Duna (2021)

Por André Dick

O diretor Denis Villeneuve encerrou a década passada como um dos grandes nomes da Ficção Científica por causa de dois filmes: A chegada e Blade Runner 2049. Embora tenha construído sua trajetória com filmes variando temas, da tragédia escolar de Polytechnique, passando pelo policial em Os suspeitos e Sicario – Terra de ninguém, ou pela psicologia em O homem duplicado, ele conseguiu mesclar seu estilo à fantasia e ao futurismo. Na virada de década, não por acaso seu nome se associa novamente a um universo fantástico, desta vez baseado no fascinante romance de Frank Herbert.
Depois da versão de 1984 de David Lynch, houve algumas tentativas para levar novamente os personagens de Herbert à grande tela, mas sem efetivo sucesso. Desta vez, no entanto, com o apoio da Warner, Villeneuve foi chamado para movimentar um projeto que é arriscado em todos os pontos.
Superprodução de 165 milhões de dólares, o novo Duna obviamente tem a tarefa de tentar abrir uma nova franquia, sendo lançado em streaming e nos cinemas (no Brasil, deve chegar à HBO Max no fim de novembro).

Cheguei ao romance por meio do filme de David Lynch e é comum se dizer que este não conseguiu explicar direito o romance de Herbert por meio de seu roteiro. Trata-se de uma injustiça, que é confirmada pela tentativa de Villeneuve  facilitar para o grande público, nunca tentando inserir muito os nomes mais herméticos do universo do livro.
A história se passa em 10.191 e começa mostrando Paul Atreides (Timothée Chalamet), no planeta Caladan, tomado de mares, que se prepara para ir com sua família para o planeta desértico de Arrakis, do qual os Harkonnen, inimigos de sua família, foram expulsos pelo Imperador Shaddam IV, aqui invisível. Paul vem tendo sonhos com os fremen, habitantes de Arrakis, principalmente com uma moça, Chani (Zendaya). O pai de Paul, Duque Leto Atreides (Oscar Isaac), possui um anel de poder cobiçado, e Lady Jessica (Rebecca Ferguson), sua mulher, é da linhagem de sacerdotistas Bene Gesserit, que tenta impedir a chegada de um messias a Arrakis, querendo sempre resguardar uma magia estranha. Gaius Helen Mohiam (Charlote Rampling), que serve ao Imperador, lembra que Jessica não podia ter gerado um filho, pois ele pode ser o Kwisatz Haderach, aquele que pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ao lado de Paul, estão Gurney Halleck (Josh Brolin), Wellington Yueh (Chang Chen) e Thufir Hawat (Stephen Henderson).

O vilão é o Barão Vladimir Harkonnen (Stellan Skarsgård), que tem Rabban (Dave Bautista) a seu lado e outros ajudantes estranhos, como Piter de Vries (David Dastmalchian), todos interessados na especiaria existente em Arrakis, que ajuda na locomoção das naves no espaço e pode representar o domínio do universo.
Comenta-se que o filme de Lynch nos anos 80 era confuso por já começar explicando o que aconteceria dali em diante, o que trouxe ao filme uma aura de inadaptável (o que já acontecera com a versão sonhada de Alejandro Jodorowsky). Cria-se o movimento de que entende mais o filme quem leu o livro, o que não confere nas versões para o cinema – ambos até didáticos. O curioso é que o Duna original é mais interessante, mesmo com sua exposição. A nova versão, desde o início, faz uma exposição, mas mais por meio de imagens, procurando se desvencilhar do texto de Herbert, como já referido, em termos de nomes – como na entrega que faz desde o início dos fremen, sem desenvolver nenhum tipo de mistério. É evidente que Villeneuve viu o filme de Lynch várias vezes e extraiu boa parte da visão que Lynch trouxe desses personagens, fazendo até uma referência inicial aos “sonhos”. Nesse sentido, é um pouco decepcionante que um dos roteiristas seja Eric Roth, que fez um trabalho tão apurado no desenvolvimento de personagens em Forrest Gump e O curioso caso de Benjamin Button. Ainda assim, a maneira como consegue sintetizar uma trama complexa tem seus méritos, antes de tudo porque Villeneuve sempre consegue traduzir palavras por meio de imagens de maneira muito conveniente e particular nos seus tons. Apenas se lamenta que ele conte até a metade do primeiro romance deste universo de Herbert, quando poderia ter contado mais (ou talvez por cause de decisões que fugiram a seu controle). Com isso, ele aplica seu estilo lento e minucioso em muitas passagens, o que, como em suas outras obras, tem eficácia surpreendente.

Villeneuve tem a necessidade, em sua versão, o que funciona porque dá uma noção de continuidade de sua obra, num escopo mais abrangente, de imprimir imagens que remetam a Blade Runner 2049, principalmente, com o uso de maquetes, quando os Atreides estão chegando a Arrakis, lembrando também a entrada dos policiais no México em Sicario. Ao mesmo tempo, quando surge uma nave gigantesca saindo do fundo do oceano de Caladan, remete imediatamente ao seu filme A chegada, assim como aquela nave que aterrissa antes do aviso aos Atreides de que eles irão para Arrakis. E, em determinado momento, surge uma aranha que remete a O homem duplicado.
Como o filme de Lynch, o de Villeneuve quase não há ação ou humor – costuma-se comparar O senhor dos anéis com Duna, porém são, afora o universo mitológico, muito distintos, cada um possuindo qualidades específicas –, embora tragam diálogos sobre intrigas de poder e política. O livro tem até um viés ecológico e religioso, que é evitado por Lynch e agora por Villeneuve.
Já  alguns personagens têm suas características acentuadas, como o do próprio Barão, que no livro não parece ter toda a perversidade imaginada por Lynch e Villeneuve. No Duna atual, o ator Stellan Skarsgård tem uma grande atuação, mas quase sem nenhum roteiro à mão para trabalhar. E Villeneuve utiliza bem Jason Momoa como Duncan Idaho, personagem que pouco aparecia no filme de Lynch. Ele serve como uma ponte de Paul Atreides com o universo adulto e seu bom humor funciona como um elemento humano numa história mais densa. Ao lado dele, também é um destaque Sharon Duncan-Brewster como a Dra. Liet-Kynes, com uma presença vibrante.

É interessante, aliás, como Villeneuve faz uma ficção científica por meio quase apenas de imagens, remetendo, no início, a Tarkovsky, de Solaris, sendo sob certo aspecto até experimental. No entanto, sua maior influência é, sem dúvida, o estilo adotado por Zack Snyder desde Batman vs Superman, e incrivelmente os Atreides têm muitos elementos dos Wayne de Snyder, com um certo tom soturno familiar. A caminhada que Paul e Duque Leto fazem numa colina à beira-mar lembra muito o Wayne de Affleck caminhando ao redor da mansão. Também a estética das naves remete ao que Snyder apresenta principalmente em sua versão finalizada de Liga da Justiça. Em termos de design de produção e figurinos, o filme não tem a inventividade do filme de Lynch, lembrando um pouco, em termos de iluminação, os filmes mais soturnos da saga Harry Potter, mas compensa com efeitos visuais notáveis e uma boa noção de naves espaciais inovadoras. Visualmente, porém, é monocromático, desértico mesmo, fazendo às vezes ecoar um A hora mais escura, de Kathryn Bigelow, sobretudo com a analogia entre Arrakis e um país do oriente médio, sendo que o diretor de fotografia Greig Fraser é o mesmo. E, se a versão dos anos 80 tinha a trilha de Toto, aqui Villeneuve conta com a de Hans Zimmer, com acordes que remetem à de Alexandre Desplat, igualmente do filme de Bigelow.
O novo Duna, como o antigo, é em grande parte fascinante, com um estilo europeu muito bem dosado numa plataforma blockbuster. É assim mesmo onde é falho: nos diálogos dispersos e reduzidos, no pouco desenvolvimento de qualquer personagem, nas atuações competentes, no entanto com raros diálogos, como as de Isaac, Brolin e Ferguson. Chalamet continua se mostrando em parte uma incógnita, embora se revele carismático, depois de se mostrar um ator incrível em Querido menino. Ele não é exatamente verossímil num filme de ação, como já havia se mostrado em O rei, mas o roteiro também não o ajuda. Ainda assim, os 155 minutos de Duna passam voando, criando uma estranha sensação de material que poderia ser melhor aproveitado e, ao mesmo tempo, encanta com a condução de Villeneuve, diretor de raro talento. A própria maneira como ele filma os vermes gigantes de Arrakis, com um senso de realismo, mostra essa percepção. Nesse sentido, pela expectativa criada, Duna talvez não corresponda a tudo que se esperava dele. Mesmo assim, é um dos grandes filmes lançados este ano, e isso conta muito.

Dune, EUA, 2021 Direção: Denis Villeneuve Elenco: Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac, Josh Brolin, Stellan Skarsgård, Dave Bautista, Stephen McKinley Henderson, Zendaya, David Dastmalchian, Chang Chen, Sharon Duncan-Brewster, Charlotte Rampling, Jason Momoa, Javier Bardem Roteiro: Eric Roth, Jon Spaihts, Denis Villeneuve Fotografia: Greig Fraser Trilha Sonora: Hans Zimmer Produção: Mary Parent, Cale Boyter, Joe Caracciolo Jr., Denis Villeneuve Duração: 155 min. Estúdio: Legendary Entertainment, Villeneuve Films Distribuidora: Warner Bros. Pictures

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