Uma vez um professor disse, com razão, que ler diferentes traduções e adaptações de uma mesma obra é uma boa maneira de assimilar diferentes perspectivas. Desde então sempre procurei fazê-lo. Nem sempre o resultado é satisfatório.
O grande mérito da tragédia de Sófocles é que embora a estória contenha passagens brutais (bebês com pés perfurados pendidos em árvores à espera da morte, patricídio, incesto, suicídio e o escambau), edulcoram a trama o esmero com a forma, a beleza atemporal do texto e a investigação cuidadosa sobre a inevitabilidade do destino e a necessidade de perscrutar o espírito, em oposição à húbris e à falta de autognose.
Já nessa livre-adaptação semiautobiográfica do Pasolini, todas as escolhas do diretor exacerbam a barbárie, que se estende, intencionalmente, do aspecto temático ao formal: a esterilidade dos cenários marroquinos, a precariedade dos figurinos, o histrionismo desumano dos atores, a onipotência lancinante da trilha sonora, o chacoalhar da câmara que insiste em lembrar-nos de que estamos vendo um filme, a ênfase no aspecto freudiano da relação incestuosa com a mãe. Há, pontualmente, algo de belo e bastante original aqui, mas escamoteado pela mão pesada do italiano.
Tivesse assistido a “Edipo re” desavisado, poderia ter me agradado mais, pois ao fim e ao cabo parece um clipe de 1h44 bem artsy-fartsy do Dead Can Dance, mas tal qual o infausto destino do Édipo, que lapidou, ironicamente, a própria desdita, armei contra mim mesmo: depois de ter alçado Accattone ao panteão dos meus filmes favoritos e ser um entusiasta de mitologia grega, criei rios de expectativa e fiz toda uma pré-cerimônia, que envolveu ler a tragédia do Sófocles no dia anterior e saborear algumas pinturas, em especial a icônica "Oedipus and the Sphinx" do mestre Moreau, que possui uma profusão imagética de detalhes e símbolos.
Aqui, porém, todo o poder do texto do Sófocles se dissipa na busca do Pasolini por uma visão autêntica (pessoal e política) do mito, reduzindo-o a imagens insólitas, rearranjos anistóricos e exageros formais, com algumas escolhas que beiram ao sacrilégio de tão hediondas, como a caracterização precária da Esfinge e o encontro fatídico com Laio na estrada, onde o diretor perverte o mito de forma inexplicável (pobre Citti, tão talentoso, reduzido a um corpo gritante e histérico).
Espero rever no futuro, sem expectativas, e não se desapontar tanto, ou aceitar algo aparentemente extraordinário: o Pasolini é gente, é falível e pode ter errado a mão.
É praticamente inconcebível a ideia de que "Accattone" – uma verdadeira obra-prima pós-realista – seja a obra inaugural do Pasolini no cinema, o que apenas é explicável em virtude de todas as atividades com as quais esse grande artista em formação já estava envolvido: poeta, escritor, arguto observador social, além de ter trabalhado com Fellini nos roteiros de "Le notte di Cabiria" e "La dolce vita". Mas há algo de diferente aqui, uma inovação temática que o diferencia dos seus antecessores neorrealistas e que advinha de seus trabalhos com poesia. Tendo estabelecido uma celebridade de controverso e transgressor, sobretudo por suas veementes críticas à burguesia, ao consumismo capitalista e às contradições da esquerda, um aspecto central de sua obra é frequentemente escamoteado: a dimensão espiritual, o elemento transcendental e sagrado, a figura de Cristo como um pilar moral fulcral e intransponível, a ausência de Deus.
O fato de que era um profundo admirador do Evangelho, conquanto ateu, homossexual, crítico da Igreja e séquito da obra marxiana, conferia à sua idiossincrática personalidade um aspecto mítico: Pasolini era, portanto, uma quimera, que carregava dentro de si forças e tensões antagônicas. Em uma de suas mais honestas entrevistas, afirmava que sua visão das coisas não era secular ou laica, mas sagrada, milagrosa. Via o Evangelho, em suas palavras, como um grande trabalho intelectual que edificava o pensamento, que preenchia, integrava, regenerava e levava à ação, mas nunca como uma fonte vazia e irrefletida de consolo. Assustava-o que na Itália pós-guerra, e entre os seus, sequer conhecessem o Evangelho (um dos motivos, inclusive, que o fez realizar "Il Vangelo Secondo Matteo").
"Accattone" conta a história de um cafetão esmagado pela pobreza que tenta, entre pequenos delitos e outros atos imorais, escapar dela. Franco Citti dá vida, com vigor e brutal honestidade, a um dos “ragazzi di vita” do Pasolini.
Tendo recentemente lido “Crime e Castigo”, “Gente Pobre” e “Recordações da Casa dos Mortos”, do Fiódor Dostoiévski, vi-me traçando paralelos entre a obra do grande escritor russo e essa obra estreante do diretor italiano: as tensões entre o progresso racionalista e a irracionalidade do homem, entre a fé Cristã e a razão, entre a moralidade e a miséria – tudo isso trazendo no seio de suas obras uma preocupação genuína, advinda de suas origens e experiências, com as classes mais desfavorecidas, mostrando toda a sorte de humilhações que a pobreza e a exploração impõem ao indivíduo, esmagando-lhe. Prostitutas, agiotas, cafetões, assassinos, ladrões e mendigos estão no centro de suas estórias. Essa leitura social humanista e cristã é o que afasta, em certa medida, o Dostoiévski do Gógol, do Turguêniev e do socialismo ateu do Belinski. Da mesma forma, é o que afasta Pasolini do Fellini, do Rossellini e da intelligentsia de esquerda comunista e revolucionária, com a qual não raramente digladiava.
Como não lembrar, então, dos diálogos entre Raskólnikov (o protagonista atormentado de “Crime e Castigo”) e Sônia (a jovem devota e pobre que para livrar a família da penúria se prostitui pelas ruas de São Petersburgo)? Na obra dostoievskiana, é a manifestação do amor ágape, essencialmente Cristão – aquele que se sacrifica incondicionalmente –, num mundo de miséria e desolação, o grande triunfo. No filme, ao assistir a cena em que Stella, após uma tentativa humilhante e desesperada de vender o próprio corpo, cai aos prantos no colo de Accattone, igualmente derrotado e humilhado, sentado às margens da Via Appia Antica, ou quando ela se oferece a voltar para as ruas para que Accattone não se mate de tanto trabalhar, foi-me impossível não lembrar do momento em que o Raskólnikov ajoelha-se perante Sônia, a prostituta, beijando-lhe seus pés porque estava diante do “sofrimento de todo o mundo”.
Ao assistir a cena em que o filho do Accattone brinca com garrafas no quintal de casa, numa das paupérrimas borgates (favelas) de Roma (que em muito lembram as regiões pobres do Brasil), ou em que o Accattone e seus amigos batalham por um prato de macarrão, como não lembrar da pobreza mortificante dos vizinhos doentes de Makar Diévúchkin e Varvara Alieksiêievna, enfurnados num apartamento pequeno de uma São Petersburgo miserável, em “Gente Pobre”? Da mesma forma, momentos de ternura e riso, mesmo diante de tanta opressão e miséria, como na cena em que Accattone está sentado na calçada com dois ladrões e todos se põem a rir por conta do chulé de um deles, me remeteram aos momentos de camaradagem e candura em “Recordação da Casa dos Mortos”, onde Dostoiévski romanceia os anos que ficou preso na Sibéria. Os paralelos são inúmeros. Que a pena do gigante escritor russo e as lentes do cineasta italiano, nessa continuidade temática, convirjam tão belamente, não deve ser mera coincidência.
Um dos momentos mais gloriosos, em termos de composição, simbolismo, tema e atuação, de toda a filmografia do Pasolini, certamente é a cena em que Accattone, após uma briga com o irmão de sua ex-mulher, na frente de seu filho e de uma horda de observadores, caminha, imundo e rasgado, ao som de “A Paixão de São Mateus”, do Bach. Poucas vezes vi cena tão desoladora.
Que Pasolini, em sua irrefreável paixão pela vida e compromisso com sua arte e visão de mundo, tenha alcançado tamanha grandeza em sua primeira empreitada cinematográfica é um testamento inequívoco de sua genialidade.
Como devoto da cultura e da História russas – uma terra que nos deu Tchaikovski, Rachmaninoff, Dostoiévski, Tolstoi e tantos outros artistas gloriosos – não me canso de revisitar Arca Russa, um testemunho vivo da grandeza da Mãe Rússia.
A ideia do Marquês Francês como um guia desdenhoso e cético foi um golpe de gênio do Sokurov; a evolução desse personagem no decorrer do filme como um símbolo das constantes batalhas de identidade da Rússia ao longo da História é simplesmente brilhante.
Em cada visita à Arca do Sokurov descubro ou noto algo novo. Nesta terceira visita foi Pushkin, o querido poeta russo, aparecendo constantemente durante a nossa longa caminhada, sendo um dos últimos rostos que vemos no filme. O tom melancólico da despedida no final sempre me enche de emoção e derramo uma ou duas lágrimas de puro contentamento, o que acontece frequentemente quando testemunho algo verdadeiramente Belo.
Arca Russa é um presente para a humanidade, uma obra de arte sem precedentes.
As pessoas veem o que elas querem ver. Chabrol, clínico e ambíguo, sabe disso e por isso não faz julgamento moral algum nessa obra incrivelmente engenhosa sobre um tema que sempre será espinhoso. Somos seres complexos e contraditórios e a personagem da Huppert personifica isso exemplarmente. Uma aula de cinema.
Berger decidiu que quer ser o porta-voz da companha contra o conceito abestado de "masculinidade tóxica", criando "personagens" e expondo "situações" que só existem na cabeça febril dele. Como um monte de macho tomando café da manhã semi-pelados/usando micro-shorts discutindo o tópico "chupar pau". É tão cretino, tão artificial, deslocado da realidade e irritante que me fez repensar sobre tudo que ele fez até aqui.
"Don't be so eager to be offended. The narcissism of small differences leads to the most boring kind of conformity."
"Unfortunately, the architect of your soul appears to be social media."
"You want to dance the mask, you must service the composer. You gotta sublimate yourself, your ego, and, yes, your identity. You must, in fact, stand in front of the public and God and obliterate yourself."
Toma, carai!
(Gosto do humor na transição dessa cena, em que ela fala lá pro coitado que ele tem que "sublimar o ego" e logo em seguida ela está editando o próprio perfil na Wikipedia).
"Você está achando graça, mas há muito a ser dito sobre a vida do homem entre os homens, sem luxo, sem ornamentos. Absoluta simplicidade. Talvez seja feio e grosseiro, mas também é limpo. Limpo como um rifle. Não há vestígio de sujeira dentro ou fora, e é imaculado em sua maneira austera e viva, sua bravura. Raramente saem da visão alheia. Eles comem, treinam, tomam banho, fazem piadas e vão ao bordel juntos. Dormem lado a lado. Os alojamentos ensinam a muitos sobre cortesia e como evitar ofensas. Eles guardam a privacidade do próximo como se fosse a própria. E as amizades... Meu Deus. Existem amizades que são mais fortes do que... mais fortes do que o medo da morte. E eles nunca estão sozinhos. Nunca estão sozinhos. E, às vezes, eu os invejo."
“Exotização”, “fetichização”, “estereotipação”: toda vez que um estudante decolonial no auge de seu preciosismo intelectual regurgita esses cacoetes verborrágicos para evocar sua indignação anti-imperialista e demonizar qualquer representação forasteira sobre nossa cultura um novo pronome impronunciável surge nos recônditos mais radioativos dos departamentos de ciências sociais estadunidenses (para ser sumariamente importado anos depois por ativistas tupiniquins). Coerência progressista at its finest.
A má fama quase unânime que esse filme possui no Brasil (ao contrário do que ocorre no exterior, que parece ter compreendido melhor sua proposta) é de uma injustiça que beira ao sacrilégio. Tudo pela má vontade, presunção e miopia da crítica, que é implacável quanto ao retrato do país no filme: “é um pastiche do Brasil para gringo ver”. Pastiche esse com as cenas mais belas do Rio de Janeiro retratadas no cinema (quem vê a cena dos moleques do morro “levantando o sol” com o violão e discorda da beleza arrebatadora daquele momento tem algum problema sério de cognição).
A bem da verdade, sim, há algo de etéreo e antinatural em tudo, como o Querelle do Fassbinder, oras!, que faz com que o filme pareça todo um sonho, uma fábula – o que não deveria ser demérito, mas justamente o que faz o filme funcionar. Uma das primeiras cenas mostra um navio ancorando no Rio de Janeiro e as pessoas já descem dançando, alucinadas, o que deixa a protagonista, a belíssima Eurídice de pele preta, desconcertada. Há outra cena, igualmente onírica: Orfeu, em sua fantasia dourada, perambula pela noite suja e vazia do Rio de Janeiro em busca de sua amada, quando se depara com um faxineiro que lhe concede algumas palavras de desesperança, mas estranhamente consoladoras. Eles descem juntos pela escadaria típica dessas repartições antigas enquanto papeis e papeis de uma burocracia inútil despencam pelo vão. É uma das cenas mais lindas do mundo e deixaria o Dario Argento de queixo caído.
Depois de tanto postergar o filme por conta de uma crítica mui raivosa que li anos antes, acabei assistindo “Orfeu” sozinho, por acaso, na noite do sábado de carnaval. O som ubíquo e intoxicante da cuíca, do pandeiro e do agogô que ecoam durante quase todo o filme se misturavam ao mesmo som que vinha do lado de fora, na rua, igualmente distante. É como se eu estivesse dentro do filme. Experiência mágica que me remeteu ao cinema do também francês Jacques Torneaur (aquele som ouvido de longe, amedrontador, como os tambores de A Morta-Viva, os miados de Sangue de Pantera e os uivos de O Homem-Leopardo).
Há uma melancolia aqui que contrasta muito bem com a alegria eletrizante do Carnaval. Quem diria que esse seria o cenário perfeito para uma adaptação de uma tragédia grega? Obrigado, Marcel Camus.
Insuportável. Quando um filme tenta, desesperadamente, ser bonito, e isso fica muito óbvio, a tendência é que ele falhe por sacrificar outros elementos. Mas nada funciona aqui, nem a tão celebrada forma do filme: o aspecto teatral me irrita (com a exceção de poucos, como Greenaway, não gosto dessa transa cinema + teatro); o casting e as atuações estão fora de lugar; a fotografia acinzentada e expressionista é cansativa (fui esperando, pelo menos, um esplendor visual, mas nem isso); o ritmo é glacial. Tudo errado e absolutamente estéril e sem alma alguma. Foi como olhar para uma tela com três faixas horizontais, cada uma com um tom de cinza diferente, por duas horas. E com uma abelha zumbindo no meu ouvido sem parar. Para piorar, olho ao redor e estão todos admirados.
Shakespeare parece intransponível, mas adaptá-lo, preservando a riqueza do seu texto, não é impossível. Os exemplos mais marcantes são “Trono Manchado de Sangue”, do Kurosawa, e “Henrique V”, do Branagh. Outro bom exemplo de adaptação para a linguagem cinematográfica é “O Processo”, do Welles, onde a engenhosidade visual e o texto kafkiano encontram uma simbiose estranha e perfeita.
Curioso como, de maneira bem altruísta, o Carax nos adverte logo no início da projeção que não respirar — portanto, perder os sentidos até o ponto em que se está morto — é a forma ideal de encarar o que viria nas próximas duas horas e vinte minutos do seu celebrado [anti]musical, ovacionado em Cannes por cinco minutos. Por esse cuidado (e que eu deveria ter levado a cabo, estourando meus miolos ou pulando da sacada da varanda), concederei ao célebre diretor meia estrela na sua tão aguardada empreitada. Afinal, ele tirou alguns minutos do seu valiosíssimo tempo em que passa contemplando sua autoimportância como um artista altamente idiossincrático para pensar em nós, sua audiência. Imagino-o ao final da sessão dando um sorrisinho sardônico de satisfação e deboche, enquanto solta de maneira bem blasé a fumaça do seu cigarro.
Dito isso, dói-me o coração saber que tal engodo foi dirigido pela mesma pessoa que deu ao mundo a obra-prima "Les Amants du Pont-Neuf". Mas aí lembro que esse filme veio depois de "Holy Motors", quando o diretor decidiu enfiar a cara no próprio rabo e não quis mais sair de lá.
Algumas cenas são bem bonitas, como a dos fogos de artifício explodindo atrás do protagonista no parque de diversões, mas o conjunto da obra soa artificial e insípido demais. O filme até brinca bem com o imaginário homo ao resgatar elementos do cinema do Fassbinder, do Anger e do Pedro Rodrigues, mas parece atrasado pelo menos uns 50 anos em sua pretensa verve transgressora, além de recair nos mesmos erros do cinema do Refn, que o diretor emula ad nauseam: all style, no substance. Aliás: os zooms à exaustão e os planos muito centralizados são indícios muito fortes de que a experiência se pretende muito mais estética do que qualquer outra coisa. Quanto a isso, é até tolerável, mas sobre o enredo inexistente, não há desculpas; e o filme fracassa fatalmente na construção dos personagens (desmorona por completo na cena do chilique no supermercado, que quase me fez desistir e sepultou qualquer interesse num possível desenvolvimento do protagonista, que, diga-se, nunca veio). Além disso, toda a áurea fetichista de leather e pups e muitos homens do filme soam terrivelmente deslocados em Catalão, já que, embora somente habite o imaginário do protagonista, é o tipo de cena que você dificilmente verá numa cidade interiorana do Brasil, mas nos centros urbanos do sudeste ou em outras capitais (o protagonista, o falso loiro e o falso grisalho foram magicamente teletransportados de algum apartamento de taco com planta de Santa Cecília para o interior de Goiás). No fim, o filme perde a chance de ser algo interessante e se restringe a um mero wet dream do diretor, o que pode ser atestado pela horrorosa e indefensável desconexa sequência final.
Houve um tempo, antes da intrusão das redes sociais em nossas vidas, em que parecia existir uma soma de esforços para o bom convívio entre os sexos. Foi antes de ouvirmos falar em interseccionalidade e MGTOW, em cisheteronormatividade e em machonarias, ou em mitologias pobres como lugar de fala e turbotecnomachonãoseioquê. Hoje a mídia se alimenta diariamente desses extremos, que dominam o discurso público de tal maneira que esquecemos que na vida real, longe das redes, muita gente não está nem aí pra nada disso. É difícil imaginar que em um ambiente tão hostil e ressentido, homens e mulheres possam ser vulneráveis um diante do outro e não somente vítimas de uma cínica e interminável disputa foucaldiana por poder.
Acima de toda essa afetação atual, estava o francês Éric Rohmer, que assimilou com maestria os dilemas existenciais da modernidade e as tensões saudáveis e inescapáveis entre os sexos. Ninguém concatenou isso de forma tão genuína como ele em «IL'ami de mon amie», de 1987, seu último filme da série de "Comédias e Provérbios". Na trama, conhecemos 4 arquétipos da sociedade altamente secularizada de hoje, todos movidos pela vontade/ego e sem uma bússola moral definida: a mulher bem-sucedida, insegura e solitária; a mulher livre, assertiva, à deriva; o homem inteligente, sensível, meio frouxo; o macho-alfa magnético e sem critério.
Numa rede de encontros e desencontros, Rohmer testa os limites da amizade, da atração e da moral, confrontando todos eles com um dinamismo e sagacidade ímpares. Nenhum dos personagens é idealizado, de modo que o naturalismo dos diálogos e o desenrolar espontâneo das situações — marcas indeléveis do cinema do diretor — tornam-se o fio condutor. Como poucos, Rohmer compreende as engrenagens da atração e tem absoluto domínio do que ocorre em cena: somos um amálgama intricado de experiências, preferências, desejos e traumas e, mais que tudo isso, somos parte cultura e parte biologia. Nenhum dogma ou teoria é capaz de mudar esse fato do tecido social. Da linguagem corporal do macho à inadequação social da mocinha; das pequenas hipocrisias, às necessárias concessões, nada escapa ao esforço conciliatório do mestre da conversação. Que fez, além de tudo, um filme visualmente estonteante em sua elegante simplicidade, num jogo sutil de cores, figurinos e espaços.
"Não há nada como a falta de liberdade para proporcionar momentos de alegria."
Existem coincidências absurdas demais para se crerem reais e que quando acontecem parecem sugerir uma ordem inabalável no Universo. Eis uma delas: assisti a esse maravilhoso filme franco-italiano, «La prima notte di quiete», do Valerio Zurlini, um dia após terminar a leitura de «O Quarto de Giovanni», obra-prima do escritor estadunidense James Baldwin, que devorei em uma sentada de tão bom. No livro, uma das passagens que ficou ecoando em mim foi esta:
"E aquelas noites eram vividas sob um céu estrangeiro, sem pessoa alguma a observar, sem penalidades ou castigos — e foi este último fato a causa de nossa ruína, pois nada se mostra mais insuportável do que a liberdade, depois de a possuirmos."
A conexão desse paradoxo com o aforismo do camusiano personagem do Alain Delon no filme foi surreal pra mim. É como se o Cosmos estivesse descortinando-me uma Verdade: a vida é mesmo um absurdo, mas hey, não há felicidade sem o sofrimento como referência; não há excitação sem a melancolia; liberdade sem opressão; sucesso sem fracasso; amor sem desprezo; sabedoria sem ignorância, vida sem morte. É como se ele me dissesse: você precisa atravessar tudo isso, por isso desconfie de gente feliz demais, livre demais, grata demais; o ócio, o infortúnio, a miséria são inevitáveis e sabendo disso, é mais fácil dominá-los — como as sombras que carregamos e aprendemos a domesticar.
A nossa insatisfação crônica talvez resida neste erro, de acharmos que tais estados são permanentes ou um "lugar" que a gente consiga alcançar.
É lindo quando o cinema e a literatura convergem dessa forma. E pelo amor de Deus: o que foi a cena da boate? Os olhares do Alain Delon pareciam lâminas de tristeza e melancolia. Revi esta cena várias vezes.
A parceria do Tsai Ming-Liang com Lee Kang-Sheng começou em 1989, ano em que nasci. Apraz-me a ideia de que vim ao mundo no mesmo intervalo tempo-espacial em que essas duas almas decidiram se encontrar, por mero acaso, para nunca mais se separarem, entregando-nos obras-primas como O Buraco, Vive L'Amour, Rebeldes do Deus Neon, Eu Não Quero Dormir Sozinho e Cães Errantes — todas indiscutivelmente obrigatórias para os lobos solitários deste mundo. Ouso dizer que essa prolífica relação que já atravessa três décadas não possua precedentes comparáveis (no máximo, talvez, aquela entre o Cassavetes e a Rowlands, o Bergman e a Ullmann).
A habilidade vocacional de conseguir concatenar algo grandioso de forma simples é restrita a poucos gênios em qualquer área, seja no reino artístico ou do pensamento. Tsai é um desses gênios. Seu cinema menos é mais, tão desprovido de ornamentos e opulências, surpreende-me com sua profundidade emocional e atravessa-me feito trem bala. Ouso dizer que é o único cineasta com calibre e estirpe hoje pra conseguir fazer um filme existencial sobre incomunicabilidade tão contemplativo, tão cheio de silêncios, de esperas, sem diálogos, com cenas longuíssimas e pouquíssimos cortes e com mais de duas horas de duração sem que a mão pese, sem ser críptico demais, ou sem que tudo não pareça um mero exercício autocongratulatório de estilo.
Dias (日子, 2020) é um filme difícil, feito sob medida para o ano caótico e pandêmico de 2020: a dor física que o protagonista carrega o filme inteiro estampada em seu olhar errático, o isolamento/alienação urbana, a explosão de ternura dos corpos quando finalmente se encontram, as vidas que seguem separadas. Todo o existencialismo articulado de maneira não-pedagógica, de modo a nos causar o mesmo desconforto, a mesma agonia, como se fôssemos nós ali na tela, tocando nossas rotinas e carregando nossas angústias, insuficiências e incapacidades.
Esperava tudo deste filme. E ele foi o abraço que eu precisava.
“Fui ler o Hermann Hesse aos treze anos e tomei um choque. O Lobo da Estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava mais. Terminei rasgando e jogando fora.” (Clarice Lispector, 1977).
O magnum opus do célebre escritor alemão parece mesmo ter um poder acachapante sobre nós. Hesse, entretanto, julgava “O Lobo” seu trabalho mais incompreendido, frustração que lhe foi bastante cara em vida, pois viu sua obra ser acolhida não propriamente pelo que ele pretendia. Logo no início, Hesse nos alertava: a história trata não de um homem em desespero, «mas de um homem que Crê», razão primordial do seu torvelinho. Foi uma tentativa de nos guiar pela história, de evitar que não nos distraíssemos da angústia elementar que atravessava seu texto.
Mas assim que a atira no mundo, o autor não mais detém o “comando” da sua própria obra, especialmente quando se trata de algo tão alegórico e aberto a interpretações, como é o caso do livro, que flerta o tempo inteiro com a psicanálise e o onírico. Isso explicaria, por exemplo, o fato de quarenta anos depois de sua primeira publicação, “O Lobo” ter caído no gosto da geração hippie, fascinada pela oposição à beligerância política do protagonista, o pacifista Harry Heller. A abertura do personagem à experimentação, seu desencanto com os dias ordinários, sua rejeição à burguesia e seu conflito pessoal com a formação rigidamente cristã foram material de sobra para acalentar os corações e mentes da geração paz & amor da década de 60.
Mas Heller era mesmo uma figura fascinante: solitário e triste, o eremita passava os dias lendo clássicos, ouvindo música erudita e sentindo pena de si mesmo. De repente, descobre que há dentro de si um lobo – o lobo da estepe – que é o extremo oposto do seu lado retraído e metódico: o lobo é caótico, violento, destemido. Resolve então entregar-se à sua versão lupina, avistando um suicídio que cometeria ao completar 50 anos, prazo para além do qual julgou que a vida não mais valia a pena ser vivida. E é nessa jornada pouco usual, nessa batalha incessante entre as várias facetas de sua personalidade (e, por conseguinte, de suas crenças), que ele encontra, por fim, a si mesmo.
“O Lobo” é uma obra exemplar porque Hesse delineia os contornos e contradições da perturbada alma do protagonista com bastante destreza, quando poderia facilmente ter romantizado sua ruptura para o lado selvagem, resvalando em um personagem tolo e autoindulgente. Mas não: Heller se vê perdido o tempo inteiro entre si mesmo e o lobo, entre o sagrado e o profano, entre a miséria e a alegria que para ele eram estados facilmente cambiáveis. Quem nunca teve um arroubo de tristeza ou se sentiu irremediavelmente sozinho no meio de uma festa? Esse permanente autoexame de consciência do personagem – o grosso do livro – é de uma profundidade e densidade emocionais absurdas. Seu tormento espiritual, sua dor existencial, a natureza dual e conflitante de sua moralidade, o senso de inadequação, a reverência ao Eterno, à Verdade e ao cânone artístico ocidental, a necessidade de ordem, seu constante estado de busca e compreensão: tudo isso gritou-me diretamente e a experiência que senti folheando as páginas do livro jamais me escapará.
Infelizmente, não há como dizer o mesmo da adaptação cinematográfica dirigida pelo Fred Haines, «Steppenwolf» (1974), que me frustrou sobremaneira. No filme há pouquíssimos momentos de poesia no delinear da personalidade do Harry porque o diretor não se arvora nessa preocupação, mas em capturar a lisergia que era atraente à época da contracultura. Começa de forma apressada e faltam-lhe a introspecção e subjetividade que são as marcas do livro. É muito mais uma colcha de retalhos de passagens do livro apresentadas sem unidade e sem coesão (embora o livro também não seja todo linear). Ironicamente, todas as cenas importantes do livro estão lá (Harry sentado na escada, intoxicado pelo asseio e ordem do apartamento burguês ao lado; o diálogo com Pablo sobre música erudita vs. popular; o diálogo com Hermínia sobre o Eterno em oposição à satisfação imediata; o baile de máscaras; o diálogo com Mozart), mas são jogadas de forma tão desarticulada que o sentimento foi de absoluto desgosto. É o assassinato do que há de mais belo na obra.
Lembro que, no livro, foi a chegada da misteriosa Hermínia, com tudo o que ela representava, um dos momentos visualmente mais cativantes da história. Ela é introduzida de tal maneira que, em minha mente, o livro ganhou, literalmente, outra cor e outra cadência, tamanha a ruptura do universo austero e solitário do Harry com o dela – luminoso, vivaz, passional, sensual, jazzístico. E o erro crasso do filme foi a terrível escolha e péssima desenvoltura da atriz que a interpreta: desenxabida, apática, sem carisma, de expressão morta e sem luz. Evidentemente, não há de se esperar que o desenvolvimento dos personagens numa obra literária equipare-se à sua transposição para a linguagem cinematográfica, mas a falta de um esforço nesse sentido foi terminal. Até os personagens secundários, como Maria e Pablo, ambos imprescindíveis, foram pouco explorados.
“De repente uma pessoa, uma pessoa viva percute a campânula de cristal da minha apatia e me estende a mão, uma mão boa, bela, cálida! De repente, voltam a surgir coisas que me afetam, nas quais posso pensar com alegria, com preocupação, com interesse! De repente, uma porta que se abre e por ela entra a vida para mim! Talvez possa voltar a viver, talvez possa voltar a ser gente. Minha alma, que havia tombado adormecida no frio e quase se enregela, respira de novo e volta a bater sonolenta as pequenas asas débeis.”
Dito tudo isso, o filme possui, sim, seus acertos, como a presença do Max von Sydow, a atmosfera noturna e o surrealismo que o permeia (o riso sardônico do distribuidor de panfletos é algo que mereceu ser adicionado ao meu imaginário da história). Do mesmo modo, todo o segmento do Teatro Mágico, embora muito mais lisérgico do que imaginei, é bastante surreal e criativo dadas as limitações da época (a escolha visual para a cena simbólica do domador é brilhante). Mesmo que não tenham envelhecido bem, esses momentos possuem um apelo interessante, lembrando as obras de Salvador Dalí e Terry Gilliam e do filme-ópera The Wall.
Mas o que mais me saltou aos olhos – e ainda não vi ninguém apontando isso – é sua inambígua semelhança com «Mulholland Drive», do David Lynch, o que me chocou muito, pois este é meu filme de cabeceira. Quando uma voz, no Teatro, diz ao Harry "É apenas uma ilusão. O Teatro Mágico não é realidade.", veio-me, imediatamente, a cena do Clube Silêncio, onde as mesmas palavras são ditas pelo apresentador: “Não há orquestra: É tudo uma gravação; é tudo ilusão.”. Ambas as frases são a peça-chave para a compreensão da história no livro do Hesse e no filme do Lynch, profundamente simbólicos e metafóricos. Há outra cena do filme, anterior à do Teatro, visualmente idêntica à Cidade dos Sonhos: quando Hermínia e Maria beijam-se no bar e olham de forma provocativa para o Harry. A mesmíssima cena é vista na obra-prima do Lynch envolvendo as duas Camilla Rhodes numa dinner party.
No fim das contas, confesso que minhas expectativas para a adaptação de O Lobo da Estepe eram altíssimas, o que pode explicar meu descontentamento com o resultado desse filme como um todo. Resolvi esperar algumas semanas após ler o livro para assisti-lo – de modo a consolidar as imagens que criei em minha mente sem poluí-las com outra visão, o que vejo agora como uma decisão acertadíssima, pois são aquelas que sobreviverão para sempre.
"Aprenda o que deve ser levado a sério e ria do resto."
A sensação que se tem ao término de «L'amant double» é que François Ozon parece-me incapaz de sair da média, o que se agrava quando tenta a todo custo fazê-lo – caso deste filme. Ainda que reconheça um certo zelo estético do diretor, bem como reverencie sua intrepidez em retratar traços sombrios e violentos da psique humana e suas misteriosas pulsões, ele não soube concatenar os elementos constitutivos da obra: é uma mistura de pornô softcore noventista com terror psicossexual que simplesmente não dialogam um com o outro e que foram pouco ajudados com o roteiro excessivamente obscuro.
Tal falta de unidade e de coesão torna-se evidente com a assepsia das cenas de sexo que consistem em 2/3 do filme quando contrastadas com os momentos mais sinistros e viscerais da trama. Não há erotismo, não há sensualidade alguma – o que é um crime. «Inverno de Sangue em Veneza», que deveria ser a pedra de toque para todas as cenas de sexo que o sucederam, não ensinou nada aqui: não há suor, não há entrega, não há verdade; os belos corpos nus de Jérémie Renier e Marine Vatch repousam na tela apenas para a contemplação do espectador e lembram mais comercial de perfumaria de grife que qualquer outra coisa.
Essa dissonância, inclusive, impossibilitou-me de sentir-me investido na trama, que pareceu ter o dobro da duração. Reconhecer, no decorrer do filme, a mão invisível e onipresente de tantos outros diretores tampouco ajudou: as influências de Verhoeven, Polanski, Zulawski, de Palma, Cronenberg e Villeneuve saltam aos olhos o tempo inteiro. Ter visto algumas dessas referências recentemente (como «The Rosemary's Baby», «Elle» e «Desd Ringers») apenas reforçou o abissal distanciamento entre elas e o Ozon.
De modo geral, uma pena, pois o filme é inteligente, o tema muito me interessa e os minutos derradeiros foram, de fato, perturbadores, o que quase me demoveu da minha insatisfação. Tarde demais.
Vez ou outra tenho aventurado-me numa nasty business que me é muito custosa, porém necessária: rever, com certo desprendimento, filmes que nutro em alta estima com os meus "olhos" de hoje e em melhores condições (versões restauradas ou em alta definição). O resultado é incerto: pode ser de completa desilusão, como a minha experiência com «Interview with The Vampire», que me causou abjeção, ou de absoluta reverência, êxtase e espanto, como foi revisitar o fenômeno cult «Rosemary's Baby».
Mesmo tendo-o visto, anteriormente, em duas oportunidades (no cinema, em uma das saudosas Sessões Notívagos onde varávamos a madrugada na sala de cinema; e na versão em DVD que possuo), tudo me pareceu novo, com um frescor intoxicante. Da belíssima abertura (que agora me remeteu ao clássico «The Innocents») ao olhar ambíguo da Mia Farrow na cena final, a sensação é a de que eu estava vendo o filme pela primeira vez, mesmo que todo o desenrolar se antecipasse em minha mente.
Prova disso é só agora ter-me apercebido da aparição de "El Aquelarre", de Goya; ou da cuidadosa evolução dos cortes de cabelo da Ro. Chamou-me a atenção, também, o profundo rigor estético do Polanski no uso dos espaços e da mise-en-scène como um elemento primal do filme. Como a ambivalência de «Rosemary's Baby» é um de seus pontos nevrálgicos, reforçada nos momentos oníricos, há esse pequeno detalhe do "sonho/violação" da Ro que me saltou aos olhos: a sutil transição do papel de parede amarelado e confortante da casa para a inscrição de pinturas nas paredes, remetendo ao seu passado de formação cristã.
Elementar, acima de tudo, é perceber o quão angustiante e perturbador o filme continua sendo nos dias de hoje. Afinal estamos falando de gaslighting e estupro (pelo Satã? Pelo marido?) em uma era onde a cancel culture está a pleno vapor, o que, somado às controvérsias ligadas ao diretor, contaminará a apreciação da obra por muitos. O filme possui, no entanto, um dos momentos mais "feministas" de que me recordo: são as amigas da Ro, vendo-a sofrer, que a recomendam ver um segundo médico, promovendo uma importante ruptura no desenrolar da trama, no que pode ser lido como um aliviante momento de sororidade entre elas. Mas digrido.
O filme é todo arvorado em cima dessa sensação perturbadora de ser desacreditado diante de algo tenebroso, que é o calvário da protagonista ao suspeitar que seu marido, médico e vizinhos estão mancomunando com o Satã para se apropriar do bebê que cresce em seu ventre. Todo o processo é de pura aflição: as dores lancinantes, a presença cada vez mais pervasiva dos vizinhos, a figura cada vez mais dúbia do marido (Cassavetes, brilhante), a exsudação cada vez mais intensa da Rosemary. O horror que ela sente ao perceber um homem parar ao seu lado na cabine telefônica (e que pode ser visto em seus olhos pelo reflexo do vidro) não é somente credível – é aterrorizante mesmo!
Vi-me fisgado o tempo inteiro pelas camadas psicológicas, pela paranoia constante e pelas pequenas nuances desse filme, o que me leva a concluir que se ele permanece imarcescível desta forma, significa apenas uma coisa: que sua qualidade é inapelável. Sinto-me obrigado a rever os demais filmes da trilogia porque isso aqui me empolgou demais.
Édipo Rei
3.8 54Uma vez um professor disse, com razão, que ler diferentes traduções e adaptações de uma mesma obra é uma boa maneira de assimilar diferentes perspectivas. Desde então sempre procurei fazê-lo. Nem sempre o resultado é satisfatório.
O grande mérito da tragédia de Sófocles é que embora a estória contenha passagens brutais (bebês com pés perfurados pendidos em árvores à espera da morte, patricídio, incesto, suicídio e o escambau), edulcoram a trama o esmero com a forma, a beleza atemporal do texto e a investigação cuidadosa sobre a inevitabilidade do destino e a necessidade de perscrutar o espírito, em oposição à húbris e à falta de autognose.
Já nessa livre-adaptação semiautobiográfica do Pasolini, todas as escolhas do diretor exacerbam a barbárie, que se estende, intencionalmente, do aspecto temático ao formal: a esterilidade dos cenários marroquinos, a precariedade dos figurinos, o histrionismo desumano dos atores, a onipotência lancinante da trilha sonora, o chacoalhar da câmara que insiste em lembrar-nos de que estamos vendo um filme, a ênfase no aspecto freudiano da relação incestuosa com a mãe. Há, pontualmente, algo de belo e bastante original aqui, mas escamoteado pela mão pesada do italiano.
Tivesse assistido a “Edipo re” desavisado, poderia ter me agradado mais, pois ao fim e ao cabo parece um clipe de 1h44 bem artsy-fartsy do Dead Can Dance, mas tal qual o infausto destino do Édipo, que lapidou, ironicamente, a própria desdita, armei contra mim mesmo: depois de ter alçado Accattone ao panteão dos meus filmes favoritos e ser um entusiasta de mitologia grega, criei rios de expectativa e fiz toda uma pré-cerimônia, que envolveu ler a tragédia do Sófocles no dia anterior e saborear algumas pinturas, em especial a icônica "Oedipus and the Sphinx" do mestre Moreau, que possui uma profusão imagética de detalhes e símbolos.
Aqui, porém, todo o poder do texto do Sófocles se dissipa na busca do Pasolini por uma visão autêntica (pessoal e política) do mito, reduzindo-o a imagens insólitas, rearranjos anistóricos e exageros formais, com algumas escolhas que beiram ao sacrilégio de tão hediondas, como a caracterização precária da Esfinge e o encontro fatídico com Laio na estrada, onde o diretor perverte o mito de forma inexplicável (pobre Citti, tão talentoso, reduzido a um corpo gritante e histérico).
Espero rever no futuro, sem expectativas, e não se desapontar tanto, ou aceitar algo aparentemente extraordinário: o Pasolini é gente, é falível e pode ter errado a mão.
Accattone - Desajuste Social
3.9 31É praticamente inconcebível a ideia de que "Accattone" – uma verdadeira obra-prima pós-realista – seja a obra inaugural do Pasolini no cinema, o que apenas é explicável em virtude de todas as atividades com as quais esse grande artista em formação já estava envolvido: poeta, escritor, arguto observador social, além de ter trabalhado com Fellini nos roteiros de "Le notte di Cabiria" e "La dolce vita". Mas há algo de diferente aqui, uma inovação temática que o diferencia dos seus antecessores neorrealistas e que advinha de seus trabalhos com poesia. Tendo estabelecido uma celebridade de controverso e transgressor, sobretudo por suas veementes críticas à burguesia, ao consumismo capitalista e às contradições da esquerda, um aspecto central de sua obra é frequentemente escamoteado: a dimensão espiritual, o elemento transcendental e sagrado, a figura de Cristo como um pilar moral fulcral e intransponível, a ausência de Deus.
O fato de que era um profundo admirador do Evangelho, conquanto ateu, homossexual, crítico da Igreja e séquito da obra marxiana, conferia à sua idiossincrática personalidade um aspecto mítico: Pasolini era, portanto, uma quimera, que carregava dentro de si forças e tensões antagônicas. Em uma de suas mais honestas entrevistas, afirmava que sua visão das coisas não era secular ou laica, mas sagrada, milagrosa. Via o Evangelho, em suas palavras, como um grande trabalho intelectual que edificava o pensamento, que preenchia, integrava, regenerava e levava à ação, mas nunca como uma fonte vazia e irrefletida de consolo. Assustava-o que na Itália pós-guerra, e entre os seus, sequer conhecessem o Evangelho (um dos motivos, inclusive, que o fez realizar "Il Vangelo Secondo Matteo").
"Accattone" conta a história de um cafetão esmagado pela pobreza que tenta, entre pequenos delitos e outros atos imorais, escapar dela. Franco Citti dá vida, com vigor e brutal honestidade, a um dos “ragazzi di vita” do Pasolini.
Tendo recentemente lido “Crime e Castigo”, “Gente Pobre” e “Recordações da Casa dos Mortos”, do Fiódor Dostoiévski, vi-me traçando paralelos entre a obra do grande escritor russo e essa obra estreante do diretor italiano: as tensões entre o progresso racionalista e a irracionalidade do homem, entre a fé Cristã e a razão, entre a moralidade e a miséria – tudo isso trazendo no seio de suas obras uma preocupação genuína, advinda de suas origens e experiências, com as classes mais desfavorecidas, mostrando toda a sorte de humilhações que a pobreza e a exploração impõem ao indivíduo, esmagando-lhe. Prostitutas, agiotas, cafetões, assassinos, ladrões e mendigos estão no centro de suas estórias. Essa leitura social humanista e cristã é o que afasta, em certa medida, o Dostoiévski do Gógol, do Turguêniev e do socialismo ateu do Belinski. Da mesma forma, é o que afasta Pasolini do Fellini, do Rossellini e da intelligentsia de esquerda comunista e revolucionária, com a qual não raramente digladiava.
Como não lembrar, então, dos diálogos entre Raskólnikov (o protagonista atormentado de “Crime e Castigo”) e Sônia (a jovem devota e pobre que para livrar a família da penúria se prostitui pelas ruas de São Petersburgo)? Na obra dostoievskiana, é a manifestação do amor ágape, essencialmente Cristão – aquele que se sacrifica incondicionalmente –, num mundo de miséria e desolação, o grande triunfo. No filme, ao assistir a cena em que Stella, após uma tentativa humilhante e desesperada de vender o próprio corpo, cai aos prantos no colo de Accattone, igualmente derrotado e humilhado, sentado às margens da Via Appia Antica, ou quando ela se oferece a voltar para as ruas para que Accattone não se mate de tanto trabalhar, foi-me impossível não lembrar do momento em que o Raskólnikov ajoelha-se perante Sônia, a prostituta, beijando-lhe seus pés porque estava diante do “sofrimento de todo o mundo”.
Ao assistir a cena em que o filho do Accattone brinca com garrafas no quintal de casa, numa das paupérrimas borgates (favelas) de Roma (que em muito lembram as regiões pobres do Brasil), ou em que o Accattone e seus amigos batalham por um prato de macarrão, como não lembrar da pobreza mortificante dos vizinhos doentes de Makar Diévúchkin e Varvara Alieksiêievna, enfurnados num apartamento pequeno de uma São Petersburgo miserável, em “Gente Pobre”? Da mesma forma, momentos de ternura e riso, mesmo diante de tanta opressão e miséria, como na cena em que Accattone está sentado na calçada com dois ladrões e todos se põem a rir por conta do chulé de um deles, me remeteram aos momentos de camaradagem e candura em “Recordação da Casa dos Mortos”, onde Dostoiévski romanceia os anos que ficou preso na Sibéria. Os paralelos são inúmeros. Que a pena do gigante escritor russo e as lentes do cineasta italiano, nessa continuidade temática, convirjam tão belamente, não deve ser mera coincidência.
Um dos momentos mais gloriosos, em termos de composição, simbolismo, tema e atuação, de toda a filmografia do Pasolini, certamente é a cena em que Accattone, após uma briga com o irmão de sua ex-mulher, na frente de seu filho e de uma horda de observadores, caminha, imundo e rasgado, ao som de “A Paixão de São Mateus”, do Bach. Poucas vezes vi cena tão desoladora.
Que Pasolini, em sua irrefreável paixão pela vida e compromisso com sua arte e visão de mundo, tenha alcançado tamanha grandeza em sua primeira empreitada cinematográfica é um testamento inequívoco de sua genialidade.
Arca Russa
4.0 184Como devoto da cultura e da História russas – uma terra que nos deu Tchaikovski, Rachmaninoff, Dostoiévski, Tolstoi e tantos outros artistas gloriosos – não me canso de revisitar Arca Russa, um testemunho vivo da grandeza da Mãe Rússia.
A ideia do Marquês Francês como um guia desdenhoso e cético foi um golpe de gênio do Sokurov; a evolução desse personagem no decorrer do filme como um símbolo das constantes batalhas de identidade da Rússia ao longo da História é simplesmente brilhante.
Em cada visita à Arca do Sokurov descubro ou noto algo novo. Nesta terceira visita foi Pushkin, o querido poeta russo, aparecendo constantemente durante a nossa longa caminhada, sendo um dos últimos rostos que vemos no filme. O tom melancólico da despedida no final sempre me enche de emoção e derramo uma ou duas lágrimas de puro contentamento, o que acontece frequentemente quando testemunho algo verdadeiramente Belo.
Arca Russa é um presente para a humanidade, uma obra de arte sem precedentes.
Um Assunto de Mulheres
4.2 77As pessoas veem o que elas querem ver. Chabrol, clínico e ambíguo, sabe disso e por isso não faz julgamento moral algum nessa obra incrivelmente engenhosa sobre um tema que sempre será espinhoso. Somos seres complexos e contraditórios e a personagem da Huppert personifica isso exemplarmente. Uma aula de cinema.
A Rua da Vergonha
4.2 25Meses se passaram e continuo com a cena final na cabeça.
A Eternidade e Um Dia
4.2 66Obrigado, Eleni Karaindrou, por manter, com sua banda sonora, a chama desse filme sempre acesa.
Decisão de Partir
3.6 143O amor é um cão dos diabos.
Os Agitadores
2.2 12Berger decidiu que quer ser o porta-voz da companha contra o conceito abestado de "masculinidade tóxica", criando "personagens" e expondo "situações" que só existem na cabeça febril dele. Como um monte de macho tomando café da manhã semi-pelados/usando micro-shorts discutindo o tópico "chupar pau". É tão cretino, tão artificial, deslocado da realidade e irritante que me fez repensar sobre tudo que ele fez até aqui.
Tár
3.7 395 Assista Agora"Don't be so eager to be offended. The narcissism of small differences leads to the most boring kind of conformity."
"Unfortunately, the architect of your soul appears to be social media."
"You want to dance the mask, you must service the composer. You gotta sublimate yourself, your ego, and, yes, your identity. You must, in fact, stand in front of the public and God and obliterate yourself."
Toma, carai!
(Gosto do humor na transição dessa cena, em que ela fala lá pro coitado que ele tem que "sublimar o ego" e logo em seguida ela está editando o próprio perfil na Wikipedia).
Fogo-Fátuo
2.8 16Rodrigues ama o próprio pau. Ligou o automático. Queria desver. Cinema "quir" is dead.
Benediction
3.4 8Discretion is my middle name [proceeds to dance tango cheek to cheek with another man].
O Pecado de Todos Nós
3.9 59 Assista Agora"Você está achando graça, mas há muito a ser dito sobre a vida do homem entre os homens, sem luxo, sem ornamentos. Absoluta simplicidade. Talvez seja feio e grosseiro, mas também é limpo. Limpo como um rifle. Não há vestígio de sujeira dentro ou fora, e é imaculado em sua maneira austera e viva, sua bravura. Raramente saem da visão alheia. Eles comem, treinam, tomam banho, fazem piadas e vão ao bordel juntos. Dormem lado a lado. Os alojamentos ensinam a muitos sobre cortesia e como evitar ofensas. Eles guardam a privacidade do próximo como se fosse a própria. E as amizades... Meu Deus. Existem amizades que são mais fortes do que... mais fortes do que o medo da morte. E eles nunca estão sozinhos. Nunca estão sozinhos. E, às vezes, eu os invejo."
Orfeu do Carnaval
3.7 124 Assista AgoraTristeza não tem fim, felicidade sim.
“Exotização”, “fetichização”, “estereotipação”: toda vez que um estudante decolonial no auge de seu preciosismo intelectual regurgita esses cacoetes verborrágicos para evocar sua indignação anti-imperialista e demonizar qualquer representação forasteira sobre nossa cultura um novo pronome impronunciável surge nos recônditos mais radioativos dos departamentos de ciências sociais estadunidenses (para ser sumariamente importado anos depois por ativistas tupiniquins). Coerência progressista at its finest.
A má fama quase unânime que esse filme possui no Brasil (ao contrário do que ocorre no exterior, que parece ter compreendido melhor sua proposta) é de uma injustiça que beira ao sacrilégio. Tudo pela má vontade, presunção e miopia da crítica, que é implacável quanto ao retrato do país no filme: “é um pastiche do Brasil para gringo ver”. Pastiche esse com as cenas mais belas do Rio de Janeiro retratadas no cinema (quem vê a cena dos moleques do morro “levantando o sol” com o violão e discorda da beleza arrebatadora daquele momento tem algum problema sério de cognição).
A bem da verdade, sim, há algo de etéreo e antinatural em tudo, como o Querelle do Fassbinder, oras!, que faz com que o filme pareça todo um sonho, uma fábula – o que não deveria ser demérito, mas justamente o que faz o filme funcionar. Uma das primeiras cenas mostra um navio ancorando no Rio de Janeiro e as pessoas já descem dançando, alucinadas, o que deixa a protagonista, a belíssima Eurídice de pele preta, desconcertada. Há outra cena, igualmente onírica: Orfeu, em sua fantasia dourada, perambula pela noite suja e vazia do Rio de Janeiro em busca de sua amada, quando se depara com um faxineiro que lhe concede algumas palavras de desesperança, mas estranhamente consoladoras. Eles descem juntos pela escadaria típica dessas repartições antigas enquanto papeis e papeis de uma burocracia inútil despencam pelo vão. É uma das cenas mais lindas do mundo e deixaria o Dario Argento de queixo caído.
Depois de tanto postergar o filme por conta de uma crítica mui raivosa que li anos antes, acabei assistindo “Orfeu” sozinho, por acaso, na noite do sábado de carnaval. O som ubíquo e intoxicante da cuíca, do pandeiro e do agogô que ecoam durante quase todo o filme se misturavam ao mesmo som que vinha do lado de fora, na rua, igualmente distante. É como se eu estivesse dentro do filme. Experiência mágica que me remeteu ao cinema do também francês Jacques Torneaur (aquele som ouvido de longe, amedrontador, como os tambores de A Morta-Viva, os miados de Sangue de Pantera e os uivos de O Homem-Leopardo).
Há uma melancolia aqui que contrasta muito bem com a alegria eletrizante do Carnaval. Quem diria que esse seria o cenário perfeito para uma adaptação de uma tragédia grega? Obrigado, Marcel Camus.
A Mão de Deus
3.6 189O longo, terno e fraternal abraço entre Fabietto e Marchino foi uma das coisas mais lindas que eu já vi acontecer em um filme. Sorrentino tem dessas.
A Tragédia de Macbeth
3.7 192 Assista AgoraInsuportável. Quando um filme tenta, desesperadamente, ser bonito, e isso fica muito óbvio, a tendência é que ele falhe por sacrificar outros elementos. Mas nada funciona aqui, nem a tão celebrada forma do filme: o aspecto teatral me irrita (com a exceção de poucos, como Greenaway, não gosto dessa transa cinema + teatro); o casting e as atuações estão fora de lugar; a fotografia acinzentada e expressionista é cansativa (fui esperando, pelo menos, um esplendor visual, mas nem isso); o ritmo é glacial. Tudo errado e absolutamente estéril e sem alma alguma. Foi como olhar para uma tela com três faixas horizontais, cada uma com um tom de cinza diferente, por duas horas. E com uma abelha zumbindo no meu ouvido sem parar. Para piorar, olho ao redor e estão todos admirados.
Shakespeare parece intransponível, mas adaptá-lo, preservando a riqueza do seu texto, não é impossível. Os exemplos mais marcantes são “Trono Manchado de Sangue”, do Kurosawa, e “Henrique V”, do Branagh. Outro bom exemplo de adaptação para a linguagem cinematográfica é “O Processo”, do Welles, onde a engenhosidade visual e o texto kafkiano encontram uma simbiose estranha e perfeita.
Que bola fora, Coen. Não justifica o hype.
Annette
3.5 118 Assista AgoraCurioso como, de maneira bem altruísta, o Carax nos adverte logo no início da projeção que não respirar — portanto, perder os sentidos até o ponto em que se está morto — é a forma ideal de encarar o que viria nas próximas duas horas e vinte minutos do seu celebrado [anti]musical, ovacionado em Cannes por cinco minutos. Por esse cuidado (e que eu deveria ter levado a cabo, estourando meus miolos ou pulando da sacada da varanda), concederei ao célebre diretor meia estrela na sua tão aguardada empreitada. Afinal, ele tirou alguns minutos do seu valiosíssimo tempo em que passa contemplando sua autoimportância como um artista altamente idiossincrático para pensar em nós, sua audiência. Imagino-o ao final da sessão dando um sorrisinho sardônico de satisfação e deboche, enquanto solta de maneira bem blasé a fumaça do seu cigarro.
Dito isso, dói-me o coração saber que tal engodo foi dirigido pela mesma pessoa que deu ao mundo a obra-prima "Les Amants du Pont-Neuf". Mas aí lembro que esse filme veio depois de "Holy Motors", quando o diretor decidiu enfiar a cara no próprio rabo e não quis mais sair de lá.
A Família Addams 2
3.5 382 Assista AgoraYou have enslaved him.
You have placed him under some strange sexual spell.
I respect that.
(Morticia Addams)
Vento Seco
3.2 91Algumas cenas são bem bonitas, como a dos fogos de artifício explodindo atrás do protagonista no parque de diversões, mas o conjunto da obra soa artificial e insípido demais. O filme até brinca bem com o imaginário homo ao resgatar elementos do cinema do Fassbinder, do Anger e do Pedro Rodrigues, mas parece atrasado pelo menos uns 50 anos em sua pretensa verve transgressora, além de recair nos mesmos erros do cinema do Refn, que o diretor emula ad nauseam: all style, no substance. Aliás: os zooms à exaustão e os planos muito centralizados são indícios muito fortes de que a experiência se pretende muito mais estética do que qualquer outra coisa. Quanto a isso, é até tolerável, mas sobre o enredo inexistente, não há desculpas; e o filme fracassa fatalmente na construção dos personagens (desmorona por completo na cena do chilique no supermercado, que quase me fez desistir e sepultou qualquer interesse num possível desenvolvimento do protagonista, que, diga-se, nunca veio). Além disso, toda a áurea fetichista de leather e pups e muitos homens do filme soam terrivelmente deslocados em Catalão, já que, embora somente habite o imaginário do protagonista, é o tipo de cena que você dificilmente verá numa cidade interiorana do Brasil, mas nos centros urbanos do sudeste ou em outras capitais (o protagonista, o falso loiro e o falso grisalho foram magicamente teletransportados de algum apartamento de taco com planta de Santa Cecília para o interior de Goiás). No fim, o filme perde a chance de ser algo interessante e se restringe a um mero wet dream do diretor, o que pode ser atestado pela horrorosa e indefensável desconexa sequência final.
O Amigo da Minha Amiga
4.0 31Houve um tempo, antes da intrusão das redes sociais em nossas vidas, em que parecia existir uma soma de esforços para o bom convívio entre os sexos. Foi antes de ouvirmos falar em interseccionalidade e MGTOW, em cisheteronormatividade e em machonarias, ou em mitologias pobres como lugar de fala e turbotecnomachonãoseioquê. Hoje a mídia se alimenta diariamente desses extremos, que dominam o discurso público de tal maneira que esquecemos que na vida real, longe das redes, muita gente não está nem aí pra nada disso. É difícil imaginar que em um ambiente tão hostil e ressentido, homens e mulheres possam ser vulneráveis um diante do outro e não somente vítimas de uma cínica e interminável disputa foucaldiana por poder.
Acima de toda essa afetação atual, estava o francês Éric Rohmer, que assimilou com maestria os dilemas existenciais da modernidade e as tensões saudáveis e inescapáveis entre os sexos. Ninguém concatenou isso de forma tão genuína como ele em «IL'ami de mon amie», de 1987, seu último filme da série de "Comédias e Provérbios". Na trama, conhecemos 4 arquétipos da sociedade altamente secularizada de hoje, todos movidos pela vontade/ego e sem uma bússola moral definida: a mulher bem-sucedida, insegura e solitária; a mulher livre, assertiva, à deriva; o homem inteligente, sensível, meio frouxo; o macho-alfa magnético e sem critério.
Numa rede de encontros e desencontros, Rohmer testa os limites da amizade, da atração e da moral, confrontando todos eles com um dinamismo e sagacidade ímpares. Nenhum dos personagens é idealizado, de modo que o naturalismo dos diálogos e o desenrolar espontâneo das situações — marcas indeléveis do cinema do diretor — tornam-se o fio condutor. Como poucos, Rohmer compreende as engrenagens da atração e tem absoluto domínio do que ocorre em cena: somos um amálgama intricado de experiências, preferências, desejos e traumas e, mais que tudo isso, somos parte cultura e parte biologia. Nenhum dogma ou teoria é capaz de mudar esse fato do tecido social. Da linguagem corporal do macho à inadequação social da mocinha; das pequenas hipocrisias, às necessárias concessões, nada escapa ao esforço conciliatório do mestre da conversação. Que fez, além de tudo, um filme visualmente estonteante em sua elegante simplicidade, num jogo sutil de cores, figurinos e espaços.
A Primeira Noite de Tranquilidade
4.1 54"Não há nada como a falta de liberdade para proporcionar momentos de alegria."
Existem coincidências absurdas demais para se crerem reais e que quando acontecem parecem sugerir uma ordem inabalável no Universo. Eis uma delas: assisti a esse maravilhoso filme franco-italiano, «La prima notte di quiete», do Valerio Zurlini, um dia após terminar a leitura de «O Quarto de Giovanni», obra-prima do escritor estadunidense James Baldwin, que devorei em uma sentada de tão bom. No livro, uma das passagens que ficou ecoando em mim foi esta:
"E aquelas noites eram vividas sob um céu estrangeiro, sem pessoa alguma a observar, sem penalidades ou castigos — e foi este último fato a causa de nossa ruína, pois nada se mostra mais insuportável do que a liberdade, depois de a possuirmos."
A conexão desse paradoxo com o aforismo do camusiano personagem do Alain Delon no filme foi surreal pra mim. É como se o Cosmos estivesse descortinando-me uma Verdade: a vida é mesmo um absurdo, mas hey, não há felicidade sem o sofrimento como referência; não há excitação sem a melancolia; liberdade sem opressão; sucesso sem fracasso; amor sem desprezo; sabedoria sem ignorância, vida sem morte. É como se ele me dissesse: você precisa atravessar tudo isso, por isso desconfie de gente feliz demais, livre demais, grata demais; o ócio, o infortúnio, a miséria são inevitáveis e sabendo disso, é mais fácil dominá-los — como as sombras que carregamos e aprendemos a domesticar.
A nossa insatisfação crônica talvez resida neste erro, de acharmos que tais estados são permanentes ou um "lugar" que a gente consiga alcançar.
É lindo quando o cinema e a literatura convergem dessa forma. E pelo amor de Deus: o que foi a cena da boate? Os olhares do Alain Delon pareciam lâminas de tristeza e melancolia. Revi esta cena várias vezes.
Dias
3.8 20A parceria do Tsai Ming-Liang com Lee Kang-Sheng começou em 1989, ano em que nasci. Apraz-me a ideia de que vim ao mundo no mesmo intervalo tempo-espacial em que essas duas almas decidiram se encontrar, por mero acaso, para nunca mais se separarem, entregando-nos obras-primas como O Buraco, Vive L'Amour, Rebeldes do Deus Neon, Eu Não Quero Dormir Sozinho e Cães Errantes — todas indiscutivelmente obrigatórias para os lobos solitários deste mundo. Ouso dizer que essa prolífica relação que já atravessa três décadas não possua precedentes comparáveis (no máximo, talvez, aquela entre o Cassavetes e a Rowlands, o Bergman e a Ullmann).
A habilidade vocacional de conseguir concatenar algo grandioso de forma simples é restrita a poucos gênios em qualquer área, seja no reino artístico ou do pensamento. Tsai é um desses gênios. Seu cinema menos é mais, tão desprovido de ornamentos e opulências, surpreende-me com sua profundidade emocional e atravessa-me feito trem bala. Ouso dizer que é o único cineasta com calibre e estirpe hoje pra conseguir fazer um filme existencial sobre incomunicabilidade tão contemplativo, tão cheio de silêncios, de esperas, sem diálogos, com cenas longuíssimas e pouquíssimos cortes e com mais de duas horas de duração sem que a mão pese, sem ser críptico demais, ou sem que tudo não pareça um mero exercício autocongratulatório de estilo.
Dias (日子, 2020) é um filme difícil, feito sob medida para o ano caótico e pandêmico de 2020: a dor física que o protagonista carrega o filme inteiro estampada em seu olhar errático, o isolamento/alienação urbana, a explosão de ternura dos corpos quando finalmente se encontram, as vidas que seguem separadas. Todo o existencialismo articulado de maneira não-pedagógica, de modo a nos causar o mesmo desconforto, a mesma agonia, como se fôssemos nós ali na tela, tocando nossas rotinas e carregando nossas angústias, insuficiências e incapacidades.
Esperava tudo deste filme. E ele foi o abraço que eu precisava.
Tsai não decepciona.
O Lobo da Estepe
3.6 56“Fui ler o Hermann Hesse aos treze anos e tomei um choque. O Lobo da Estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava mais. Terminei rasgando e jogando fora.” (Clarice Lispector, 1977).
O magnum opus do célebre escritor alemão parece mesmo ter um poder acachapante sobre nós. Hesse, entretanto, julgava “O Lobo” seu trabalho mais incompreendido, frustração que lhe foi bastante cara em vida, pois viu sua obra ser acolhida não propriamente pelo que ele pretendia. Logo no início, Hesse nos alertava: a história trata não de um homem em desespero, «mas de um homem que Crê», razão primordial do seu torvelinho. Foi uma tentativa de nos guiar pela história, de evitar que não nos distraíssemos da angústia elementar que atravessava seu texto.
Mas assim que a atira no mundo, o autor não mais detém o “comando” da sua própria obra, especialmente quando se trata de algo tão alegórico e aberto a interpretações, como é o caso do livro, que flerta o tempo inteiro com a psicanálise e o onírico. Isso explicaria, por exemplo, o fato de quarenta anos depois de sua primeira publicação, “O Lobo” ter caído no gosto da geração hippie, fascinada pela oposição à beligerância política do protagonista, o pacifista Harry Heller. A abertura do personagem à experimentação, seu desencanto com os dias ordinários, sua rejeição à burguesia e seu conflito pessoal com a formação rigidamente cristã foram material de sobra para acalentar os corações e mentes da geração paz & amor da década de 60.
Mas Heller era mesmo uma figura fascinante: solitário e triste, o eremita passava os dias lendo clássicos, ouvindo música erudita e sentindo pena de si mesmo. De repente, descobre que há dentro de si um lobo – o lobo da estepe – que é o extremo oposto do seu lado retraído e metódico: o lobo é caótico, violento, destemido. Resolve então entregar-se à sua versão lupina, avistando um suicídio que cometeria ao completar 50 anos, prazo para além do qual julgou que a vida não mais valia a pena ser vivida. E é nessa jornada pouco usual, nessa batalha incessante entre as várias facetas de sua personalidade (e, por conseguinte, de suas crenças), que ele encontra, por fim, a si mesmo.
“O Lobo” é uma obra exemplar porque Hesse delineia os contornos e contradições da perturbada alma do protagonista com bastante destreza, quando poderia facilmente ter romantizado sua ruptura para o lado selvagem, resvalando em um personagem tolo e autoindulgente. Mas não: Heller se vê perdido o tempo inteiro entre si mesmo e o lobo, entre o sagrado e o profano, entre a miséria e a alegria que para ele eram estados facilmente cambiáveis. Quem nunca teve um arroubo de tristeza ou se sentiu irremediavelmente sozinho no meio de uma festa? Esse permanente autoexame de consciência do personagem – o grosso do livro – é de uma profundidade e densidade emocionais absurdas. Seu tormento espiritual, sua dor existencial, a natureza dual e conflitante de sua moralidade, o senso de inadequação, a reverência ao Eterno, à Verdade e ao cânone artístico ocidental, a necessidade de ordem, seu constante estado de busca e compreensão: tudo isso gritou-me diretamente e a experiência que senti folheando as páginas do livro jamais me escapará.
Infelizmente, não há como dizer o mesmo da adaptação cinematográfica dirigida pelo Fred Haines, «Steppenwolf» (1974), que me frustrou sobremaneira. No filme há pouquíssimos momentos de poesia no delinear da personalidade do Harry porque o diretor não se arvora nessa preocupação, mas em capturar a lisergia que era atraente à época da contracultura. Começa de forma apressada e faltam-lhe a introspecção e subjetividade que são as marcas do livro. É muito mais uma colcha de retalhos de passagens do livro apresentadas sem unidade e sem coesão (embora o livro também não seja todo linear). Ironicamente, todas as cenas importantes do livro estão lá (Harry sentado na escada, intoxicado pelo asseio e ordem do apartamento burguês ao lado; o diálogo com Pablo sobre música erudita vs. popular; o diálogo com Hermínia sobre o Eterno em oposição à satisfação imediata; o baile de máscaras; o diálogo com Mozart), mas são jogadas de forma tão desarticulada que o sentimento foi de absoluto desgosto. É o assassinato do que há de mais belo na obra.
Lembro que, no livro, foi a chegada da misteriosa Hermínia, com tudo o que ela representava, um dos momentos visualmente mais cativantes da história. Ela é introduzida de tal maneira que, em minha mente, o livro ganhou, literalmente, outra cor e outra cadência, tamanha a ruptura do universo austero e solitário do Harry com o dela – luminoso, vivaz, passional, sensual, jazzístico. E o erro crasso do filme foi a terrível escolha e péssima desenvoltura da atriz que a interpreta: desenxabida, apática, sem carisma, de expressão morta e sem luz. Evidentemente, não há de se esperar que o desenvolvimento dos personagens numa obra literária equipare-se à sua transposição para a linguagem cinematográfica, mas a falta de um esforço nesse sentido foi terminal. Até os personagens secundários, como Maria e Pablo, ambos imprescindíveis, foram pouco explorados.
“De repente uma pessoa, uma pessoa viva percute a campânula de cristal da minha apatia e me estende a mão, uma mão boa, bela, cálida! De repente, voltam a surgir coisas que me afetam, nas quais posso pensar com alegria, com preocupação, com interesse! De repente, uma porta que se abre e por ela entra a vida para mim! Talvez possa voltar a viver, talvez possa voltar a ser gente. Minha alma, que havia tombado adormecida no frio e quase se enregela, respira de novo e volta a bater sonolenta as pequenas asas débeis.”
Dito tudo isso, o filme possui, sim, seus acertos, como a presença do Max von Sydow, a atmosfera noturna e o surrealismo que o permeia (o riso sardônico do distribuidor de panfletos é algo que mereceu ser adicionado ao meu imaginário da história). Do mesmo modo, todo o segmento do Teatro Mágico, embora muito mais lisérgico do que imaginei, é bastante surreal e criativo dadas as limitações da época (a escolha visual para a cena simbólica do domador é brilhante). Mesmo que não tenham envelhecido bem, esses momentos possuem um apelo interessante, lembrando as obras de Salvador Dalí e Terry Gilliam e do filme-ópera The Wall.
Mas o que mais me saltou aos olhos – e ainda não vi ninguém apontando isso – é sua inambígua semelhança com «Mulholland Drive», do David Lynch, o que me chocou muito, pois este é meu filme de cabeceira. Quando uma voz, no Teatro, diz ao Harry "É apenas uma ilusão. O Teatro Mágico não é realidade.", veio-me, imediatamente, a cena do Clube Silêncio, onde as mesmas palavras são ditas pelo apresentador: “Não há orquestra: É tudo uma gravação; é tudo ilusão.”. Ambas as frases são a peça-chave para a compreensão da história no livro do Hesse e no filme do Lynch, profundamente simbólicos e metafóricos. Há outra cena do filme, anterior à do Teatro, visualmente idêntica à Cidade dos Sonhos: quando Hermínia e Maria beijam-se no bar e olham de forma provocativa para o Harry. A mesmíssima cena é vista na obra-prima do Lynch envolvendo as duas Camilla Rhodes numa dinner party.
No fim das contas, confesso que minhas expectativas para a adaptação de O Lobo da Estepe eram altíssimas, o que pode explicar meu descontentamento com o resultado desse filme como um todo. Resolvi esperar algumas semanas após ler o livro para assisti-lo – de modo a consolidar as imagens que criei em minha mente sem poluí-las com outra visão, o que vejo agora como uma decisão acertadíssima, pois são aquelas que sobreviverão para sempre.
"Aprenda o que deve ser levado a sério e ria do resto."
"Não posso dar-lhe nada que já não haja em você."
O Amante Duplo
3.3 108A sensação que se tem ao término de «L'amant double» é que François Ozon parece-me incapaz de sair da média, o que se agrava quando tenta a todo custo fazê-lo – caso deste filme. Ainda que reconheça um certo zelo estético do diretor, bem como reverencie sua intrepidez em retratar traços sombrios e violentos da psique humana e suas misteriosas pulsões, ele não soube concatenar os elementos constitutivos da obra: é uma mistura de pornô softcore noventista com terror psicossexual que simplesmente não dialogam um com o outro e que foram pouco ajudados com o roteiro excessivamente obscuro.
Tal falta de unidade e de coesão torna-se evidente com a assepsia das cenas de sexo que consistem em 2/3 do filme quando contrastadas com os momentos mais sinistros e viscerais da trama. Não há erotismo, não há sensualidade alguma – o que é um crime. «Inverno de Sangue em Veneza», que deveria ser a pedra de toque para todas as cenas de sexo que o sucederam, não ensinou nada aqui: não há suor, não há entrega, não há verdade; os belos corpos nus de Jérémie Renier e Marine Vatch repousam na tela apenas para a contemplação do espectador e lembram mais comercial de perfumaria de grife que qualquer outra coisa.
Essa dissonância, inclusive, impossibilitou-me de sentir-me investido na trama, que pareceu ter o dobro da duração. Reconhecer, no decorrer do filme, a mão invisível e onipresente de tantos outros diretores tampouco ajudou: as influências de Verhoeven, Polanski, Zulawski, de Palma, Cronenberg e Villeneuve saltam aos olhos o tempo inteiro. Ter visto algumas dessas referências recentemente (como «The Rosemary's Baby», «Elle» e «Desd Ringers») apenas reforçou o abissal distanciamento entre elas e o Ozon.
De modo geral, uma pena, pois o filme é inteligente, o tema muito me interessa e os minutos derradeiros foram, de fato, perturbadores, o que quase me demoveu da minha insatisfação. Tarde demais.
O Bebê de Rosemary
3.9 1,9K Assista AgoraVez ou outra tenho aventurado-me numa nasty business que me é muito custosa, porém necessária: rever, com certo desprendimento, filmes que nutro em alta estima com os meus "olhos" de hoje e em melhores condições (versões restauradas ou em alta definição). O resultado é incerto: pode ser de completa desilusão, como a minha experiência com «Interview with The Vampire», que me causou abjeção, ou de absoluta reverência, êxtase e espanto, como foi revisitar o fenômeno cult «Rosemary's Baby».
Mesmo tendo-o visto, anteriormente, em duas oportunidades (no cinema, em uma das saudosas Sessões Notívagos onde varávamos a madrugada na sala de cinema; e na versão em DVD que possuo), tudo me pareceu novo, com um frescor intoxicante. Da belíssima abertura (que agora me remeteu ao clássico «The Innocents») ao olhar ambíguo da Mia Farrow na cena final, a sensação é a de que eu estava vendo o filme pela primeira vez, mesmo que todo o desenrolar se antecipasse em minha mente.
Prova disso é só agora ter-me apercebido da aparição de "El Aquelarre", de Goya; ou da cuidadosa evolução dos cortes de cabelo da Ro. Chamou-me a atenção, também, o profundo rigor estético do Polanski no uso dos espaços e da mise-en-scène como um elemento primal do filme. Como a ambivalência de «Rosemary's Baby» é um de seus pontos nevrálgicos, reforçada nos momentos oníricos, há esse pequeno detalhe do "sonho/violação" da Ro que me saltou aos olhos: a sutil transição do papel de parede amarelado e confortante da casa para a inscrição de pinturas nas paredes, remetendo ao seu passado de formação cristã.
Elementar, acima de tudo, é perceber o quão angustiante e perturbador o filme continua sendo nos dias de hoje. Afinal estamos falando de gaslighting e estupro (pelo Satã? Pelo marido?) em uma era onde a cancel culture está a pleno vapor, o que, somado às controvérsias ligadas ao diretor, contaminará a apreciação da obra por muitos. O filme possui, no entanto, um dos momentos mais "feministas" de que me recordo: são as amigas da Ro, vendo-a sofrer, que a recomendam ver um segundo médico, promovendo uma importante ruptura no desenrolar da trama, no que pode ser lido como um aliviante momento de sororidade entre elas. Mas digrido.
O filme é todo arvorado em cima dessa sensação perturbadora de ser desacreditado diante de algo tenebroso, que é o calvário da protagonista ao suspeitar que seu marido, médico e vizinhos estão mancomunando com o Satã para se apropriar do bebê que cresce em seu ventre. Todo o processo é de pura aflição: as dores lancinantes, a presença cada vez mais pervasiva dos vizinhos, a figura cada vez mais dúbia do marido (Cassavetes, brilhante), a exsudação cada vez mais intensa da Rosemary. O horror que ela sente ao perceber um homem parar ao seu lado na cabine telefônica (e que pode ser visto em seus olhos pelo reflexo do vidro) não é somente credível – é aterrorizante mesmo!
Vi-me fisgado o tempo inteiro pelas camadas psicológicas, pela paranoia constante e pelas pequenas nuances desse filme, o que me leva a concluir que se ele permanece imarcescível desta forma, significa apenas uma coisa: que sua qualidade é inapelável. Sinto-me obrigado a rever os demais filmes da trilogia porque isso aqui me empolgou demais.