Ataque dos cães (2021)

Por André Dick

A Netflix tem lançado algumas obras ao final de cada ano com o intuito de colocá-las na corrida para o Oscar. Enquanto Não olhe para cima é a faceta polêmica desse recurso, Ataque dos cães, de Jane Campion, traz elementos mais de cinema underground. Do mesmo modo, parece estranha a mistura que ele apresenta. Seria um drama? Um faroeste intimista? Um suspense sobre a descoberta da sensualidade? Talvez ele seja uma mescla de tudo isso.
Lançado no Festival de Veneza, Ataque dos cães mostra os irmãos Burbank, Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons), que vivem numa fazenda em Montana, criando gado. George se apaixona por uma viúva, que tem uma posada, Rose Gordon (Kirsten Dunst). Phil logo entra em embate com a possibilidade, implicando com o filho dela, Peter (Kodi Smit-McPhee), que possui características que ele considera afeminadas.

George e Rose se casam, contra a sua vontade, e a partir daí começa uma espécie de encontro entre pessoas radicalmente opostas. Phil julga que ela está interessada no dinheiro do irmão, além de ter problemas com o álcool. Para piorar, o filho dela vai morar com eles na fazenda. A princípio, bastante contrário, Phil começa a ter afeição pelo jovem, o que vai trazer o mote principal para a narrativa de Campion. A diretora de origem neozelandesa já fez um trabalho muito destacado nos anos 90, O piano, que deu o Oscar tanto à Holly Hunter como à pequena Anna Pequin como atriz coadjuvante. Ela possui um estilo muito hábil na construção de personagens. Ataque dos cães parece, a princípio, muito simples, mas a maneira como ela apresenta a narrativa oferece ao espectador traços complexos sobre como os indivíduos se mostram quando ameaçados ou se escondem quando são estranhos num determinado ambiente. Rose, tocando piano num encontro em que estão a mãe (Frances Conroy) dos irmãos Burbank e o governador (Keith Carradine), é um exemplo de conflito interno com a sua própria escolha. E a figura do “cão” do título original se mostra concreta ao longo de algumas situações apresentadas, em que personagens a princípios inocentes ou ingênuos se mostram estranhos.

Há um clima de suspense na ação dos personagens, principalmente de Phil e Peter, e quando ele recorda um antigo mestre dele, Bronco Henry, na arte de lidar com o gado parece que Campion o mostra como uma tradição perpetuada. É uma pena somente que Thomasin McKenzie, boa atriz, seja desperdiçada como Lola, uma ajudante da fazenda.
Baseado em romance de Thomas Savage, o filme tem ótimas atuações, principalmente de Benedict Cumberbatch e Kodi Smit-McPhee, e consegue ser eficiente na maior parte do tempo. Por sua vez, Plemons e Dunst estão impecavelmente tímidos. A fotografia de Ari Wegner e a trilha entre a opressão e a beleza harmônica de Jonny Greenwood remetem a Paul Thomas Anderson, uma boa referência de Campion, e há uma certa grandeza no visual que também evoca O portal do paraíso, de Cimino. Quando Campion filma a fazenda, por exemplo, ela sempre procura uma extensão emocional com as montanhas ao fundo, o que acontecia no clássico de Cimino. Também quando mostra George e Rose indo para a fazenda numa estrada deserta e inalcançável. É uma espécie de faroeste mais íntimo nos moldes do que já fez Clint Eastwood em Os imperdoáveis, por exemplo.

Também existe um bom desenvolvimento de personagens, principalmente por meio de lacunas que nunca se preenchem ao longo da narrativa, passando exatamente o vazio existencial que a diretora pretende focar. Os personagens, mesmo Phil e suas botas com esporas se fazendo presentes no chão do ambiente da fazenda, parecem nunca estar à vontade em seus lugares, o que dá ao filme uma sensação contínua de deslocamento, o que se encontra plenamente realizado. O cowboy interpretado por Cumberbatch é a reunião simbólica de diversos temas: a tentativa de coordenar uma família, a busca pelo domínio em relação a outras figuras que passam a fazer parte de sua rotina e a sexualidade encoberta por atitudes que parecem opostas a ela. Ataque dos cães tem uma lentidão que se estabelece aos poucos como bastante impressionante, principalmente em seu surpreendente terceiro ato. É nele que Campion consegue eclodir o suspense que se desenvolve nos dois primeiros atos com uma habilidade ao mesmo tempo clássica e contemporânea, tornando seu filme uma peça complexa sobre os relacionamentos humanos.

The power of the dog, AUS/Nova Zelândia/ING/EUA, Canadá, 2021 Diretor: Jane Campion Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee, Thomasin McKenzie, Genevieve Lemon, Keith Carradine, Frances Conroy Roteiro: Jane Campion Fotografia: Ari Wegner Trilha Sonora: Jonny Greenwood Produção: Emile Sherman, Iain Canning, Roger Frappier, Jane Campion, Tanya Seghatchian Duração: 126 min. Estúdio: New Zealand Film Commission, Bad Girl Creek, Max Films, Brightstar, See-Saw Films, Cross City Films, BBC Film Distribuidora: Transmission Films (Austrália e Nova Zelândia) e Netflix (Internacional)

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