Review – Okja e a necessidade de repensar hábitos alimentares

“Okja” é uma produção de 2017 da Netflix dirigida pelo sul coreano Joon-Ho Bong, diretor do excelente “O Hospedeiro” de 2006 e do mais conhecido “O Expresso do Amanhã” de 2013, estrelada por Tilda Swinton, Jake Gyllhenhaal e a jovem Seo-Hyeon Ahn. O filme traz a premissa de que a necessidade de produzir alimentos para sanar o problema da fome mundial, uma das grandes indústrias alimentícias norte americana desenvolveu um projeto no qual diferentes fazendeiros do mundo inteiro criariam em seus ambientes residenciais um animal geneticamente modificado, chamado de “super porco” para que quando chegasse a hora fossem recolhidos para atender a necessidade para a qual foram criados, nesse contexto se dá a jornada da heroína Mija para salvar a vida de sua melhor amiga Okja, impedindo-a de ser levada para o abate e o corte como todo os outros “super porcos”.

Como obra cinematográfica o filme é ótimo, a competência do diretor sul coreano é inconteste, figura cativa em Cannes que é, gerando inclusive polêmica  com essa obra em particular devido ao modo de distribuição e as “regras” da competição da mostra internacional. Porém o foco desse texto será o retrato pintado na tela do mundo como vivemos ainda hoje e como a questão dos hábitos alimentares pode ser repensada.

Primeiramente o que se extrai do filme é a questão da crueldade animal, como as indústrias tratam os animais como uma propriedade da qual elas precisam obter lucro e a partir desse lucro conseguir mais propriedades para gerar mais lucros e manter a roda do capitalismo girando como de, esse ponto é expresso pelas personagens de Tilda Swinton, duas irmãs gêmeas que não possuem um bom relacionamento, mas ficaram responsáveis em gerenciar o negócio da família, a poderosa empresa Mirando Corporation. Isso ocorre de forma alternada, Lucy começa o filme como CEO, mas sabemos por seus comentários que não foi sempre assim, que sua terrível irmã assustava as pessoas e pesava a mão na sua abordagem, portanto ela quer vender uma imagem amigável, que a distancie da irmã e a aproxime do público consumidor.

Essa não é uma estratégia diferente do que vivemos e vemos todos os dias estampadas em anúncios de televisão, internet, revistas, outdoors e até mesmo nas embalagens dos produtos que consumimos, a imagem do animal feliz, bem cuidado, um presente da natureza (no caso da ciência) para a sobrevivência da espécie humana e várias coisas desse tipo. O filme é muito feliz em estabelecer essa dicotomia, pois vemos que por trás dessa pretensão de florear a realidade e retirar o peso da consciência do consumidor não existe nenhum objetivo de melhorar o modo de vida dos animais, trata-se simplesmente de vender uma imagem mais palatável aos compradores.

A publicidade exerce um papel fundamental para isso e Lucy Mirando orienta a publicidade da sua empresa nesse sentido, gerando ainda uma espécie de competição para “premiar” o melhor super porco, o que mostrasse melhor desenvolvimento de características físicas para o consumo. Nesse ponto há uma reflexão acerca de como essa postura é canalha e cruel, constituindo apenas uma forma de mascarar a realidade dura de que o início e o final da vida desses animais criados de modo “orgânico” será igual ao dos animais que permanecem toda a sua vida dentro do ambiente industrial. Vemos Okja e Mija tendo a sua vida no campo, tendo crescido nos arredores da propriedade do avô da menina, um dos camponeses incumbidos da tarefa de criar o “super porco” pelo período de dez anos, mas sabendo de onde o animal veio e qual será o seu destino.

Em determinado momento do filme há também a presença de um grupo que luta pelo fim da crueldade animal, com o discurso de que se importam com cada vida do planeta. A caracterização no filme é bem acertada mostrando como esse ideal em momentos soa contraditório com as medidas que membros desses grupos tomam e que acabam por levá-los ao descrédito. O plano desenvolvido por esse grupo tinha por consequência expor a vida de um animal que eles acabaram de resgatar a uma situação de tortura para expor a grande corporação que eles pretendem atacar. Em um ponto mais ao final da obra veremos a postura contraditória se manifestar novamente de forma contundente.

O último ponto que gostaria de ressaltar é como temos naturalizado o consumo do animal industrial e achamos absurdo o abate do animal doméstico, como se a vida de um animal importasse mais que a dos outros. O avô de Mija tem galinhas, a menina é mostrada capturando um peixe para fazer um ensopado, somos criados de forma a perder a sensibilidade para com a vida dos animais, crescemos em ambientes que naturalizam esse consumo seja no campo, seja na cidade.  Entretanto todos os animais que consumimos chegaram à nossa mesa por meio de alguma forma de crueldade, o peixe sofre , a galinha sofre, o  porco sofre, não só apenas o cachorro ou o gato. São seres sencientes e que também irão sentir medo, dor, agonizar e ter suas vidas interrompidas para servir de bem de consumo humano, quando temos opções viáveis de substituição desse gênero de “alimento”. A cena em que Mija compra Okja de Nancy expõe como o ego dos seres humanos é tão exacerbado a ponto de considerar uma vida independente como sua propriedade e portanto deve gerar lucros.

O filme tocou fundo numa questão que tenho vivido recentemente desde que iniciei a transição para o veganismo, modo de vida que evita ao máximo causar sofrimento dos animais. Achei uma boa chamada de atenção para a causa, de forma sensível, bem formulada, sabendo os pontos que queria tocar, a sacada de ser lançado em streaming visando alcançar um público maior, porém quem vive isso diariamente e se interessa pelo assunto, busca informações pode verificar como a questão do consumo de carne é um problema generalizado. Diversos motivos foram se aglutinando para tornar o meu objetivo sólido, a sensibilidade com a vida dos animais, questões ambientais, posicionamento político, o fim da crença na falácia da proteína e até mesmos razões de ordens filosóficas.

O filme é uma obra bastante necessária e eu espero que ele gere conscientização geral e que as pessoas não se limitem a chorar durante as duas horinhas de exibição e depois se anestesiem com pretextos para não começar a praticar cada dia mais uma melhora nessa direção. As imagens acima, presentes no filme, ilustram com bastante fidelidade o que acontece nos abatedouros com animais como, bovinos e suínos, todos os dias para que cheguem aos pratos do consumidor. Praticar pequenos hábitos são essenciais para a redução e eventualmente o fim dessa verdadeira barbárie, quando a gente vê que consegue dar um passo fica mais fácil acreditar que podemos caminhar plenamente nessa direção.

Bong Joon-Ho cria uma história simples, mas recheada de significado e de similaridade com a vida de cada dia, especialmente meia hora final, um soco no estômago que não poupa e nem passa a mão na cabeça de ninguém, mas clama pela empatia para com a vida dos animais.

CANNES, FRANÇA -19 DE MAIO: (E-D) Atores Jake Gyllenhaal, Ahn Seo-Hyun, Tilda Swinton e o diretor Bong Joon-Ho comparecem ao photocall de “Okja” durante o 70º Festival de Cinema de Cannes. (Photo by George Pimentel/WireImage)

Abaixo vou deixar alguns links bem acessíveis no Youtube para quem quer começar a entender a problemática do consumo de carne.

Documentário A Carne é Fraca: https://www.youtube.com/watch?v=rrFsGTw5bCw

Documentário Cowspiracy: https://www.youtube.com/watch?v=R6GrNENv2e0

Segue a indicação de um livro ótimo sobre o tema  também

A Vida dos Animais: https://www.estantevirtual.com.br/b/j-m-coetzee/a-vida-dos-animais/3879303421?q=A%20Vida%20dos%20Animais&livro_usado=1&gclid=EAIaIQobChMIuN2mx4yO1wIVh1YNCh16iwMsEAkYASABEgLasvD_BwE

 

Publicado por Henrique Santos

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