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Niilismo em "Clube da Luta"

Clube da Luta (1999) é baseado no livro homônimo de Chuck Palahniuk (lançado em 1996) e dirigido por David Fincher, conhecido por filmes como Seven (1995), O Curioso Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, 2008) e Gone Girl (2014). Caso você viva em outro planeta ou simplesmente ainda não tenha tido a oportunidade de ver esse grande clássico cult, eis o enredo. O filme é narrado por um personagem sem nome (Edward Norton) que leva uma vida banal, até o dia em que conhece Tyler Durden (Brad Pitt), cuja visão de mundo anti-capitalista mudam a vida do Narrador. Juntos eles começam um clube clandestino de luta.

Clube da Luta e Nietzsche

Desde o início do filme observamos no comportamento do Narrador características da nossa sociedade de consumo: o tédio gerado pela repetitividade de seus dias, o preenchimento de um vazio pessoal pelas compras, o trabalho por necessidade e não por satisfação, etc. Levando uma vida monótona que parece sem sentido, ele age de acordo com uma verdade absoluta capitalista que pode ser resumida na ideia de que consumo é felicidade. Há uma procura incessante pela vida feliz dos anúncios de TV, aquela que vemos nas propagandas de carro, mas essa felicidade é sempre associada à posse: é preciso preencher não somente o vazio de um apartamento, mas de toda uma vida, com os móveis de um catálogo. A exaustão criada por essa procura é literalmente visível nas expressões apáticas do Narrador (fruto da atuação incrível de Edward Norton) e representado até mesmo em sua insônia. Em nenhum momento seu comportamento parece ser resultado de suas vontades internas, mas mera consequência de um “vício” criado por uma moral que impõe uma forma de viver que não dá conta de suprir seus indivíduos de genuína felicidade. Para criar esta atmosfera de pessimismo e indiferença – que caracterizam não apenas a personalidade inicial do Narrador, mas também a apatia geral de uma sociedade capitalista – todas as images do filme são pálidas. A crítica ao capitalismo é evidenciada também pelos cenários do filme sempre hostis e frios, seja na impessoalidade do apartamento do Narrador, seja na sujeira da casa de Durden.



Essa postura inicial do Narrador e toda a atmosfera que o rodeia exibem traços do que comumente chamamos de niilismo. Mas o que significa este “niilismo”? Pegue o balde de pipoca e vamos lá. O “niilismo” (do latim “nihil”: nada) designa uma atitude que expressa uma descrença geral em tudo. Sabe aqueles dias em que nos sentimos um pouco deprimidos e nada parece ter sentido ou importância?! Nestes momentos é nosso lado niilista que se manifesta. Mas qual é a origem dessa maneira descrente de ver o mundo? Por que nos sentimos assim? O filósofo Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), conhecido sobretudo por seu bigode protuberante (vide abaixo), escreveu extensivamente sobre o assunto. De forma geral, para ele nos sentimos impotentes sempre que somos confrontados com uma moral geral que nos dita como agir, como pensar, como ser. Nas palavras brutais de Nietzsche: “A moral, por pouco que condene, é em si mesma, e não em relação à vida, um erro específico com o qual não se deve ter compaixão, uma idiossincrasia de degenerados que causou muito dano” (Crepúsculo dos ídolos, “A moral como manifestação contra a natureza”, 6). Acabamos recorrendo à tais valores apenas por covardia e uma espécie de inércia frente à algo socialmente aceito por todos à nossa volta e afinal ninguém gosta de se sentir excluído. Não agimos de acordo com algo que corresponde verdadeiramente a quem somos individualmente, mas segundo uma verdade genérica que, na maior parte das vezes, nem perdemos tempo tentando entender. Como nossos pais dizem “é assim desde que o mundo é mundo”. Isso significa que por mais que vivamos nossas vidas como se tudo estivesse bem, quando buscamos lá no fundo de nossas almas, o mundo parece não ter sentido. E eis que, como o Narrador, nos tornamos niilistas, sem nem nos darmos conta.



Tyler Durden e o niilismo ativo

Segundo Nietzsche existem contudo várias formas de manifestação do niilismo. Nossa aceitação passiva de uma moral superior que não corresponde a quem somos é uma dessas formas, por exemplo, porque nos tornamos apáticos diante de uma verdade na qual não acreditamos. Mas existe um outro tipo de niilismo que pode ser altamente positivo em nossas vidas e é o que Nietzsche chama de “niilismo ativo”. Neste caso, usamos a descrença em certos valores como forma de reflexão. Colocamos em questão a legitimidade de valores abstratos, refletindo sobre o fundamento de nossas crenças: por que acreditamos no que acreditamos? A possibilidade oferecida por este tipo de niilismo de repensar certas crenças é resumida pelo filósofo na frase polêmica: “Deus está morto”. Não se assuste com a audácia de Nietzsche, essa frase não deve ser interpretada em um contexto religioso, mas como uma forma de expressar a ideia de que não somos obrigados a nos apegar à valores exteriores impostos à nós, como a própria ideia de Deus. Se Deus está morto, qualquer moral é permitida e válida, pois não há mais um fundamento divino. O que está morto é a autoridade que nos diz como agir, o que ser. Cabe agora a cada um questionar seus próprios valores.


No caso do Clube da Luta, se inicialmente o narrador demonstra através de sua apatia um comportamento tipicamente niilista, sua frustração crescente com uma vida que deveria trazer felicidade, mas não cumpre com o prometido, o leva a recorrer à seu subconsciente para conseguir se desvencilhar de tais valores. Eis que Durden aparece justamente como aquele que é capaz de expressar certos questionamentos quanto ao modo de funcionamento de nossa sociedade. Certamente em Durden também podemos observar traços do que definimos como uma “atitude niilista”, já que ele nega os valores tidos como sagrados pela sociedade que o rodeia. Mas essa negação tem, ao menos inicialmente, um tom questionador ao invés de indiferente. Trata-se, então, justamente, de um outro tipo de niilismo, aquele que Nietzsche defende. Visualmente essa diferença é marcada pelas cores vivas das roupas extravagantes utilizadas por Durden que contrastam com a paleta de cores pálidas que permeiam todo o filme. O niilismo ativo de Durden é, desta forma, contraposto ao niilismo apático de uma sociedade consumista estafada. Quando perde seu apartamento, o lado capitalista do Narrador tende a considerar a perda material como uma perda de “tudo” o que importa, já que seu sistema de valores é baseado na posse. Ele diz à Durden no bar: “Eu tinha tudo!”. É Durden quem é capaz de afirmar em voz alta: “Somos produtos da obsessão por um estilo de vida. Assassinatos, crime, pobreza. Estas coisas não nos interessam. O que me interessa são revistas de celebridades, televisões com 500 canais, o nome de um cara qualquer na minha cueca. Rogaine, Viagra, Olestra. Foda-se Martha Stewart! Eu digo: nunca seja completo. Eu digo: pare de ser perfeito. Eu digo: vamos evoluir”. Graças ao niilismo ativo de Durden, o Narrador consegue colocar em questão a legitimidade de suas crenças consumistas: até que ponto sua vida é reduzida às coisas que ele possui?



O niilismo nietzschiano de Durden atinge sua expressão absoluta quando ele afirma em outro momento do filme: “É apenas depois de perdermos tudo que somos livres para fazer qualquer coisa”. Essa frase pode ser entendida sob a mesma ótica do “Deus está morto” nietzschiano. Se a morte de Deus representa a liberdade de leis divinas que determinam nossas ações, em uma sociedade capitalista a perda de tudo representa a liberdade de uma forma de pensar consumista que afirma que só seremos felizes se possuirmos certas coisas. O resultado é portanto o mesmo: não há mais uma instância superior que dite as regras sobre quem devemos ser. Apesar desse tom agressivo conferido ao filme pelo personagem de Durden, a narrativa é recheada de pitadas de humor, o que facilita nossa inserção na história e faz com que aceitemos as motivações de Durden. Quem não sorriu, mesmo que internamente, ao reparar os flashes de pênis que Fincher espalha pelo filme afora?! Assim, mesmo apresentando um tema complexo, o estilo descolado de Fincher permite que absorvamos os questionamentos niilistas de Durden quase inconscientemente.


Indo além do niilismo de Durden

No entanto, ao invés de utilizar o niilismo ativo representado pelo seu alter-ego “durdeano” como uma forma de colocar em questão certos valores e, através disso, construir seu próprio caminho (se responsabilizando verdadeiramente pelas suas escolhas ao invés de ser "levado pela correnteza"), o Narrador não consegue superar a simples negação de uma moral consumista em direção à algo positivo. Ao contrário, ele adentra um caminho simplista de pura depredação. É preciso que as atitudes destrutivas de Durden cheguem a um certo limite para que o Narrador decida retomar o controle de sua vida. Curiosamente esse limite parece ser o carinho do Narrador por Marla (Helena Bonham Carter). No momento que a vida desta é ameaçada, ele passa a negar o controle à Durden e começa a repensar o que ele realmente acredita ser “correto”. Ocorre então uma reconversão do seu niilismo: ele se dá conta de que não quer mais ser guiado pelas decisões desta instância “exterior” (subconsciente) representada por Durden e descobre, inversamente, quais valores correspondem verdadeiramente ao que ele acredita. Até então quase tudo parecia aceitável, menos a morte de alguém querido.


Essa capacidade de utilizar o niilismo como um meio para a descoberta de si mesmo e para o estabelecimento dos seus próprios valores é justamente o que Nietzsche defende em sua filosofia. Para o filósofo alemão não basta nos atermos à uma atitude niilista, precisamos superar a negação da moral para restabelecer valores à nossa própria medida (o que ele chama de “transvaloração” ou “transmutação de todos os valores”). Mas atenção, não se trata de criar uma terra sem lei onde cada indivíduo faz o que quer. Ao contrário, precisamos rever nosso posicionamento e descobrir até que ponto acreditamos de fato em algo ou se somos simplesmente coagidos. A partir dessa atitude podemos definir nossas próprias regras, que correspondam a quem somos. Se eu descubro, por exemplo, que não acredito na ideia de propriedade privada e acho que tudo deve pertencer a todos, que eu aja então de acordo com isso. O que não significa impor minha verdade aos outros e simplesmente roubar o que lhes pertence. Ao contrário, devo viver eu mesma de acordo com “minha verdade” e levar uma vida que condiza com isso, por exemplo dividindo tudo o que tenho com outros. O niilismo é, portanto, apenas um primeiro passo que nos permite definir nossa própria moral.


O niilismo de Durden como caminho para a descoberta de si

Segundo Nietzsche, uma vez que superamos o niilismo, descobrimos que a vida é feita de mudanças e incertezas. Não há moral que possa definir o que é o mundo porque o mundo é transformação. O homem que atinge esse nível de consciência é o que Nietzsche chama de “Super-homem” (Übermensch, mais precisamente significa um “Além-do-Humano”). Infelizmente Nietzsche não está falando do alter-ego de Clark Kent com seu macacão apertadinho, mas simplesmente de um homem diferente dos outros pela sua capacidade de compreensão do caráter mutante do mundo. Consciente disso, ele é capaz de recriar seus próprios valores num constante processo de superação de si: “E a própria vida me confiou este segredo: “Olha – disse – eu sou o que deve superar a si mesmo””(Assim Falou Zaratustra, II, “Da superação de si”).


Sob esse ponto de vista, a narrativa do Clube da Luta poderia ser vista como a descrição do processo de mudança vivido pelo Narrador quando ele adentra o caminho niilista nietzschiano. Graças a um belo roteiro, este processo é dividido em cinco etapas: definição de quem ele é, negação dos valores tidos como importantes, questionamento com relação às suas ações, revelação sobre si mesmo e transformação final, quando ele decide retomar controle de sua vida. Consequentemente, graças a narrativa em primeira pessoa o roteiro se torna uma espécie de auto-análise feita pelo próprio Narrador, observando as etapas que o levaram a descoberta de si. Isto torna aliás a revelação de que Durden é seu alter-ego ainda mais surpreendente, já que ele mesmo não era consciente disso. Parece que o próprio autor do Clube da Luta, Palahniuk, só se deu conta de que Durden e o Narrador eram a mesma pessoa quando chegou no meio da escrita da história. Isto torna a narrativa realmente uma descoberta para todos nós, narrador e autor inclusos. Esse formato de “auto-análise” nos permite realmente acreditar que no momento final o Narrador parece então, enfim, ter uma visão melhor de si mesmo, incorporando, aliás, uma máxima nietzschiana “O que diz sua consciência? Torna-te quem tu és” (Gaia Ciência, §270). Uma vez que, através desse processo niilista, ele descobre quem é, ele está finalmente pronto para definir sua própria moral. Mas o caminho de descoberta de si é tão árduo que é preciso matar a parte de nós que ainda nos prende à uma autoridade superior, algo simbolizado pelo “suicídio” executado no ato final. Enquanto ele segura a mão de Marla carinhosamente, tomando enfim responsabilidade pelas suas ações e aceitando seus sentimentos por ela, o Narrador assiste à transformação do mundo, explodindo lá fora, se tornando ele mesmo um Além-do-Humano. Este “super-homem” não precisa de capa para se tornar um herói.



Por mais que seja visto como um filme altamente “anti-capitalista”, me parece que através de uma abordagem nietzschiana a mensagem do Clube da Luta pode ser interpretada de maneira mais profunda. Não se trata de afirmar ingenuamente que o capitalismo aliena seus indivíduos e é, portanto, ruim. De forma muito mais complexa, Fincher parece nos dizer que não devemos seguir crenças que não correspondam a quem somos, que elas sejam capitalistas ou anarquistas, ou mesmo religiosas. Enquanto formos controlados por uma moral abstrata exterior a nós, que nos imponha uma forma de ser, seguimos uma existência impessoal (o que é expresso justamente pela estética pálida do filme). No caso do filme, essa ditadura moral é representada pela formulação tipicamente capitalista do “é preciso ter coisas para ser feliz”. Mas deste niilismo, resultante do nosso modo de vida capitalista, algo positivo pode nascer. A solução não é, contudo, uma simples negação absoluta de tais valores. Tal ação extrema parece nos levar, paradoxalmente, de volta ao mesmo problema: a velha moral superior é simplesmente substituída por uma nova. Ao contrário, como Fincher nos mostra, a melhor opção é usar essa negação como uma forma de reflexão dos próprios valores : o que me é caro, no que acredito? No caso do Clube da Luta o que parece importar no final é o amor, que leva o Narrador a se dar conta de um valor inalienável num mundo em constante transformação. Não há propriedade privada que baste para trazer felicidade porque a alegria em possuir algo é por demais efêmera diante da rapidez com que o mundo e o indivíduo se transformam. Em um mundo de incertezas, o que resta no final do dia são nossas crenças pessoais e um esforço constante de auto-superação, nos tornando sempre melhores humanos. O verdadeiro herói não é o Tyler Durden que reside em cada um de nós, mas o Além-do-Humano que podemos sempre potencialmente nos tornar enquanto assistimos à decadência da nossa civilização. PS: Agradeço ao meu grande amigo Patrick e ao seu colega Homero por me inspirarem a escrever sobre Clube da Luta e um grande "obrigada" à minha irmã Grécia e ao meu marido Yves pelas críticas.

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