Quantos monstros precisamos domesticar para seguir em frente com nossas fragilidades? Não há maior colisão que batermos de frente com o que inquieta lá dentro da alma. É justamente isso que diretor Nacho Vigalondo coloca em questão, através de seu filme disfarçado de ficção-científica, sendo que fecunda mais um drama existencial que qualquer coisa - ainda que o roteiro tenha a ironia e elementos que também podem ser vistos como tais. A alegórica representação do monstro que coloca cidades em ruínas e concebe o caos em outro lado de mundo, nada mais é que os efeitos de uma persona em frangalhos emocionais. A brincadeira narrativa que é criada em torno da protagonista (uma Anne Hathaway excelente em cena e compreensão de sua personagem), faz com que Vigalongo possa também não só brincar de ser um filme de ação "Godzilla-de-ser", já que, de fato, há esse teor expositivo - mas que vá além das nuances e nas relações em que estabelece com a desconstrução de sua feminina em cena. A direção privilegia e foca nesta argumentação sobre um ser humano que se fragiliza e tem a desestruturação física e "amplificada" do desequilíbrio que habita em si. E diante de um tema tão preciso e doloroso, ainda há tempo pra o flerte com uma boa dose de ironia e humor, em um sopro cinematográfico criativo e reflexivo.
Inspirado em situações expostas nos contos de Machado de Assis - "Um Esqueleto" e "A Causa Secreta", Júlio Bressane recorrer à subjetividade e intimismo, através do psicológico que se desenvolve entre Ele (Mello) e Ela (Negrini). Ambos se conhecem em um cemitério e se unem à favor das necessidades da carência.
A narrativa exibe a aproximação dos dois que se intensifica pelo intelecto e não desejo, sendo que enquanto Ela passa a transcrever os contos ditos por Ele, compreendemos que um estranho e desconfortável "jogo" se estabelece. Soma-se, aí, o aspecto "voyeur", já que Ele passa a fotografá-la, cultuando suas formas e corpo. Como se sustentará tal subordinação?
É quando Bressane quebra as aparências e expõe o lado grotesco do humano: um olhar sádico, incomodo e dotado de perversão que pouco a pouco sai por baixo do pano da aparente serenidade a dois. Uma relação um tanto mecânica e que causa estranheza - em sintonia com a câmara estática, planos sem muitos movimentos dentro de cenários limitados dentro da casa que é o cenário para a ação da intimidade. Elementos apoiados por um rigor fotográfico bem arquitetado pelo jogo de luzes de Walter Carvalho.
E quando um rato invade a residência e passa a ganhar espaço na narrativa, é que alguns desdobramentos passam a ser mais evidentes. O rato simboliza a impureza, a sujeira que corrompe e torna a relação suja? A paranoia, angústia e desajuste como símbolos de um roedor que desestabiliza. A analogia é clara, também, pois Bressane expõe o quanto somos ratos à procura de migalhas sentimentais.
De acordo com a ótica das falas, sabemos que a tal "erva do rato" nada mais é que uma planta que contém em si um veneno fatal para animais e homens, assim como o seu antídoto. Nada mais irônico já que o efeito de desilusão parece corroer tal casal, revelando as traças do medo e repulsa. E é assim que Bressane provoca e questiona, com sensos metafóricos e simbólicos também, as agruras e padrões das relações afetivas. Um trabalho experimental e intrigante.
A encenação da exposição da fragilidade. O período de condicionamento de Jesus no deserto. O roteiro tenta desnudar os indícios e motivações desta figura, sem que exista uma proeminência maior ao tom religioso. Aqui o discurso quer mostrar um senso de realidade/naturalidade. Não é a toa que Ewan McGregor reconstrói a personalidade deste homem sem uma voz impostada, tentando colocar seu verbo e atuação na prática de um "homem comum", apenas. Sem firulas ou frases de efeitos bíblicas. A colocação psicológica é intrigante, já que vemos o conflito interior deste homem que questiona sua fé e seus propósitos ao se ver sendo testado por satã - a narrativa coloca o próprio McGregor personificando a figura do desajuste e da criatura trevosa, como o seu lado diabólico e provocativo. Entretanto, por mais que o formato do roteiro e a mensagem que o filme quer transmitir, Rodrigo García não consegue tornar seu espetáculo fluido. Ainda que o roteiro tente criar algumas indagações existenciais e até formate um monólogo em si, o que seria muito interessante, não torna o resultado satisfatório. Se McGregor transmite uma apatia e uma atuação muito engessada, sem carisma, a direção também segue pelo mesmo ritmo. Você percebe a intenção da obra, mas não consegue crer no que ela quer externar.
A figura misteriosa, silenciosa e que causa uma espécie de melindre aos que cruzam o seu caminho. O conto do destemido indivíduo que situa uma polêmica na abordagem: entra em conflito na cidade do Lago, comete três assassinatos logo quando chega - em uma bela tomada logo nos primeiros dez minutos de projeção do filme -, e explora o que há de mais cruel: estupra uma das habitantes da região. A ironia é que tal homem passa a ser visto por todos como o índice da justiça e proteção, segurando a cidade da eminência de fugitivos e pistoleiros que saíram de uma prisão próxima. Entre a perversa figura provável e a índole duvidosa, o roteiro não coloca este homem como um carrasco, mas vai descobrindo sua personalidade aos poucos. Machista, errático e herói? E se a personificação de Eastwood mantém um tom mais severo e rústico, de acordo com a figura deste homem que sofreu abusos e foi vitimado em situações opressivas anteriores? Bem ambíguo e que traz mais indagações que respostas para nós. O roteiro de Ernest Tidyman (que venceu um Oscar por Conexão França) o coloca entre a cruz e a espada; entre algo tido como Divino e também diabólico - não é pra tanto que ele pinta a cidade de vermelho e a chama de "inferno". A trilha sonora, belíssima e bem orquestrada, de Dee Barton garante um misto de tensão e melodia típica western, com assobios e uivos, tornando a atmosfera do filme ainda mais intrigante.
Interessante a reflexão que promove, através da repetição de um dia vivido pela protagonista - senso já explorado em outros filmes, claro, mas que encontra aqui um centro de discussão coerente. A repetição vivenciada por Sam (a ótima Zoey Deutch em cena) demonstra algumas situações. Primeiro, o quanto não percebemos como um simples ato corriqueiro de um dia pode acarretar certas disposições como prazeres, estímulos, satisfações, mudanças em nós e até direções em nosso futuro - efeitos em nossa alma e nos caminhos que trilhamos. Segundo, o quanto o roteiro coloca a personagem moldando as suas percepções e explorando, dentro de um círculo vicioso, certas atitudes que nunca tomaria ou perceberia caso tivesse uma única oportunidade pra vivenciar tal momento. É um processo de amadurecimento interior. Enxergar ao redor para se compreender intimamente.
Podemos mudar um olhar, uma palavra de desprezo ou uma desatenção com o outro? Podemos reinterpretar nossos atos? Podemos também nos sensibilizar pelo que estava ao nosso olhar e nada fizemos antes? Certas situações só ocorrem caso pudéssemos reviver aquele mesmo momentoso, como um disco-arranhado.
A direção de Ry Russo-Young tem presença e coloca não só essa garota em destaque, como preserva, dentro deste cenário temporal reflexivo e simbólico, uma boa representação sobre a juventude - com seus anseios e indagações. Nada mais que fragilidades que vem à tona. Deutch empresta tons interessantes a sua persona, tornando-se, inclusive, maior que o filme em si com sua interpretação. Com um argumento provável e até previsível em si, o filme toma certas adoções que o leva a um melhor patamar cinematográfico.
Casa-Grande e senzala. Por baixo de panos. Ou a poeira que permanece. O cineasta Belisario Franca reconstrói uma situação cruel ocorrida na década de 1930. O documentário situa a investigação do historiador Sidney Aguilar. A narrativa expõe o passado, até então "velado", quando tijolos marcados com suásticas nazistas foram encontradas no interior brasileiro e revelaram uma situação agressiva. Empresários e fazendeiros recrutavam meninos negros em um orfanato para escravizá-los em uma fazenda situada em Campina do Monte Alegre.
Percorre-se uma percepção-narrativa que exibe os efeitos históricos e culturais daquele período, além de dialogar com o único sobrevivente vivo daquele período, Aluízio Silva, que era chamado de "menino 23" na época. Esse era o Brasil que existia: A sombra do passado escravatura e as teorias da inferioridade racial que amedrontavam e faziam calar esses indivíduos tão subordinados ao sistema racista.
Como permitiam tais práticas abusivas e horrendas, com sensos nazistas em suas ideologias? Como consideravam tais situações louváveis? De que forma o racismo coexistia naquele período e verbaliza no agora?
Aqui temos uma narrativa que argumenta e investiga os contextos dos resquícios escravocratas no âmbito de uma comunidade que colocava o Negro na posição permanente da opressão. Tais estigmas e abusos estavam ainda impregnados nessa sociedade que condenada e oprimia o negro de todas as formas.
Aliada à eclosão de movimentos nazistas, como Hitler e em contrapartida o presidente Getúlio Vargas, que tinham visões fascistas - a discussão deste documentário exemplifica essas comunidades da alta sociedade, senhores de fazenda, e também remodela as perspectivas dos vitimados. Uma aula de história e reflexão sobre momentos dolorosos que ainda ecoam nesta atualidade.
A odisseia lúgubre do bebedor de sangue. Francis Ford Coppola condiciona o estudo vampiresco, em um discurso menos complexo que o material literário do qual encontra sua fonte. Temos nada mais que um conto de amor sombrio em cima da figura do antigo líder romeno, o sensual Vlad Tepes (um Gary Oldman entregue e em forma) que perde a sua amada e renega a existência divina - entregando-se à morbidez, condenado à vida eterna, na forma de um espectro imortal. A condição de Conde Drácula é bem delineada, através do apuro técnico da Direção de Arte, da maquiagem e de um figurino nítido (vencedores do Oscar) que compreende a dimensão imponente desta figura das trevas, na elegância e na apresentação vermelha e de luxo. É quando a narrativa expõe essa figura milenar em uma Londres suja e enlameada, em que temos a provável encarnação de sua mulher, Mina (na personificação frágil de uma Winona Rider não muito convincente em cena).
Coppola induz o público neste conto sangrento, recorrendo a um tom, por vezes, exagerado e caricato - por mais que a própria figura vampiresca traga de alguns arquétipos tão colocados em filmes e até livros, este filme parece acentuar a um senso "overreact" tanto na impressão da sua direção, como no contorno dos personagens em cena - inclusive, nas atuações. Algumas colocações parecem fora do tom. O que mais sai destacado e que prejudica o filme, neste caso, é Keanu Reeves que como o Lord Harker tem a atuação sofrível. Ou mesmo o pouco espaço em cena que Anthony Hopkins tem para demonstrar a sede de punição que seu Van Helsing quer. Entretanto, temos cenas maravilhosas, como as que exploram Lucy (uma estonteanta Saide Frost com cabelos vermelhos): o momento em que ela é hipnotizada e tem orgasmos, sob uma tempestade, sendo mordida pelo Drácula em forma de lobo é altamente bem organizada cinematograficamente.
Ainda assim, a atmosfera de luxúria e trevosa é colocada à prova em um filme que se propõe a transcrever e delinear a perspectiva de um ser que se condena pela própria condição. Qual maior tormento que este paradoxo ou ironia? E se Gary Oldman nos leva a desconstrução de um mito, no filme fica evidente que a sua situação nada mais é que ser colocado à margem da sociedade que pune e não aceita a sua condição de bebedor de sangue. A narrativa coloca os personagens em suas falas (como no livro onde é formado por cartas e vozes de cada um), dando vazão aos seus anseios diante do caos que assola a tal Londres soturna. Tudo emoldurado pela trilha sonora de Wojciech Kilar que parece uma ópera de Mozart tamanha criação sonora. O conto sobre o vampiro amaldiçoado que quer ter a sua amada é comovente, na ótica do Coppola, pois o humaniza e reforça que até por trás das máscaras sombrias existe ainda uma vida que pulsa - mesmo que não seja no corpo.
A metáfora é visível. Tal qual o rigoroso frio que habita a região do qual os dois irmãos confrontam a aproximação com seu pai misterioso: a frieza que também dita as regras desta relação. É quando o que parecia ser um tranquilo fim de semana, se converte em feridas e cicatrizes que precisam ser reveladas. O que habita a personalidade deste homem? Como os filhos hão de agir com o afeto e o receio também? As ações ocorrem em cenas onde vemos a Natureza gélida da paisagem, o azulado que torna a fotografia tão opaca quanto a melancolia presente. O suspense se revela pelo tom intimista e situação de risco que ambos vivenciam diante das motivações e do que aparenta ser a figura deste homem que não teve a chance de ser paterno com eles. Joel Kinnaman defende bem a personalidade deste ser que se desconcerta aos poucos para nós, diante do olhar dos dois filhos (em especial o mais velho, o ótimo Tom Holland) que, assim como nos, vão conhecendo suas índoles. Enquanto o frio parece incomodar e corroer o corpo dos personagens, vemos a ruptura do gelo da alma de cada um.
A trajetória romântica e lúdica encontra uma interessante representação neste live-action. Além de ser extremamente fiel e semelhante ao contexto explorado na animação de 1991, o roteiro consegue segurar algumas pontas soltas e frágeis já que aqui o tom é mais sério, trazendo uma melhor concepção em cima da história já conhecida. Há maior espaço para o debate sobre o preconceito, a exposição sobre as aparências e o quanto a beleza reside sob as cascas da superficialidade do físico, além de centrar melhor as motivações da aproximação e subordinação da figura feminina (uma Emma Watson segura em cena) perante o indivíduo machista, abusivo e rústico - a Fera é nada mais que o homem social que dita regras, condiciona e oprime a liberdade necessária de toda mulher. Bill Condon aproveita do roteiro que puxa algumas situações também do clássico argumento de Jeanne-Marie Leprince de Beaumon, sob uma direção de arte que beira ao perfeccionismo, para dirigir seu espetáculo cênico. Há cenas musicadas que se inspiram nas ações do desenho, mas o filme isoladamente segue seu próprio caminho já que tem sua personalidade própria em sequências novas de diálogos e músicas dos persongens. Se Luke Evans garante a caricatura intencional diante de seu Gaston - outra representatividade do machismo, mas ainda acentuado no tom -, coadjuvantes como Kevin Kline (a maior atuação do filme) faz com que o drama seja mais crível. É toda a aura e magia "Disney-de-ser", com toda plasticidade e exercício cinematográfico, no qual tece a leitura sobre um amor que se firma na desconstrução da aparência à favor do sentimento, da maturidade e do aprendizado a dois que não se presta ao padrão social de só se enxergar o que há por cima da superfície da beleza plastificada. Encanta e envolve.
O comungar sobre o sentimento. A verbalização ou ação sobre os ímpetos emocionais. Júlio Bressane nos fornece uma espécie de devaneio ou subjetividade sobre anseios e percepções desta tônica frágil intitulada: relacionamentos. Sob um artifício fotográfico que brinca com o monocromático e cores, o filme permite uma narrativa ora contemplativa, ora mais verborrágica - o que fica evidente é como temos uma estética a favor de uma insinuação sobre desejos da alma e da "carne humana".
O formato flerta e induz a plasticidade teatral, em enquadramentos e focos cênicos. Em diálogos e situações expositivas dos atores em cena com seus monólogos por blocos. Da direção de arte em focos de luzes das ações de cada cena. Um homem e duas mulheres sob o teto do tesão e da overdose de bebidas tragadas à bocejos e expurgos existenciais. Entretanto, a formalidade exagerada no tom das falas dos personagens transparece certo artificialismo que engessa a naturalidade que poderia firmar na encenação. Por vezes, a mão do Bressane deixa que seu próprio olhar soe muito pedante e prejudica a fruição. Ainda assim, o texto refinado é bem poético e inteligente, funcionando, melhor, isoladamente - como um livro, caso fosse lançado: Um misto de Tennessee Williams e Clarice Lispector.
Em tempos em que a opressão permanece. E os rastros de um passado insiste em ecoar, ditando suas ressonâncias e desacertos, temos a palavra de uma trajetória sobre a resistência. A Mulher que permaneceu diante de um tempo em que a própria noção do respirar e do pensar, um motivo para ser violentada. O olhar intimista, sensível e detalhista de Flávio Frederico e Mariana Pamplona, sobrinha da personagem-real-título, é pra provocar e contestar.
Desconstrói a dor e a fogueira de um tempo ainda firmado em controvérsias e desrespeito - com a memória de vidas que lutavam por uma condição contra um sistema cruel. A linguagem desconstrói a figura desta mulher que foi colocada como suicida ao fim de sua posição no cenário de lama que fora os anos de máscaras e dissimulações militares.
Iara Iavelberg foi uma militante e guerrilheira de extrema-esquerda, abdicou do seu papel de psicóloga e feminina das convenções padronizadas da sociedade para se integrar à luta armada contra a ditadura militar brasileira. Deixou sua sombra para refletirmos o quanto é importante não nos permitirmos à condição de submisso. Um retrato emocional e sobre a humanidade que luta pelo sol que perdeu seu direito de brilhar.
Em tempos de hipocrisia, Jordan Peele destranca a artificialidade humana e o que pode ser visto como dissimulado - a sociedade formada em aparências. Uma ação que se dissolve em uma crítica não só ao racismo, mas à natureza mórbida e velada que permanece por baixo do tapete. Tal qual a condição do protagonista, nos deparamos como ele: inadequado, indisposto e gerado pelo incômodo com o que percebe ao redor de sua redoma social. O que habita por trás de sorrisos falsos? É quando as mascaras individuais vão se desconstruindo e as reais intenções assumem a sua verdadeira índole. O filme dentro do filme. Ou o subtexto que emerge. A dose de ironia consegue ser agressiva já que temos um roteiro que brinca com as percepções e já insinua a catarse do plot-twist do terço final. Peele sabe conduzir esse emaranhado de diálogos e colocações dúbias de uma encenação bem articulada, onde o que vemos é muito mais o "dito pelo não dito" como a provocação para o que contextualiza melhor: a violência diante do ser humano que não visualizamos, por trás das sombras de uma personalidade montada. Entramos na era em que a imprevisibilidade, como as ações do filme, são concretas: não conhecemos o outro com quem nos relacionamos - pessoalmente ou virtualmente, interagimos com enigmas.
O medo da morte. Ou o tormento de ser sepultado vivo. Ray Milland traz a fobia e o pânico, através do seu personagem, no desequilíbrio e ansiedade mórbida. O homem cataléptico que vive condicionado ao medo de ser enterrado vivo, assim permanece vulnerável ao desespero de se encontrar em tal condição. Baseado em obra de Edgar Allan Poe, temos uma direção eficiente de Roger Corman que amplia o tom psicológico e propenso ao psicótico do personagem de Milland que cresce em sua paranoia. A narrativa, vez ou outra, até parece inocente aos padrões de hoje - mas, mantém o clima de horror, aliado a uma bela direção de arte e à atmosfera de progressiva tensão.
"Preciso muito da minha solidão. Não é o sacrifício físico e tortura. O pior na vida é não ter um minuto sozinho..." Retrato da boemia carioca sessentista, que termina no Golpe político, onde jovens exibem suas agruras e ânsias das perspectivas ideológicas, em que pensamentos e sentimentos se misturam às convicções através de um verniz monocromático. Domingos Oliveira se inspira na Nouvelle Vague e traz seu próprio movimento cinematográfico para verbalizar um período carioca.
Tal qual seu protagonista Felipe (um Caio Blat excelente em cena), vemos a situação do ser humano que permanece entre a própria condição da fragilidade: o indivíduo que permeia entre o intelectual e a vulnerabilidade à bebida. O típico classe-média que não se enquadra no sistema. Adentramos ao seu apartamento, situado na Barata Ribeiro, em Copacabana, com as festas intermináveis e baladas íntimas noturnas, em que a câmera de Oliveira permite que cada personagem assuma seu tom naturalista em que a cena não parece montada, mas fluída diante das suas lentes grande-angulares em verborragia que externa posicionamentos comportamentais de um momento. Neste sentido até lembra os filme do John Cassavetes em seu formato. Jovens que transam, bebem, poetizam e fumam suas vontades, criam suas interações entre paredes em noites sem fim.
Você consegue sentir o cheiro do whisky e do cigarro tamanha atmosfera imagética em preto e branco que nos fornece uma sensação de imersão com o que vemos. Vivemos aquele 1964 na tela, ainda que ironicamente aquelas pessoas parecem imersas em uma bolha de alienação que vive entre prazeres e delírios dentro de uma zona boemia. "Vamos para as ruas? O lugar do povo é lá fora" ou em outro momento um diz: "Sou uma mentira e fraude, eu preciso sair daqui". É a quebra da aparente alienação em momento de um novo mundo? A crítica é certeira em nossa consciência. Belo filme.
A paranoia no cotidiano ou os vestígios de um trauma. A trama investe na situação psicológica, através da trajetória de dois irmãos que vivenciaram um momento cruel na infância: ela vê, através da imagem refletida no espelho, o irmão mais velho matar o namorado abusivo e violento da mãe. É quando a narrativa pula do tenso prólogo pra 20 anos depois, onde acompanhamos cada um dos dois. É como sabemos que a presença macabra e paranormal daquele homem persegue as vidas particulares de ambos - simbolicamente, através de imagens refletidas em espelhos. Interessante que o filme brinca com as perspectivas, executando ações de suspense e teor do medo em cenas em que vemos a figura mórbida deste psicótico ser que se comunica com eles através do reflexo. Entretanto, rende-se a sustos óbvios, sequências já datadas por efeitos práticos ruins e soluções fáceis ao clima denso. Ainda assim, os atores convencem - em especial Suzanna Love que representa a irmã vitimizada.
Sedução mórbida. Desejo violento. Obscura libido. Fase mais gore do Lucio Fulci em que exibe a procura de um policial já experiente (o ótimo Jake Hedley) que segue no encalço de um inusitado serial killer - indivíduo que mata mulheres e se comunica com uma voz a la Pato Donald. Proposta diferenciada? Nem tanto, já que a narrativa prefere insinuar constantes situações que exibam corpos femininos e cenas de sexo para promover uma provocação mais erótica e, provavelmente, atrair um público mais voltado aos homens - e também machista, já que todas as personagens parecem ser constantes vítimas e subordinadas ao papel de fêmeas no cio. O bacana é o verniz da violência gráfica que beira ao real, em cenas em que vemos a câmera subjetiva na perspectiva do assassino que dilacera e promove abusos às vítimas em que mata com propensa sede pelo horror-show particular. Não é à toa que, na época, o filme foi taxado de misógino por colocar não só as mulheres em tais posições, mas também renegadas numa trama que poderia ousar mais na dimensão do suspense e do drama, em que nem sempre os personagens tem espaço - nem mesmo se finaliza como poderia, dando uma dimensão mais forte na figura da pessoa que comete os crimes. Ainda assim, as cenas de tensão, a trilha pontual e a direção esforçada valem a curiosidade.
Você enxerga a vida que se esvai ou é colocada à prova. Entre as minas que precisa desarmar. No perigo de perder não só seu corpo, mas sua essência, mente e sanidade. Você é testado ao limite da força: não há tempo pra fragilidades. Ou fraqueja ou enfrenta o destino imposto pelo regime opressor. Sim, você sabe que é um jovem soldado alemão e precisa continuar prisioneiro em terras dinamarquesas em pleno fim da 2a Guerra Mundial, enquanto é obrigado a remover todas as minas implantadas por sua tropa por toda a costa noroeste do país. E como não mais ser o transpirar da angústia? Os sonhos parecem engessados, as dores e a melancolia são fortes aliados no exercício do viver. Como ser sobrevivente quando até a respiração parece um gatilho para a morte? Sonhos podem ser amargos.
Wes Craven cria o medo gradual através de algo mais psicólogo. Originalmente feito para a televisão, foi ao ar em 31 de outubro de 1978, na noite de Halloween. A intimidade do lar e harmonia é quebrada quando a persona da Linda Blair - excelente em cena! - tem que confrontar o desconhecido através da presença da prima, que perdeu os pais em um misterioso acidente de carro e vai receber o zelo familiar em sua casa. Não é surpresa alguma que o roteiro vai manifestar situações que exploram o sobrenatural ou ocultismo, através da figura dissimulada e manipuladora da jovem que torna a vida de Blair um inferno particular. Craven explora a rivalidade feminina e brinca com situações já exploradas em vários posteriores filmes do gênero. Mas, o charme da fita encontra defesa na interpretação de Blair que nos exibe seu tormento e perigo por conta de uma situação incontrolável de maldade que desconstrói toda a sua vida de perfeição e, até então, de sucesso.
Como seguir em frente quando perdemos um ente próximo? A busca pela conexão com o mundo, a identificação e o ajustes com o cotidiano. Através da jovem que perde o irmão gêmeo e estabelece uma espécie de obsessão em desenvolver um contato mediúnico com ele. Olivier Assayas coloca o senso da espiritualidade em exposição através de sua narrativa com sutilezas e que foge de respostas fáceis. Interessante como acompanhamos a vivência da protagonista em sua relação com o trabalho - que experimenta roupas e escolhe a moda de sua empregadora, ironicamente a posição de subordinação que presta à sua ansiedade do luto enfrentado: procura vestígios do irmão em um contato espiritual que coloca sua vida a uma posição de coadjuvante, já que não toma as rédeas para seguir em frente sem ele. Assayas brinca com o sensorial e a subjetividade do sobrenatural em cenas que causam desconfortos e funciona como horror psicológico, no encalço emocional da personagem bem defendida por uma Kristen Stewart em plena forma. A jovem que precisa afastar as memórias e os fantasmas que habitam a sua fragilidade pra seguir em frente. Nada mais metafórico que isso.
"Nós temos muitos fósforos em nossa casa." A balada da solidão. O simples viver, caminhar e perambular pelo cotidiano de sempre. Como provocar uma chama de alegria e mudança em uma vida engessada? Entre a responsabilidade de um trabalho como motorista de ônibus, a vocação pra poesia e a reflexão do mundo ao redor. Entre a devoção ao sentimento à esposa, a noção do quanto vive condicionado à repetição dos dias.
'' Às vezes, páginas vazias permitem maiores possibilidades". Jim Jarmusch reflete a humanidade em sua peregrinação da existência do tédio, da repetição e também do sonhar em meio ao trivial. Acompanhamos este indivíduo, em uma semana, que tem o mesmo nome que a sua cidade e observa tudo ao redor - inclusive a si mesmo, na bolha do dia a dia. Que anda com seu cão de noite. Que bebe a cerveja no bar e troca diálogos comuns com transeuntes. Que costura versos no decorrer das horas para não se sufocar. Curioso como a rotina nos deixa embotados e desbotados em redomas.
E se Adam Driver entende, através de sua atuação tão minimalista e naturalista, que há um homem tão de carne e osso que transcende a ficção - vemos nele a realidade de nosso mundo, alguém que facilmente encontraríamos na esquina ou em nossa casa. Uma atuação verdadeira e contida, tão de acordo com a direção autêntica que expõe esse senso "gente como a gente" de um homem contemporâneo.
Causas e consequências de um trauma. A narrativa expõe primeiramente a infância do protagonista - matou a mãe acidentalmente e recebeu o desprezo paterno. É o prólogo para firmar a ação psicótica deste slasher. A narrativa mostra o jovem na adolescência com um grupo de amigos que, a convite do seu pai, decide ir a uma casa numa praia: cenário onde há de ser criado o pano para jumpscary, tensões graduais e assassinatos em série. Se hoje, tal formato é óbvio e já cansado em diversas abordagens, aqui o clima é até convivente por conta de sequências de violência mais explícita. Interessante a câmera subjetiva quando exibe a figura do assassino que espreita e a trilha sonora eletrônica mórbida. Mas, nada memorável ou com maiores possibilidades no roteiro.
Revendo só percebo o quanto temos um roteiro criativo, inteligente e cuidadoso. A direção de David Fincher é meticulosa e assume a técnica e o esmero cênico, através do entrosamento em cena de atuações em forma de Norton e Pitt. Um tapa na verve da humanidade consumista, pálida e desbotada em paranoia.
"Por favor, retome seus acentos para a postura vertical".
Uma narrativa ácida e irônica. Um conto sobre ir contra ao sistema, nem que seja por conta do que a sua própria consciência reflete. Não é a toa que temos um roteiro que evidencia nada mais que a idealização que nós criamos para o que não conseguimos ser socialmente. Tyler Durden e seu clube da luta, elementos subversivos que todos sonham em ser: escape social do caos mental. Como não ser a mesma matéria orgânica igual a todos? Como sair da máquina capitalista? Burlando o tédio com a ousadia das ações pra não mais se submeter ao padrão imposto.
"Se quiser fazer um omelete, tem que quebrar alguns ovos".
Fincher cria a história sobre o homem contemporâneo solitário e transtornado em sua falta de interação. E que acaba por converter seu banal cotidiano em uma nova realidade. Nada mais intrigante em tempos em que confrontamos a era de sentimentos reclusos, bolhas de ócio e relações mecânicas. Abordagem necessária com símbolos e metáforas até cruéis. Um filme moderno e inventivo.
"Estou rompendo meus vínculos com a força física e os bens materiais, porque só destruindo a mim mesmo vou descobrir a força superior do meu espírito. Só depois de perdemos tudo é que estaremos livres para fazer algo em vida."
A dualidade, ego e alter-ego, lado A e B. Cronenberg promove a subjetividade através da relação entre irmãos gêmeos - mas, claramente concebe a provocação através da meticulosa atuação de Jeremy Irons. Ao invés do traço grotesco imediato, temos uma narrativa formulada na noção psicológica que pouco a pouco descortina as aparências. A intimidade de dois ginecologistas que usam da semelhança física para exercer o poder de dominação e abuso da sedução para dividir mulheres, prazeres e conquistas.
Diante de um drama em que o roteiro prioriza o estudo da personalidade desses dois indivíduos que se associam e, ironicamente, também, se dissociam entre peculiaridades próprias - temos um conto sobre os meandros do medo, da sexualidade obscura (os gêmeos nutrem o desejo pelo sexo mais violento, adoções de fetiches e atos selvagens), desejos e questionamentos sobre comportamentos humanos. Se não há a violência grotesca, há o uma viagem rumo aos interiores da consciência.
Em vários momentos, o roteiro brinca com as percepções de Elliot e Beberly ao ponto em que não sabemos, ao certo, quem é cada um: provocação nítida para brincar com o psicológico e representar o quanto interligados existencialmente estão. Irons concebe a interpretação na sutileza, mas que entende que tanto um quanto o outro são parte da mesma moeda, do mesmo elo e senso moral. Coexistem e se ligam com as suas diferenças, como uma pessoa com seus defeitos e qualidades.
A cena de horror mais tensa exibe o momento em que um dos irmãos se imagina ligado por um cordão umbilical ao outro, enquanto promove um sexo ardente com uma mulher (Geneviève Bujold, a figura feminina que desorganiza o ligação entre os gêmeos, fragmentando o que parecia indissolúvel). O cordão que é quebrado nada mais que mostra que a dependência mútua entre os irmãos precisava ser interrompida. É quando o drama se converte em um thriller onde Cronenberg descasca seus personagens em situações ora humanas, ora simbólicas, sob uma inquietante trilha sonora de Howard Shore. Assim vemos o horror convertido e tão característico do diretor que sabe falar sobre os labirintos da mente tão complexa da humanidade.
"Nós vivíamos em dois mundos que não se misturavam...". Dilemas e fragilidades padrões da juventude: a dificuldade de diálogo com pais, relações sexuais que culminam em gravidez precoce e o protagonista tendo que confrontar suas próprias responsabilidades. O cenário italiano bem que pode ser visto como reflexo em qualquer ambiente. Como esse skatista vai abandonar o mundo independente e sua liberdade em prol de certas posturas que precisa assumir? Ainda que o casal principal não empolgue - e nem mesmo tenha uma encenação que promova um maior envolvimento emocional com o que é externado em cena -, o tom da direção correta consegue preservar um certo apreço pelo naturalismo. Mas, poderia ir mais além do recorde que traça.
Colossal
3.1 340 Assista AgoraQuantos monstros precisamos domesticar para seguir em frente com nossas fragilidades? Não há maior colisão que batermos de frente com o que inquieta lá dentro da alma. É justamente isso que diretor Nacho Vigalondo coloca em questão, através de seu filme disfarçado de ficção-científica, sendo que fecunda mais um drama existencial que qualquer coisa - ainda que o roteiro tenha a ironia e elementos que também podem ser vistos como tais. A alegórica representação do monstro que coloca cidades em ruínas e concebe o caos em outro lado de mundo, nada mais é que os efeitos de uma persona em frangalhos emocionais. A brincadeira narrativa que é criada em torno da protagonista (uma Anne Hathaway excelente em cena e compreensão de sua personagem), faz com que Vigalongo possa também não só brincar de ser um filme de ação "Godzilla-de-ser", já que, de fato, há esse teor expositivo - mas que vá além das nuances e nas relações em que estabelece com a desconstrução de sua feminina em cena. A direção privilegia e foca nesta argumentação sobre um ser humano que se fragiliza e tem a desestruturação física e "amplificada" do desequilíbrio que habita em si. E diante de um tema tão preciso e doloroso, ainda há tempo pra o flerte com uma boa dose de ironia e humor, em um sopro cinematográfico criativo e reflexivo.
A Erva do Rato
3.2 98 Assista AgoraInspirado em situações expostas nos contos de Machado de Assis - "Um Esqueleto" e "A Causa Secreta", Júlio Bressane recorrer à subjetividade e intimismo, através do psicológico que se desenvolve entre Ele (Mello) e Ela (Negrini). Ambos se conhecem em um cemitério e se unem à favor das necessidades da carência.
A narrativa exibe a aproximação dos dois que se intensifica pelo intelecto e não desejo, sendo que enquanto Ela passa a transcrever os contos ditos por Ele, compreendemos que um estranho e desconfortável "jogo" se estabelece. Soma-se, aí, o aspecto "voyeur", já que Ele passa a fotografá-la, cultuando suas formas e corpo. Como se sustentará tal subordinação?
É quando Bressane quebra as aparências e expõe o lado grotesco do humano: um olhar sádico, incomodo e dotado de perversão que pouco a pouco sai por baixo do pano da aparente serenidade a dois. Uma relação um tanto mecânica e que causa estranheza - em sintonia com a câmara estática, planos sem muitos movimentos dentro de cenários limitados dentro da casa que é o cenário para a ação da intimidade. Elementos apoiados por um rigor fotográfico bem arquitetado pelo jogo de luzes de Walter Carvalho.
E quando um rato invade a residência e passa a ganhar espaço na narrativa, é que alguns desdobramentos passam a ser mais evidentes. O rato simboliza a impureza, a sujeira que corrompe e torna a relação suja? A paranoia, angústia e desajuste como símbolos de um roedor que desestabiliza. A analogia é clara, também, pois Bressane expõe o quanto somos ratos à procura de migalhas sentimentais.
De acordo com a ótica das falas, sabemos que a tal "erva do rato" nada mais é que uma planta que contém em si um veneno fatal para animais e homens, assim como o seu antídoto. Nada mais irônico já que o efeito de desilusão parece corroer tal casal, revelando as traças do medo e repulsa. E é assim que Bressane provoca e questiona, com sensos metafóricos e simbólicos também, as agruras e padrões das relações afetivas. Um trabalho experimental e intrigante.
Últimos Dias no Deserto
3.0 77 Assista AgoraA encenação da exposição da fragilidade. O período de condicionamento de Jesus no deserto. O roteiro tenta desnudar os indícios e motivações desta figura, sem que exista uma proeminência maior ao tom religioso. Aqui o discurso quer mostrar um senso de realidade/naturalidade. Não é a toa que Ewan McGregor reconstrói a personalidade deste homem sem uma voz impostada, tentando colocar seu verbo e atuação na prática de um "homem comum", apenas. Sem firulas ou frases de efeitos bíblicas. A colocação psicológica é intrigante, já que vemos o conflito interior deste homem que questiona sua fé e seus propósitos ao se ver sendo testado por satã - a narrativa coloca o próprio McGregor personificando a figura do desajuste e da criatura trevosa, como o seu lado diabólico e provocativo. Entretanto, por mais que o formato do roteiro e a mensagem que o filme quer transmitir, Rodrigo García não consegue tornar seu espetáculo fluido. Ainda que o roteiro tente criar algumas indagações existenciais e até formate um monólogo em si, o que seria muito interessante, não torna o resultado satisfatório. Se McGregor transmite uma apatia e uma atuação muito engessada, sem carisma, a direção também segue pelo mesmo ritmo. Você percebe a intenção da obra, mas não consegue crer no que ela quer externar.
O Estranho Sem Nome
3.8 254 Assista AgoraA figura misteriosa, silenciosa e que causa uma espécie de melindre aos que cruzam o seu caminho. O conto do destemido indivíduo que situa uma polêmica na abordagem: entra em conflito na cidade do Lago, comete três assassinatos logo quando chega - em uma bela tomada logo nos primeiros dez minutos de projeção do filme -, e explora o que há de mais cruel: estupra uma das habitantes da região. A ironia é que tal homem passa a ser visto por todos como o índice da justiça e proteção, segurando a cidade da eminência de fugitivos e pistoleiros que saíram de uma prisão próxima. Entre a perversa figura provável e a índole duvidosa, o roteiro não coloca este homem como um carrasco, mas vai descobrindo sua personalidade aos poucos. Machista, errático e herói? E se a personificação de Eastwood mantém um tom mais severo e rústico, de acordo com a figura deste homem que sofreu abusos e foi vitimado em situações opressivas anteriores? Bem ambíguo e que traz mais indagações que respostas para nós. O roteiro de Ernest Tidyman (que venceu um Oscar por Conexão França) o coloca entre a cruz e a espada; entre algo tido como Divino e também diabólico - não é pra tanto que ele pinta a cidade de vermelho e a chama de "inferno". A trilha sonora, belíssima e bem orquestrada, de Dee Barton garante um misto de tensão e melodia típica western, com assobios e uivos, tornando a atmosfera do filme ainda mais intrigante.
Antes Que Eu Vá
3.5 474 Assista AgoraInteressante a reflexão que promove, através da repetição de um dia vivido pela protagonista - senso já explorado em outros filmes, claro, mas que encontra aqui um centro de discussão coerente. A repetição vivenciada por Sam (a ótima Zoey Deutch em cena) demonstra algumas situações. Primeiro, o quanto não percebemos como um simples ato corriqueiro de um dia pode acarretar certas disposições como prazeres, estímulos, satisfações, mudanças em nós e até direções em nosso futuro - efeitos em nossa alma e nos caminhos que trilhamos. Segundo, o quanto o roteiro coloca a personagem moldando as suas percepções e explorando, dentro de um círculo vicioso, certas atitudes que nunca tomaria ou perceberia caso tivesse uma única oportunidade pra vivenciar tal momento. É um processo de amadurecimento interior. Enxergar ao redor para se compreender intimamente.
Podemos mudar um olhar, uma palavra de desprezo ou uma desatenção com o outro? Podemos reinterpretar nossos atos? Podemos também nos sensibilizar pelo que estava ao nosso olhar e nada fizemos antes? Certas situações só ocorrem caso pudéssemos reviver aquele mesmo momentoso, como um disco-arranhado.
A direção de Ry Russo-Young tem presença e coloca não só essa garota em destaque, como preserva, dentro deste cenário temporal reflexivo e simbólico, uma boa representação sobre a juventude - com seus anseios e indagações. Nada mais que fragilidades que vem à tona. Deutch empresta tons interessantes a sua persona, tornando-se, inclusive, maior que o filme em si com sua interpretação. Com um argumento provável e até previsível em si, o filme toma certas adoções que o leva a um melhor patamar cinematográfico.
Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil
4.4 87Casa-Grande e senzala. Por baixo de panos. Ou a poeira que permanece. O cineasta Belisario Franca reconstrói uma situação cruel ocorrida na década de 1930. O documentário situa a investigação do historiador Sidney Aguilar. A narrativa expõe o passado, até então "velado", quando tijolos marcados com suásticas nazistas foram encontradas no interior brasileiro e revelaram uma situação agressiva. Empresários e fazendeiros recrutavam meninos negros em um orfanato para escravizá-los em uma fazenda situada em Campina do Monte Alegre.
Percorre-se uma percepção-narrativa que exibe os efeitos históricos e culturais daquele período, além de dialogar com o único sobrevivente vivo daquele período, Aluízio Silva, que era chamado de "menino 23" na época. Esse era o Brasil que existia: A sombra do passado escravatura e as teorias da inferioridade racial que amedrontavam e faziam calar esses indivíduos tão subordinados ao sistema racista.
Como permitiam tais práticas abusivas e horrendas, com sensos nazistas em suas ideologias? Como consideravam tais situações louváveis? De que forma o racismo coexistia naquele período e verbaliza no agora?
Aqui temos uma narrativa que argumenta e investiga os contextos dos resquícios escravocratas no âmbito de uma comunidade que colocava o Negro na posição permanente da opressão. Tais estigmas e abusos estavam ainda impregnados nessa sociedade que condenada e oprimia o negro de todas as formas.
Aliada à eclosão de movimentos nazistas, como Hitler e em contrapartida o presidente Getúlio Vargas, que tinham visões fascistas - a discussão deste documentário exemplifica essas comunidades da alta sociedade, senhores de fazenda, e também remodela as perspectivas dos vitimados. Uma aula de história e reflexão sobre momentos dolorosos que ainda ecoam nesta atualidade.
Drácula de Bram Stoker
4.0 1,4K Assista AgoraA odisseia lúgubre do bebedor de sangue. Francis Ford Coppola condiciona o estudo vampiresco, em um discurso menos complexo que o material literário do qual encontra sua fonte. Temos nada mais que um conto de amor sombrio em cima da figura do antigo líder romeno, o sensual Vlad Tepes (um Gary Oldman entregue e em forma) que perde a sua amada e renega a existência divina - entregando-se à morbidez, condenado à vida eterna, na forma de um espectro imortal. A condição de Conde Drácula é bem delineada, através do apuro técnico da Direção de Arte, da maquiagem e de um figurino nítido (vencedores do Oscar) que compreende a dimensão imponente desta figura das trevas, na elegância e na apresentação vermelha e de luxo. É quando a narrativa expõe essa figura milenar em uma Londres suja e enlameada, em que temos a provável encarnação de sua mulher, Mina (na personificação frágil de uma Winona Rider não muito convincente em cena).
Coppola induz o público neste conto sangrento, recorrendo a um tom, por vezes, exagerado e caricato - por mais que a própria figura vampiresca traga de alguns arquétipos tão colocados em filmes e até livros, este filme parece acentuar a um senso "overreact" tanto na impressão da sua direção, como no contorno dos personagens em cena - inclusive, nas atuações. Algumas colocações parecem fora do tom. O que mais sai destacado e que prejudica o filme, neste caso, é Keanu Reeves que como o Lord Harker tem a atuação sofrível. Ou mesmo o pouco espaço em cena que Anthony Hopkins tem para demonstrar a sede de punição que seu Van Helsing quer. Entretanto, temos cenas maravilhosas, como as que exploram Lucy (uma estonteanta Saide Frost com cabelos vermelhos): o momento em que ela é hipnotizada e tem orgasmos, sob uma tempestade, sendo mordida pelo Drácula em forma de lobo é altamente bem organizada cinematograficamente.
Ainda assim, a atmosfera de luxúria e trevosa é colocada à prova em um filme que se propõe a transcrever e delinear a perspectiva de um ser que se condena pela própria condição. Qual maior tormento que este paradoxo ou ironia? E se Gary Oldman nos leva a desconstrução de um mito, no filme fica evidente que a sua situação nada mais é que ser colocado à margem da sociedade que pune e não aceita a sua condição de bebedor de sangue. A narrativa coloca os personagens em suas falas (como no livro onde é formado por cartas e vozes de cada um), dando vazão aos seus anseios diante do caos que assola a tal Londres soturna. Tudo emoldurado pela trilha sonora de Wojciech Kilar que parece uma ópera de Mozart tamanha criação sonora. O conto sobre o vampiro amaldiçoado que quer ter a sua amada é comovente, na ótica do Coppola, pois o humaniza e reforça que até por trás das máscaras sombrias existe ainda uma vida que pulsa - mesmo que não seja no corpo.
Inverno Rigoroso
2.6 53A metáfora é visível. Tal qual o rigoroso frio que habita a região do qual os dois irmãos confrontam a aproximação com seu pai misterioso: a frieza que também dita as regras desta relação. É quando o que parecia ser um tranquilo fim de semana, se converte em feridas e cicatrizes que precisam ser reveladas. O que habita a personalidade deste homem? Como os filhos hão de agir com o afeto e o receio também? As ações ocorrem em cenas onde vemos a Natureza gélida da paisagem, o azulado que torna a fotografia tão opaca quanto a melancolia presente. O suspense se revela pelo tom intimista e situação de risco que ambos vivenciam diante das motivações e do que aparenta ser a figura deste homem que não teve a chance de ser paterno com eles. Joel Kinnaman defende bem a personalidade deste ser que se desconcerta aos poucos para nós, diante do olhar dos dois filhos (em especial o mais velho, o ótimo Tom Holland) que, assim como nos, vão conhecendo suas índoles. Enquanto o frio parece incomodar e corroer o corpo dos personagens, vemos a ruptura do gelo da alma de cada um.
A Bela e a Fera
3.9 1,6K Assista AgoraA trajetória romântica e lúdica encontra uma interessante representação neste live-action. Além de ser extremamente fiel e semelhante ao contexto explorado na animação de 1991, o roteiro consegue segurar algumas pontas soltas e frágeis já que aqui o tom é mais sério, trazendo uma melhor concepção em cima da história já conhecida. Há maior espaço para o debate sobre o preconceito, a exposição sobre as aparências e o quanto a beleza reside sob as cascas da superficialidade do físico, além de centrar melhor as motivações da aproximação e subordinação da figura feminina (uma Emma Watson segura em cena) perante o indivíduo machista, abusivo e rústico - a Fera é nada mais que o homem social que dita regras, condiciona e oprime a liberdade necessária de toda mulher. Bill Condon aproveita do roteiro que puxa algumas situações também do clássico argumento de Jeanne-Marie Leprince de Beaumon, sob uma direção de arte que beira ao perfeccionismo, para dirigir seu espetáculo cênico. Há cenas musicadas que se inspiram nas ações do desenho, mas o filme isoladamente segue seu próprio caminho já que tem sua personalidade própria em sequências novas de diálogos e músicas dos persongens. Se Luke Evans garante a caricatura intencional diante de seu Gaston - outra representatividade do machismo, mas ainda acentuado no tom -, coadjuvantes como Kevin Kline (a maior atuação do filme) faz com que o drama seja mais crível. É toda a aura e magia "Disney-de-ser", com toda plasticidade e exercício cinematográfico, no qual tece a leitura sobre um amor que se firma na desconstrução da aparência à favor do sentimento, da maturidade e do aprendizado a dois que não se presta ao padrão social de só se enxergar o que há por cima da superfície da beleza plastificada. Encanta e envolve.
Filme de Amor
3.5 28O comungar sobre o sentimento. A verbalização ou ação sobre os ímpetos emocionais. Júlio Bressane nos fornece uma espécie de devaneio ou subjetividade sobre anseios e percepções desta tônica frágil intitulada: relacionamentos. Sob um artifício fotográfico que brinca com o monocromático e cores, o filme permite uma narrativa ora contemplativa, ora mais verborrágica - o que fica evidente é como temos uma estética a favor de uma insinuação sobre desejos da alma e da "carne humana".
O formato flerta e induz a plasticidade teatral, em enquadramentos e focos cênicos. Em diálogos e situações expositivas dos atores em cena com seus monólogos por blocos. Da direção de arte em focos de luzes das ações de cada cena. Um homem e duas mulheres sob o teto do tesão e da overdose de bebidas tragadas à bocejos e expurgos existenciais. Entretanto, a formalidade exagerada no tom das falas dos personagens transparece certo artificialismo que engessa a naturalidade que poderia firmar na encenação. Por vezes, a mão do Bressane deixa que seu próprio olhar soe muito pedante e prejudica a fruição. Ainda assim, o texto refinado é bem poético e inteligente, funcionando, melhor, isoladamente - como um livro, caso fosse lançado: Um misto de Tennessee Williams e Clarice Lispector.
Em Busca de Iara
4.0 44Em tempos em que a opressão permanece. E os rastros de um passado insiste em ecoar, ditando suas ressonâncias e desacertos, temos a palavra de uma trajetória sobre a resistência. A Mulher que permaneceu diante de um tempo em que a própria noção do respirar e do pensar, um motivo para ser violentada. O olhar intimista, sensível e detalhista de Flávio Frederico e Mariana Pamplona, sobrinha da personagem-real-título, é pra provocar e contestar.
Desconstrói a dor e a fogueira de um tempo ainda firmado em controvérsias e desrespeito - com a memória de vidas que lutavam por uma condição contra um sistema cruel. A linguagem desconstrói a figura desta mulher que foi colocada como suicida ao fim de sua posição no cenário de lama que fora os anos de máscaras e dissimulações militares.
Iara Iavelberg foi uma militante e guerrilheira de extrema-esquerda, abdicou do seu papel de psicóloga e feminina das convenções padronizadas da sociedade para se integrar à luta armada contra a ditadura militar brasileira. Deixou sua sombra para refletirmos o quanto é importante não nos permitirmos à condição de submisso. Um retrato emocional e sobre a humanidade que luta pelo sol que perdeu seu direito de brilhar.
Corra!
4.2 3,6K Assista AgoraEm tempos de hipocrisia, Jordan Peele destranca a artificialidade humana e o que pode ser visto como dissimulado - a sociedade formada em aparências. Uma ação que se dissolve em uma crítica não só ao racismo, mas à natureza mórbida e velada que permanece por baixo do tapete. Tal qual a condição do protagonista, nos deparamos como ele: inadequado, indisposto e gerado pelo incômodo com o que percebe ao redor de sua redoma social. O que habita por trás de sorrisos falsos? É quando as mascaras individuais vão se desconstruindo e as reais intenções assumem a sua verdadeira índole. O filme dentro do filme. Ou o subtexto que emerge. A dose de ironia consegue ser agressiva já que temos um roteiro que brinca com as percepções e já insinua a catarse do plot-twist do terço final. Peele sabe conduzir esse emaranhado de diálogos e colocações dúbias de uma encenação bem articulada, onde o que vemos é muito mais o "dito pelo não dito" como a provocação para o que contextualiza melhor: a violência diante do ser humano que não visualizamos, por trás das sombras de uma personalidade montada. Entramos na era em que a imprevisibilidade, como as ações do filme, são concretas: não conhecemos o outro com quem nos relacionamos - pessoalmente ou virtualmente, interagimos com enigmas.
Enterro Prematuro
3.5 36 Assista AgoraO medo da morte. Ou o tormento de ser sepultado vivo. Ray Milland traz a fobia e o pânico, através do seu personagem, no desequilíbrio e ansiedade mórbida. O homem cataléptico que vive condicionado ao medo de ser enterrado vivo, assim permanece vulnerável ao desespero de se encontrar em tal condição. Baseado em obra de Edgar Allan Poe, temos uma direção eficiente de Roger Corman que amplia o tom psicológico e propenso ao psicótico do personagem de Milland que cresce em sua paranoia. A narrativa, vez ou outra, até parece inocente aos padrões de hoje - mas, mantém o clima de horror, aliado a uma bela direção de arte e à atmosfera de progressiva tensão.
Barata Ribeiro, 716
3.4 35"Preciso muito da minha solidão. Não é o sacrifício físico e tortura. O pior na vida é não ter um minuto sozinho..." Retrato da boemia carioca sessentista, que termina no Golpe político, onde jovens exibem suas agruras e ânsias das perspectivas ideológicas, em que pensamentos e sentimentos se misturam às convicções através de um verniz monocromático. Domingos Oliveira se inspira na Nouvelle Vague e traz seu próprio movimento cinematográfico para verbalizar um período carioca.
Tal qual seu protagonista Felipe (um Caio Blat excelente em cena), vemos a situação do ser humano que permanece entre a própria condição da fragilidade: o indivíduo que permeia entre o intelectual e a vulnerabilidade à bebida. O típico classe-média que não se enquadra no sistema. Adentramos ao seu apartamento, situado na Barata Ribeiro, em Copacabana, com as festas intermináveis e baladas íntimas noturnas, em que a câmera de Oliveira permite que cada personagem assuma seu tom naturalista em que a cena não parece montada, mas fluída diante das suas lentes grande-angulares em verborragia que externa posicionamentos comportamentais de um momento. Neste sentido até lembra os filme do John Cassavetes em seu formato. Jovens que transam, bebem, poetizam e fumam suas vontades, criam suas interações entre paredes em noites sem fim.
Você consegue sentir o cheiro do whisky e do cigarro tamanha atmosfera imagética em preto e branco que nos fornece uma sensação de imersão com o que vemos. Vivemos aquele 1964 na tela, ainda que ironicamente aquelas pessoas parecem imersas em uma bolha de alienação que vive entre prazeres e delírios dentro de uma zona boemia. "Vamos para as ruas? O lugar do povo é lá fora" ou em outro momento um diz: "Sou uma mentira e fraude, eu preciso sair daqui". É a quebra da aparente alienação em momento de um novo mundo? A crítica é certeira em nossa consciência. Belo filme.
Força Assassina
2.5 22A paranoia no cotidiano ou os vestígios de um trauma. A trama investe na situação psicológica, através da trajetória de dois irmãos que vivenciaram um momento cruel na infância: ela vê, através da imagem refletida no espelho, o irmão mais velho matar o namorado abusivo e violento da mãe. É quando a narrativa pula do tenso prólogo pra 20 anos depois, onde acompanhamos cada um dos dois. É como sabemos que a presença macabra e paranormal daquele homem persegue as vidas particulares de ambos - simbolicamente, através de imagens refletidas em espelhos. Interessante que o filme brinca com as perspectivas, executando ações de suspense e teor do medo em cenas em que vemos a figura mórbida deste psicótico ser que se comunica com eles através do reflexo. Entretanto, rende-se a sustos óbvios, sequências já datadas por efeitos práticos ruins e soluções fáceis ao clima denso. Ainda assim, os atores convencem - em especial Suzanna Love que representa a irmã vitimizada.
O Estripador de Nova York
3.4 65Sedução mórbida. Desejo violento. Obscura libido. Fase mais gore do Lucio Fulci em que exibe a procura de um policial já experiente (o ótimo Jake Hedley) que segue no encalço de um inusitado serial killer - indivíduo que mata mulheres e se comunica com uma voz a la Pato Donald. Proposta diferenciada? Nem tanto, já que a narrativa prefere insinuar constantes situações que exibam corpos femininos e cenas de sexo para promover uma provocação mais erótica e, provavelmente, atrair um público mais voltado aos homens - e também machista, já que todas as personagens parecem ser constantes vítimas e subordinadas ao papel de fêmeas no cio. O bacana é o verniz da violência gráfica que beira ao real, em cenas em que vemos a câmera subjetiva na perspectiva do assassino que dilacera e promove abusos às vítimas em que mata com propensa sede pelo horror-show particular. Não é à toa que, na época, o filme foi taxado de misógino por colocar não só as mulheres em tais posições, mas também renegadas numa trama que poderia ousar mais na dimensão do suspense e do drama, em que nem sempre os personagens tem espaço - nem mesmo se finaliza como poderia, dando uma dimensão mais forte na figura da pessoa que comete os crimes. Ainda assim, as cenas de tensão, a trilha pontual e a direção esforçada valem a curiosidade.
Terra de Minas
4.2 260 Assista AgoraVocê enxerga a vida que se esvai ou é colocada à prova. Entre as minas que precisa desarmar. No perigo de perder não só seu corpo, mas sua essência, mente e sanidade. Você é testado ao limite da força: não há tempo pra fragilidades. Ou fraqueja ou enfrenta o destino imposto pelo regime opressor. Sim, você sabe que é um jovem soldado alemão e precisa continuar prisioneiro em terras dinamarquesas em pleno fim da 2a Guerra Mundial, enquanto é obrigado a remover todas as minas implantadas por sua tropa por toda a costa noroeste do país. E como não mais ser o transpirar da angústia? Os sonhos parecem engessados, as dores e a melancolia são fortes aliados no exercício do viver. Como ser sobrevivente quando até a respiração parece um gatilho para a morte? Sonhos podem ser amargos.
Verão do Medo
3.0 39 Assista AgoraWes Craven cria o medo gradual através de algo mais psicólogo. Originalmente feito para a televisão, foi ao ar em 31 de outubro de 1978, na noite de Halloween. A intimidade do lar e harmonia é quebrada quando a persona da Linda Blair - excelente em cena! - tem que confrontar o desconhecido através da presença da prima, que perdeu os pais em um misterioso acidente de carro e vai receber o zelo familiar em sua casa. Não é surpresa alguma que o roteiro vai manifestar situações que exploram o sobrenatural ou ocultismo, através da figura dissimulada e manipuladora da jovem que torna a vida de Blair um inferno particular. Craven explora a rivalidade feminina e brinca com situações já exploradas em vários posteriores filmes do gênero. Mas, o charme da fita encontra defesa na interpretação de Blair que nos exibe seu tormento e perigo por conta de uma situação incontrolável de maldade que desconstrói toda a sua vida de perfeição e, até então, de sucesso.
Personal Shopper
3.1 384 Assista AgoraComo seguir em frente quando perdemos um ente próximo? A busca pela conexão com o mundo, a identificação e o ajustes com o cotidiano. Através da jovem que perde o irmão gêmeo e estabelece uma espécie de obsessão em desenvolver um contato mediúnico com ele. Olivier Assayas coloca o senso da espiritualidade em exposição através de sua narrativa com sutilezas e que foge de respostas fáceis. Interessante como acompanhamos a vivência da protagonista em sua relação com o trabalho - que experimenta roupas e escolhe a moda de sua empregadora, ironicamente a posição de subordinação que presta à sua ansiedade do luto enfrentado: procura vestígios do irmão em um contato espiritual que coloca sua vida a uma posição de coadjuvante, já que não toma as rédeas para seguir em frente sem ele. Assayas brinca com o sensorial e a subjetividade do sobrenatural em cenas que causam desconfortos e funciona como horror psicológico, no encalço emocional da personagem bem defendida por uma Kristen Stewart em plena forma. A jovem que precisa afastar as memórias e os fantasmas que habitam a sua fragilidade pra seguir em frente. Nada mais metafórico que isso.
Paterson
3.9 353 Assista Agora"Nós temos muitos fósforos em nossa casa." A balada da solidão. O simples viver, caminhar e perambular pelo cotidiano de sempre. Como provocar uma chama de alegria e mudança em uma vida engessada? Entre a responsabilidade de um trabalho como motorista de ônibus, a vocação pra poesia e a reflexão do mundo ao redor. Entre a devoção ao sentimento à esposa, a noção do quanto vive condicionado à repetição dos dias.
'' Às vezes, páginas vazias permitem maiores possibilidades". Jim Jarmusch reflete a humanidade em sua peregrinação da existência do tédio, da repetição e também do sonhar em meio ao trivial. Acompanhamos este indivíduo, em uma semana, que tem o mesmo nome que a sua cidade e observa tudo ao redor - inclusive a si mesmo, na bolha do dia a dia. Que anda com seu cão de noite. Que bebe a cerveja no bar e troca diálogos comuns com transeuntes. Que costura versos no decorrer das horas para não se sufocar. Curioso como a rotina nos deixa embotados e desbotados em redomas.
E se Adam Driver entende, através de sua atuação tão minimalista e naturalista, que há um homem tão de carne e osso que transcende a ficção - vemos nele a realidade de nosso mundo, alguém que facilmente encontraríamos na esquina ou em nossa casa. Uma atuação verdadeira e contida, tão de acordo com a direção autêntica que expõe esse senso "gente como a gente" de um homem contemporâneo.
O Mutilador
2.7 46Causas e consequências de um trauma. A narrativa expõe primeiramente a infância do protagonista - matou a mãe acidentalmente e recebeu o desprezo paterno. É o prólogo para firmar a ação psicótica deste slasher. A narrativa mostra o jovem na adolescência com um grupo de amigos que, a convite do seu pai, decide ir a uma casa numa praia: cenário onde há de ser criado o pano para jumpscary, tensões graduais e assassinatos em série. Se hoje, tal formato é óbvio e já cansado em diversas abordagens, aqui o clima é até convivente por conta de sequências de violência mais explícita. Interessante a câmera subjetiva quando exibe a figura do assassino que espreita e a trilha sonora eletrônica mórbida. Mas, nada memorável ou com maiores possibilidades no roteiro.
Clube da Luta
4.5 4,9K Assista AgoraRevendo só percebo o quanto temos um roteiro criativo, inteligente e cuidadoso. A direção de David Fincher é meticulosa e assume a técnica e o esmero cênico, através do entrosamento em cena de atuações em forma de Norton e Pitt. Um tapa na verve da humanidade consumista, pálida e desbotada em paranoia.
"Por favor, retome seus acentos para a postura vertical".
Uma narrativa ácida e irônica. Um conto sobre ir contra ao sistema, nem que seja por conta do que a sua própria consciência reflete. Não é a toa que temos um roteiro que evidencia nada mais que a idealização que nós criamos para o que não conseguimos ser socialmente. Tyler Durden e seu clube da luta, elementos subversivos que todos sonham em ser: escape social do caos mental. Como não ser a mesma matéria orgânica igual a todos? Como sair da máquina capitalista? Burlando o tédio com a ousadia das ações pra não mais se submeter ao padrão imposto.
"Se quiser fazer um omelete, tem que quebrar alguns ovos".
Fincher cria a história sobre o homem contemporâneo solitário e transtornado em sua falta de interação. E que acaba por converter seu banal cotidiano em uma nova realidade. Nada mais intrigante em tempos em que confrontamos a era de sentimentos reclusos, bolhas de ócio e relações mecânicas. Abordagem necessária com símbolos e metáforas até cruéis. Um filme moderno e inventivo.
"Estou rompendo meus vínculos com a força física e os bens materiais, porque só destruindo a mim mesmo vou descobrir a força superior do meu espírito. Só depois de perdemos tudo é que estaremos livres para fazer algo em vida."
Gêmeos: Mórbida Semelhança
3.7 193A dualidade, ego e alter-ego, lado A e B. Cronenberg promove a subjetividade através da relação entre irmãos gêmeos - mas, claramente concebe a provocação através da meticulosa atuação de Jeremy Irons. Ao invés do traço grotesco imediato, temos uma narrativa formulada na noção psicológica que pouco a pouco descortina as aparências. A intimidade de dois ginecologistas que usam da semelhança física para exercer o poder de dominação e abuso da sedução para dividir mulheres, prazeres e conquistas.
Diante de um drama em que o roteiro prioriza o estudo da personalidade desses dois indivíduos que se associam e, ironicamente, também, se dissociam entre peculiaridades próprias - temos um conto sobre os meandros do medo, da sexualidade obscura (os gêmeos nutrem o desejo pelo sexo mais violento, adoções de fetiches e atos selvagens), desejos e questionamentos sobre comportamentos humanos. Se não há a violência grotesca, há o uma viagem rumo aos interiores da consciência.
Em vários momentos, o roteiro brinca com as percepções de Elliot e Beberly ao ponto em que não sabemos, ao certo, quem é cada um: provocação nítida para brincar com o psicológico e representar o quanto interligados existencialmente estão. Irons concebe a interpretação na sutileza, mas que entende que tanto um quanto o outro são parte da mesma moeda, do mesmo elo e senso moral. Coexistem e se ligam com as suas diferenças, como uma pessoa com seus defeitos e qualidades.
A cena de horror mais tensa exibe o momento em que um dos irmãos se imagina ligado por um cordão umbilical ao outro, enquanto promove um sexo ardente com uma mulher (Geneviève Bujold, a figura feminina que desorganiza o ligação entre os gêmeos, fragmentando o que parecia indissolúvel). O cordão que é quebrado nada mais que mostra que a dependência mútua entre os irmãos precisava ser interrompida. É quando o drama se converte em um thriller onde Cronenberg descasca seus personagens em situações ora humanas, ora simbólicas, sob uma inquietante trilha sonora de Howard Shore. Assim vemos o horror convertido e tão característico do diretor que sabe falar sobre os labirintos da mente tão complexa da humanidade.
Slam
3.0 1"Nós vivíamos em dois mundos que não se misturavam...". Dilemas e fragilidades padrões da juventude: a dificuldade de diálogo com pais, relações sexuais que culminam em gravidez precoce e o protagonista tendo que confrontar suas próprias responsabilidades. O cenário italiano bem que pode ser visto como reflexo em qualquer ambiente. Como esse skatista vai abandonar o mundo independente e sua liberdade em prol de certas posturas que precisa assumir? Ainda que o casal principal não empolgue - e nem mesmo tenha uma encenação que promova um maior envolvimento emocional com o que é externado em cena -, o tom da direção correta consegue preservar um certo apreço pelo naturalismo. Mas, poderia ir mais além do recorde que traça.