Mank (2020)

Por André Dick

Neste século, poucos cineastas apresentaram uma carreira tão exitosa quanto David Fincher, depois de seus primeiros filmes nos anos 90. Ele praticamente criou um estilo de filmagem e de fotografia desde O quarto do pânico, intensificado com Zodíaco, A rede social e O curioso caso de Benjamin Button. Desde Garota exemplar, em 2014, ele não fazia um filme novo, tendo se envolvido nos últimos anos com a extraordinária série Mindhunter, para a Netflix. É justamente para essa companhia de streaming que ele apresentou um projeto bastante particular, Mank, com roteiro do seu já falecido pai, Jack Fincher.
A história começa com uma explicação: em 1940, Orson Welles (Tom Burke) passou a ter liberdade para seu novo projeto junto a RKO. Ele escolhe como roteirista de seu próximo filme (Cidadão Kane) Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), que vai para Victorville, California, se hospedar numa casa afastada, com a perna quebrada depois de um acidente, a fim de escrever. Ele tem a ajuda da secretária  britânica Rita Alexander (Lily Collins), que transcreve tudo o que pensa. Enquanto isso, John Houseman (Sam Troughton)  tenta mantê-lo longe do álcool.

Perguntado sobre conhecer a estrela Marion Davies (Amanda Seyfried), ele retoma o dia em que estava na Paramount Studios, com David O. Selznick (Toby Leonard Moore). Lá, ele conhece William Randolph Hearst (Charles Dance), assim como reencontra Marion, que conhecera numa festa, numa ilha de filmagem de faroeste, com figurantes vestidos de índios, enquanto ela está no alto de uma pira, como a mocinha de King Kong. Depois Mank recorda  que ele e seu irmão Joseph (Tom Pelphrey) começaram a trabalhar com Louis B. Mayer (Arliss Howard) na MGM. E a essas figuras se juntam mais tarde Irving Thalberg (Ferdinand Kingsley) Shelly Metcalf (Jamie McShane), além de Josef von Sternberg e Charles Lederer (Joseph Cross).
A partir de uma festa grandiosa de aniversário de Mayer no Castelo Hearst. Mank é filmado com muita diferençaem relação aos outros filmes de Fincher, porque se parece uma obra dos anos 40e 50, desde a fotografa em preto-e-branco de Erik Messerschmidt até a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross (que receberam Oscar pelo trabalho em A rede social). Enquanto Clube da luta tinha imagens subliminares, aqui Fincher registra marcas de um filme antigo. Há muito de Barton Fink, dos irmãos Coen, desde o conflito de um roteirista com a falta de inspiração, até o retrato dos donos de estúdio como figuras afastadas da realidade. Isso foi desenvolvido também pelos Coen em Ave, César!, e não é aqui que Fincher consegue também inovar, porém instiga o espectador com referências a filmes como O mágico de Oz, tratando do pano de fundo de uma indústria que se encaminha para enfrentar a Grande Depressão.

Mais efetivo é seu compromisso com o elenco, incluindo a atuação rigorosa de Gary Oldman, mas não menos o afeto de Lily Collins, Tuppence Middleton e de Amanda Seyfried, e a grandiosidade das imagens que evoca a própria obra que surge aqui da mente de Mank. Para um diretor que não costuma colocar um ponto de vista feminino em suas tramas, Fincher consegue, por meio deste roteiro, um painel interessante. Cidadão Kane. Uma festa para a eleição de 1934 na Califórnia remete a New York, New York, de Martin Scorsese e, ao mesmo tempo, ao recente Trama fantasma, com Mank e sua esposa Sara (Tuppence Middleton) deslocados na festa, e uma certa atmosfera entre o dia e a noite, indefinida, tenha elementos de Ed Wood, de Tim Burton. Em certos momentos, há uma quase sensação onírica – um dos personagens brinca que Mank nunca viu o nascer do sol, e no seu encontro com Marion nas filmagens se dá contra uma iluminação que lembra um sol, com as nuvens por trás, como se o personagem existisse apenas dentro de um ambiente fantasioso, o que se encaixa perfeitamente na caminhada que faz pela mansão de Hearst ao lado da atriz, em diálogo com aquele.de Ryan Gosling e Emma Stone nas ladeiras de Los Angeles de La La Land. No entanto, Fincher parece resistir ao tratamento dado aos personagens baseando-se em demasia no roteiro fragmentado e com excesso de flashbacks, o que se torna uma escolha talvez para homenagear que a peça importante aqui é seu pai.
No entanto, isso fornece ao filme uma camada de discussões e referências políticas que não apenas não têm a ver com a obra de Foncher, como ele visivelmente não se sente à vontade para tratar delas. É muito difícil, nisso, explorar um personagem que tenta questionar o sistema no qual está inserido sem nunca se libertar dele; soa sempre como um discurso enviesado, como artistas que tomam champagne falando em como proporcionar o alimento que eles mesmos acumulam ao próximo.

Desse modo, se Mank a princípio registra uma humanidade em sua relação com a secretaria, a esposa e Davies têm um misto de ironia, amargura e ceticismo, quando ele faz discursos ecoando Dom Quixote soa apenas forçoso. Além disso, o terceiro ato, justamente por isso – e pela edição excessivamente entrecortada –, se sente anticlimático e simplista diante principalmente de uma obra tão complexa quanto a que viria ser Cidadão Kane, de Welles, também pela atuação de Tom Burke como o cineasta, bastante problemática no ponto crucial. Com isso, o aceno de Fincher a uma antiga Hollywood e às injustiças do Oscar soa demasiadamente prematuro e acentuado para um cineasta que sempre teve na liberdade, como Welles, seu principal quesito como artista.
Ainda assim, mesmo com percalços no roteiro e na confusão de tom, Mank é um filme que, pelas atuações, muitos diálogos extensos e interessantes e pela parte técnica soberba, é algo que ainda demanda especial atenção. Em nenhum momento se duvida que Fincher traz em seu novo experimento um pouco das tardes em que certamente passava com seu pai assistindo a filmes antigos e ganhando carinho pelo cinema. Ele está em cada quadro da história, tornando-se, curiosamente, sua obra em igual escala mais afastado de seu estilo e talvez mais pessoal, uma distância que ele, como ser humano, não conseguiu, como a falha de seu personagem central, superar.

Mank, EUA, 2020 Diretor: David Fincher Elenco: Gary Oldman, Amanda Seyfried, Lily Collins, Arliss Howard, Tom Pelphrey, Sam Troughton, Ferdinand Kingsley, Tuppence Middleton, Tom Burke, Joseph Cross, Jamie McShane, Toby Leonard Moore, Monika Gossmann, Charles Dance Roteiro: Jack Fincher Fotografia: Erik Messerschmidt Trilha Sonora: Trent Reznor e Atticus Ross Produção: Ceán Chaffin, Eric Roth, Douglas Urbanski Duração: 132 min. Estúdio: Netflix International Pictures Distribuidora: Netflix

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2 Comentários

  1. É um bom filme, mas uma coisa que me incomodou bastante é o fato do Fincher realmente acreditar que o Mank escreveu inteiramente o roteiro de Cidadão Kane.

    Alguns comentários que eu li:

    Orson Welles scholar Joseph McBride weighs in on the film, and is highly critical of its portrayal of Welles, pointing out distortions and instances of dramatic license in the script. He also gives an overview of the history of negative portrayals of Welles onscreen, which is interesting.

    An excerpt:

    The Finchers’ evident thematic intent is to show Mank heroically rallying, for once in his life, to write something of great value but almost being bullied out of credit by a craven, arrogant thief. To pull off that magic trick of storytelling, Fincher and his late father must (1) refer to what Mank is writing as “the first draft”; (2) ignore the previous weeks Mankiewicz and Welles spent together in Hollywood working out the structure and characters of what became Citizen Kane; (3) ignore the parallel draft of the script Welles was working on in Beverly Hills at the same time Mank was writing his long draft in Victorville, some of which was being sent down to Welles to revise; (4) fail to depict the visit or visits Welles paid to Victorville while Mank was writing (a photo of him there with Mank and Houseman can be consulted in Meryman’s biography), even though Marion Davies (Amanda Seyfried) is shown visiting, which did not happen; (5) downplay as mere “editing” or “noodling” the numerous drafts Welles did in reworking their early work in at least seven drafts; and (6) ignore Welles’s constant revisions even through shooting.

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    Outro comentário:

    There definitely sounds like there’s going to be a lot of revisionism here, which is disappointing. Ultimately Welles kept what he wanted from his own drafts and used what he wanted from Mankiewicz’s and also arranged the scenes in the order they are in, which is obviously really important given the non-linear structure. He made all the dramatic choices, plus had 300 pages of notes that all the drafts of the script were based on that he wrote before Mankiewicz even got involved. I’ve never heard anyone with first hand knowledge of the situation dispute this. The dispute between Welles and Mankiewicz was that he claimed he’d written about 70-80 percent of the finished scenes and dialogue in the film, and thus deserved writing credit whereas Welles said it was more like 50-50. I think they both have a point as to whether or not Mankiewicz deserved to be a full credited writer. People don’t realize that a lot of people might work on a screenplay and not receive a full “written by” credit. That usually goes to the person/people who actually arranged the finished screenplay even if they didn’t personally write a lot of the movie.

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    • André Dick

       /  15 de dezembro de 2020

      Prezado Alan,

      Agradeço pelo comentário.

      Muitos detalhes que se referem a esta questão são, no meu entendimento, subjetivos, ainda mais para os estudiosos de Orson Welles, que querem, com propriedade, destacá-lo. Há o ensaio de Pauline Kael para se contrapor a eles, mas não trarei suas ideias aqui, pois também é subjetivo. Não acho que Fincher diga que o roteiro é completamente de Mank. Num telefonema, Welles diz estar mexendo, editando o roteiro, por exemplo, com o que o roteirista concorda (mesmo porque era um contratado). E nas filmagens obviamente fez sua edição,, como a maior parte de cineastas com toque autoral. Um filme, claro, não precisa ser absolutamente fiel, ou seja, há uma necessidade de tomar Mank como aquele que criou a base de referências para os personagens e colocar Welles em segundo plano para buscar uma certa tensão do personagem que aqui é central.

      Não considero Welles, e isso é absolutamente pessoal também, um roteirista com a clareza digamos didática de Mankiweciz: ele é mais abstrato, kafkiano (não à toa fez “O processo”), confuso de forma proposital, antilinear. Mank é um roteirista nos moldes mais “clássicos”. As ideias básicas de “Cidadão Kane”. são, e isto é apenas impressão pessoal, dele; a realização final, e técnica do filme é de Welles. Este nunca mais repetiu “Cidadão Kane” em termos de personagens.

      Volte sempre!

      Um abraço,
      André

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