Família Soprano

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A quinta temporada de Mad Men tem uma morte que me levou a abandonar meus sentimentos ambíguos por Don Draper. Dali em diante eu não consegui ver bondade nele. Mas a quinta temporada é bem longe. Antes disso, para cada falha de caráter ou compulsão pela mentira, Don Draper demonstrava uma fragilidade compreensível ou um gesto generoso e nobre. Neste mês de abril eu venci a minha resistência e comecei a ver Família Soprano. Não me enrolei com a primeira temporada, vi dois episódios por noite e até agora venho achando que todos os elogios que a série ganha são merecidos. Mas tem uma coisa que me espanta. Já pela metade da jornada dá para perceber que Tony Soprano não é aquele sujeito com altos e baixos, como são Draper e o Walter White de Breaking Bad. Descontada a complexidade que um personagem bem escrito e vivido por um ótimo ator sempre vai ter, Tony Soprano é ruim de dar medo. Ele é um monstro.

Os Sopranos são uma família complicada. Tony até gosta dos filhos mas, pelo menos nesse começo de série, eles são a penúltima prioridade em sua cabeça. Tudo é um aborrecimento. Carmela, a esposa, é a hipocrisia em forma de dona de casa rica. Livia, a mãe de Tony, é um bom argumento para quem acha que um fruto não cai muito longe da árvore. A velha é tão, mas tão malvada que trama a morte do próprio filho por pouco mais que um capricho. De dar pena são as crianças: uma menina, às vésperas de terminar a high school, e um menino fofinho e confuso, bem naquela fase bizarra da puberdade. À primeira vista eles são secundários, mas com o desenrolar da temporada fica claro que fazem parte de um argumento central da série, que é: insalubridade gera insalubridade, loucura gera loucura, bagunça gera bagunça.

Esse argumento é tão bem costurado que fica difícil discordar daqueles que dizem que Família Soprano fez parte de uma revolução na maneira de contar histórias na tevê. Os treze episódios reforçam todos os mesmos pontos, não há aquelas sobras para testar a opinião do público aqui e ali, nem personagens chatos que inspirem aquela ojeriza que roteirista gosta de alimentar.  Essa primeira temporada não tem falso problema e a produção ainda não precisava se preocupar com ganchos sem sentido que são uma maneira de levantar falatório em redes sociais. Não tem como negar que as séries muito premiadas dos anos 2000 e 2010 aprenderam bastante com Família Soprano. A história tem um centro nítido e indiscutível: aquele monstro de que eu falei no primeiro parágrafo.

Não faz muito tempo que eu comecei a perceber que há atores capazes de tirar sentido de uma produção capenga. No fim de março eu tentei ver Sons of Anarchy e não consegui. Eu ficava frustrada com a história se concentrar em alguém tão desinteressante como Jax, vivido por um ator tão fraco como Charlie Hunnam. Eu queria acompanhar Ron Perlman, ator dez vezes melhor num personagem muito mais complexo, mas a série não me deixava. Claro que tem coisa impossível de salvar, mas tem gente que justifica o salário altíssimo. James Gandolfini era um desses atores, e eu nem sei se ele ganhava assim tão bem. Tony Soprano é assustador. Sem ele a série perderia muito. Numa expressão de Gandolfini, ele pode parecer bonzinho e frágil, mas você já assistiu a O Homem Urso, de Werner Herzog? Tony Soprano parece um daqueles ursos fofões, atabalhoados, com um jeito de personagem de desenho, e aí na sequência seguinte ele está enchendo alguém de socos ou chegando muito perto da cara de um outro enquanto respira pesadamente pela boca e pelo nariz ao mesmo tempo. Esse tipo de violência-surpresa é um clássico dos filmes de máfia, basta lembrar de Joe Pesci em Os Bons Companheiros, mas Família Soprano leva a tensão para fora do ambiente de trabalho: não é só nos negócios que Tony parece prestes a matar um, ele leva a mesma agressividade para casa, ou para a terapia. Os filmes de máfia mais celebrados já investiam na construção desse personagem que não consegue levar a vida  do lado de fora de um ciclo de brutalidade e confusão mental, mas o formato de série faz com que Tony Soprano seja o mafioso que a gente pode ver mais de perto.

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E isso também tem a ver com o espaço que a terapia ocupa na série. Assim como em A Máfia no Divã, a premissa inicial de Família Soprano é de que o chefe de uma família criminosa italiana está nervoso e deprimido a ponto de explodir. A época não é boa para os negócios, os lucros já não são os mesmos porque há muita concorrência no ofício do crime; a notoriedade dos mafiosos, que nunca foi positiva, agora ganhou um verniz de caricatura e galhofa. Soterrado pelo tamanho das responsabilidades que assumiu e desiludido com o despropósito da vida adulta, Tony começa a ter ataques de pânico. Isso está no piloto. A partir daí, as sessões de terapia viram um recurso para desenvolver os temas da série. Mas é um recurso, não uma muleta. Não é que a terapia vá explicar tudo.

Há ocasiões em que discurso e prática vão para lados diferentes. A certa altura há uma tensão sexual entre Tony Soprano e Jennifer Melfi, a terapeuta, mas ele trata de sepultar  qualquer possibilidade de intimidade com seus apelos à violência e total falta de modos. Apesar disso, ela persevera. É por causa dos insights dela que conseguimos entender a história dos Sopranos de trás para a frente. Cada lembrança ou flashback tem sua importância ressaltada para o momento presente, e assim Melfi funciona também como a consciência do espectador, dizendo educadamente coisas que poderiam se resumir a um “Tony, meu querido, você não tinha como dar certo tendo sido criado por esse bando de malucos”. Isso quer dizer que ele é humano, ou seja, os defeitos não vieram do nada. Mas ele não é menos monstruoso por ser humano. Nessa primeira temporada eu tive a impressão de que Tony Soprano não gosta de ninguém. Não tem um arco para mostrar que ele foi obrigado a agir como age, e a série não se preocupa em fazer malabarismos para relativizar as falhas de seu protagonista.

Família Soprano tem uma aura de infelicidade pairando sobre todo mundo. Às vezes nem o humor negro e a qualidade cinematográfica conseguem dissipar esse sentimento. O resultado é um clima de melancolia e inevitabilidade da desgraça, somado à sensação de que ninguém presta. Até aqui a série tem sido de um pessimismo bem corajoso, mas ficam bem óbvios os motivos do sucesso tão grande e de sua permanência na memória coletiva: tem muito personagem carismático por m², uma história de crimes conduzida gota a gota, tudo do bom e do melhor. Se meus planos derem certo, eu termino a segunda temporada ainda antes de maio chegar.

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