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Kill Bill (Quentin Tarantino, 2003/2004)


GUILHERME W. MACHADO

A esta altura não é difícil dizer – para a decepção da forte base de fãs de Pulp Fiction – que Kill Bill é o filme que melhor ilustra a carreira de Quentin Tarantino. Difícil mesmo é dizer que Kill Bill é o filme mais representativo de toda década de cinema na qual está inserido: a primeira do século XXI. Mais difícil ainda é dizer isso e ainda tentar explicar os motivos que levam a essa absurda declaração num simples texto (quando tal posto deveria idealmente ser justificado através de um artigo de páginas e páginas), mas é o que tentarei aqui, então já peço desculpas antecipadas pela duração do texto, que paradoxalmente é muito grande para uma postagem na internet e muito curto para o que tenta abordar.

Antes de mais nada: ação é cinema. Os esnobes do “cinema arte” que me perdoem – ou também que não perdoem, de nada adianta chorar apenas por ídolos mortos –, mas a verdade é que não há gênero mais essencialmente cinematográfico do que a ação. Não é uma questão de qualidade, não existe melhor ou pior gênero, e grande cinema pode existir de muitas formas diferentes, mas sim de linguagem. O motivo é simples: a ação, em sua plenitude, existe apenas no cinema, coisa que não pode ser dita sobre nenhum dos outros gêneros primários. O cinema é a única (ou pelo menos a mais capaz) das artes que pode de comportar todos os aspectos de uma sequência de perseguição, ou de tiroteio, de duelo de espadas, e por ai vai. 

Tarantino consegue, em Kill Bill, atingir uma das maiores ambições de qualquer contador de histórias: criar, dentro do nosso, um universo único, mas com suas próprias regras e lógica exclusiva. Veja bem, Kill Bill não é uma fábula, nem um projeto de ficção científica e, por mais que seja uma fantasia, ela se passa em algo que parece nosso mundo, mas que no fim é uma espécie de doppelgänger do mesmo. Na Terra de Kill Bill é totalmente plausível que se ande de avião com uma espada samurai ao seu lado (não apenas a Noiva, mas outros passageiros também levam uma); que uma assassina altamente treinada acorde de um coma de 4 anos em condições de matar dois homens; que uma pessoa tenha membros decepados mas mantenha não apenas a vida, como também a consciência (não desmaie).


Em resumo, as leis do nosso mundo, assim como sua física, claramente não se aplicam à Kill Bill. É um filme que opera num circuito fechado, seus personagens não são atrapalhados por dificuldades da nossa realidade. Dinheiro não é parte importante de seu funcionamento, e, por mais que ele exista, ele não é motivação ou empecilho pra nada – eu sei, todos assassinos na trama ganham dinheiro, mas nenhum deles parece realmente ser movido por isso –, de forma que não é importante sabermos de onde a Noiva tirou recursos para sua vingança. Não há também intervenções por parte de polícia, governo, ou quaisquer órgãos burocráticos que sejam. E nada disso se dá pelo filme ser mal feito ou “inverossímil”, mas sim por ele ser um universo fechado em si mesmo, conciso, dentro do qual tudo isso faz total sentido. Prova do sucesso com o qual esse mundo é construído é que, apesar de todos absurdos que ele envolve, Tarantino nunca se rebaixa ao ponto de ter que nos explicar didaticamente essas regras, há suficiente clareza para elas se façam entender naturalmente no decorrer da trama.

O-Ren Ishii: You didn't think it was gonna be that easy, did you?
 The Bride: You know, for a second there, yeah, I kinda did.
 O-Ren Ishii: Silly rabbit.
 The Bride: Trix are...
 O-Ren Ishii: ...for kids.

Mas voltando ao que faz de Kill Bill um filme altamente representativo do cinema contemporâneo, um desses aspectos é aquele que tanto polariza os ânimos acerca do filme: as referências. Por mais que sempre hajam coisas novas, o contemporâneo é necessariamente ciente de sua herança cultural, e no cinema há um punhado de filmes particularmente notáveis nisso, dentre eles esse do qual falamos. A mistura de referências e gêneros, marca que acompanha toda carreira de Tarantino, ocorre em Kill Bill de forma diferente do que em alguns dos outros trabalhos mais célebres do diretor. Que originalidade não é importante já sabemos (sinceramente, quem ainda se importa com ela?), mas o que Tarantino propõe aqui é algo diferente da simples colagem de fórmulas consagradas pelo tempo (como faz toda uma linha de produto comerciais celebrados da atualidade, tipo a série Stranger Things). Ele propõe uma intensa revisão de mundos cinematográficos (em especial os do western, do cinema samurai, e do cinema wuxia de artes marciais) e de heranças narrativas variadas (estruturas mitológicas, animes, jornada do herói, narrativas de vingança, romance, etc), combinando-os num improvável e inventivo produto que transcende todos esses gêneros; algo novo, contemporâneo.
O que nos leva à mise-en-scène. Kill Bill é um filme banhado pelas maravilhosas texturas visuais criadas por Tarantino e Richardson (diretor de fotografia). Tarantino equilibrou em Kill Bill as influências que carrega da narrativa cinematográfica clássica com sua inquietante modernidade cênica (é fácil esquecer hoje o rompimento com os padrões de mainstream que seus primeiros filmes, Pulp Fiction em particular, fizeram). Como é típico do cinema do século XXI, em particular no cinema asiático (cuja influência sobre Tarantino é conhecida por todos), planos não precisam mais ter apenas função narrativa (mostrar fatos), ou puramente artesanal (embora haja muito artesanato em Kill Bill), mas sim fazer parte de toda uma expressão visual e sensorial condizente com o espírito e ritmo da obra.

The Bride: [voiceover] As I lay in the back of Buck's truck, trying to will my limbs out of entropy, I could see the faces of the cunts that did this to me and the dicks responsible. Members all of the Deadly Viper Assassination Squad. When fortune smiles on something as violent and ugly as revenge, it seems proof like no other, that not only does God exist, you're doing His will.
  
São com essas preocupações em mente – o cuidado com a construção atmosférica, e até semântica, do universo através da mise-en-scène e o comprometimento com a ação – que Tarantino organiza a fragmentada estrutura narrativa de Kill Bill: uma gigantesca sequencia de set pieces de ação, cada uma mais bem coreografada e articulada que a outra, resultando no mais puro deleite cinematográfico. No meio de cada um desses grandes momentos, Tarantino trabalha sua personagem máxima, A Noiva (co-escrita por Uma Thurman, o que provou a ser uma colaboração artística valiosa por botar diretor e atriz no mesmo plano de compreensão sobre esse complicado personagem), através de flashbacks (que funcionam magnificamente tanto como exercícios estéticos quanto como aprofundamento psicológico dos personagens), monólogos ou pequenos desvios procedimentais na sua insaciável jornada por vingança. Claro que a execução de tal fragmentação nem sempre é fácil, ainda mais num filme de 4 horas que alterna entre vários gêneros e estilos, e aqui crédito tem que ser dado a excelente montadora Sally Menke, que conseguiu preservar todo aspecto carnavalesco da direção surtada de Tarantino e ainda valorizar todos os complexos sentimentos que o filme trabalha.

Aliás, os sentimentos são peça chave em Kill Bill, e são eles que dão poder à jornada da Noiva. Ninguém esperava que Tarantino, após ter lançado a primeira metade do seu épico (que é, na verdade, um único filme dividido em duas partes), tiraria, na segunda parte, daquela sanguinolenta história de vingança, um romance complexo e intenso. Há uma química inexplicável entre Beatrix (Noiva) e Bill, uma assimilação profunda de um pela personalidade do outro, mas, ao mesmo tempo, uma há uma dimensão trágica que impede a estabilidade do casal. Para ela, Bill representava a figura do mestre, e certamente ela sentia paixão por ele, mas sempre dentro dessa dinâmica de alguém a ser superado eventualmente. Já ele a amava intensamente, mas com esse amor, e com a descoberta de que ela atingiu um nível em que não mais dependia de sua tutela, vieram todos sentimentos negativos que acompanham o abandono e, apesar de Bill ser um homem tolerante (suportava as rebeldias de seu irmão, a natureza traiçoeira de Elle Driver, e até o temperamento impossível de Pai Mei), ele não teve a força nem a grandiosidade para aceitar a independência de Beatrix, praticando sobre ela uma impetuosa e cruel retaliação.

"I guess I'm a bad person" a Noiva diz para Bill no seu momento derradeiro, quando ela admite ter escondido dele que tinha aprendido a técnica lendária de Pai Mei (mestre marcial de ambos), e ele responde "you're not a bad person, you are my favorite person". Há todo um jogo de complexidades e nuances na dinâmica do casal, muito bem alimentado por Tarantino que, já famoso por seus diálogos, produz aqui os mais poderosos e intensos de sua carreira. É diferente dos despojados (e também brilhantes) diálogos de Pulp Fiction ou Bastardos Inglórios, por exemplo, nos quais há uma busca insaciável por inserir as referencias metatextuais de cultura pop e produzir toda série de gimmick e gags possíveis. Em Kill Bill a força dos diálogos está na sinceridade, anti-natural até, com a qual os personagens expressam suas emoções (ou na força que fazem para escondê-las). 



The Bride: You want to come to the wedding?
 Bill: Only if I can sit on the bride's side.
 The Bride: You'll find it a bit lonely on my side.
 Bill: Your side always was a bit lonely. But I wouldn't sit anywhere else.

É essa maravilhosa construção de nuances que torna o final do filme impecável. Qualquer confronto de espadas entre Bill e a Noiva, não importa o quão bem coreografado, teria sido decepcionante perante toda expectativa criada pelo caráter épico da narrativa e mesmo pelos gloriosos embates anteriores. Tarantino sabe disso e propõe, ao contrário, um anticlimático encontro que valoriza como nunca as emoções confusas da protagonista e seu antagonista e culmina numa emocionante solução, resgatando um elemento aparentemente gratuito da obra e o reciclando-o perfeitamente (a técnica dos cinco palmos que explodem o coração). É através dessa elegante solução para um difícil problema, que Tarantino cria um final inesquecível.
No fim é dessa curiosa fusão entre passado e presente cinematográfico e dessa insana mistura cultural – de uma música da Nina Simone reinterpretada como um flamenco espanhol como trilha sonora para um embate samurai num jardim de inverno oriental – que surge Kill Bill como um dos filmes mais poderosos do cinema do século XXI. É um filme que celebra a sua própria artificialidade e, fazendo isso, celebra o próprio cinema, ao compreender a pureza do poder das imagens no seu potencial de extrapolar a realidade e fazer dela base para um espetáculo singelo de ação e emoção. E não é sobre um OU outro, Kill Bill é tanto sobre os grandes momentos, as gloriosas sequências de embate nos exuberantes cenários, quanto sobre os singelos, como o diálogo na varanda de uma pequena igreja entre duas pessoas apaixonadas que sabem (mesmo que ambos tentem negar), ali, que esse amor, embora verdadeiro, será a ruína de ambos.

NOTA (5/5)

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