Irving Figgis (Chris Cooper), pai de Loretta (Elle Fanning), e enfrenta um homem ligado à Ku Klux Khan, RD Pruitt (Matthew Maher).
Baseado num romance de Dennis Lehane, A lei da noite tem uma reconstituição de época notável e não por acaso era visto como um dos potenciais candidatos ao Oscar. Para isso, a colaboração do diretor de fotografia Robert Richardson, habitual colaborador de Tarantino e Oliver Stone, é fundamental. Trata-se de um recorte histórico em que a vida de mafiosos se encaixa com a história da América e, principalmente, do preconceito existente nela, contra latinos e negros, a presença da Ku Klux Khan e a vigência da Lei Seca. Joe é um personagem indefinido entre uma certa gentileza e uma violência extrema, e Affleck, um ator muitas vezes bastante limitado, consegue equilibrar essas duas facetas principalmente nas sequências em que empreende diálogos com amigos ou inimigos. O seu grande adversário tem sobrenome White, e os preconceitos destilados ao longo da metragem do filme se direcionam principalmente às escolhas pessoais que Coughlin vai realizando.

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Ele conduz o início da trama com uma agilidade que repercute principalmente na segunda metade, mais interessada em fazer analogias entre religião e cinema, violência e arte, culpa e constituição de uma família. Do elenco, não apenas Affleck está bem (o que acontecia raramente em sua carreira até iniciar sua trajetória como diretor), mas, principalmente, Gleeson, Cooper, Maher, Girone, Miller e Fanning, esta num diálogo comovente com Joe em determinado momento, mostrando seu talento. É destacada a maneira como Coughlin representa uma espécie de indefinição entre ser realmente mau ou adotar apenas uma persona, o mesmo acontecendo com a personagem de Loretta, que se transforma numa ameaça para seus negócios. Não apenas o fato de terem pais que também são policiais que os aproximam, nem o fato de Coughlin ter um primo trabalhando como roteirista em Hollywood, para onde ela deseja ir, e sim a insegurança de não saber se terão culpa pelo que cometeram ou irão cometer.
Vendo os filmes de Ben Affleck, pode-se perceber o seu interesse pelo universo do crime. Em Atração perigosa, ele interpreta um Doug MacRay, amigo de James Coughlin (interpretado por Jeremy Renner), sobrenome do seu criminoso de A lei da noite.

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Os dois são assaltantes de bancos e a partir daí se desenha uma série de subtramas sustentadas por grandes atuações tanto de Affleck quanto de Renner, Jon Hamm, Blake Lively e Rebecca Hall. Se em Medo da verdade, o detetive feito por Casey Affleck estava às voltas com os criminosos de um bairro pobre, seu Doug tenta uma nova chance com a mulher feita por Hall.
O tema sempre presente em sua filmografia é a crença na mudança: em Medo da verdade, visualizada na criança; em Atração perigosa, no amor por uma mulher. Em A lei da noite, o tema da criminalidade se mescla com linhagens familiares, e em Atração perigosa não era diferente, na figura de Chris Cooper, como Stephen, pai de Doug. Muito interessante como Affleck desenha os conflitos entre policiais e criminosos, como em Medo da verdade, como se fizessem parte realmente do mesmo universo, o que vai se intensificar em A lei da noite. Surpreende que logo após esses dois filmes iniciais ele tenha feito Argo, uma obra destinada a vencer o Oscar, como aconteceu, mas sem a qualidade deles e, principalmente, de A lei da noite.

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a-lei-da-noite-24

a-lei-da-noite-38Quase não há mais obras sobre gângsters e este especificamente traz uma mistura de Os intocáveis, Dália negra e Dick Tracy (os tiroteios são filmados com uma precisão irretocável), além de Inimigos públicos, de Michael Mann, principalmente na maneira como Affleck apresenta seus personagens. A reconstituição fina oferecida pelo filme não é menos atrativa do que sua narrativa desenhada com recursos mínimos a partir do romance de Dennis Lehane, autor também do livro que deu origem a Medo da verdade. Não há o mesmo nervosismo urbano de seus primeiros filmes, justamente pela atmosfera, e sim uma frieza impactante nas entrelinhas, acrescentada pela narração esporádica de Coughlin. Também não há nenhum humor aqui: esta é uma tentativa de empregar o mesmo clima das peças de gângsters dos anos 40 e 50. Talvez seja ainda mais: Affleck mostra como os gângsters estão presos a um momento histórico e a um comportamento que apenas pretende flertar com a violência, sem ter nenhuma ideia do que ela acarreta. É difícil determinar por que este filme foi recebido com tanta rejeição, mas talvez seja em razão de um certo distanciamento desse gênero. O roteiro se esclarece como poucas obras conseguem, ou seja, se não é uma das realizações do ano, difícil saber muitas outras que seriam. Intimista, feito à moda antiga, fascinante, com um olhar quase europeu por Affleck, A lei da noite é um acerto de qualidade que só o tempo irá reconhecer.

Live by night, EUA, 2017 Diretor: Ben Affleck Elenco: Ben Affleck, Elle Fanning, Brendan Gleeson, Chris Messina, Sienna Miller, Zoe Saldana, Chris Cooper, Robert Glenister, Matthew Maher, Anthony Michael Hall, Scott Eastwood Roteiro: Ben Affleck Fotografia: Robert Richardson Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams Produção: Ben Affleck, Chat Carter, Jennifer Davisson Killoran, Leonardo DiCaprio Duração: 128 min. Distribuidora: Warner Bros Estúdio: Appian Way / Pearl Street Films

cotacao-5-estrelas

 

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4 Comentários

  1. Andrea Mar

     /  8 de janeiro de 2018

    Muito boa crítica de cinema. Pessoalmente acho que esse filme de Ben Affleck foi um dos melhores que ele fez. Ele trabalha muito para entregar o melhor em cada atuação, sempre supera seus papéis anteriores. É importante mencionar também que graças ao grande trabalho do resto do elenco foi um dos melhores filmes desse ano.

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    • André Dick

       /  8 de janeiro de 2018

      Prezada Andrea,

      agradeço por sua mensagem. A lei da noite é um dos melhores filmes de 2017, e talvez o mais subestimado. Não apenas Affleck, mas o elenco, como observa, está muito bem.

      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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  2. Paula Rocha

     /  21 de janeiro de 2018

    Excelente análise do filme, como sempre. Fiquei contente em saber o quanto você reconhece a magnitude dessa obra, pois quando terminei de assistir fiquei fascinada com a qualidade dele em todos os aspectos. Cada vez mais venho apreciando o talento de Affleck, tanto na atuação, como na direção. O tempo realmente está fazendo muito bem a ele, rsrsrsrs. Quero ainda assistir os outros dois filmes dele que você mencionou.
    É muito difícil construir personagens complexos, como o do de Joe Coughlin e transportar isso para as telas, e isso pra mim, foi uma das maiores virtudes do filme. Embora sabendo de toda a violência praticada pelo personagem e o fim que cada criminoso toma, Coughlin cria uma ligação emocional com o público, fazendo-nos comover com o seu final.

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    • André Dick

       /  22 de janeiro de 2018

      Prezada Paula,

      agradeço novamente por seu ótimo comentário e fico feliz que também tenha apreciado este filme injustamente subestimado. Sou admirador de filmes (cada vez mais escassos) desse gênero e não entendo por que ele não despertou curiosidade junto ao público, mesmo que tenha sido, ano passado, deixado de fora do Oscar em todas as categorias, inclusive as técnicas, o que, sabemos, prejudica a recepção desse tipo de obra. Sobre Ben Affleck, desde Gênio indomável, sempre achei que fosse um ator menor do que Matt Damon, além de escolher maus projetos nos anos 90 e início dos anos 2000. Mas suas qualidades como ator melhoraram e como diretor se mostra cada vez mais sólido. Não sou apreciador especial de Argo, mas A lei da noite e seus dois primeiros filmes como diretor são realmente instigantes (se puder, os veja). Isso que observa sobre a complexidade de Coughlin é o ponto de mais virtude: Affleck emprega nuances em seu personagem, um atrito entre violência e vontade de superar preconceitos e participar da história sob outro ponto de vista, sendo, no fim das contas, um solitário. A exemplo do que você observa, ele cria essa ligação emocional com o público e faz emocionar com seu final. Muito da força de A lei da noite vem exatamente disso que você observa.

      Agradeço novamente e volte sempre!

      Grande abraço,
      André

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