Toni Erdmann

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No texto sobre Animais Noturnos eu disse que torceria por Amy Adams, Jake Gyllenhaal e Michael Shannon no Oscar. Como deve ter dado para perceber, além de a minha torcida não servir para nada, as minhas previsões também foram uma beleza. Nem indicados Adams e Gyllenhaal foram. Já que a porta está escancarada, agora eu não preciso falar com parcimônia: Toni Erdmann vai ganhar o Oscar de filme estrangeiro.

Eu digo isso do alto dos dois filmes que vi entre os indicados nessa categoria. O outro, o sueco Um homem chamado Ove, foi ruim e previsível. Já Toni Erdmann, escrito e dirigido pela alemã Maden Ade, começou e terminou num nível e num estado de espírito que são incomuns. É a história de uma mulher e um homem, pai e filha, que não parecem ter muita intimidade. Ela mora longe, em Bucareste, na Romênia, e tem um emprego bom numa multinacional que administra a parte financeira e operacional de outras empresas. Quer dizer: é a função dela estudar e estipular quantos trabalhadores vão ser demitidos e quando, ou quantas pessoas precisam ser removidas para que uma obra aconteça. Para ela o emprego é bom porque dá um bom dinheiro, mas quando a conhecemos melhor podemos perceber que ela anda meio estafada, desencantada com o que faz, como só poderia ser, solitária e perdidinha.

O pai dela é um professor de escola. Gordo, alto e fanfarrão, ele é um gigante gentil. Depois que o cachorrinho dele morre de velhice, ele viaja para encontrar a filha em Bucareste, de surpresa, e aí os dois são obrigados a conviver e aprender com suas diferenças. Claro que esse é o ponto de partida de muitos filmes, mas tem algumas coisas que deixam Toni Erdmann diferente.

A sinopse poderia muito bem ser a de um filme indie americano, não é? Eu consigo até pensar num elenco, com, sei lá, Bill Murray de pai e Kristen Wiig como a filha. Eu sempre tento a sorte com esse tipo de produção porque além de gostar muito de um Bill Murray, ou Steve Carell, ou Bill Hader ou Tina Fey, eu fico na esperança de encontrar um outro Pequena Miss Sunshine ou qualquer coisa levemente apreciável como aquele Swiss Army Man, que saiu no ano passado. Daquele filme que não é grande coisa, mas serve.

O problema é que em geral esses indies têm tantos vícios quanto os blockbusters em que todo mundo adora bater. Eu tenho até que reforçar: eu gosto tanto dos indies como dos blockbusters mas a ideia, por exemplo, de uma jornada esquisitinha que vai resultar numa espécie de iluminação ou mudança total de valores está no centro de uma centena de filmes recentes, nem todos muito memoráveis, e as esquisitices são cada vez mais padronizadas. Pense nesse Capitão Fantástico, que está rendendo a indicação a melhor ator ao Viggo Mortensen. Desde o começo ele me deu a impressão de que queria me puxar para dentro do filme pelos meus desejos de consumo ou estilo de vida: é que eles acham que quem prestigia Capitão Fantástico não é, grosso modo, a mesma pessoa que vai ver Velozes e Furiosos, e aí deixam na gente aquela impressão não de que querem contar uma história, relevante ou irrelevante, edificante ou niilista e portadora do caos, mas de que querem vender um bocado de sensações comuns a muita gente: todo mundo quer ser diferente, todo mundo quer viver uma aventura, todo mundo quer exorcizar essa sensação de que todo mundo é a mesma coisa, todo mundo quer ser peculiar. Vender esse sentimento não é exatamente a mesma coisa que ter uma história para contar, ou ter um ponto de vista ou uma sacada sobre um sentimento ou situação no mundo. Quando eu percebo que o longa fica num chove-não-molha, e quando os atores não conseguem salvar o dia com carisma ou com o talento mesmo (timing, essas coisas; eu vejo qualquer filme com a Keira Knightley, por exemplo, porque acho que mesmo que o texto seja ruim a expressividade dela vai salvá-lo), o que era para ser Pequena Miss Sunshine não chega nem perto e eu me irrito porque já vi a mesma fórmula num passado nem tão distante.

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Eu assisti a Toni Erdmann pensando no filme que ele seria se fosse americano. Seria pior. Por mais que o esqueleto dele seja comum, o que me fez atravessar as quase 2h40 foi a complexidade da relação entre pai e filha, com um monte de sacadas que eu não tinha visto em lugar nenhum, todas embaladas numa estrutura que não estava presa à fórmula do filme de jornada. Isso vem de coisas que apareciam no texto, e que faziam com que nada fosse preto-no-branco, como as sequências que se desenvolviam no trabalho de Ines (é o nome da filha, desculpa eu contar só agora); e vem de detalhes que devem ter sido compostos pelos atores, que em nenhum momento adotaram posições saturadas para montar aquelas personalidades. Falando assim essas qualidades ficam abstratas, então deixa eu contar mais do filme. Estão lá Ines, que é a filha, e Winfried, que é o pai. Ele apareceu de surpresa em Bucareste, como eu falei, e ela mal consegue disfarçar que aquilo é, no-mínimo-no-mínimo, uma inconveniência.

Eles são de gerações diferentes e têm prioridades opostas. Num filme padrão, ele estaria certo e ela errada. Afinal, é ele quem tem a chave da descoberta que ela precisa fazer: é ele quem sabe que os prazeres pequenos da vida valem mais do que dinheiro e status. Agora, se você não viu o filme, imagine essa figura. É um pai, tem uma lição a dar, tem experiência, está solitário e velho, perdeu o cachorro. Ainda por cima, Ines o destrata: diz que ele não tem ambição, que as piadas dele não têm graça. Como você imaginaria essa composição? Imagine que o ator é o Robin Williams de Patch Adams, ou seja: insuportável, pegajoso, magnânimo – tudo bem que Patch Adams não é exemplo de filme indie, mas acho que deu para entender. Como é o Winfried na interpretação de Peter Simonischek? Ele é completamente maluco, tem cara de maluco, andar de maluco e é inconveniente de verdade. O olhar de cachorro pidão mais irrita que enternece. Ele não é fácil. A filha tem toda a razão.

O que Sandra Huller faz como Ines não fica atrás. Seria simples elaborar um ar arrogante, forte e competente de mulher de negócios, e é isso o que Huller faz. O detalhe é que, desde as primeiras cenas, percebe-se que ali tem uma pessoa insegura vestida de arrogância. E eu não me lembro de esqueminhas simplórios para desenvolver essa personalidade – imagina que péssimo se, sei lá, para mostrar que ela é insegura & mulher de negócios, houvesse logo no começo de Toni Erdmann uma sequência em que ela está numa manhã agitada de trabalho e reencontra sua caixinha de música. Sem esses esqueminhas, sobra para a atriz montar o quebra-cabeças. Só no fim, bem depois, é que uma cena que envolve uma espécie de bichinho de pelúcia em tamanho família vai desenhar para a gente a fragilidade e a incomunicabilidade da moça. Mas ali é a hora da catarse.

E como Ines é difícil de alcançar, o pai dela aparece com uma cartada final para chegar à moça, e é isso o que faz com que Toni Erdmann pareça mais curto do que suas 2h40. Filha e pai discutem – ou melhor: ela dá uma bronca nele – e fica evidente que a visita surpresa não deu certo. Ela o enfia dentro de um táxi e fica segura de que o caminho dele é a Alemanha. Segue com a vida, trabalha, vai a um happy hour e lá aparece um sujeito chamado Toni Erdmann, um mentor corporativo. Quem é Toni Erdmann? Ninguém menos que o pai dela usando uma peruca e uma dentadura. A partir daí o filme e seus personagens entram num território imprevisível. Isso significa que o pai é totalmente maluco? Aonde ele vai chegar com isso? Aonde ela vai se deixar levar?

Quando o longa acabou eu percebi que se tratava, sim, de um filme de jornada. E não é apenas uma jornada interior, como acontece em muita produção que não tem o que dizer. A Romênia, que é um dos países mais pobres da Europa, não é só elemento decorativo. No trabalho de Ines para reorganizar (demitir, cortar gastos) uma empresa romena pode-se ver a tarefa alemã na União Europeia, e o filme mais de uma vez ridiculariza a arrogância corporativa, a falta de propósito (e de humanidade) do trabalho, o fardo que é toda essa distância de um ser humano a outro. Quando o pai de Ines vira Toni Erdmann, fica evidente que só o ridículo dos modos dele poderia expor o ridículo de tudo o que acontece em volta. E aí Ines pode parar e dar risada pela primeira vez em muito tempo. A gente sabe que isso ajuda.

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