O Justiceiro

Apesar de descaracterizar o personagem, série acerta ao abordar tema dos soldados traumatizados

Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

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Quando o Justiceiro (Jon Bernthal) apareceu na série Demolidor minha expectativa por uma série solo do personagem foi lá no alto. O que se viu ali foi um Justiceiro que se aproximava muito das histórias escritas pelo Garth Ennis nos quadrinhos, com um Frank Castle totalmente focado em sua missão de vingança. Além disso, ele foi apresentado como uma pessoa muito competente e inteligente, sendo capaz até mesmo de subjugar o próprio Demolidor (Charlie Cox). A participação final dele no seriado deixou o personagem em uma posição empolgante para a sua série própria: fugitivo da polícia, cheio de armas e com a sede de sangue que caracteriza o personagem. Infelizmente, quando a série Justiceiro finalmente estreou, todo o arco de vingança pela morte da família de Frank Castle foi resolvido nos primeiros cinco minutos. Com uma sequência de cenas rápidas, vemos Frank matando praticamente todos os envolvidos na morte da sua esposa e filhos. Porém, ao contrário dos quadrinhos, onde Frank faz da caça aos criminosos seu único propósito na vida, aqui ele começa tentando levar uma vida normal, usando um nome falso e escondido de todos.

A série começa com Frank Castle trabalhando em uma construção, usando o nome de Pete Castiglione e tentando se manter totalmente fora do radar. Até que algumas circunstâncias o fazem matar de novo. Através de sonhos, os primeiros episódios são bastante eficientes ao mostrar Castle como um homem destruído não só pela morte da família, mas também por tudo que fez enquanto era um soldado do exército dos EUA. Soldado leal, ele e sua equipe não questionavam ordens, mesmo quando tinham consciência de estarem passando dos limites. Não demora para que sejamos apresentados ao personagem Curtis (Jason R. Moore), antigo companheiro de Frank e que possui um grupo de apoio para veteranos de guerra. Assim, além de contar a história de Frank Castle, a série também aborda o tema dos soldados que voltam traumatizados e que não conseguem mais ter uma vida normal, sempre pensando se não seria melhor voltar para o combate. Nos quadrinhos do Garth Ennis essa é justamente uma das explicações para o Justiceiro fazer o que faz mesmo depois de vingar a morte da família. Porém, aqui ele só volta ao combate quando descobre que ainda não matou todos os responsáveis pela sua tragédia. E é aí que começam alguns problemas da série.

Com o trauma de Castle aparentemente resolvido desde o começo, o protagonista parece ficar estagnado, cabendo a um personagem secundário carregar o tema dos soldados traumatizados. O arco de Lewis Walcott (Daniel Webber), um jovem que frequenta o grupo de apoio de Curtis, é muito melhor desenvolvido do que o do próprio Justiceiro. As cenas mais interessantes sobre ex-soldados são justamente com ele, enquanto Frank Castle passa boa parte da temporada em um esconderijo subterrâneo junto com Micro (Ebon Moss-Bachrach). Quando não está escondido, ele está ajudando a família de Micro, que pensa que ele está morto. Espera-se que um homem que perdeu a própria família fique perturbado com a situação, mas Frank age sempre numa boa, ajudando em pequenos consertos domésticos etc. Para quem esperava ver um Justiceiro caçando mafiosos em Nova Iorque, foi bem frustrante vê-lo consertando uma pia entupida. A coisa chega ao cúmulo de, durante os 10 primeiros episódios, a maioria das mortes da série não serem causadas pelo protagonista. Para um homem que perdeu tudo e está em busca de vingança, o Justiceiro do seriado parece centrado demais.

Outro grande problema é que o Frank Castle da série é muito dependente dos seus aliados, chegando ao cúmulo de recorrer à chatíssima Karen Page (Deborah Ann Woll) quando precisa de alguma informação (e nem vou mencionar a tentativa de criar um romance entre os dois). E pelo menos em dois momentos ele precisou ser resgatado pelos seus aliados ou acabaria morrendo. Bem diferente dos quadrinhos e do seriado Demolidor, onde ele aparecia agindo sozinho e resolvendo qualquer situação adversa. Além disso, para aumentar a importância dos coadjuvantes, Frank foi um pouco emburrecido, caindo em algumas emboscadas bobas e não se preparando devidamente para certas ocasiões. Em praticamente todos os combates em que se envolve, ele adquire pelo menos um ferimento que poderia ser facilmente evitado. Claro que isso poderia ser encarado como um modo de deixar o personagem mais humano, mas quando convém ao roteiro, Frank sai praticamente ileso, mesmo que enfrente o dobro de inimigos que enfrentou anteriormente.

Apesar disso tudo, Justiceiro ainda é um bom seriado, principalmente pelas discussões que levanta. Além da questão dos veteranos de guerra e como cada geração encara os soldados que voltam para casa, a série ainda encontra espaço para discutir a questão do patriotismo exagerado, que faz com que homens bons cometam atrocidades sem o menor questionamento. E enquanto esses soldados voltam para casa totalmente quebrados, seus superiores levam uma vida boa e, muitas vezes, apenas possuem interesses próprios, sem se importar de verdade com o país. Justiceiro ainda aborda, mesmo que superficialmente, o tema do controle de armas, sem no entanto tomar nenhum partido. A série apenas levanta essa discussão com personagens que possuem bons motivos tanto para defender as armas quanto para defender o desarmamento.

Porém, a grande força da série está mesmo no lado psicológico de dois personagens: Frank Castle e Lewis Walcott. Se as sequências no dia a dia do protagonista não chegam a empolgar tanto (com ele ajudando a família do Micro ou almoçando no esconderijo), as cenas em que ele sonha com a esposa e o seu passado são excelentes. São nestes momentos que entendemos o quanto Frank Castle está realmente quebrado e o quanto ele se sente impotente e culpado por não ter conseguido proteger a família. Já as cenas dele na guerra são interessantes por mostrar como Frank se sentia mais à vontade neste ambiente do que na própria casa. Tudo isso graças à excelente atuação de Jon Bernthal, que consegue transitar muito bem entre a fragilidade e a fúria de um homem em pedaços. A atuação dele só é equiparada à de Daniel Webber no papel de Lewis Walcott. Para não dar spoilers, basta dizer que a transformação pela qual Lewis passa durante a série chega a ofuscar a história do próprio Justiceiro. É difícil não se apegar ao jovem mesmo quando percebemos que ele pode estar trilhando um caminho errado.

No geral, Justiceiro é uma boa série sobre as consequências da guerra, mas que acaba descaracterizando bastante o personagem no qual foi inspirada. Além disso, a obrigação de produzir 13 episódios faz com que o ritmo dê uma desacelerada no meio da temporada. Porém, o maior defeito do seriado está nos seus 15 minutos finais, quando acontece algo totalmente inesperado na vida de Frank Castle e que não faz o menor sentido levando em conta tudo o que foi apresentado até ali. Essa reviravolta afasta ainda mais o personagem da sua versão dos quadrinhos e o deixa em uma situação que é muito difícil imaginar como será o seu retorno para uma segunda temporada. Mesmo assim, é a melhor série da parceria Marvel/Netflix depois de Demolidor. Só espero ver um Frank Castle mais próximo dos quadrinhos nas futuras temporadas.

O Justiceiro (The Punisher, EUA)

Ano: 2017

Número de episódios: 13

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Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

Redator de cinema, gibis e games na Mob Ground. Quando não está jogando, está assistindo filmes, séries ou lendo gibizinhos.