Crítica | Passageiros

Travestido de história romântica, filme mostra uma mulher que se apaixona pelo seu captor

Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

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O texto contém pequenos spoilers

A sinopse oficial de Passageiros diz que, durante uma viagem espacial para outro planeta, duas pessoas acordam da hibernação 90 anos antes do tempo e acabam se apaixonando, enquanto precisam resolver problemas da nave. Bom, essa talvez seja a sinopse mais enganadora de um filme, já que as cápsulas de hibernação não param de funcionar simplesmente e o filme nem de longe lembra uma história romântica. Na verdade, ele não decide se é um filme sobre solidão, relacionamentos ou ação, não se saindo bem em nenhum desses aspectos. Além disso, mesmo tendo quase duas horas de duração e apenas dois personagens, Passageiros não consegue trabalhar bem nenhum dos dois. Em momento algum eu consegui me importar de verdade com aquelas duas pessoas, já que nada significativo é apresentado sobre elas.

A única coisa que sabemos sobre Jim Preston (Chris Pratt) é que ele é um mecânico que resolveu se mudar para a colônia no planeta Homestead II. Porém, nunca é explicado os motivos que o levaram a largar tudo para viver em outro planeta depois de passar por uma viagem de 120 anos. Já o caso de Aurora (Jennifer Lawrence) talvez seja até pior, já que ela é uma repórter que resolve ir para Homestead II apenas para passar um ano no local e escrever um livro sobre a experiência, voltando à Terra depois disso. Juntando o tempo total da viagem, se passariam 240 anos. Por que diabos ela voltaria para a Terra sendo que todas as pessoas que ela conhece já teriam morrido há muito tempo? E Aurora não era um pessoa solitária, uma vez que em determinado ponto do filme ela assiste a uma gravação da sua festa de despedida, na qual aparecem vários amigos dizendo o quanto vão sentir sua falta. Essa cena apresenta ainda uma possível explicação patética quando uma das amigas diz “espero que lá você encontre alguém”. Sério que alguém mudaria de planeta na esperança de encontrar um grande amor?

E por falar em grande amor, é difícil enxergar uma história romântica em Passageiros, a não ser que a pessoa tenha uma visão distorcida de romantismo. Ao contrário do que sugere a sinopse do filme, as cápsulas de hibernação dos personagens não param de funcionar juntas. Na verdade, a única cápsula que dá problema é a do personagem Jim Preston, que passa todo o primeiro ato do filme vivendo sozinho na nave. Não aguentando mais a solidão, ele decide acordar a bela Aurora (nome da Bela Adormecida da Disney, sacou?) para ter alguma companhia. Embora o filme tente nos empurrar uma bela história de amor, a verdade é que Jim sequestrou a vida de Aurora. A partir do momento em que ele a tirou da cápsula, ela foi condenada a viver os próximos 90 anos apenas com Jim. É óbvio que ela se “apaixonaria” por ele, não tinha mais ninguém ali, ela não teve escolha alguma. E é interessante que a escolha de dois atores bonitos para os papéis faça com que parte do público realmente acredite nessa conversa fiada de história romântica. Se no lugar de Chris Pratt fosse colocado um ator feio, será que as pessoas continuariam achando que ele fez tudo por amor?

Claro que alguns podem defender Jim Preston dizendo que ele entrou em desespero por causa da solidão e acabou cometendo um erro. Bom, aí entra outro defeito do filme: as atuações. Se o roteiro falha em criar personagens interessantes, os atores também não ajudam muito nessa tarefa. Tirando o cabelo e barba compridos, em momento algum Chris Pratt parece realmente desesperado com a situação em que se encontra. Ele nem aparenta se sentir culpado quando finalmente toma a decisão de despertar Aurora. Já Jennifer Lawrence parece estar no piloto automático ao interpretar uma personagem que se apaixona pelo seu captor. Fica difícil se conectar com os personagens quando eles próprios parecem não se importar muito com tudo o que está acontecendo. Além disso, o filme desperdiça atores talentosos como Laurence Fishburne e Andy Garcia. Enquanto o primeiro surge do nada apenas para dar acesso a outras áreas da nave para os protagonistas, o segundo tem exatos 12 segundos de tela (sim, eu contei) em uma cena totalmente desnecessária.

Os problemas de Passageiros não param por aí, já que o filme parece ter sido produzido com um monte de ideias jogadas no ar, mas sem nenhum polimento para que ficassem realmente boas. Como a ideia era que os personagens ficassem isolados, a nave onde estão possui peças de reposição para todos os componentes, menos para as câmaras de hibernação. Por que uma empresa confiaria tanto que as tais cápsulas não dariam problema a ponto de não colocar peças extras? Sem contar o fato de que não existem robôs para fazer reparos na nave e os tripulantes não podem ser despertados por ninguém, ou seja, as peças de reposição não serviriam pra nada de qualquer jeito. Mas estão lá apenas para que os protagonistas possam resolver um problema da nave. Um problema, aliás, que o roteiro faz questão de mostrar que é extremamente grave, mas que é solucionado de maneira até bem fácil.

Passageiros também possui problemas graves nas cenas de ação que acontecem perto do fim do segundo ato. São vários furos bobos, típicos de filmes de baixo orçamento. Em uma sequência, a nave perde a gravidade artificial e, como os compartimentos dela ficam girando, as coisas começam a sair dos lugares. A cena de Aurora na piscina mostra bem essa situação, assim como Jim que está dormindo e vai parar longe da cama. Porém, na mesma sequência, a única coisa que acontece com o personagem Gus (Laurence Fishburne) é os braços dele levantarem e depois caírem de volta na cama quando tudo acaba. Em outra cena, Aurora precisa utilizar um pano para puxar uma alavanca que está quente, mas em seguida senta encostada no painel que deveria estar tão quente quanto a alavanca. Também é bizarro o momento em que Jim vai jogar algo pra fora da nave e, ao abrir o compartimento, vemos o vácuo do espaço sugando todo o ar, porém o objeto do qual ele vai se livrar continua no chão como se nada estivesse acontecendo.

Tentando dar um ar de conto de fadas para um filme problemático do início ao fim, o diretor Morten Tyldum ainda nos presenteia com momentos inacreditáveis de tão toscos. E aqui eu sou obrigado a comentar uma cena do final do filme. Então, se não quiser spoilers, pode parar de ler. Você foi avisado. Como se não bastasse Jim ter plantado uma árvore no meio de um dos decks da nave, no final nós vemos que não apenas uma flora se desenvolveu ali ao longo de 90 anos, mas também uma fauna. Existem pássaros voando pela nave. PÁSSAROS. Provavelmente Jim e Aurora aprenderam técnicas de clonagem durante todo o tempo em que viveram isolados de qualquer outro contato humano.

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Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

Redator de cinema, gibis e games na Mob Ground. Quando não está jogando, está assistindo filmes, séries ou lendo gibizinhos.