Passados oitenta e quatro anos da estreia do clássico King Kong nos cinemas, é impressionante notarmos como uma história simples sobreviveu tão bem ao tempo, ao ponto de sempre estar na mente do público – mesmo graças a refilmagens, sequências ou crossovers lançados ao longo dos anos. A clássica trama de um macaco gigante que se apaixona por uma loira ganha contornos bem mais explosivos e agitados com está nova imaginação dirigida Jordan Jogt-Roberts – encarando pela primeira vez uma superprodução de quase 200 milhões de dólares e recheada de astros do primeiro escalão de hollywood.
O cineasta consegue acertar na linha tênue entre trazer algo novo e se manter respeitoso com relação aos trabalhos originais – ou seja, Jogt-Roberts traz a história de Kong para os anos setenta, em meio à retirada dos Estados Unidos da Guerra do Vietnã, re-imaginando o primeiro encontro do gorila gigante com a civilização. Desta vez não temos mocinhas em perigo – pelo menos não durante todo o tempo – ou alguém querendo procurar a tal da Ilha da Caveira para fazer um filme (como no original de 33 e na refilmagem de 2005) ou para procurar petróleo (como na refilmagem de 1976) – o objetivo da organização Monarch, representada aqui pelo Dr. Bill Randa (Goodman) e seu assistente Houston (Hawkins) é conseguir fundos para ir até a ilha a fim de, supostamente, fazer uma pesquisa geográfica. Ao conseguirem o apoio de um senador norte-americano, eles vão precisar levar para a viagem de navio um guia preparado para desbravar regiões hostis, o aventureiro James Conrad (Hiddleston), a fotografa Mason Weaver (Larson) e a equipe de soldados do Capitão Preston Packard (Samuel L. Jackson), além de alguns cientistas. Mas ao chegarem lá, logo de cara, são surpreendidos pela figura de Kong, disposto a revidar as bombas que os helicópteros dos homens jogam no solo para “pesquisa” – a ilha se revela bem mais do que um campo para ser estudado, como é previsível constatar.
Apesar de ter mais personagens do que o necessário – o personagem de John Ortiz não faria falta alguma para a trama – o roteiro explora de forma curiosa a mentalidade de cada um deles – especialmente para o Hank de John C. Reilly, que vive um sobrevivente da segunda guerra mundial, que caiu na ilha nos anos quarenta e ficou por lá, sem ter como fugir – vem dele o melhor alivio cômico da produção, que não está nem um pouco disposta a se levar a sério – com cenas que vão do estilo de revista em quadrinhos até absurdos completos que só sairiam da mente de uma criança concentrada em um jogo de videogame. O personagem de Samuel L. Jackson, embora parece um maluco desnaturado mesmo, ganha contornos curiosos graças ao trabalho sempre coerente do ótimo ator, que consegue convencer que o publico de que realmente odiou o King Kong desde o primeiro momento que o vê – sim, Jackson é o vilão do filme – o clima de brincadeira se arrasta até um ponto onde o habitual “motherfucker” do ator é satirizado brevemente em um determinado momento. Já Tom Hiddleston não demonstra muita coisa como o aventureiro James, em um personagem criado com o clichê do “não me importo com nada e ninguém, mas vou salvar todo mundo”; e Brie Larson, com sua Mason Weaver (provável homenagem a Sigourney Weaver, por seu trabalho enfrentando “monstros” na série Alien), consegue fazer uma variação de personagens semelhantes aos vividos por Fay Wray, Jessica Lange e Naomi Watts – ao que podemos ver, ela desenvolve uma relação de respeito por Kong, sem jamais cair naquela paixão abusiva que o gorilão demonstrava antes – é claro que aqui não é a intenção do diretor em comparar isso, mas, ainda assim, serve para fugir do clichê – mesmo não sendo muito marcante – felizmente, Larson entrega um dos melhores diálogos em uma conversa com o personagem de Jackson, quando ele questiona que pessoas como Mason (humanistas) foram responsáveis pelos Estados Unidos terem saído do conflito – “Como pessoas sem armas são responsáveis por perder uma guerra?”, responde ela.
Além de escancarar referencias ao clássico Apocalypse Now do Coppola, com helicópteros rumos ao sol, o diretor enche o filme com referências aos anos setenta (bonequinho do presidente Nixon no painel de um dos helicópteros) e músicas da época – soando até exagerado e sem muito proposito – mas, ao menos, nos levando ao sentimento da época. Mas, mesmo assim, Kong: A Ilha da Caveira é um “filme espetáculo”, ou seja, uma produção que sobrevive de seus efeitos especiais e design de produção. E, neste ponto, é realmente um trabalho impressionável, já que se sobressai no terreno de convencer na criação de criaturas criadas em computador – seja os animais gigantescos da ilha como Alces, Aranhas ou monstros parecidos com dragões e dinossauros – mas, felizmente, o trabalho mais impressionante é o do nosso astro principal – utilizando-se da captação de movimentos do ator Toby Kebbell (que também vive um dos soldados do capitão Packard), King Kong nunca pareceu tão grande em tela – de fato, ele tem medidas maiores que as de suas encarnações anteriores – basta notar como um certo personagem ficará na palma de sua mão. O efeito funciona, dado o realismo de movimentos e de detalhes, como os olhos e rugas no rosto e até os pelos que parecem ter sido concebidos um a um. As tonalidades de cores fortes na fotografia também dão um belo e impressionante resultado para os cenários da ilha – sem contar que o diretor mostra bem a ação, com boas angulações – mas algumas um tanto “falsas”, quando mostra Kong lutando com alguns monstros – em movimentos de câmeras impossíveis de serem feitos por uma “câmera real”.
No fim das contas, é um trabalho de ação e fantasia agradável e bem humorado, que acerta em não se estender demais em sua duração e nos apresentar personagens humanos interessantes – tão legais que até compensa uma tentativa gratuita de emocionar com o destino de um deles nos créditos finais. Tecnicamente bonito e estruturado, é um filme a altura do mito de King Kong, dando um futuro para o personagem como uma franquia, como confirma a cena pós créditos – que fará os fãs de monstros gigantes ficarem loucos.
Pode parecer para alguns uma bobeira um filme sobre um monstro maior do que muitos prédios que sai por aí destruindo tudo que encontra pela frente... mas não é não! Muita coisa que o cinema nos proporcionou até hoje consegue ir além de aparências e a história do "Rei dos Monstros" é um exemplo disso.
O filme original foi feito no Japão em 1954 e passava uma mensagem sobre os problemas que o homem causa a natureza e acabam se voltando contra ele; naquele caso, Godzilla representava o mal que o ser humano causa: o monstrengo era um descendente dos dinossauros que sobreviveu nos subterrâneos do Japão e ficou "bombado" com níveis de radiação de testes nucleares realizados no oceano, o que o deixou praticamente indestrutível, pois nem mesmo as bombas atômicas eram capazes de detê-lo, pelo contrario, o deixavam mais forte ainda! Era também uma parábola do temor que os japoneses tinham apos o fim da 2ª guerra, com as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki.
O diretor Gareth Edwards (do filme Monstros, 2010) tinha pela frente o fardo de tentar criar um conceito novo para a história de Gojira; sua intenção parece ser a de manter uma parte do que havia no original, colocando o monstro como uma ameaça da natureza que o ser humano subestima - e, consequentemente, se dá mal por isso, é claro.
Na verdade, o que temos aqui não é uma refilmagem do filme de 54, e sim um filme baseado no longa original, prestando uma homenagem ao clássico. Tomando desta forma, o roteiro desta nova versão ignora tudo que aconteceu nos cerca de 30 filmes de Godzilla que haviam sido feitos. Até a origem é alterada, já que o monstro ainda não apareceu para o público, sendo até então uma lenda japonesa - já nos créditos iniciais acabamos constando isso; os inúmeros testes nucleares feitos no oceano pacífico na década de 50 eram uma desculpa para tentar eliminar o monstro e não deixar o público saber de sua existência.
Aqui a história começa se passando em 1999, quando o importante arqueólogo Serizawa (Ken Watanabe) encontra nas Filipinas os restos mortais de um "parente" de Godzilla, junto de uma criatura monstruosa diferente, ainda em estado de evolução dentro de um casulo; enquanto isso estranhos tremores causam um acidente em uma usina nuclear japonesa
e mata a esposa (Juliette Binochet, fazendo uma ponta bacana) de um dos responsáveis da usina, o americano Joe Brody (Bryan Cranston, um dos destaques do elenco);
15 anos depois, Brody ainda está obcecado em entender o que realmente aconteceu na usina, e acaba convencendo seu filho Ford (que agora é já um membro do exercito americano e é vivido por Aaron Taylor-Johnson) a retornar até a cidade do acidente, que está de querentena devido a suposta contaminação por radiação, para procurar provas do que houve de verdade; chegando lá, se deparam com cientistas e soldados americanos e japoneses que observam, no local da antiga usina, aquele estranho casulo encontrado pelo Dr. Serizawa; um monstro também da era pré-historica se liberta do casula e sai atrás de sua parceira (que está guardada nos EUA pelo governo americano) para se reproduzir e ir atras de alimento - no caso aqui... de radiação, bombas nucleares e tudo mais que for radioativo!
E aí entra o querido Godzilla... como o fator de "defesa"... como a ordem natural que visa manter a natureza da terra em ordem! O parasita sendo eliminado!
Até então, tudo bem. Mas só seremos apresentados ao nosso amigo monstrengo depois de quase uma hora de filme. Em parte isso funciona, para causar suspense. Em outra, decepciona, já que na primeira e segunda aparição o diretor mostra muito pouco do bicho, preferindo cortar para imagens de tv filmando ao vivo... ou desviando a câmera do monstro... para mostra-lo na integra mais perto do final. O que não é de todo ruim, pois a conclusão e qualidade gráfica da recriação digital dos seres (tanto Godzilla e os parasitas) é muito boa - fazendo nos esquecer da horrorosa versão de 1998 do Rolland Emmerich; o confronto das criaturas será empolgante (e até emocionante) para os fãs de Kaiju.
Mas o que atrapalha o filme é aquela velha síndrome dos filmes catástrofes: tentar apresentar personagens com mais detalhes para que na hora da tragédia o espectador sinta pena e compaixão para eles lutarem pela sobrevivência. Esse é o ponto falho de Gareth Edwards. Devido à uma construção fraca das personalidades dos personagens, em especial de Ford, que ainda tem a atuação apática de Aaron Taylor-Johnson.
Não só nos filmes catástrofes pode acontece isso. Às vezes em filmes de monstros mesmo. Muitas vezes deu certo como em Aliens com a Sigourney Weaver ou com o Schwarzenegger em Predador. Neste novo Godzilla não temos uma Ripley ou um Alan "Dutch" para nos simpatizarmos e torcermos; e isso torna alguns momentos do filme um tanto sem emoção; acabamos não nos envolvendo com nenhum personagem, a não ser o Godzilla, é claro... na sessão que assisti, um pessoal chegou até a vibrar com um ato do monstro... coisa de nerd!!!
A intenção do diretor é boa mas a realização acaba não atingindo todo o objetivo. Porém, ainda é um filme de monstro correto, que peca por demorar de forma um pouco desnecessária a aparição do personagem-titulo; mas nada disso parece ter afetado tanto o público: rendeu quase 100 milhões de dólares na primeira semana de bilheteria e já teve sinal verde da Warner para ter uma sequência, onde esperamos mais tempo de tela do Godzilla do que de personagens sem personalidade.
Mesmo tendo experiências com direção em bons trabalhos, como o longa Boa Noite e Boa Sorte (2005) ou na série Catch-22 (2019), parece que George Clooney, como cineasta, ainda precisa aprender mais – afinal, com o Céu da Meia-Noite, ele tenta tornar uma ficção cientifica em um palco para tratar de dilemas familiares e pessoais, assim como Christopher Nolan fez em Interestelar ou Alfonso Cuarón em Gravidade – usando o pano de fundo do aquecimento global, o astro de Hollywood opta por arcos e decisões dramáticas pouco convincentes, apelando, muitas vezes, para um melodrama infundado, que, dada a criação, desenvolvimento e apresentação de personagens pouco inspiradas, transforma esse longa em uma decepção – e o pior: sendo desonesto com o espectador.
Baseado em um livro de Lily Brooks-Dalton, com roteiro escrito por esta em parceria com Mark L. Smith, o filme conta a história de Augustine, vivido pelo próprio Clooney, um renomado cientista, em fase terminal de vida, devido à um câncer severo – se passando no ano de 2049, onde a Terra está a beira do colapso, devido as drásticas e terríveis mudanças climáticas, ele é o último refugiado em uma base de comunicação no polo norte – uma das poucas regiões onde o aquecimento global não causou efeitos – isolado, ele acaba encontrando dentro da estação uma menina (Springall), que não fala, mas acaba ficando ao lado dele, para que consigam chegar até uma antena, que pode ajudar no contato com uma nave espacial, que em missão para tentar estabelecer vida em uma lua de Júpiter, está voltando a Terra – e, agora, cabe a Augustine correr contra o tempo para avisa-los das condições em que o planeta se encontra e garantir o futuro da raça humana.
Com toda essa urgência da trama – simplesmente a “continuidade da vida dos seres humanos” – é impressionante como tanto a direção de Clooney quanto o roteiro não conseguem passar a tensão que isso deveria provocar – optando por trabalhar a questão envolvendo a maternidade/paternidade na vida de cada um de seus personagens, Clooney erra por não dar a devida atenção para todos os personagens – seu único acerto acaba sendo em sua composição como Augustine – demonstrando o peso e cansaço por uma vida não vivida como queria, um relacionamento amoroso que não conseguiu explorar melhor ou a própria solidão em viver na estação no polo norte – Clooney (o diretor) tenta mesclar todos os temores do personagem com a luta para garantir a sobrevivência e continuidade da Terra – fazendo um paralelo disso com a questão de que seu personagem quando jovem (vivido por Ethan Peck, que não se parece em nada com Clooney) luta por encontrar outros planetas para a humanidade continuar, mas dá pouca atenção para sua companheira – indo supostamente contra a vontade de procriação, que suas pesquisas exploram – ainda assim, torna-se até bonita a maneira como tenta interagir com a menina vivida pela pequena Caiolinn Springall – um papel até desafiador para uma criança, já que não diz uma palavra e precisa parecer expressiva – isso torna as sequências na Terra curiosas de se acompanhar até certo ponto – porém, a conclusão acaba sendo somente a utilização de um recurso quase batido de inserir personagens que representam algo por trás, sem mais complexidade nisso – algo que em muitas outras obras é um tipo de linguagem que faz sentido e causa impacto – de Lady Bird até Mãe, do Aronofsky, existem vários exemplos que lidam bem com isso.
Mas aqui, quando passa a mostrar os integrantes da nave espacial, O Céu da Meia-Noite se perde tristemente – e o erro está, justamente, por querer dar a cada membro da missão uma ligação com a questão da maternidade/paternidade – Felicity Jones – em uma atuação quase robótica e inexpressiva – vive uma astronauta gestante, ao passo que o capitão da nave, vivido por David Oyelowo, é o pai da criança – relegando o piloto Mitchell, do Kyle Chandler (que tem o azar de participar de outro conflito familiar fraco em um filme, depois do que fez em Godzilla – Rei dos Monstros) a apenas mostrar que sente falta dos familiares que ficaram na Terra – e o cientista Sanchez de Demián Bichir, que parece ter só a função de ver a outra tripulante da nave, a Maya de Tiffany Boone, como uma filha – e, esta, praticamente sem mais função nenhuma para a trama – culminando numa cena que deveria ser tensa e até triste, mas não causa impacto por não sabermos ao certo exatamente quem os personagens são, de fato – Clooney parece que acha que mostrar os integrantes da nave vendo hologramas antigos de suas famílias é o suficiente para nos identificarmos com eles – como se Maya, por exemplo, demonstrasse quem era só por dizer que tinha um “gatinho inteligente” – é uma falta de inspiração que torna a “mensagem” do longa ainda mais fraca – e, quando disse que o diretor foi desonesto, me refiro, principalmente, à um certo momento no primeiro ato, quando uma personagem procura desesperadamente por sua filha – conforme o terceiro ato mostra, tal momento foi criado só para ajudar a “esconder” uma revelação que não deixa de soar um tanto forçada – e, com todos esses elementos desenvolvidos sem criatividade, jamais consegue emocionar ou cativar o espectador.
Não sendo um desastre completo por seus atributos técnicos – a fotografia é belíssima, tanto em mostrar os ambientes no espaço e, principalmente, pelas paisagens no ártico – enquanto que o design de produção é curioso, por dar um visual um tanto retro para o interior da grande nave espacial – que por fora é bonita com seus imensos arcos espelhados e grandes “antenas infláveis” – ou seja, um bom dinheiro gasto para uma obra de pouca substância – o ritmo lento da narrativa ainda interfere em momentos onde a ação poderia ser mais urgente – sim, como disse antes, o desenrolar da história não capta essa urgência – seja por uma tempestade no meio do gelo, o quase afogamento em um trailer ou uma chuva de gelo enquanto três astronautas andam fora da nave – o que faz com que o compositor Alexandre Desplat precise trabalhar sua trilha em praticamente todos os momentos – “ditando” emoções passo a passo – como se Clooney apenas tivesse lhe dito: “agora você faz um acorde para emocionar... agora coloca algo meio agressivo para causar tensão” – só não fica pior porque o compositor realmente é talentoso e cria boas composições.
Fechando com um plano final tão sem graça – que chega a rivalizar com o fim ridículo da nova versão de O Grito – O Céu da Meia-Noite é aquele tipo de longa que tem boas intenções, mas sua própria pretensão simplória o impede de ser uma experiência verdadeira e introspectiva para o expectador – algo que Clooney não aprendeu com Alfonso Cuarón, quando participou como ator em Gravidade.
Os filmes, mesmo que os mais simples e ingênuos, ainda são capazes de ter influência sobre nós – de um jeito ou de outro. Em tempos onde esperança e companheirismo parecem tão distantes, assistir um longa igual Mulher-Maravilha 1984 me causou uma estranheza que não esperava – o fato de lidar com personagens que, mesmo tendo super poderes e fardos típicos das revistas em quadrinhos, ressoam como seres humanos comuns em seus dilemas e problemas pessoais – sem jamais soarem estereotipados – apesar de não ser uma abordagem inédita ou inovadora, esse cuidado da diretora Patty Jenkins nesta continuação do sucesso de 2017 é um ponto que coloca o filme em destaque perante outros do gênero, se tornando um dos melhores trabalhos desse universo da DC/Warner, ainda mais se levarmos em conta que é um longa de super-herói que acaba por nos fazer refletir, mesmo que indiretamente, sobre nossa possível perda de humanidade nos últimos meses devido a pandemia – justamente por abordar questões primárias (mas importantíssimas) como egoísmo e coletividade humana.
Propositalmente abrindo o longa com um flashback, mostrando a jovem Diana (Lilly Aspell) participando de um grande torneio de resistência em Temiscira, Patty Jenkins já dita aí o que os protagonistas enfrentarão em suas vidas – os fardos de arcarem com suas vontades e desejos em contra ponto do bem (ou mal) de quem os cercam – por mais simples que possa parecer, é algo abordado de forma tão graciosa pela diretora (e seu roteiro, co-escrito por Geoff Johns e Dave Callaham) que torna todos os destinos dos três personagens centrais em algo empolgante e verdadeiro – ora, se não nos importamos com quem é retratado na tela, logo perderíamos a lógica em acompanhar o filme.
Já dispensando a apresentação de nossa heroína, Mulher-Maravilha 1984 começa situando Diana (Gal Gadot) em sua vida na década de 80 – vivendo de forma reclusa, mas conseguindo fazer seus atos heroicos disfarçadamente (evitando ser exposta ao grande público), ela também trabalha em um grande museu de Washington, onde conhece outra historiadora, Barbara Minerva (Kristen Wiig), que investiga o valor de uma misteriosa pedra mística, que, segundo lendas, concede desejos aos que a tocam – tal artefato é procurado também por um duvidoso magnata do petróleo, o quase “coaching motivacional”, Maxwell Lord (Pedro Pascall), que planeja muitas coisas com o objeto – fazendo Diana mergulhar em uma trama onde sentimentos antigos precisarão ser postos em xeque para que ela consiga evitar que o mundo se torne um caos completo – principalmente com o retorno de seu grande amor, o piloto Steve Trevor (Chris Pine).
Sem se preocupar em desenvolver os novos personagens e ainda dando atenção aos novos desafios e dilemas de Diana, Petty Jenkins conduz a trama de maneira cuidadosa, dando espaço para mostrar dramas pessoais mesclados com questões sociais – se passando na década de oitenta, o longa é, mesmo assim, absurdamente atual quando lida com vontades e desejos de consumo da população – o que nos traz a vilania do projeto – que se apresenta de forma diferenciada da grande maioria dos filmes do gênero, por jamais colocar os vilões com pretensões apenas megalomaníacas e más – inclusive, esse era um dos poucos defeitos do filme anterior, onde o vilão era escondido até o final e se revelava em uma luta um tanto apressada (creio que nem culpa de Jenkins isso foi, já que houve pressões do estúdio para ficar assim).
Em Mulher-Maravilha 1984 tudo é desenvolvido com calma e detalhes – o que também diferencia o ritmo da obra – se assemelhando bastante, por exemplo, com o desenvolvimento que Richard Donner dava para seu Superman – O Filme em 1978 – sendo assim, sobra tempo para entendermos a personalidade de Barbara Minerva – que sob uma atuação simpática e expressiva da ótima Kristen Wiig, passa perfeitamente a mudança de personalidade da personagem – de uma pessoa tímida e reprimida, para alguém que se questiona do por que é desprezada e humilhada pelos colegas de trabalho e de como se sobressair a isso por bons ou maus motivos – algo que lembra um pouco a composição de Michelle Pfeiffer como Mulher-Gato em Batman – O Retorno – mesmo que agora seja em uma escala menor do que no primeiro filme, os pontos sobre o empoderamento feminino e a luta contra o machismo são bem inseridos – como quando Barbara é assediada por um bêbado na rua – e sua admiração por Diana também é interessante, principalmente quando ela começa a assumir os poderes que, mais tarde, a transformarão na Mulher-Leopardo – enquanto que Gal Gadot cada vez mais se consolida como uma escolha perfeita para ser a Mulher-Maravilha – é notória a sua evolução como atriz desde sua aparição em Batman vs Superman; sabendo agora ser mais expressiva (e, desta vez, de um jeito capaz de realmente emocionar o espectador), a atriz coloca os desafios da personagem a flor da pele – aliás, o roteiro é inteligente em estabelecer toda a postura elegante e intelectual de Diana, mostrando sutilmente como ela se adaptou a vida fora de Temiscira e está ainda mais experiente, conforme demostrando ao utilizar o poder da invisibilidade no clássico avião a jato dos quadrinhos – e estabelece o ponto central do longa, quando precisa abrir mão de suas vontades e desejos pessoais para poder defender o planeta todo – o retorno de Steve Trevor, que poderia soar como um mero apoio para a heroína, tem todo um desenvolvimento adulto e diálogos criveis e bonitos – o que ajuda Chris Pine a compor uma atuação mais leve, porém, útil para estabelecer a bela história de amor entre os dois – fazendo do filme um excelente romance também – conseguindo se sobressair de clichês pela veracidade e química entre o casal.
Mas quem consegue roubar a cena é Pedro Pascoal, transformando seu Max Lord em um vilão multifacetado e com motivações muito reais – algo que poucos filmes de super-herói conseguem – e a composição do ator é até ousada, afinal, ele se equilibra no humor, o que poderia tornar o personagem caricato – mas Pascoal lida com isso de forma tão genial quanto Gene Hackman com o seu Lex Luthor nos filmes do Superman – o que mais impressiona é o fato de nos identificarmos com ele, seja pela sua luta diária em “ser alguém na vida”, tentando de todas as formas fazer sua falsa empresa ser... real – ou em sua relação com seu filho Allister (Lucian Perez), que acaba sendo um ponto chave da trama – as motivações de Lord são encarnadas com atenção e meticulosidade na atuação de Pascoal, tornando o personagem um achado – e, talvez o mais curioso, por mais divertido e cômico que pareça, a premissa dele – “a vida é boa, mas pode ser melhor” ou a forma como ele concede os desejos – acaba sendo, se pararmos para pensar, algo assustador – e, de certa forma, uma crítica aos inescrupulosos e picaretas que tentam vender os esquemas de “pirâmide” ou os coaches que tanto pregam “receitas mágicas” para motivar as pessoas.
E Patty Jenkins mostra isso de forma sútil, mas impactante – ao colocar várias pessoas desejando coisas, a obra expõe o talvez mais perigoso lado do ser humano: o egoísmo. É impossível não imaginar que o mundo se transformaria em um caos completo (como é muito bem demostrando aqui) se todas as pessoas apenas desejassem coisas para seu benefício próprio – repare como a diretora é inteligente em ir situando isso nos personagens – no trio central, especificamente, entre Diana, Barbara e Lord – cada um lida de um jeito com seus desejos – que sempre trarão consequências, principalmente, se não abrirem mão deles quando prejudicam os demais – e isso se estende para o resto do mundo: seja com um egípcio ganancioso que quer terras de seus antepassados (algo que prejudica diretamente a população), uma pessoa que sofre por xenofobia, um presidente que deseja mais poder nuclear para sua nação, alguém que tem medo de perder os poderes que adquiriu ou uma pessoa que tem medo de ser obrigada a renegar seu grande amor – é uma demonstração forte de algo que impressiona pela leveza como é mostrada – principalmente em certo ponto onde um belíssimo monologo joga tudo isso em evidência.
Mas, além de toda essa temática e boa condução de trama, Mulher-Maravilha 1984 é um primor visual – relegando momentos inesquecíveis para o gênero – aliada com uma direção de fotografia magistralmente colorida (mais uma vez se opondo ao visual escuro de boa parte das obras da DC nos cinemas), de Matthew Jensen, Jenkins compõe momentos que beiram a perfeição visual – a já citada abertura em Temiscira, a Mulher-Maravilha utilizando seu laço entre raios no céu ou também quando aprende a fazer uma certa coisa (um momento onde os efeitos digitais ficaram perfeitos, inclusive) e, talvez a cena mais bonita do longa, quando Diana e Steve atravessam a chuva de fogos de artificio do 4 de Julho – e falando em cores, é digno de elogios como a direção de arte consegue captar essa característica através da reconstituição de época – se estendendo aos figurinos e penteados característicos da década de oitenta – esse cuidado em compor as cenas também se estende para a ação – que embora em uma quantidade um pouco menos do que no filme de 2017, entrega momentos muito bem coreografados e enquadrados – seja a primeira aparição da personagem em 1984 em um shopping center, na perseguição com caminhões numa estrada egípcia e na luta na Casa Branca – demostrando o controle perfeito da misce-en-scene da diretora – que só desliza um pouco no confronto entre a guerreira Amazona e a Mulher-Leopardo mais ao fim, com um visual mais escuro e um pouco mais de cortes do que deveria ter.
Mas tudo isso é ainda bem apoiado pela brilhante trilha-sonora de Hans Zimmer – que dita o tom do filme do início ao fim – e isso no bom sentido, sem jamais soar óbvia ou apelativa – fazendo desse trabalho do compositor um de seus melhores dos últimos anos – ele é inteligente em elevar seu tema da personagem, criado lá em 2016 para Batman vs Superman e inserir novas composições – mesclando ainda elementos que Rupert Gregson Williams criou como tema de amor para Diana e Steve em 2017 – é um trabalho cuidadoso, que fez Zimmer utilizar o belo tema “Beautiful Lie” novamente – como se aquele tema do longa de Zack Snyder merecesse um filme melhor para ser executado. E Mulher-Maravilha 1984 é melhor. Um trabalho feito com muito amor e respeito – assim como toda a essência desta personagem imponente – que, felizmente, chega aos cinemas neste fim de ano – trazendo aquele gostinho de esperança que parece tão distante nos últimos meses – esse filme é sem dúvida um longa necessário para todos nós no momento – e, por mais ingênuo que pareça, serve perfeitamente para evidenciar à todos nós como precisamos evoluir muito para que um dia cheguemos a uma vida em sociedade sem preconceitos, egoísmo e tudo que há de ruim – como dito pela Antiope de Robin Wright, “nada bom nasce de mentiras” – nesses tempos de pandemia, nada mais importante do que a verdade entre as pessoas para garantir nosso bem estar – esse sim, um desejo que provavelmente não teria consequências ruins.
*a cena pós créditos vai emocionar os fãs, finalizando o longa de forma perfeita e encantadora com uma aparição de uma personagem importante, interpretada por uma atriz mais do que especial, maravilhosa!
O mestre Stanley Kubrick dizia: “Se pode ser pensado, pode ser filmado” – quem sou eu para contrariar uma declaração de um dos maiores cineastas de todos – mas, vendo este novo trabalho de Christopher Nolan, creio que essa “regra” tenhas suas exceções – Tenet mostra que nem sempre uma história diferente e incomum pode se tornar algo estimulante ou totalmente satisfatório para o espectador – ou, ao menos, visualmente e narrativamente organizado o suficiente para que não soe como uma história apenas desnecessariamente confusa – como, lamentavelmente, é o caso deste filme, escrito e dirigido por Nolan, que, ao longo de uma carreira brilhante (tirando um ou outro momento), sempre foi famoso pela complexidade de suas tramas e na forma cirúrgica como as contava – mas, ao final da sessão de Tenet, confesso que não senti todo esse cuidado de construção narrativa, como havia acontecido em A Origem, sua trilogia do Batman ou até mesmo em Interestelar.
Assim como o filme estrelado por Leonardo DiCaprio em 2010, Tenet também envolve espiões – mas, desta vez, em modo mais clássico, a princípio – ao invés de invadirem sonhos, os personagens agora tem recursos para viajar ou prever o futuro – fazendo do longa uma mistura de ficção cientifica com tramas de James Bond – está franquia, aliás, admirada por Nolan – que insere situações bem aos moldes dos filmes do espião britânico – misturando, nisso tudo, elementos que irão nos remeter a outras obras como Minority Report, o próprio A Origem (pela complexidade da trama) e até Interestelar (pelas questões temporais e de física quântica).
Entretanto, a falha de Nolan (tanto pelo seu roteiro e sua condução de trama), vem de um certo desleixo em apresentar as situações e personagens de maneiras mais dinâmicas – algo primordial para garantir a movimentação de uma trama do gênero – e, se antes, os diálogos expositivos não eram tão incômodos nas obras do cineasta devido a boa fluência dos diálogos, em Tenet isso se torna quase que uma obrigação de cada cena – e, evidentemente, isso acaba por ser cansativo – deixando passagens confusas, demoradas e até mal ritmadas – é como se o diretor acreditasse que misturar tomadas em câmera reversa com outras para frente fosse um recurso genial – o que não é, mas poderia ser interessante – e, convenhamos, há momentos bem feitos disso – mas, no geral, parece ser uma regra forçada e pouco cinematográfica – causando uma sensação inusitada de confusão visual – e totalmente desnecessária – pois a trama não é tão complicada assim – mas, parte das explicações técnicas e cientificas o são – ao ponto de uma personagem dizer que é melhor “não tentar entender” como as coisas funcionam – o que, se comparado ao cuidado narrativo de A Origem, não deixa de ser decepcionante.
Tudo isso para contar a história de um agente da CIA (Washington) – identificado apenas como “o protagonista” – que, após ser capturado em uma missão de recuperação de um misterioso artefato na Ucrânia, recebe um convite para participar de um time secreto de agentes – chamados de “Tenets” – para localizar o perigoso terrorista anglo-russo, Andrei Saitor (Branagh), que tem planos desconhecidos com o item perdido na missão no leste europeu – tentando se aproximar de Saitor através da esposa dele, a avaliadora de quadros valiosos, Katherine (Debicki), o protagonista contará ainda com a ajuda do agente Neil (Pattinson) e com as inusitadas armas supostamente vindas de outra época – envolvendo viagens no tempo e leis de física reversa.
Embora as explicações sejam confusas e até cansativas, a história de Tenet é bem simples – lembrando bem um filme de 007 – note como a desenvoltura do personagem de John David Washington (de Infiltrado na Klan) é parecida, às vezes – e isso é algo bem demonstrado pelo ator, que mostra força e desenvoltura para a ação, sabendo manter uma ironia fina e um pouco de personalidade – ou pelos menos o máximo possível disso, já que o roteiro de Nolan não se aprofunda muito em mostrar tais coisas – afinal, quais as reais motivações dele? Ou do personagem de Robert Pattinson – que, infelizmente, é o “encarregado” de dar todas as explicações sobre os funcionamentos das “leis” dos Tenets – um ótimo ator, que faz o que pode com um personagem que, dada a sua importância, deveria ter sido melhor construído – soando apenas como um coadjuvante de apoio, o melhor amigo do protagonista e nada mais – essa frieza dramática fica visível quando Nolan tenta supostamente emocionar com a relação de amizade dos dois mais ao fim – e o recurso falha, pois isso não foi bem desenvolvido antes.
Essa falta de cuidado também acaba caindo sobre o relacionamento abusivo que a personagem de Elizabeth Debicki vive com o terrorista Andrei de Kenneth Branagh – enquanto que a atriz se esforça para tornar crível o drama de sua personagem sobre a chantagem emocional que sofre para permanecer ao lado do marido autoritário e manter contato com seu filho pequeno, ainda sobra tempo para desenvolver uma tensão sexual com o personagem de Washington – já Branagh faz de seu vilão um ser devidamente temível e asqueroso – tentando evitar alguns clichês em suas expressões, o ator nada pode fazer com diálogos pouco inspirados (“Se você não pode ser minha, não será de mais ninguém”) ou com a tentativa tímida de colocar ideais com alusões religiosas por trás de suas motivações para o terrorismo – além de seu sotaque russo não convencer em todos os momentos – de um ator tão fino como ele, é de se estranhar que sua voz soe artificial em alguns pontos – sem falar que o roteiro chega ao ponto de transformar uma tentativa de homicídio entre o casal em algo... corriqueiro – e até pouco funcional para a trama.
Ainda falhando na forma como insere outros personagens – como a Priya de Dimple Kapadia, sempre pausado a narrativa quando surge – Tenet também relega Michael Caine para uma ponta que só serve para inserir mais alguns diálogos expositivos – uma verdadeira marca registrada desse filme – que, infelizmente, acaba sendo irregular em seus atributos técnicos também – em especial sua edição de imagens – confusa, com cortes rápidos demais em momentos chaves (repare no terceiro ato), tornando as cenas de “inversão” ainda mais complicadas do que deveriam ser – mas, nesse ponto, há detalhes curiosos – especialmente quando as realidades de tempo atual e futuro se encontram – achei particularmente boa a cena onde dois personagens lutam – mostrada uma vez pelo ponto de vista de um e, depois, do outro – há ainda a cena do avião e a emboscada promovida pelo protagonista e por Neil, envolvendo um “engavetamento” com um caminhão de bombeiro e outros veículos – entretanto, Nolan parece ter ficado desleixado para conduzir com mais adrenalina alguns momentos – a perseguição com carros andando de ré soa lenta e até sem ritmo – acho que nunca tinha visto uma tomada com veículos tão devagar em um longa de ação – mas é digno de alguns elogios as cenas reversas de tiroteio e lutas – no geral, bem coreografadas – porém, não muito memoráveis – só ganhando força com o apoio rítmico admirável da ótima trilha-sonora de Ludwig Göransson – substituindo à altura o colaborador habitual de Nolan para música, Hans Zimmer – e a fotografia bem esclarecida de Hoyte Van Hoytema evita o uso de filtros artificiais para suas composições – o que ajuda, principalmente, na batalha final.
Mais longo do que deveria, Tenet ainda promete uma continuação – ditando um universo de filmes que irá necessitar de um cuidado maior para o desenvolvimento de sua trama que viaja pelo tempo – em uma época de roteiros bem alinhados sobre o tema – principalmente na série Dark – Christopher Nolan acaba por entregar sua obra mais fraca – entretanto, com alguns pontos interessantes e até diferenciados – embora não mostrados de uma forma mais criativa ou dinâmica – ou seja, é como ter um belo poema em mãos, mas não conseguirmos ler ele todo de uma forma mais clara.
Algo que espero não acontecer com os próximos projetos do diretor, que, como todos sabem, é um dos melhores de sua geração – ele não pode voltar no tempo como os personagens do filme, mas pode voltar a nos trazer obras melhores acabadas e desenvolvidas como já fez no passado.
Quem nunca passou por alguma situação na qual se viu totalmente a mercê do pensamento de outras pessoas sobre si mesmo? Creio que a maioria das pessoas – e invejo os que conseguem evitar o máximo possível está condição – as projeções que fazemos sobre o que esperamos que irão pensar sobre nós acabam sendo um tipo de abismo, onde damos ao próximo a posição de poder julgar e avaliar nossas condutas, atitudes, opiniões e todo o resto das coisas que constituímos como nossa vida – o que vai direto ao nosso ser – nossas qualidades, habilidades, carreira, relacionamentos, traumas, medos, caráter – tudo que nos leva a angustia que pode ser o viver. Está é a principal discussão que esta adaptação do livro de Ian Reid nos traz, através de seus personagens multifacetados e complexos – um verdadeiro estudo da submissão de muitos seres humanos as taxações e opiniões alheias dos demais e como isso influências (negativamente) na vida dos indivíduos.
Adaptado pelo roteirista que nos presenteou com grandes obras como Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças – além de já ter mostrado ser um grande diretor em obras como Anomalisa e Sinédoque, Nova York – Charlie Kaufman conta de forma criativa e inusitada os tormentos mentais e psicológicos de seus personagens principais aqui – contando a história de um casal, Jake (Jesse Plemons) e sua namorada (Jessie Buckley), que estão a caminho da casa dos pais (Toni Collette e David Thewlis) do primeiro, para apresentar pela primeira vez sua companheira, que, durante o trajeto por uma longa estrada, sob uma pesada nevasca, pensa em terminar o namoro, por não estar se sentindo totalmente à vontade na relação – chegando ao destino, o contato com os pais de Jake faz com que a garota note que há algo muito estranho por trás do rapaz que ela conheceu à poucas semanas atrás – e, consequentemente, algo errado com ela mesma.
Creio que isso seja o suficiente para comentar sobre a sinopse sem dar spoilers – porque Estou Pensando em Acabar com Tudo é aquele tipo de longa que faz você desconfiar de tudo o que aparece – que tem a capacidade de embaralhar os pensamentos sobre passado, presente e futuro como se fossem uma única coisa – e, assim como acontece com nossa mente no dia a dia, quando precisamos lidar com as relações humanas e supostos propósitos de vida, isso nos leva à uma confusão – que Kaufman estabelece de uma maneira muito intensa – e sem se importar em demorar para desenvolve-las – e, infelizmente, talvez esse seja um dos poucos deslizes do projeto – alguns diálogos que soam, às vezes, expositivos demais; entretanto, isso é compensado pela forma verdadeira e até sincera que cada situação é mostrada.
Aliado a um design de produção criativo, que faz questão de mostrar qualquer cenário ou locação como um tipo de sonho ou pintura – creio que não é simplista dizer isso neste caso – tendo em vista que a direção de fotografia acompanha este mesmo pensamento – e, de fato, se torna algo fundamental para separarmos situações reais de outras que não aparentam ser tão verídicas, digamos assim – como a estrada que não parece ter fim; os objetos da casa dos pais de Jake, que remetem inúmeras épocas da vida do rapaz; ou o contraponto de lugares aparentemente mais “fantasiosos” (como o porão da casa, que revela a ligação de um outro personagem com Jake) com o realismo e tristeza dos corredores da escola onde vemos um misterioso e solitário zelador (Guy Boyd) – são características visuais que valorizam e facilitam a experiência – soando apenas enfadonho na viagem de volta do casal – que, devido a repetição de várias opiniões deles – especialmente quando a personagem de Jessie Buckley comenta sobre a personagem de Gena Rowlands no clássico Uma Mulher Sob Influência de John Cassavetes – em evidente paralelo sobre a visão de Jake sobre as mulheres em sua vida – esse momento torna-se cansativo por quase pausar a narrativa – embora soe até natural – afinal, quantas vezes na vida não comparamos feitos pessoais aos de personagens de filmes que gostamos? Aliás, o próprio Jake toma o musical teatral Oklahoma! como um tipo de base e influência para sua vida – enfim, o filme acerta em mostrar como a arte também traça metas não necessariamente reais ou importantes para o ser humano – como dito em certo ponto, “até mesmo nossa realidade é inventada” – há, inclusive, uma brincadeira com filmes que dão esse tipo de “moralidade açucarada” em seus finais felizes, chegando a citar o nome do diretor Robert Zemeckis (de Forrest Gump) – enfim, não seriam as letras de músicas, filmes ou poemas meros escapismos para conseguirmos uma forçada motivação para trabalharmos, nos realizarmos profissionalmente ou amorosamente? Algo que lembra até mesmo o desprezo pela alienação imposta pela sociedade que Tyler Durden demonstrava em Clube da Luta.
Essas e outras ideias são expostas com brilho por Kaufman – que não se preocupa em trabalhar lentamente, para ir revelando traços dos personagens que, aos poucos, vão revelando seus destinos e reais funções narrativas – um espectador mais atento, irá notar lá pela metade do filme do que se trata algumas confusões e mistérios – inclusive, a decisão de estabelecer uma tensão crescente, como um suspense, é algo acertado – que combina com o fato da tensão ser algo presente em nosso dia a dia, principalmente com coisas que não entendemos ou temos receio e medo durante toda a vida.
Estou Pensando em Acabar com Tudo ainda se beneficia de boas atuações – a angustia da namorada de Jake é bem transposta para tela pela eficiente Jessie Buckley – enquanto que Jesse Plemons faz de Jake uma pessoa calma e compreensiva, mas que tem seus momentos de explosão e inseguranças – enquanto que seu pai, vivido com muita ironia pelo ótimo David Thewlis, expressa bem um homem que parece cansado de hábitos repetitivos em seu casamento – ou até mesmo, em um dos melhores momentos do filme, quando debate com a namorada de Jake sobre a subjetividade de sentimentos que a arte pode nos transmitir – “como uma imagem de paisagem, sem pessoas com olhares tristes, pode me deixar triste?” – mas o destaque vem para Toni Collette, que, assim como Thewlis, tem uma breve presença, mas que influência bastante a obra – demonstrando uma assustadora face de uma suposta esquizofrenia, a atriz expressa de forma marcante como a criação de um filho pode ser complexa – que a dosagem de cuidado excessivo com os ensinamentos de vida podem ser difíceis de equilibrar – algo que resulta no que eu tinha mencionado no início – as projeções que fazemos de nós mesmo, mas baseadas nos olhares e opiniões dos demais a nossa volta.
A estratégia de iniciar a narrativa sobre o ponto de vista da namorada de Jake é inteligente – e, logo de cara, é o que Kaufman quer expressar de toda a obra – Estou Pensando em Acabar com Tudo não é sobre ela – é, evidentemente, sobre Jake. Sua namorada não existe – isso fica óbvio quando se confunde com a foto de Jake criança, se parecendo com ela mesma – fazendo dela apenas uma série de pensamentos que ele faz sobre o que muitas mulheres vão pensar sobre ele – eis o motivo dela não ter nenhum nome fixo – ela é chamada de Lucy, Lauren ou Ames – evidenciando o nome de mulheres com as quais teve algum contato, provavelmente – ou nenhum – afinal, o longa é também sobre frustrações – é um tipo de situação que qualquer um pode passar – ter vontade de conhecer uma pessoa em um bar, mas não conseguir conversar ou se aproximar e, depois, lamentar e ficar imaginando que poderia ter acontecido algo.
Sendo assim, toda a viagem de Jake até a casa dos pais, é como se fosse uma viagem em sua mente – ao passado, confrontando sua infância, adolescência e sua entrada na vida adulta – o que explica a personagem de Jessie Buckley visualizar os pais dele em diferentes fases da vida – Jake é um retrato de alguém que deixou sua vida ser moldada pelos gostos e preferencias dos pais – em especial de sua mãe – que o desmerece por não ter nenhum “talento especial” – que o diminui por um prêmio de escoteiro e, ainda assim, o acha uma pessoa dominadora – uma representação complexa de como a relação com os pais molda caráter e detalhes do pensamento de um filho – Kaufman trabalha com todas essas hipóteses de forma bastante aberta, deixando as conclusões para o espectador – é interessante também quando a mãe de Jake confunde a palavra “gênio” com “gênero” – talvez uma possível critica ao modo como alguns pais permitem ou não certos comportamentos dos filhos – seja por atitudes erradas na infância ou, em um grau diferente, sobre como lidar com a orientação sexual da criança ou do adolescente, quando ainda está se descobrindo – o que nos leva a viagem de volta.
A pressa de sua “namorada imaginaria” para ir embora e a forma como ela insiste em pensar que precisa terminar o relacionamento, é a projeção de Jake sobre como as mulheres o veem – sua insegurança para lidar com o amor – afinal, nesta sua imaginação (ou idealização) de uma companheira, Jake a “constrói” como alguém interessante para ele – mas sem a menor ideia do que fazer ou dizer para agrada-la – um reflexo da baixa auto estima de algumas pessoas e de como isso atrapalha a imposição de vontades ou até mesmo a compreensão para lidar com as relações humanas.
Além, evidentemente, dos traumas – a cena onde param na sorveteria é basicamente sobre isso – duas atendentes rindo de um acanhado Jake – um tipo de vislumbre sobre o que o bullyng pode influenciar na vida de alguém e da onde vem seu “medo” pelas mulheres ou relacionamentos – ou, com a outra atendente, que mostra sinais de abuso – mas não consegue expressar isso diretamente – aliás, isso nos traz até mesmo para as ligações que a namorada recebe enquanto está na casa dos pais de Jake – não sei como isso é expressado no livro (que não li), mas me parece que a ideia de mostrar que ela mesma estava ligando para ela e um jeito de demonstrar que o próprio Jake é tão inseguro e tímido que ele mesmo faz sua própria projeção ruim – que ele mesmo não se valoriza ou se respeita – a falta de amor próprio, no caso.
E isso vai nos levar para descobrirmos a verdadeira identidade de Jake – e, não haveria outro lugar para a viagem de carro terminar – a grande escola da cidade onde ele vive – e, nunca conseguiu deixar – um homem que sonhava em ser um grande físico acaba por ser um zelador e auxiliar de limpeza de uma enorme e fria escola – onde vê jovens felizes e sonhadores de um futuro que poderia ser melhor que o dele – felizmente, isso não soa como diminuição do trabalho de zelador, mas transparece apenas a insatisfação do personagem principal – nessa parte, Kaufman utiliza inúmeros recursos subjetivos para mostrar toda frustração do Jake idoso de Guy Boyd – e, também, é aqui onde a questão de compararmos o que a arte nos “ilude” a pensar sobre o que deveríamos fazer na vida – quando a namorada de Jake o encontra em um corredor da escola e eles são substituídos por outros dois atores – e notem como são dois atores com padrões de beleza diferentes dos atores principais – como se fosse a visão que temos baseada nos filmes – onde pessoas bonitas se conhecem se apaixonam facilmente e são “felizes para sempre” – o casal dançando como um musical estrelado por Gene Kelly ou Fred Astaire representa isso perfeitamente – assim como a intervenção de um outro ator como o zelador, que, obviamente, mostra como o próprio Jake sabota sua própria vida – ao deixar seus traumas e inseguranças o dominarem – quando ele se desespera dentro de sua caminhonete fica claro como é afetado pela criação dos pais e dos traumas de infância – ele andar despido atrás da animação do porco cheio de vermes (mencionado no começo) é outra maneira de exemplificar como as pessoas vivem seguindo, sem notar, antigos acontecimentos passados – algo que a psicologia confirma, com as memorias que ficam em nosso subconsciente e, consequentemente, podem moldar nossas condutas morais e psicológicas.
E, enfim, a cena onde o Jake de Plemons aparece envelhecido (com uma maquiagem propositalmente falsa, para exemplificar como aquilo é um acontecimento pouco provável e de pouca relevância), recebendo o prêmio de escoteiro que ele mesmo e sua mãe consideravam irrelevantes – uma cena que soa extremamente triste, por ser um tipo de auto consolação do personagem, por ter aceitado seu destino, que ele queria que fosse diferente, mas, por tudo que acumulou em sua criação e vivências, não conseguiu – desta forma, o último plano deixa claro como o destino de Jake é infeliz e solitário, ou até mesmo mal compreendido – ao enquadrar sua caminhonete encoberta totalmente pelo gelo, com o seu (indesejado) local de trabalho ao fundo – uma representação melancólica e simples com a qual Kaufman fecha o longa, deixando o espectador com a sensação de infelicidade e decepção que Jake termina (ou terminará) sua vida.
Estou Pensando em Acabar com Tudo é um trabalho que surpreende pelo fato de ter sido aprovado pela Netflix também, que não costuma investir tanto em obras com tanta subjetividade de exploração de temas – Charlie Kaufman se mostra um cineasta tão criativo quanto o roteirista que é – mesmo conferindo alguns momentos mais arrastados e expositivos do que deveria, ele traz um cruzamento de sentimentos e sensações que deixará qualquer espectador incomodado – seja pela compreensão ou não compreensão de todas as suas mensagens e citações – ou pelo próprio desespero de seus personagens diante de suas frustrações, não conseguindo escapar do julgamento que toda a sociedade lhes impõe – nisso incluo todas as pessoas a nossa volta, familiares, parentes, amigos, o consumismo que nos é imposto, a arte, etc – algo que pensamos sempre em terminar ou escapar um dia, mas o próprio sistema não nos permite – isso, sem sombra de dúvidas, é algo tenso e assustador para todas as pessoas – pelo menos as que tem alguma consciência disso – o que torna este longa um drama reflexivo e diferenciado.
Quando um filme de ação sai das formulas batidas do gênero é sempre um prazer a mais acompanhar os momentos envolvendo as pirotecnias e movimentações em lutas e combates dos personagens – sem falar que o fato de termos personalidades bem concebidas pelo roteiro ajuda muito na identificação e na eventual “torcida” pelas pessoas que vemos em tela – e esse é um ponto curioso de The Old Guard: afinal, seus personagens principais são imortais – ou nem tanto assim – mas o suficiente para que seja validado na trama suas angustias, buscas por propósitos e motivações – e a diretora Gina Prince-Bythewood (do drama A Vida Secreta das Abelhas) consegue se dar bem em um gênero novo para ela – conduzindo com eficiência todo o desenvolvimento de personagens em meio aos tiroteios e lutas – sendo prejudicada, possivelmente, apenas pelo “padrão Netflix de qualidade” – que insiste, obviamente, em tentar consolidar este longa como o primeiro de uma franquia que promete muitas sequências – fora o fato de um certo (e lamentável) tom mais adolescente para o trabalho – já que a inserção de música pop aleatória – que chega a tirar a tensão de alguns momentos – é um recurso tolo para tentar tornar a narrativa mais acessível e leve para o público mais jovem – algo que atrapalha o desenvolvimento um pouco mais profundo de todos os personagens e alguns temas de fundo.
Baseado na graphic novel de Leandro Fernández e Greg Rucka (com roteiro adaptado por este mesmo), The Old Guard conta a história de um secreto grupo de guerreiros imortais – compostos por Joe (Kenzari), Nicky (Marinelli), Booker (Schoenaertz) e a líder Andy (Theron) – com inúmeros feitos ao longo de muitos séculos, o grupo trabalha para quem os pagar melhor em situações importantes para o mundo, especialmente em conflitos armados – mas, ao aceitarem uma missão de resgate pedida por Copley (Ejiofor), um ex-agente da CIA, as coisas tomam um rumo inesperado – ainda mais com o aparecimento de uma nova imortal, a soldado Nile (Layne) – enquanto que Merrick (Melling), um cientista de uma indústria farmacêutica, está interessado em saber da onde vem a imortalidade dos quatro membros da equipe.
A força maior de The Old Guard vem claramente de seu elenco – não é preciso dizer que Charlize Theron é uma atriz tão completa que consegue se desenvolver perfeitamente com muito carisma para o drama e para ação – já vindo de outros longas deste gênero, ela transforma Andy em uma personagem quase tão complexa e multifacetada quanto sua Imperatriz Furiosa de Mad Max: Estrada da Fúria – a personagem, a todo tempo, se questiona do sentido de viver para sempre – afinal, assim como os outros integrantes do time, ela vê todos os seus entes queridos morrendo e nem sequer envelhece – o que torna sua dor pela perda de uma antiga integrante em algo tocante – sem falar que, com isso, a diretora consegue extrair um curioso pano de fundo, conseguindo refletir em nossa realidade – o fato das mulheres serem sempre subjugadas através dos séculos – seja pela igreja na santa inquisição ou no machismo estrutural que permanece até hoje.
Tais impressões sobre algumas minorias são bem inseridas nos demais personagens – como a homofobia, no caso de Nicky e Joe – é curioso a maneira como eles assustam um preconceituoso soldado que os captura apenas discursando sobre a importância de poderem se amar livremente (por séculos, inclusive); ou Nile de Kiki Layne (em boa composição, com direito também a agilidade para as cenas de ação) lidando com o fardo de ter que aceitar sua imortalidade e notar que isso a obriga a abandonar sua mãe solo e seu irmão – refletindo a realidade das mulheres que são obrigadas a cuidarem sem nenhum apoio de seus filhos – e com o Booker de Matthias Schoenarts e o Copley do sempre vibrante Chiwetel Ejiofor fica visível a dor de uma pessoa que precisou aceitar a perda de familiares – no caso do segundo, que não é um imortal, é curiosa sua intenção e certa admiração pelos integrantes do grupo.
Nesse quesito de desenvolvimento, infelizmente, o longa falha com o vilão de Harry Melling, que soa como apenas uma pessoa inescrupulosa, sem motivos por trás que o fariam mais complexo ou inteligente – seu Merrick não deixa de soar como um personagem um tanto perigoso no que acaba expressando – afinal, em tempos onde o negacionismo cientifico vem sendo responsável por muitas das mortes pelo covid-19, colocar um personagem que supostamente representa as fraudes da indústria farmacêutica para poderem lucrar com doenças e vendas de remédios, é um tanto arriscado e discutível – podendo induzir o espectador a ideias mentirosas e, talvez, compactuando com as fake news de diversos teóricos da conspiração que temos por aí.
Mas, mesmo não tendo momentos de ação tão memoráveis ou criativos, The Old Guard se sobressai também por sua boa misce-en-scene, ao dar bons enquadramentos para as cenas de ação, que nunca soam confusas ou difíceis de compreender – evitando cortes bruscos entre os socos, chutes e tiros – há de se criticar um pouco algumas decisões em inserir um flashback em uma cena, para justificar algo que ocorreu poucos instantes antes – resultando em uma pausa narrativa desnecessária – porém, coisas assim são compensadas pelo bom uso dos efeitos de maquiagem para os momentos de “regeneração” dos personagens – com o discreto uso de efeitos digitais e efeitos sonoros que trazem impacto e mais incomodo e realismo à isso.
Mesmo que com algumas decisões meramente mercadológicas para prosseguir como franquia (aliás, há uma importante cena pós-crédito), é um longa de ação de qualidade, que conta com um ótimo elenco e bom ritmo para sua tensa e movimentada trama – além de conseguir se sobressair com a abordagem consciente e atual de sua criativa diretora.
A capacidade do ser humano em querer ganhar dinheiro a qualquer custo é sempre vista em projetos cinematográficos. Superman IV é um belo exemplo disso, porém, sua única vantagem com relação ao filme anterior do herói é que a proposta do filme é boa, ao contrário apenas de deixar a produção com cara de comédia como aconteceu em Superman III.
Se associando com a produtora de filmes B dos israelenses Gollan/Globus, Ilya Salkind queria voltar com a franquia e conseguiu trazer todo o elenco de volta com um belo apoio da Warner Bros. na produção, com um orçamento inicial de U$S 36 milhões. Para topar voltar a vestir o uniforme do ultimo filho de Krypton, Christopher Reeve fez exigências no melhor estilo da volta de Sean Connery como James Bond: Reeve queria escrever o roteiro em cima de uma história criada por ele mesmo e também dirigir o longa, além de garantir que mais dois filmes fossem feitos para ele fora da série, afim de provar que seu talento artístico ia além de ser Superman. Resultado: os produtores aprovaram tudo, menos ele ser o diretor, cargo que ficou para o diretor da imitação de Top Gun, Águia de Aço (1986).
A proposta da história de Reeve era algo bem atual para a época: a corrida das armas nucleares entre as superpotências daquele período. O que Superman poderia fazer para ajudar a humanidade a não se perder entre as guerras? Qual a função do Homem de Aço nisso tudo? Questões interessantes que logo logo foram ofuscadas pela incrível quantidade de problemas que a produção estava por enfrentar.
Primeiro foi o corte do orçamento para metade, o que fez várias cenas não serem finalizadas e acabou forçando os produtores a alterarem o roteiro, para tentarem esconder esse buracos – o mais gritante é próximo ao final, quando o Homem Nuclear, sem motivo algum, resolve ir atrás da personagem de Mariel Hemingway – no dvd do filme você pode checar as cenas não finalizadas, que explicam esses momentos. Os cortes orçamentários afetaram com mais força ainda os efeitos especiais, forçando os produtores a utilizarem tomadas de efeitos usadas nos filmes anteriores, tornando certos momentos quase ridículos, como o Superman “tapando” um vulcão com uma montanha, para evitar a destruição de uma cidade por causa de uma erupção (?!) e quando o Homem Nuclear atira a Estatua da Liberdade no meio da cidade... Deu pra entender, neh?
Apesar da boa intenção, o roteiro não chega a ser bom, tendo um ritmo que seria mais adequado para uma série de TV – alías é o filme mais curto de toda série, não chegando nem a uma hora e meia. O desenvolvimento do Homem Nuclear (interpretado pelo inexpressivo Marc Pillow) também é fraco, concebendo o vilão com gritos que mais lembram o Godzilla e dando voz a ele Gene Hackman, com um abominável efeito sonoro. Alias, o Lex Luthor de Hackman só se mostra interessante graças a alguns diálogos divertidos, já que as motivações do megalomaníaco vilão são as mesmas de sempre.
Margot Kidder, Hemingway e Reeve formam uma espécie de “quadrado amoroso” já que temos para elas Superman e Clark como duas pessoas diferentes, o que leva a cena no apartamento de Lois, onde Superman tem que ser Superman para Lois e Clark para Lacy, ao mesmo tempo – momento realmente divertido e mais memorável, digamos assim, do filme.
Superman IV é aquele filme que não deveria ter sido finalizado, para dizer a verdade. Esperando um milagre, o filme foi lançado e, como esperado, não teve retorno algum, passando em branco no cinemas, o que fez Ilya Salkind abandonar definitivamente os direitos sobre a adaptação do herói da DC Comics e acabou por estagnar a carreira do pobre Christopher Reeve.
Realmente, não foi o final que uma série que começou tão bem merecia ter.
Quando anunciaram em 2004 que o novo filme do Homem de Aço seria uma continuação dos clássicos Superman I e II, fiquei empolgado demais, já que estes dois filmes estão entre os meus favoritos de todos os tempos. Era uma aposta ousada do diretor Bryan Singer (X-men 1 e 2) e dos produtores, querer dar continuidade à uma série já parada a muito tempo - 19 anos desde a última vez que Christopher Reeve vestiu o uniforme do herói em Superman IV, que junto da terceira parte, também não tem relação com este Returns). Se de um lado temos o poder da nostalgia em dar um certo prazer em acompanharmos o longa, de outro lado notamos como existe uma pretensão grande demais em fazer do filme uma homenagem à um clássico que não é tão lembrado agora por grande parte do público.
Ao querer dar o mesmo tom de clima e ritmo ao filme, igual Richard Donner fez no original, Singer transforma diversas partes do projeto em cenas lentas, algumas que nem se quer acrescentam nada a narrativa – momentos que poderia ser rápidos, como a visita a Fortaleza da Solidão, se tornam cenas aborrecidas ou sem ritmo – como as lembranças de Clark sobre sua adolescência – momentos que apesar de serem esteticamente belos, não ajudam da forma necessária, soando apenas como explicações para quem não conhece os filmes originais.
Superman Returns conta como a terra sobreviveu 5 anos sem Clark (Brandon Routh), que foi procurar no espaço por outros sobreviventes de Krypton, já que esta se sentindo deslocado na terra por se sentir sozinho. Ao retornar, ele nota como muitos se acostumaram com sua ausência, em especial, é claro, sua amada Lois Lane (Kate Bosworth), que teve um filho e está noiva do sobrinho de Perry White (Frank Langella), Richard (interpretado pelo Cyclope de X-men, James Marsden). Enquanto esteve fora também, Lex Luthor saiu da cadeia e roubou os cristais Kryptonianos da Fortaleza da Solidão, que são capazes de criar terras quando em contato com a agua – além de preparar um plano para matar o Superman – “novidade”!
Com um belo desenho de produção e um uso de CGI bem feito – o que explica o filme ter custado U$S 250 milhões – Superman – O Retorno tem um roteiro eficiente, que só falha em alguns aspectos como no caso de estender certas cenas ou na lógica de algumas coisas – Clark sumiu por 5 anos, Superman também, os dois voltam ao mesmo tempo e ninguém nota que são a mesma pessoa... enfim, algo até normal para a história do Superman. Apesar do ritmo as vezes mais parado, o filme consegue oferecer belas cenas de ação, em especial o resgate do avião no meio da história, onde chegamos a vibrar ao ouvir o tema clássico do herói ao fim da cena. A trilha sonora, feita em cima do trabalho antológico feito por John Willians no filme original, recebe aqui por John Ottman (autor do tema dos X-Men também) novos temas interessantes, como o tema para Lex Luthor e o tema romântico para Lois e Clark, que embora o original seja inesquecível, recebe um tratamento digno por Ottman aqui.
Mas agora lidamos com o maior problema do filme: o romance. Por quê seria tão problemático? Um dos principais requisitos para um romance funcionar no cinema, são o casal de atores que formaram esta história de amor e, nisso, Superman Returns fracassa retumbantemente. Tentando conceber o filme com o mesmo tom romântico do original de 1978, Singer erra aqui também por deixar na mão de dois atores fracos essas funções: o estreante no cinema Brandon Routh se mostra uma escolha ruim para o papel, praticamente inexpressivo, o ator ainda sofre pelo fato de ser comparado com o mito Christopher Reeve, já que, por determinação de Singer, Routh recebe uma maquiagem e em certos momentos, um tratamento digital no rosto (!!!???), para ficar mais parecido com Reeve – pode até lembrar a aparência, mas o ator de poucos recursos não consegue dar aquele diferencial que o Chris conseguia, por parecer estar interpretando duas pessoas diferentes de fato. E Kate Bosworth não chega nem perto de ter aquele carisma e perspicácia que Margot Kidder tinha em Superman – O Filme, se mostrando apática – chega a ser forçada uma cena de choro dela próximo ao filme. Enfim, não parece um casal apaixonado de fato, aniquilando o romance para o filme.
Se a dupla principal de atores falha, o resto do elenco, que conta com várias estrelas, acertou não é? Não. O problema vem novamente do roteiro, que não consegue dar dinamismo ou brilhantismo as atuações, especialmente para Kevin Spacey, que seria uma boa escolha para Lex Luthor, já que o ator mistura o tom cômico que Gene Hackman passava nos filmes originais com o toque mais sinistro que o vilão tem nos quadrinhos – e aqui ele não usa perucas, temos Luthor careca mesmo. O problema é que Spacey não tem em mãos um personagem bem desenvolvido, que sofre pela ausência de novidades em seus atos – Lex quer novamente adquirir terras para enriquecer e matar o Superman com Kryptonita. Alias, o excesso de citações ao filme original, atrapalha um pouco, já que não soa como homenagem, mas sim como imitação as vezes – certos diálogos são idênticos a algumas passagens do filme antigo – como o discurso de Superman após salvar o avião.
Sofrendo com o excesso de referencias e homenagens ao original, Superman – O Retorno é um filme curioso ainda, por pelo menos tentar trazer de volta aquele clima de matine dos filmes antigos, resultando em uma aventura eficiente, mas que poderia ter sido bem melhor senão fosse levada tão a serio pelo diretor, que erra ao querer dar uma resposta para os questionamentos de estar sozinho no mundo ou não para o herói de uma forma um tanto apelativa, em um final quase que choroso – embora não chegue a conseguir fazer isso.
Com uma bilheteria mediana e criticas frias, a Warner logo descartou a possibilidade de dar uma continuação ao filme, ainda mais com o sucesso do realista e impactante segundo filme de Christopher Nolan do Batman, O Cavalheiro das Trevas, o que levou o estúdio a fazer o Reboot da saga do herói, com O Homem de Aço em 2013.
A meu ver, pelo menos, Superman – O Retorno funciona como um fechamento de uma trilogia – considerando que contamos apenas com as historias de Superman I, II e este Returns sendo a terceira parte. Assim, foi um bom final para o trabalho que Richard Donner começou tão bem em 1978.
Filmado simultaneamente com o primeiro filme, Superman II é um dos primeiros casos de sequência já programada antes da estreia do original. Tal tipo de empreendedorismo cinematográfico foi visto depois em séries como De Volta Para o Futuro, Matrix, Jogos Vorazes, Harry Potter, Universo Marvel e alguns outros. E esta segunda incursão do alienígena de Krypton se mostra, ainda hoje, uma das melhores adaptações de quadrinhos já feitas – foi eleito em listas de fãs de HQ’s. Mas o que faz com que falte uma estrela ali em cima para tornarmos o longa do diretor Richard Lester tão perfeito quanto o original? O que faltou foi Richard Donner.
Donner, diretor do primeiro longa, já tinha filmado quase 75% de Superman II. Mas ao se desentender com os produtores Alexander e Ilya Salkind por questões de salário – o cachê de um milhão de dólares seria para os dois filmes, mas Donner alegou que sabia ser apenas para um – ele foi dispensado do projeto e substituído por Lester, que fez pequenas modificações em algumas cenas filmadas por Donner. Leia essas modificações como adições de humor em muitas cenas, que não chegam a prejudicar o filme, mas mudam um pouco o foco que Donner tinha para o primeiro filme.
O que deixa essas divergências no segundo filme são as mudanças mesmo – recomendo vocês assistirem a versão do Richard Donner deste filme para verem como muitas das ideias realmente se perderam um pouco em Superman II. Mas nem tudo foi culpa de Lester: Marlon Brando queria dois milhões de dólares para voltar como Jor-El. Ao ser recusado, os produtores colocaram a atriz Suzanna York (Lara, mãe biológica de Superman) recitando o texto que seria originalmente de Brando; Gene Hackman – que só topou fazer o filme original por ter gostado da abordagem de Donner – também não quis completar o trabalho (algumas cenas dele foram completadas por dublês);
a resolução da história de amor empolgante entre Lois e Clark é decepcionante – para não dizer absurda, ao vermos Clark apagar a memoria de Lois com um beijo (oi?); e o confronto na fortaleza da solidão no final, com aqueles poderes esquisitos que os três super vilões e Superman usam – o que diabos é aquele “S” gigante “embrulhando” o Non (Jack O’Halloran)???
Mas acreditem: o charme desse filme é tão grande que tudo isso é compensado por inúmeros motivos. Como a história de Mario Puzo já tinha um tom épico e romântico empolgante, ficou bem interessante a ação sem ter que ficar apresentando os personagens e situações. O filme já começa em plena ação, com Superman explodindo uma bomba de hidrogênio no espaço, o que acaba por libertar os três super vilões: Zod (Terence Stamp), Ursa (Sarah Douglas) e Non, todos sedentos por vingança, já que haviam ficado presos na zona fantasma, a mando de Jor-El. Enquanto invadem e começam a dominar a terra, Lois descobre a identidade secreta de Clark e acabam se relacionando, o que faz com que Superman decida excluir seus superpoderes para viver como um ser humano comum com Lois – com a responsabilidade de proteger a terra, ele não conseguiria viver junto de Lois.
O dilema que Clark enfrenta é tratado com boa desenvoltura pelo roteiro, onde as emoções de Lois e Clark transparecem com força – alias, Reeve e Kidder repetem seus papeis com perfeição, totalmente a vontade, o que acaba por se tornar o coração do filme. E ao confrontar os vilões a seguir o filme fica em clima de revista em quadrinhos absoluta: a luta entre os Kryptonianos em uma noite em Metropolis é um momento épico que, apoiado por efeitos especiais inteligentes para época, se mostra um confronto marcante e como referencia para inúmeros filmes de heróis.
É preciso dar destaque para Terence Stamp como o General Zod – me perdoe Michael Shannon, que interpretou Zod em O Homem de Aço (2013), mas a atuação de Stamp tem um ar de sofisticação tão bacana, que podemos vê-lo como um personagem Shakesperiano durante o filme. A forma cordial e ameaçadora que fala é marcante, numa alusão a personagens clássicos da literatura, todos com um vocabulário clássico e formal – seu “ajoelhe-se perante Zod” é antológico.
Muito bem editado e fotografado, Superman II tem um ritmo bem mais acelerado do que o filme original, se adequando como uma aventura para toda a família mais do que clássica, que se não tivesse tantos problemas de bastidores, com certeza teria o mesmo status de clássico do cinema como Superman – O Filme. De qualquer forma, não sairá das mentes dos fãs do super-herói.
Dono de uma das melhores filmografias de Hollywood nos últimos 30 anos, Spike Lee é um cineasta tão versátil e perspicaz em inserir temas e situações que estimulam e escancaram a rica culta afrodescendente, que sempre esteve antenado em trazer com perfeição para as telas as lutas contra o racismo e o retrato da exploração que a população negra passou nos últimos séculos na América – de obras de abordagens do cotidiano, mas muito marcantes, como Febre na Selva ou Faça a Coisa Certa, passando por biografias históricas como Malcolm X, ou seu longa anterior, o excelente Infiltrado na Klan (para mim, o melhor filme de 2018), Lee, desta vez, aborda uma questão que poucos filmes exploraram no cinema norte-americano: as dores e as consequências da participação da comunidade afrodescendente em diversos conflitos armados em que os Estados Unidos se envolveram ao longo dos anos – já não bastasse a exploração da escravidão e o desrespeito imperdoável da segregação racial, as comunidades negras sempre foram as que mais morreram pela terra do “Tio Sam” – e, na guerra do Vietnã não foi diferente.
Para abordar tal tema, Lee (junto de mais três roteiristas) cria uma trama girando em torno de um grupo de soldados veteranos, que lutaram nas terras vietnamitas nos anos 70, que, atualmente, decidem retornar ao local – são eles: Paul (Lindo), Otis (Peters), Eddie (Lewis) e Melvin (Whitlock Jr.), todos com o objetivo de retornarem ao local onde ocorreram as batalhas com o Destacamento ao qual pertenciam na época da guerra, os Bloods, liderados pelo capitão Stormin’ Norman (Boseman) – tentando resgatar os restos mortais do antigo líder e encontrar um misterioso carregamento de ouro, os quatro veteranos embarcam na missão de resgate, enfrentando alguns contratempos – como a participação inesperada do filho de Paul, o jovem professor David (Majors) e um grupo de ativistas contra as minas terrestres, liderados pela francesa Hedy (Thierry), além da suposta ajuda do misterioso francês Desroche (Reno) e de informações e revelações de um ex-amor de Otis, a vietnamita Tiên (Lan).
Desde seu primeiro frame, Lee deixa bem claro como sua estratégia de inserir informações de personagens reais (como Martin Luther King, Malcolm X ou integrantes de movimentos como dos Panteras Negras) é algo bastante impactante e eficaz para ajudar a contar a história – através de exemplos de situações históricas, o cineasta consegue moldar muito da personalidade de cada um dos integrantes dos Bloods – seja com exemplos de ativistas que visavam uma união do povo negro ou até mesmo com atos separados, como um soldado anônimo que se sacrificou para salvar outros no Vietnã – enfim, é um jeito bem direto de dar relevância para pessoas que ajudaram imensamente na luta pela igualdade e na busca pelos direitos dos afrodescendentes na América – além de todo o movimento de combate contra a Guerra do Vietnã.
O mais interessante é que, embora seja praticamente uma história de aventura também, Destacamento Blood consegue ser, ao mesmo tempo, um drama de guerra bem reflexivo – sem falar que na parte politica Lee não deixa de dar alfinetadas bastante diretas contra Donald Trump e seu suposto flerte com movimentos fascistas – do mesmo modo que fez em Infiltrados na Klan – além disso, o longa ainda tem um tom tão irônico em criticar o histórico da mídia em ter dado, no passado, mais crédito aos brancos pela luta na guerra que é praticamente impossível não admirar certos diálogos, especialmente quando o personagem de Delroy Lindo tenta mostrar sua visão sobre a guerra.
Aliás, falando dos personagens, as criações de personalidade são bem inseridas – o Paul de Delroy Lindo serve para mostrar o lado da comunidade negra que acaba ficando afetado pelo sistema, ao ponto de defender condutas questionáveis de seus lideres políticos e ainda incentivar a ideia de que os Estados Unidos são sempre os “salvadores da pátria” – o dialogo com o personagem de Jean Reno é bem especifico nisso – mas o fato de Paul usar um boné com o slogan de Trump (“Make America Great Again”) é uma sacada simples e inteligente para demonstrar essa moralidade duvidosa do personagem, que, sem dúvidas, torna-se o mais emblemático da obra, sendo multifacetado pelo trauma da guerra e aos problemas para se relacionar com seu filho David, de Jonathan Majors, que tenta se reencontrar emocionalmente com seu pai durante a jornada – algo que, mesmo sendo visto de forma apressada aqui e ali, consegue ser tocante o suficiente para ajudar a entendermos o comportamento impulsivo e desconfiado de Paul – que, muitas vezes, beira a loucura, mas sem jamais deixar de mostrar sua ligação com o passado tenebroso dos combates na guerra.
Os demais integrantes do Destacamento também seguem tais características, mas cada um abordando seus traumas de uma forma – o Otis de Clarke Peters é um exemplo em tentar seguir seus princípios antigos, ainda mais com uma ligação marcante com um amor da época da guerra, a ex-prostituta Tiên – mesmo sendo um ponto em que o roteiro trate de forma um tanto corriqueira – assim como o Eddie de Norm Lewis, um homem motivado pela filosofia de seu antigo capitão, mas que tornou-se refém do cruel sistema financeiro da américa, mas, curiosamente, o mais preocupado em não deixar a ganância atrapalhar os planos do grupo – e temos o Melvin de Isiah Whitlock Jr., um homem que aparentemente não consegue acreditar totalmente no companheirismo que a situação pode criar – mas temos uma representação bastante pertinente dos ideais de combate ao racismo na personificação de Chadwick Boseman como Stormin’ Norman – curiosamente, o interprete do Pantera Negra da Marvel, dando voz a um personagem que lembra muito o discurso do antológico movimento dos Panteras Negras – em um papel que aparece apenas em flashbacks, o ator passa com eficiência a garra do ex-capitão em lutar por causas nobres em meio ao horror da guerra – sendo consciente o suficiente para notar como os vietcongues eram igualmente prejudicados, assim como os jovens das tropas dos Estados Unidos – a própria busca pelo ouro e objetivo disso, fica bem marcado pelas aparições de Norman (sempre pertinentes) – principalmente com relação à Paul, sem dúvidas, o mais afetado com o contato com o antigo líder do Destacamento.
O restante dos personagens também tem seus pesos temáticos – como a ativista francesa vivida Mélanie Thierry, um exemplo de pessoas de classe mais favorecida que acabam se engajando em causas nobres – além do rabugento personagem de Jean Reno, que parece ser o contrário disso – quando alguém da elite quer explorar os menos favorecidos – são inserções simples, mas que ainda ajudam no clima tenso, aventureiro e pesado de certos momentos da história – e, tecnicamente, Destacamento Blood é muito bem desenvolvido – começando por sua fotografia, que tenta captar a grande maioria das paisagens florestais do Vietnã sem muitos filtros – dando uma paleta de cores que soa bastante natural – ao passo que utiliza-se de texturas diferentes apenas para indicar os momentos de flashbacks dos atuais – inclusive, é curiosa a maneira com que muda os formatos de tela – mais quadrado (aos moldes de câmeras antigas de 16mm) quando volta no tempo, deixando o widescreen mais largo (2.35) para os momentos antes de iniciar a missão de busca e o widescreen menos largo (1.85) para quando finalmente se inicia a jornada – é uma maneira visualmente mais fácil de distinguir tais momentos uns dos outros.
Entretanto, o diretor escorrega um pouco no longa somente sobre sua condução narrativa – tornando-se dispersa em alguns momentos – como os inserts de uma radialista vietnamita, nos flashbacks, que, apesar do belo texto, soam mais como pausas que fazer o filme perder o ritmo, tirando alguma tensão de um ou outro momento – e a forma como insere algumas informações de certas figuras históricas as vezes soa apressada demais – algo que também, em poucos momentos, faz o filme parecer ser um pouco mais longo do que deveria – mas sem muita gravidade.
Destacamento Blood acaba sendo uma aventura de guerra perfeitamente encaixada com o momento em que a brutal morte de George Floyd por policiais nos Estados Unidos causa revolta e muita indignação – Spike Lee, como sempre, sabe cutucar bem na ferida do problema – o racismo estrutural – que ainda faz com que os afrodescendentes paguem com suas vidas por apenas lutarem por seus direitos – em situações criadas por pessoas que, definitivamente, não se importam com as vidas negras – e qualquer obra contra isso agora é extremamente bem-vinda para ajudar a ilustrar a barbaridade de movimentos racistas e fascistas que ainda existem no mundo – algo que o final do longa deixa bem claro – de uma maneira tão forte e sincera que somente seu visceral realizador poderia fazer.
Depois do final da terrível trilogia de 50 Tons de Cinza, sinceramente, não esperava ver outra obra que abordasse de forma tão estereotipada e absurda questões sexuais e amorosas – mas, baseando-se em um livro (ou praticamente uma fanfic) de Blanka Lipinska – uma “versão” polonesa de E.L. James, que, igualmente, precisa de sérias sessões em um analista – chega está produção da Polônia, que parece querer bater o recorde de ruindade, superficialidade, sexismo, misoginia e machismo sobre o comportamento feminino diante do sexo e de situações de abuso.
E falo isso com pesar – porque, sendo um homem, só posso dar meu apoio e simpatia para as causas do movimento feminista – mas, vendo um filme deste (baixo) nível, imagino que qualquer mulher com um mínimo de discernimento mental desaprovaria todas as situações maniqueístas e constrangedoras criadas pelo roteiro (co-escrito pela autora do livro, inclusive). 365 Dias acompanha o mafioso italiano Massimo (Morrone), chefe do crime em sua região, ele acaba se pegando apaixonado por uma turista polonesa em visita a Sicília, a bela executiva Laura (Sieklucka) – que Massimo viu em um sonho anos antes e, por isso, fica obcecado por ela, sequestrando-a. Sendo assim, o mafioso faz uma proposta a ela: que deixe tentar faze-la se apaixonar por ele dentro de 365 dias – só assim podendo voltar para sua vida normal, que Laura aparentemente não demonstra tanto interesse, ainda mais porque tem um relacionamento áspero com seu namorado Martin (Lasowski).
Só pela sinopse é notório como toda a trama é maniqueísta – o namorado de aparência e comportamento desleixado – propositalmente irritante, só para forçar ainda mais a ideia de que o abusador é alguém “melhor”; o sedutor e criminoso que convence qualquer mulher a fazer sexo com ele, pelo simples fato de ter características que os padrões de beleza da sociedade pedem; e, claro, o ridículo sonho que faz Massimo ficar tão perverso em sua busca por Laura – um tipo de ideia que só não é mais ridícula do que quase todos os diálogos da obra – é visível que a dupla de diretores acredita que somente a química sexual é suficiente para um casal ser “feliz para sempre” – afinal, um homem como Massimo (sim, que é um criminoso também) pode “forçar” uma aeromoça a fazer sexo oral nele ou, para despertar a vontade de Laura em ter relações com ele, a fazer assistir outra mulher lhe fazendo mais sexo oral – chama-lo de egoísta seria uma perda de tempo – ah... e, logo em seguida, este homem (descrito por Laura como alguém com um corpo desenhado por Deus e o pênis pelo diabo – sim, existe esse dialogo!) ficar enciumado por sua pretende forçada tentar fazer ciúmes usando roupas curtas e dançando com outros homens – creio que seria impossível transforma-lo numa figura mais machista do que isto.
Massimo acaba deixando Christian Grey no chinelo quando o assunto é explorar suas taras e dominar e humilhar suas “submissas” – aliás, todo o alarde em cima do tal conteúdo de BDSM é desnecessário – a maioria das cenas de sexo são convencionais – se aproveitando de enquadramentos bem feitos e uma misce-en-scene que sabe explorar os espaços dos cenários para não enquadrar os órgãos genitais dos atores – este acaba sendo o único bom atributo técnico de 365 Dias, no final das contas – já que ainda temos uma trilha-sonora que mais parece que ligaram na Rádio Jovem Pan e deixaram tocando aleatoriamente várias músicas pop – uma ou outra até boas, convenhamos – mas é só. Sem contar ainda com a edição sofrível – por exemplo, a sequência inicial mostrando Massimo “negociando” com seus “clientes”, enquanto, ao mesmo tempo, aparece Laura sendo uma mulher emancipada e forte no trabalho – além da confusão de troca de cenas neste ponto, este momento de Laura acaba sendo uma enorme contradição para o que ela vem a fazer mais tarde.
E quando falamos dos atores, é aí que este longa polonês descamba ainda mais – com um personagem tão raso, machista e sem personalidade, Michele Morrone só deixa seu Massimo ainda mais imbecil em suas atitudes – um ser que só tem dinheiro e beleza para oferecer – a total falta de expressões faciais do ator deixa até mesmo suas questões de caráter serem exploradas superficialmente, de um jeito que não parece ser um negócio tão sério e importante o ramo de traficar drogas na Itália – os seguranças vividos por Bronislaw Wroclawski e Otar Saralidze só sabem falar sobre a importância da família de Massimo e isso nunca parece ter relevância – mas, creio que o pior acaba ficando para a pobre Anna Maria Sieklucka, vivendo Laura – uma mulher tão mal concebida pelo roteiro que fica difícil descrever sua real personalidade – e de sabermos se a atriz está tendo alguma atuação boa ou não – o fato é que soa ridículo a maneira como ela rapidamente se apaixona por seu raptor – e a falta de profundidade dos roteiristas e diretoras torna tudo ainda pior, afinal, um conflito sobre a “síndrome de Estocolmo” poderia ser algo curioso – mas isso passa bem longe, sendo igual acontecia nas histórias de E.L. James, onde o amor parece ser algo que só existe em torno de aparecia física e dinheiro – e mesmo tendo 29 anos, Laura mais parece uma adolescente que se apaixonou pela primeira vez, tendo até uma melhor amiga igualmente de pouca idade mental, a insuportável Olga de Magdalena Lamparska – são criações vergonhosas de personagens que ofendem e rebaixam o comportamento feminino.
Toda essa superficialidade e falta de realismo para demonstrar questões sobre o amor e sexualidade só não são piores que o final patético, onde tentam causar comoção e um pouco de suspense em uma história arrastada e repetitiva de seu meio para o fim – e, claro, uma deixa para continuação, que parece ser moda em obras assim – enfim, 365 Dias faz o primeiro filme de 50 Tons de Cinza parecer uma obra-prima – o que, sem dúvidas, é um sinal forte de como está produção vai ficar facilmente entre os piores filmes de 2020.
É curioso como em tempos onde ainda surgem grupos apoiando causas racistas e fascistas seja mais fácil de entender o peso que um homem como Franz Jägerstätter precisou enfrentar durante a segunda guerra mundial – este mais novo trabalho do lendário Terrence Malick nos faz refletir imensamente sobre a moral e os princípios de um ser humano, que diante de uma situação que lhe causa total aversão, prefere jamais estar do lado dos opressores – que, nem em pensamento ou fingimento, consegue se aliar a causas que ele julga ser intragáveis – e são, obviamente – pois já sabemos hoje toda a dimensão de horrores e atrocidades que o nazismo cometeu.
Se no mundo atual ainda enfrentamos mazelas dolorosas disso, ao menos, podemos nos julgar livres o suficiente para nos manifestarmos contra lideres totalitários ou fanáticos que assumem o poder e tentam alienar a população – evidentemente, que em certos lugares do mundo não é tão simples assim ainda hoje – mas, para quem vivia na Áustria do começo da década de 40, era praticamente impossível se posicionar contra o regime que Adolf Hitler impôs aos austríacos – o personagem de August Diehl se vê nessa situação – fazendeiro e agricultor em um pequeno vilarejo da região, além de ser casado com sua amada esposa Fani (Pachner) e terem três pequenas filhas, ele vê sua vida mudar totalmente ao ser convocado para lutar na guerra junto dos soldados alemães nazistas – indignado com as imagens que via da opressão que os exércitos de Hitler impuseram ao povo europeu, Franz se coloca totalmente contra ao regime, abalando a convivência com seus vizinhos e logo sendo condenado a prisão e ao corredor da morte pelo governo alemão – fazendo sua família também entrar em um doloroso processo, por acompanharem a sua dor e sofrimento de não ser compreendido por sua decisão de jamais aceitar a doutrina nazista.
Como é de costume em sua rica filmografia, Malick (que também é o autor do roteiro, baseado na real história de Franz) consegue extrair inúmeras passagens reflexivas, principalmente ao captar as belíssimas paisagens do vilarejo austríaco – inserindo a natureza, com suas rochas, montanhas e vegetação, como um personagem ou, evidentemente, uma representação de Deus sobre a vida de Franz e sua família, que são católicos devotos – e torna-se sempre curioso o uso de lentes nas câmeras que fazem os personagens parecerem tão grandes quanto as paisagens que os cercam – as cenas de Franz e Fani nos campos são exemplos disso – da mesma forma que Malick mantem está lógica ao empregar o mesmo tipo de enquadramento quando o personagem de Diehl está na prisão – resultando no efeito de claustrofobia e tensão pela morte que parece estar o aguardando.
O elenco ajuda a manter este tom dramático coerente – principalmente pela atuação contida, mas eficiente de August Diehl, que faz de Franz um homem pacato e simples, mas com uma grandeza de espirito que o torna, de fato, alguém que se sobressai à tentação do mal a sua volta – mesmo tendo chances de fingir que apoia o regime nazista, apenas para sobreviver, isto é algo que ele jamais consegue aceitar – e a atuação sem exageros de Diehl deixa isso bem claro – até mesmo no desesperador final do personagem – enquanto isso, Valerie Pachner acaba também seguindo a mesma linha de atuação mais introspectiva, ao retratar a luta de Fani, para cuidar da fazenda e sustento das filhas, apenas com a ajuda de sua irmã Resie (Maria Simon) – a atriz capta perfeitamente a angustia de saber que a morte espera seu marido e, que mesmo ela sendo extremamente fiel aos valores do companheiro, jamais deixa passar a esperança de que seu amado volte vivo para casa – algo, de fato, tocante – principalmente através das leituras das cartas que trocam um para o outro – revelando seus pontos de vistas, valores e morais.
Além disso, para exemplificar que suas crenças religiosas não são extremas e irracionais, Malick insere conflitos entre os personagens que mostram como isso os afetam – como os moradores do vilarejo que passam a maltratar Fani pelo fato do marido ser visto como traidor – demonstrando como a moralidade religiosa da população em nada serve se apoiam causas opressoras, além do posicionamento da igreja local, totalmente influenciada e controlada pelos alemães – aliás, a mesma instituição considerou o personagem de Diehl como um mártir, após o termino da guerra – ou ainda quando Franz é questionado por um companheiro de cela da existência ou não de Deus – ainda há a participação (em seu último trabalho, pois faleceu após as filmagens) do veterano Bruno Ganz, que interpreta um militar nazista, que acaba questionando Franz e a si próprio pela moralidade da situação em que o fazendeiro se encontra.
É fato que as passagens lentas ajudam na intenção do cineasta em fazer refletir sobre o dilema dos personagens e, por si só, a história de Franz já é algo incrível e emocionante – porém, Malick toma algumas decisões que transformam Uma Vida Oculta em filme de quase três horas... que faz você sentir que tem quase três horas! É visível a intenção de retratar a história de um jeito bastante intimo, porém, diversos momentos tornam-se repetitivos – e as narrações em off, das cartas trocadas entre Franz e Fani, acabam também por entrarem nesse ciclo – deixando muitos momentos óbvios e cansativos – apesar do esmero do trabalho de fotografia de Jörd Widmer e dos bonitos acordes de violino da trilha sonora de James Newton Howard, tais recursos estéticos e técnicos soam, no fim das contas, como meros exibicionismos – o que nos faz imaginarmos se um corte de pelo menos uma hora não faria mais eficácia ao projeto. Sem falar que a decisão de colocar os personagens austríacos falando em inglês e os alemães em sua língua original, soa quase que como um insulto a inteligência do espectador, deixando vários momentos implausíveis – principalmente a cena do julgamento.
Enfim, em meio de algumas decisões questionáveis de seu grande realizador – que já fez filmes de níveis estelares como Atrás da Linha Vermelha e A Árvore da Vida – Uma Vida Oculta ainda é um filme apropriado ao momento em que nossa sociedade vive atualmente – afinal, a trajetória de Franz Jägerstätter não pode nunca ser esquecida – um símbolo de alguém que não sucumbiu à opressão de governos racistas e totalmente intolerantes – algo que é perfeito de ficar em nossas consciências para não baixarmos a cabeça para o que temos de enfrentar agora e daqui para frente – como dito pelo pai de Fani (Matthes), “Sofrer uma injustiça é melhor do que causar uma” – diante de fascistas e nazistas, não podemos esquecer que nada vindo deles será justo, portanto, mesmo que a luta seja difícil e penosa, nada é aceitável para admitirmos a postura desses movimentos monstruosos – mesmo que para tentar evitar isso, alguns precisem abdicar de sua paz e até mesmo da própria vida.
Possivelmente, o único e triste consolo ao sabermos de tudo que Franz e tantos outros passaram é imaginarmos e lutarmos para que um dia isso não exista mais.
Se você imaginar substituir a mesa de comida gigantesca que aparece para os personagens de O Poço por um carrinho de supermercado lotado de álcool em gel (o produto mais valorizado aqui no Brasil agora!), entenderá perfeitamente como as metáforas e simbologias desta produção espanhola para a Netflix são assustadoramente reais e atuais. Enquanto muitos se beneficiam por sua condição financeira superior, outros pagam pelas migalhas que o topo da pirâmide social imposta pelo capitalismo faz sobrar para eles – e, sem sutileza, o diretor Galder Gaztelu-Urrutia alfineta todo o sistema em que vivemos atualmente – seja qualquer um de seus “níveis” (como é dito no longa) – por fatores sociais, econômicos, culturais e religiosos.
Por mais óbvio que pareça toda a análise – e a palavra “óbvio” tem um significado até cômico, já que parece que o Sr. Trimagasi (Eguileor) a usa como um bordão – isso também é uma forma de demonstrar para muitos como esse desnível social é escancarado – que as diferenças socioeconômicas não são um mero exagero pregado por um grupo de pessoas – as exemplificações que O Poço passa são todas pontuais – há significados em praticamente todos os seus planos, enquadramentos e diálogos – isso, por si só, não é algo de que o filme possa se vangloriar tanto – afinal, recentemente podemos ver que o excesso de simbolismos em uma narrativa pode ser um inimigo também, como aconteceu com o terror Maria & João: O Conto das Bruxas – felizmente, os realizadores aqui acertam em apenas apresentar situações que forçam o uso da percepção e até opiniões do espectador – algo que sempre digo: toda boa arte tem o poder de conseguir atingir seu máximo resultado através da subjetividade.
Em uma trama onde todos os personagens (obviamente) representam algo, somos apresentados há um tipo de experimento de correção social em um futuro não muito distante – o poço do titulo nada mais é do que um tipo de clinica de reabilitação para diversos defeitos sociais, digamos assim – seja para criminosos ou pessoas que buscam algum desafio ou melhoria na vida – composto de inúmeros níveis, que possuem apenas um pequeno quarto, que são habitados, cada um deles, por duas pessoas – o aprisionamento destes recebe todos os dias a decida de uma enorme mesa de alimentos – descendo do topo até o fundo, o banquete, à medida que vai passando pelos níveis, vai ficando cada vez com menos alimentos – obrigando aqueles que estão abaixo a comerem, literalmente, restos de comida ou (nos casos extremos) recorrerem ao canibalismo – mas o detalhe é que, a cada 30 dias, os prisioneiros são trocados de níveis – podendo estar em um mês mais próximos do topo (onde tem mais comida) ou mais longe (onde a comida praticamente não chega) – quem acaba de chegar ao lugar é Goreng (Massagué), fazendo companhia para um senhor que já vive ali faz algum tempo, o frio e resmungão Trimagasi – a medida que os dias vão passando – e trocando de níveis – Goreng vai se dando conta do inferno que precisará enfrentar para sair de lá com vida – em meio de outros prisioneiros/moradores imprevisíveis e misteriosos.
Somente por essa sinopse, O Poço já seria uma obra um pouco diferenciada da maioria dos thrillers de suspense – mas o cuidado narrativo que seu diretor impõe ao trabalho é digno o suficiente para alcançar um nível reflexivo e imersivo em algo que realmente se torna perturbador – o que justifica as cenas sanguinolentas, como um tipo de reflexo da selvageria social que o mundo enfrenta – literalmente, sugerindo que muitos são obrigados a se alimentarem uns dos outros, devidos as condições em que vivem.
Aliado por um design de produção simples, mas eficaz, o filme consegue transformar o ambiente pequeno e simplório em algo bastante reconhecível para o espectador – embora todos os níveis tenham as mesmas características, é bastante curioso como os designers são criativos em adicionar detalhes diferentes cada vez mais insalubres conforme vamos chegando mais ao fundo do lugar – algo que as sinalizações do lugar também obedecem – seja a luz vermelha indicando apreensão ou perigo ou pelos efeitos sonoros do próprio alarme, assim como o ruído da mesa de comida descendo o poço – elementos que são propositalmente incômodos para atingir o espectador – assim como a sinistra trilha-sonora de Aránzazu Calleja, que parece usar barulhos de pratos, talheres e copos de vidro para compor algumas de suas melodias, como um tipo de rima com o medo misturado à satisfação quando a mesa aparece.
O elenco também cumpre bem seus papeis – se Ivan Massagué como Goreng consegue passar seu ideal de tentar ser justo e compreensível com os demais companheiros de confinamento, o destaque aqui fica mais para o veterano Zorion Eguileour como Trimagasi – conseguindo, com um tom de voz sarcástico e irônico, transmitir todo o seu desprezo pelos demais – não hesitando em cometer atrocidades para sobreviver – também merece menção a participação silenciosa de Alexandra Masangkay como a misteriosa e violenta Miharu, além de Antonia San Juan, que vive uma espécie de assistente social confinada no lugar.
Mas creio que todos esses bons atributos são só o principio de O Poço – o choque maior que sua trama pode transmitir é, sem dúvidas, através de sua critica e análises sociais e religiosas – que podem ser encaradas sobre diferentes prismas – e acredito que o espectador adverso a questões de luta de classes ou fanatismo religioso talvez não consiga apreciar com bons olhos esta obra – portanto, não leia os próximos parágrafos se ainda não assistiu o longa, pois comentarei sobre o que entendi do filme.
A primeira coisa (e mais escancarada e óbvia) são os níveis do Poço – representando as classes sociais mais abastadas nas partes de cima, a classe média mais ao meio e, claro, os mais pobres ao fundo; entretanto, esta metáfora simples ganha alguns contornos mais diferenciados – repare na questão de que funciona também como uma escala de renda/salário – a troca dos prisioneiros de mês em mês evidencia a questão da falta de empatia da sociedade – creio que todos já tiveram altos e baixos em questões financeiras de tempos em tempos, mas, lamentavelmente, muitos não se colocam no lugar dos outros – o que justifica perfeitamente o fato de quem está nos níveis mais superiores não ter a menor vontade de racionar a comida para os que estão em baixo – “quando eu estava lá em baixo não deixavam comida para mim, agora é minha vez de aproveitar”, diz um dos prisioneiros – afinal, como um outro deles diz, há comida suficiente para todos os níveis, mas os mais altos não pensam nisso, preferindo consumir tudo o que podem – novamente vamos nos lembrar das pessoas de melhor situação financeira estocando comidas e materiais de higiene aqui no Brasil, devido ao coronavírus.
Outro fator curioso é sobre a questão de ajuda ao próximo ou a “solidariedade espontânea” que a personagem de Antonia San Juan cita – o fato do lugar ter sempre duas pessoas por níveis ajuda a visualizarmos isso: no inicio, quando Goreng conhece Trimagasi, fica notório como o ancião visualiza a relação dos dois como uma “relação de troca” – “a partir de agora só vou lhe informar o tanto de coisas que você me informar” – um jeito mais discreto de mostrar como muito das relações humanas funciona na base da troca, literalmente – de fazer algo apenas para poder ter benefícios futuros; o que nos remete à um dos diálogos mais enigmáticos do longa, quando Goreng questiona que os “de cima” não estão racionando a comida para os “de baixo” e, por isso, é taxado de comunista por Trimagasi – e isso talvez nos mostre a questão religiosa inserida em todo o longa.
Goreng é, evidentemente, visualizado como Jesus Cristo. O simples fato de querer racionar comida ou achar soluções para a sobrevivência de outros é o suficiente para o rotularem de socialista – titulo que, com o fanatismo religioso da atualidade, seria colocado até mesmo em Jesus, caso vivesse nos dias de hoje, creio eu. O personagem de Massagué, além de demonstrar em sua aparência as atribuições físicas que o filho de Deus recebeu pela cultura religiosa ocidental (a barba, principalmente), representa a pureza – ele entrou no Poço por livre e espontânea vontade, apenas para conseguir um “certificado” – como se sua busca por significado na vida fosse o mais importante – o fato dele ter escolhido um livro, como seu único objeto a ser levado para o lugar nos remete a sua opção pela literatura, ou mais diretamente, pela inteligência – e, sem dúvidas, o fato de ser Dom Quixote tem muito a ver com o que enfrentará – ora, Dom Quixote envolve um homem que tem que enfrentar inimigos imaginários e fora de sua época – a desigualdade social não seria um inimigo invisível? Ou a pregação de valores religiosos ultrapassados e infundados pelo conservadorismo também não?
Ainda traçando algum paralelo com o livro clássico de Miguel de Cervantes, temos em Trimagasi um tipo de Sancho Pança – ele tenta mostrar para Goreng a realidade da situação do Poço – representando, junto a isso, a visão de mundo mais para o lado da direita conservadora ou alguém que aceita as condições precárias do sistema capitalista e do individualismo – o fato dele ter escolhido a sua super faca cortadora como o objeto que levou para o lugar indica isso – sem falar que o crime que cometeu acidentalmente para ir ao Poço foi em decorrência de sua fixação pelo consumismo – mas já na assistente social de Antonia San Juan é possível visualizarmos um lado mais humanitário – ela divide sua comida com seu cachorro-salsicha (obviamente, mostrando também algum tipo de critica ao abuso que os animais sofrem para serem consumidos pelos humanos – e o triste fim do cãozinho confirma isso), além de tentar racionar e conscientizar os demais a manter o alimento para todos – sendo rechaçada pela ganancia (inclusive pelos “de baixo”) – se entristecendo pelo fato de que somente pela ameaça de Goreng seu pedido é atendido; fora que ela é também voluntária – afinal, era funcionaria do Poço – e, acometida por um câncer, ela vê na ajuda ao próximo um tipo de tentativa de “redenção”, mesmo que imperfeita – tanto ela como Trimagasi acabam sendo usados como um jeito de representar o bem e o mal/emoção e razão dentro de Goreng – uma representação mais simplória de sua consciência – e então surge Miharu e sua fama de louca e assassina durante a suposta busca por sua filha – que ninguém viu e não acreditam que exista – um tipo de figura de linguagem que mostraria como muitas mulheres são subjugadas pela sociedade, que preferem ataca-la do que ajuda-la – seu lado mais humano, em meio a loucura a qual é submetida, é demonstrado pela gratidão que passa para Goreng, por ele ter a ajudado – e a sugestão de que teria feito sexo com ele também mostraria uma espécie de ligação humana entre os dois – contradizendo a imagem de “monstra” da mulher – taxada assim pelo simples fato de tentar garantir a sobrevivência da filha (que falarei mais a frente).
Entretanto, O Poço ganha um contorno mais forte em sua alegoria religiosa quando surge o personagem de Emilio Buale – Barath é aquele tipo de religioso que não faz mal a ninguém – mas, infelizmente, acaba sendo manipulável – e quando tenta subir com uma corda para o nível acima e é questionado se seu Deus é o mesmo dos que estão em cima, fica evidente como a questão religiosa no mundo é segregadora – e de como a intolerância religiosa ou até mesmo o racismo (afinal, Barath é negro) é inserido entre as classes sociais – não a toa, ele acaba literalmente levando merda dos moradores do nível superior ao que estava.
A partir daí, o longa traça uma descida que representa a tentativa de Jesus provar para a “Administração” que o ser humano vale a pena – que pode existir bondade nas pessoas – sendo assim, é visível que o diretor tenta mostrar os integrantes do nível zero como um restaurante de alto nível, com comidas caras e exorbitantes – o que reflete a situação financeira dos grandes empresários detentores das maiores riquezas do planeta – estes, não trocam de níveis de mês a mês – são os que controlam todos que estão abaixo e o que devem consumir (ou até mesmo o tanto que devem consumir) – mostrando que, daí para baixo, ninguém é, literalmente, mais privilegiado do que eles – mas é claro que a “Administração” pode ser vista também como Deus – um Deus do velho testamento, talvez. Mais castigador e rígido – que quer alguma prova de que a humanidade pode ser boa.
Sendo assim, a descida que Goreng e Barath tentam fazer, para deixar os 50 primeiros níveis ficarem apenas um dia de jejum, enquanto que sobraria mais comida para os de baixo, representa, basicamente, a vida de Jesus – que tentava extrair a bondade e justiça das pessoas – os dois acabam tendo que lutar para que os mais gananciosos não toquem na comida, da mesma forma que precisam impedir os mais pobres de exagerarem no consumo; mostrando como o sistema atual em que vivemos é tão selvagem que a violência acaba sendo algo inevitável em certas situações, lamentavelmente – diante dessa alegoria, Galder Gaztelu-Urrutia introduz alguns detalhes riquíssimos: como os pecados capitais (a avareza do prisioneiro com a cama cheia de dinheiro, a luxuria do casal que faz sexo acima do nível de Barath ou os dois homens numa pequena piscina de plástico, ou pela própria gula, etc), as interpretações bíblicas pouco convincentes (o amigo de Barath que lhe dá a ideia de usar o pequeno doce como a “mensagem” para provar que existe bondade nos moradores do Poço) ou a constatação de Goreng de que existem muito mais níveis para baixo do que ele imaginou – uma reflexão forte sobre as classes sociais mais desfavorecidas que nós nem ao menos conhecemos ou imaginamos como são – afinal, nem todos sabem o que é conviver com a fome, como muitos países africanos convivem ou como as crianças da Síria lidam com a guerra, por exemplo.
Ao chegarem ao nível final (o 333, que provavelmente representa a santíssima trindade – Pai, Filho e Espirito Santo), Goreng e Barath encontram a filha de Miharu – e é interessante constatar que ela querer esconder a filha ali é justamente por ser um lugar em que ninguém queria estar – longe da ameaça dos homens – e assim, Goreng finalmente entende que a mensagem é a própria garota – um tipo de forma de mostrar que sacrificar sua vida pela de uma criança (ou a humanidade, igual na história de Jesus) é algo muito mais humano do que ficar um único dia de jejum – ou um único dia sem lucrar, como alguns empresários estão preocupados no momento aqui no Brasil – mesmo alguns deles tendo até bilhões em suas reservas.
A menina acaba sendo a resposta para o sistema – uma resposta para a Administração/Deus – de que, em meio a todas as precariedades em que vivemos, temos capacidade de sermos pessoas com uma solidariedade espontânea e sem vaidades – sem querer apenas se exibir (como algumas celebridades ou empresários também fazem por aí) – o que explica porque a consciência de Goreng (representada pela imagem de Trimagasi) o convence de que ele não deve subir junto com a menina – seu sacrifício torna-se parte da mensagem.
Todos esses detalhes fazem O Poço se mostrar um filme que não tem medo de escancarar suas alegorias – a intenção é realmente mostrar que muitas coisas óbvias estão sendo esquecidas – que a falta de governantes altruístas e responsáveis é um fator determinante para que não nos conscientizemos de que vivemos todos em um lugar brutal e extremamente desigual – onde o funcionamento do mercado parece ser mais importante do que nossas vidas – como dito logo no inicio, “existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem” – diante dessa crise do Covid-19, é hora de notarmos que nossos “representantes” não estão preocupados nem um pouco naqueles de baixo, e nem naqueles que acabam caindo. Uma triste reflexão que este longa da Espanha (um dos lugares com mais contaminados pelo coronavírus) quer tentar nos passar – antes que nosso mundo vire de vez algo idêntico ao que Goreng e seus companheiros enfrentam.
O cinema sempre teve e (creio eu) sempre terá uma função social. Quando assisti Contágio pela primeira vez nos cinemas em 2011, não me dava conta de que a ameaça viral que seus personagens enfrentavam poderia ser uma coisa pertinente na vida real – as noticias sobre gripe suína ou a tal da MERS, na época, passavam longe de me amedrontar – o que, provavelmente, contribuiu para que eu não captasse toda a urgência e critica que o diretor Steven Soderbergh (de Traffic, Erin Brocovich e Sexo, Mentiras & Video-Tape) e o roteirista Scott Z. Burns queriam passar.
Revendo agora, noto como nosso estado emocional e social influi na experiência de assistir um filme. Não seria exagerado dizer que os realizadores do longa foram quase que proféticos – existem inúmeras semelhanças com a nossa realidade de combate ao coronavírus – seja pela própria origem da doença na história (que curiosamente tem a ver com um morcego também) ou pela reação pública e as medidas para enfrentar a disseminação do vírus – e, pasmem – o que poderia soar em filmes de zumbi como soluções forçadas ou irreais, tornam-se aqui absolutamente verossímeis – tão real que eu acharia importante este filme ser exibido várias vezes nas emissoras de TV’s do país, como ferramenta de conscientização sobre a doença.
Apresentando vários personagens, em diferentes regiões do mundo, Contágio começa mostrando a norte americana Beth Emhoff (Paltrow), em viagem de trabalho a Hong Kong – após ir em um cassino, ela retorna para os Estados Unidos – em menos de dois dias, começa a se sentir terrivelmente doente – coriza, tosse, febre, aversão a alimentos e líquidos, convulsões – de fato, mais perigoso que o COVID-19 – o que assusta seu marido, Thomas (Damon), que imediatamente a leva para o hospital e descobre que ela esta infectada por um vírus novo e desconhecido – que, em pouquíssimo tempo, se espalha para os moradores da cidade, para todo o estado e, em seguida, todo pais – além de estar surgindo em outros países – além de Hong Kong, Inglaterra e França começam a relatar casos da doença – o que faz o responsável em saúde pública norte americana Ellis Cheever (Fishbourne) chamar a Dra. Erin Mears (Winslet) para investigar o caso – enquanto que a representante da Organização Mundial da Saúde, Leonora Orantes (Cotillard) parte para a Ásia para verificar o estado das vitimas de lá – em meio a isso, o blogueiro Alan Krumwiede (Law) tenta investigar o caso, apontando supostas irregularidades nas medidas tomadas pelo governo, usando teorias de conspiração para tentar provar suas suspeitas.
Didático em apresentar como o vírus se espalha facilmente, o longa é beneficiado por um trabalho de edição e montagem primorosos – onde closes em mãos se tocando ou relando em diversos objetos de cena, tornam-se elementos de tensão – uma maneira marcante de exemplificar o crescimento de uma ameaça invisível, mas letal – os enquadramentos e a direção de fotografia optam por tomadas fechadas, mesmo que em locais abertos – ainda inserindo uma tonalidade esmaecida e fria, a fim de causar uma claustrofobia – evidentemente, como forma de simbolizar a “prisão” que o vírus proporciona aos personagens – algo que a ótima e tensa trilha-sonora de Cliff Martinez também auxilia – ao utilizar acordes eletrônicos com várias linhas de baixo sintetizadas, as músicas conseguem conferir peso e tensão crescente nas cenas.
Contando com um elenco de estrelas que realmente esbanja talento, o roteiro consegue explorar e dar funções criticas eficientes para cada um deles, entrelaçando de forma bem ritmada cada uma de suas histórias – Soderbergh é feliz em representar varias camadas sociais durante a trama – seja pelo norte americano comum de classe média – o personagem de Matt Damon e sua neura (totalmente justificável) em preservar a saúde da filha (Anna Jacob-Heron), além da maneira como se sente preso e impotente em casa, diante da situação da pandemia - o representante público do governo vivido por Laurence Fishbourne, que sente a pressão pública e particular de tentar buscar uma solução para o problema; o que nos leva a questão de quem é ou não privilegiado em situações como essa – sem falar na forma como retrata a luta e sacrifício dos profissionais da saúde e ciência para evitar mais mortes – seja pela cientista vivida por Jennifer Ehle e a médica de Kate Winslet – cuja ambição e determinação tornam-se comoventes pelo seu destino – enquanto que na personagem de Marion Cottilard somos apresentados as pessoas que mais sofrem em meio ao caos de uma contaminação em massa: os mais pobres – os últimos a serem ouvidos ou socorridos, diante da divisão de classes que o mundo capitalista impõe.
Mas, sem dúvidas, um dos personagens mais importantes é o de Jude Law – e creio que através dele temos uma ligação ainda maior com a nossa realidade atual: a questão da desinformação – em um mundo onde noticias falsas se propagam mais rapidamente que os vírus, o papel da suposta imprensa independente torna-se contraditório – o digital influencer vivido por Law não se abala em divulgar dados infundados (sem nenhuma base cientifica) apenas para ganhar visualizações em seu blog (ou canal no YouTube) – atirando teorias como ciência comprovada – o que, consequentemente, se torna influencia para milhões de pessoas que o assistem e seguem – creio que só faltou mencionar que Alan é um terraplanista, já que ele é adepto da teoria de que a indústria farmacêutica dissemina doenças no mundo para vender seus remédios – ou questiona a eficácia dos medicamentos – se para você isso não se assemelha com os estapafúrdios movimentos anti-vacina que temos aqui no Brasil ou com grupos teóricos de conspiração – além de outros que relativizam as consequência da pandemia atual – creio que não moramos no mesmo país.
O longa somente perde força por não dar tanta atenção ou melhor solução para algumas de suas linhas narrativas – a personagem de Cotillard é um exemplo, que surge no primeiro ato e depois só no terceiro, com uma solução um tanto apressada e pouco explorada sobre as crianças que acaba sendo forçada a ajudar – um tipo de critica mais simplória à falta de empátia do sistema para ajudar os mais humildes – sem falar que não deixa de soar um pouco inverossímil o fato do personagem de Matt Damon ter contato direto (por dois dias) com dois infectados e não pegar o vírus – alegando uma imunidade pouco provável – algo que só é compensado pela forma realista com que seu personagem tenta manter a filha a salvo – por mais absurdo que pareça ele expulsar o namorado da moça a força, segurando um rifle na mão.
Evitando clichês que vimos em trabalhos mais exagerados sobre contaminações em massa – como no mediano Epidemia, de 1995 – Contágio capta ainda o caos socioeconômico que a pandemia traz para a sociedade norte-americana, mostrando a ineficiência das politicas públicas de saúde dos Estados Unidos, se tornando um filme quase que obrigatório agora por suas soluções realistas e detalhadas de como uma ameaça viral afeta o mundo inteiro – em meio de figuras públicas que classificam uma doença que já matou mais de 18.000 pessoas no mundo todo (até este exato momento em que escrevo, em 23/03/2020, às 22h15) como uma “gripezinha” ou de “histeria”, é aqui que o cinema e o entretenimento cumprem suas funções de ajudar a trazer luz e reflexão para as pessoas – e, através de seu genial e revelador plano final, traz uma resposta ao espectador que só mostra que o problema da saúde mundial não é culpa de um animal ou de uma nação especifica – o que nos lembra da xenofobia com que os chineses estão sendo vitimados hoje – Soderbergh deixa bem claro que o problema está no ser humano – em sua negligência com o estado social do próximo e de sua exploração e destruição da natureza.
Logo em sua introdução, Dois Irmãos nos apresenta ao seu universo, onde seres mágicos e mitológicos, como ciclopes, elfos, orcs, duendes, dragões e vários outros tipos de criaturas fabulescas convivem livres, em um tipo de terra média, onde o uso de suas magias ou feitiços são liberados – tendo apenas que se esforçarem e aprenderem a utilizá-los com bons propósitos – entretanto, quando a tecnológica começa a ganhar forma, tais poderes passaram a soar obsoletos, fazendo com que seu uso (ou o aprendizado para uso) seja algo ultrapassado – tornando-se muito mais fácil para seus habitantes se apoiarem na modernidade – seres metade homem, metade cavalo usam carros; fadas, mesmo com asas, andam de moto – e todo o conhecimento de seus antepassados fica agora apenas como “mitologia” – ou “lendas”.
De uma maneira muito sutil (e delicada), o diretor Dan Scanlon (também um dos autores do roteiro) surpreende por sua abordagem versátil e encantadora – inserindo um subtema realmente atual: se você substituir “magia” por outros elementos como “cultura”, “história” ou “tradições”, notará o poder que esta nova animação da Disney/Pixar consegue atingir – algo bastante pertinente com nossa realidade, onde boa parte da sociedade parece querer esquecer de nossas origens – tanto as culturais, quanto as sociais – enfim, por muitas vezes, não nos lembramos de nossas essências, ou as características que formam nossos aspectos de moralidade, identidade e caráter – algo que os Dois Irmãos do titulo nacional (já que não tem nada a ver com o titulo original, que significa "adiante") lidam sempre em seu cotidiano.
Enquanto o mais jovem, Ian (voz de Tom Holland no original), precisa lidar com sua insegurança para aprender a dirigir ou lidar com seus companheiros de escola – além de se sentir triste pela ausência do pai, que faleceu pouco antes dele nascer – o mais velho, Barney (voz de Chris Pratt) é um tipo de ativista, que quer manter viva a magia que seu povo tanto usava séculos atrás – mas que agora é esquecida pela população – com sua mãe solo, Laurel (voz de Julia Louis-Dreyfus), precisando cuidar dos dois filhos de temperamentos e personalidade diferentes, os dois acabam recebendo um antigo cajado mágico como presente, que seu pai guardou antes de falecer, podendo com isso faze-lo reviver por um dia – o que faz com que os dois – além da mãe e da “empresaria” Die Manticore – embarquem em uma aventura atrás de uma preciosa pedra mágica que completara o feitiço que trará o pai deles de volta por 24 horas – inteiro, já que só conseguiram trazer as pernas dele de volta, por enquanto.
Sabendo dosar bem o humor e a emoção - na maior parte do tempo - a abordagem do diretor é satisfatória justamente por exigir uma atenção as características e comportamentos de cada um de seus personagens – é preciso aplaudir o cuidado na criação das personalidades de Ian e Barney – evidenciando uma multifacetação que os torna absolutamente memoráveis – e, se existe um ou outro momento um pouco mais exagerado para emocionar, o diretor compensa com outros extremamente sutis e delicados – repare na forma como Ian tenta “conversar” com o falecido pai, através de uma gravação em fita K-7 – ou como Barney se sente empolgado quando finalmente embarca na jornada atrás da pedra, por conseguir se sentir ativo e vivenciando o que acredita – da mesma forma que este também se sente triste ao notar que o fato de ser um tipo de militante pela magia acaba fazendo-o ser julgado pelos demais como um delinquente ou um “inútil” – enfim, o que conduz o longa é a relação dos dois – e é impossível não se emocionar ao termino da corrida deles contra o tempo, justamente pela discrição que é mostrada – sem apelos emocionais óbvios, realmente – a lista que Ian faz sobre coisa que precisa fazer com o pai quando este voltar, é um belo exemplo disso – e fico muito feliz com o cuidado do estúdio em traduzir para nossa língua as anotações e escritas, o que dispensa o uso de tradutores ou legendas – causando uma melhor imersão na história.
Essa questão de descoberta e desconstrução para vida também se estende aos coadjuvantes – a criatura meio leão, meio dragão (não consigo me lembrar o nome de sua espécie), Die Manticore (voz da Octavia Spencer no original), é um exemplo mais claro da buscar pelas origens e personalidade própria – e a critica contra o uso desenfreado da tecnologia (ou leia-se como o próprio capitalismo), mostrando ela como alguém que precisou abandonar suas tradições para se adequar ao mundo – não a toa, ela cuida de uma espécie de lanchonete temática, precisando lidar com avaliações do seu estabelecimento em aplicativos de comida – mesmo que um tanto exagerado aqui, já que ela se rebela em poucos minutos dessa condição – sem falar na boa construção da mãe deles, por apresentar Laurel como uma mãe solo corajosa, disposta a proteger de qualquer forma os filhos; e ainda por mostra-la com um namorado, o policial Bronco – indiciando que uma mãe viúva, obviamente, pode encontrar novos relacionamentos para vida – não deixa de ser algo notável que um filme para o público infantil consiga ser tão critico – e de maneira realmente discreta – o que não atrapalhará a apreciação de sua trama pelos pequeninos – que provavelmente darão muitas gargalhadas durante a sessão – enquanto que seus pais poderão dar alguns soluços em meio ao choro espontâneo que Dois Irmãos pode provocar.
Ainda sobre inserir um conteúdo mais adulto por trás de sua boa história, o longa ainda encontra tempo para suaves ponderações sobre homossexualidade e feminismo – repare no pequeno dialogo de duas policiais com os irmãos usando magia para se parecerem com o Bronco (voz de Mel Rodrigues) – onde uma delas diz: “também tenho problemas para cuidar dos filhos da minha namorada” – ou quando Ian, Barney e as pernas de seu pai encaram algumas pequenas fadas que precisam lembrar que suas asas servem para voar – são pequenas doses de diversidade inseridas de modo funcional, que vão além de um discurso de politicamente correto – mas ainda assim necessário para que nossa sociedade se dê conta de evitar preconceitos.
E, mais uma vez, esse cuidado com detalhes também se apropria do design de produção e dos animadores digitais – conferindo inúmeros detalhes, que ajudam na composição dos personagens e do universo em que vivem – coisas como um posto de gasolina chamado “Swamp Gas” (Gasolina do Pântano) ou a forma como mostra um céu ao anoitecer com duas luas, ou as ruas e carros de uma metrópole – realmente, muito realista – assim como coisas mais intimas, como o quarto de Ian, com vários pôsteres e roupas jogadas no chão, evidenciando o descuido que tem no dia a dia, sem necessitar de mais explicações – ou a van de Barney, que se torna, realmente, um personagem – com seu nome fazendo referência a esposa do Rei Arthur, Guinevere – fora o cuidado na animação para mostrar as fotos do falecido pai dos dois – sem mencionar o jeito simpático e bonito como as pernas do pai se “comunicam” com os filhos, através do tateado ou de passos de dança. Tudo isso aliado a uma paleta de cores lindíssima – tanto pelas paisagens que apresenta, tanto até mesmo pelos tons de cores e detalhes nas peles de cada espécie que aparece em cena – vide a barba por fazer de Barney ou o cabelo enrolado de Ian, por exemplo.
São esses detalhes que compensam até mesmo um terceiro ato um pouco apressado em sua resolução ou na forma como introduz uma ameaça mais monstruosa (digamos assim) – onde uma certa critica a alienação em estudos parece ser colocada – mas não muito bem expressada, creio eu – enfim, no final da sessão o choro será difícil de ser evitado, mas será verdadeiro – mostrando como a luta desses dois adoráveis irmãos reside em uma busca por superar a falta que um ente tão querido faz em suas vidas – o que acaba por ajuda-los a entender suas origens e, consequentemente, o que realmente são e o que os fazem ter uma ligação fundamental para que sirvam de alicerce um para o outro – Disney e Pixar mais uma vez atingem nossos corações com outra história belíssima e inteligente.
Não é de hoje que o cinema mainstream enfrenta uma crise de criatividade – o excesso de refilmagens, reboots e adaptações repetidas, sem dúvidas, desestimulam boa parte do público a comprar seus ingressos – mas, é claro, que existem exceções – e fiquei bastante satisfeito em notar que o diretor (e também roteirista aqui) Leigh Whannell conseguiu atualizar de uma maneira bastante séria e tensa está história clássica do lendário escritor H.G. Wells – suas decisões de protagonismo, temas de fundo e algumas metáforas e criticas sociais fazem toda a diferença – tornando O Homem Invisível em um assustador estudo da realidade que muitas mulheres passam sob a pressão de figuras masculinas opressoras e manipuladoras.
Embora seja uma adaptação do livro de 1897 – que tinha uma versão clássica estrelada por Claude Rains em 1933, um marco na história dos efeitos especiais – a trama agora tem quase nada em relação à história original – tirando o sobrenome do cientista e uma breve vista de um homem enfaixado (marca registrada do filme dos anos trinta) em um hospital, a história parte de uma atualização dos conceitos originais – se o homem invisível de Rains tinha aspectos da filosofia de Nietzsche, especificamente da obra “O Super-Homem”, onde é imaginado um cidadão que, com um poder grande adquirido, o usaria apenas para seu beneficio, subjugando os demais – e fazendo alusões até mesmo a “dominar o mundo” – está nova versão viaja por um caminho mais intimo, mas nem por isso menos perigoso – para isso, se o protagonismo antes era do personagem-título, agora é sob o ponto de vista da vitima.
Partindo de uma metáfora bastante simples – obviamente, o homem invisível representa a figura de homens que não são vistos (ou notados) pelo resto da sociedade – mas se tornam extremamente perigosos e torturadores (e bem visíveis) para as mulheres, as quais eles abusam – quem passa por essa traumática situação é a arquiteta Cecilia Kass (Moss), vivendo em um relacionamento perigoso, praticamente presa na luxuosa casa do cientista Adrian Griffin (Cohen) – ela acaba por fugir do local, recebendo, dias depois, a noticia de que seu ex-namorado cometeu suicídio – deixando uma herança para ela, que somente será recebida caso ela não cometa nenhum crime ou não seja considerada mentalmente incapaz – a partir daí, o inferno que vivia com o ex-companheiro acaba por aumentar – com diversos incidentes atrapalhando sua relação com a família que está lhe dando abrigo agora – o policial James (Hodge) e sua filha Sydney (Reid) – além de com sua irmã (Dyer) – Cecilia suspeita que Adrian forjou seu suicídio e encontrou uma forma de ficar invisível, para prejudica-la e enlouquece-la – fazendo todos a sua volta suspeitarem que ela está realmente perdendo sua sanidade.
Nesse clima sufocante de tensão psicológica, Whannell acerta a mão por conduzir a trama sem pressa – ele desenvolve o drama, a pressão e o medo que Cecilia tem, não só pela ameaça invisível, mas pelo mundo todo – pois veja a sugestão das situações: a personagem de Elisabeth Moss passa exatamente pelo drama que diversas mulheres sofrem, ao tentarem pedir ajuda contra uma ameaça que ninguém quer saber ou ver – sendo taxada de louca, apenas pelo fato do criminoso se esconder do resto da sociedade – as tristes estatísticas aqui no Brasil, por exemplo, mostram como muitas perdem a vida devido a isto – por mais que ela tente explicar o que acontece, acaba sendo sempre questionada por todos – como ao tentarem justificar o comportamento do agressor pelo fato dele ser rico e que, por isso, Cecilia estava com ele só por interesse financeiro – parece absurdo, mas isso acontece com as mulheres, de fato – inclusive, outras mulheres, lamentavelmente, se esqueceram de que esta infeliz condição foi imposta pelo machismo estrutural na sociedade – o roteiro do próprio diretor é inteligente também em mostrar como Adrian tenta desestabilizar Cecilia em todas as suas camadas da vida – seja atrapalhando sua carreira, suas amizades e familiares – além de inserir uma sutil (mas verdadeira) critica ao fato de homens manipularem ou forçarem as mulheres a maternidade – numa espécie de afronta da sociedade patriarcal contra a independência feminina.
Contando com bons atores coadjuvantes, como o próprio Oliver Jackson-Cohen como Adrian, passando bem seu olhar de opressor e desprezo – além de Aldis Hodge como James e a menina Storm Reid como Sydney – o destaque maior do longa é, com certeza, na atuação excelente de Elisabeth Moss – a atriz consegue ser versátil ao ponto de exibir traços da personalidade de Cecilia que estão sendo destruídos pelo relacionamento tóxico no qual se envolveu – repare como ela consegue ainda passar um ar de tentar ser feliz em meio ao caos, quando resolve presentear os amigos que lhe ajudaram ou quando fica com pena do cachorro de seu ex – além disso, suas expressões e olhar perdido marcam perfeitamente a sensação de perseguição e fobia em sair para o mundo – mostrando como é uma grande atriz, Moss transforma um simples caminhar até a caixa de correio em um modo de visualizarmos como sua personagem se tornou frágil em encarar o mundo, devido a presença de um homem opressor em sua vida – sem falar da forma como encara, literalmente, a presença do ser invisível – pois veja o desafio da atriz aqui, ao ter que atuar para o “nada” ou, provavelmente, com alguém vestido de verde, que seria “retirado” na pós-produção – um trabalho marcante desta grande atriz.
Nesse clima de suspense crescente, o longa também acerta em suas concepções e ideias visuais – e creio que o maior acerto aqui seja a discrição – ao evitar dar explicações improváveis para um fato tão improvável como a invisibilidade, o roteiro foge de diálogos expositivos e absurdas tentativas de justificar fatos sem muita base técnica – algo que tanto O Homem Sem Sombra de Paul Verhoeven e o filme de 1933 tinham – a forma como é adquirida aqui é um tanto absurda ainda, mas achei mais plausível do que as experiências com uma planta que simplesmente tira a cor das coisas – sem falar que o modo como a direção de arte e a equipe de efeitos especiais exemplifica as lutas e “pegadas” do homem invisível são extremamente bem feitas, optando por um realismo que assusta – evitando sustos desnecessários e conseguindo realmente surpreender em certos momentos – como uma certa cena em que um objeto surge do nada durante uma conversa e causa algo terrível – como estamos diante de uma ameaça que não podemos ver, o trabalho de edição de som acaba sendo fundamental – com resultados excelentes, é recomendável assistir o longa no cinema ou em um bom sistema de som, para causar uma imersão e tensão maior – algo que também é reforçado pelo boa trilha sonora de Benjamin Wallfisch – criando toques de um contra baixo sintetizado e assustador – além de inserir violinos que dão mais peso e também um certo alivio para alguns momentos de medo, tristeza e desespero de Cecilia.
Pecando apenas por algumas soluções na trama que soam um tanto forçadas – como a ligação do irmão de Adrian, o advogado Tom (do Michael Dorman) – ou quando Cecilia precisa voltar para a casa do agressor para conseguir provas contra ele – mesmo que tenha uma função para complementar a trama mais tarde – ainda assim, o filme se sobressai por dar uma solução um tanto ambígua, mas satisfatória, para a trama – especialmente sobre tocar no assunto de como as mulheres devem se defender de homens como Adrian – e até que ponto a justiça é realmente justa para esse tipo de situação – ou o fato de que a sociedade precisa ver tudo escancaradamente para tirar suas supostas conclusões – vide a forma como o filme sempre insere imagens de câmeras de segurança, como se fosse o olhar da sociedade, digamos assim – algo que Whannell se aproveita bem para compor o último ato.
Junto da direção acertada e da magnifica atuação de Elisabeth Moss, O Homem Invisível é um suspense grandioso e capaz de fazer o espectador pensar sobre o tema que aborda – dando uma pequena noção do drama terrível de inúmeras mulheres que sofrem em relacionamentos abusivos.
Entre essa onda de se apropriar de histórias clássicas dos contos de fadas, em filmes como Branca de Neve e o Caçador ou João & Maria: Caçadores de Bruxas, é uma notícia boa que este segundo longa-metragem do diretor Oz Perkins (filho do falecido Anthony Perkins, o Norman Bates do clássico Psicose) tenha, em sua proposta, um pouco da ousadia que vimos em projetos de cineastas tão promissores quanto Robert Eggers (A Bruxa, O Farol), Ari Aster (Hereditário, Midsommar) ou até mesmo Jordan Peele (Corra, Nós) – ficando longe de elevar tudo para um mero filme de ação, como nos exemplos citados. Mas, infelizmente, o lado ruim é que Perkins e o roteirista Rob Hayes não tem a mesma visão para inserir seus temas bem antenados com sua trama, que, ao mesmo tempo que foge de elementos batidos do terror, se choca com uma falta de novidades em sua abordagem temática.
Aliás, logo no titulo já é possível notar um pouco do que se trata: o nome de Maria antes de João, que era ao contrario no conto clássico – fazendo aqui surgir o tema sobre emancipação feminina, com a sociedade encarando as mulheres independentes como bruxas – a falta de ineditismo surge aqui, pois Robert Eggers já trabalhou com isso em A Bruxa – mas, felizmente, Perkins está disposto a traçar novos paralelos, que explora às vezes com eficiência e outras com superficialidade – uma das vantagens, é tentar considerar a suposta história original do conto – a versão mais conhecida, dos Irmãos Grimm, era bastante suave, convenhamos – mas a lenda em qual se baseava tinha aspectos bem mais sinistros – como ao explorar os efeitos que a Idade Média causava sobre as mulheres, mais especificamente as mães e a criação de seus filhos – assim como a pobreza, que gerava o fantasma da fome – sem falar da Peste Negra, que quase acabou com a humanidade – tais pontos são explorados no filme, em maior ou menor grau – portanto, não estranhe que muitas passagens e caminhos da história sejam bem diferentes das versões mais infantis do conto.
Embora com características de outra época, a história se passa (provavelmente) no século XVIII, contando como os irmãos Maria (Lillis) e João (Leakey) foram expulsos de casa e precisaram entrar em uma floresta para encontrarem um novo lar – perdidos e com fome, encontram uma misteriosa casa, onde uma estranha senhora (Krige) os convidam para entrar e morar – planejando secretamente engorda-los para poder come-los mais tarde.
É interessante como o diretor se dá bem quando faz reflexões sobre as partes da trama que realmente são do conto conhecido – a forma como a Bruxa “faz” suas comidas, por exemplo, é algo sinistro e realmente horrendo – mas torna-se um tanto forçado quando ele tenta inserir “novidades”, como o padre que acaba ajudando os dois a entrarem na floresta – talvez uma critica superficial a igreja católica e sua capacidade de querer proporcionar o bem, mas ao mesmo tempo de julgar e punir os indivíduos – o padre os ajuda, mas não se importa em expulsa-los do local onde estavam querendo abrigo – ou Maria e João consumindo cogumelos na floresta, como se estivessem realmente drogados, mostrando o destino de crianças sem a proteção familiar por perto, se perdendo com as drogas, ou todo o inicio, contando a história sobre a “menina do capuz rosa”, que serve como exemplificação do fardo que muitas das mulheres precisavam para viverem – e, nisso, o filme se difere um pouco do trabalho que citei de Robert Eggers, em tentar mostrar também como a vida não é nada gentil com as mães solo, como mostrado pelo desespero da mãe deles, que não consegue cria-los, temendo que morram de fome pela pobreza em que vivem – mas é curioso que isso seja explorado por um outro lado, como na má criação dos filhos ou negligência por parte dos pais – seja por uma mãe que não suporta o sacrifício do pai pela filha – por um ciúmes infundado – ou o fato de Maria se sentir pressionada em ter que cuidar do irmão menor, pois ele ainda não sabe muito sobre a vida – mostrando como muitas vezes a sociedade impõe o papel de cuidadora somente para a mulher, não se importando tanto com o fato do homem (ou o pai mesmo) não estar por perto para ajudar na criação. Ou seja: basicamente, Maria e João é sobre como as mulheres devem usar seu “poder” – se a questão parece ambígua inicialmente para Maria, na Bruxa vivida por Alice Krige temos o lado obscuro, onde decisões erradas podem gerar comportamentos extremos e perigosos – aliás, a atriz capta de forma sinistra a mentalidade maléfica da personagem, de forma realmente marcante, por demostrar a inteligência e o controle que tem sobre a situação.
Se o pequeno Samuel Leakey tem capacidade de expressar bem a curiosidade e duvidas que João tem sobre o mundo novo em que se aventuram – como o fato de querer ser lenhador, mesmo sem saber como usar o machado – é Sophia Lillis que realmente se sobressai em uma bela composição, ao transformar Maria em uma personagem multifacetada, que demonstra perfeitamente sua frustração e incertezas sobre as coisas que lhe são impostas – como no inicio, ao ficar indignada com o machismo e assédio de um homem de classe rica que a queria para cuidar de sua mansão, mas com segundas intenções – o mesmo vale para a forma como a jovem atriz expressa bem sua irritação com o irmão lhe questionando sobre tudo – mas ainda assim conseguindo revelar o amor que tem por ele, temendo as ameaças e “falsos presentes” que a vida costuma oferecer para os mais fracos e ingênuos – desde It – A Coisa eu já dizia que ela seria uma grande atriz em Hollywood.
Maria, de fato, é o carro chefe do filme – até mesmo sua aparência aqui serve como homenagem do diretor ao terror psicológico, já que tanto sua palidez quanto seu cabelo curto lembram muito a personagem de Mia Farrow no clássico O Bebê de Rosemary – e, falando da parte visual, Maria e João é um deslumbre: a fotografia belíssima de Galo Olivares é realmente digna de aplausos – evita-se o uso de filtros escuros – algo que muitos abusam para sequências ambientadas em locais com pouca iluminação – o tom de luz de velas é algo primorosamente captado, como no quarto onde Maria e João buscam abrigo e em toda a casa da Bruxa, fazendo sombras assustadoras – algo que tem o apoio do inteligente design de produção de Jeremy Reed, se apoiando em rimas visuais, como o fato de representar o perigo e mistério através de triângulos – como visto quando a menina de capuz rosa é amaldiçoada ou no próprio formato da casa na floresta – e a ideia de filmar o longa com o formato de câmera mais quadrado (próximo das TV’s antigas) é eficiente para demonstrar o tom claustrofóbico no qual os personagens se inserem, dando dimensões grandes para a floresta, por exemplo, mas ainda assim mantendo o enquadramento centralizado nos atores, dando uma impressão de estarem em um local mais fechado – o que condiz com as sensações em que passam – ao abrir o filme em widescreen, o diretor tenta sugerir que uma mulher com mais poder teria um mundo mais “aberto”, digamos assim – e o trabalho sonoro é discreto, contando com o apoio de uma boa trilha-sonora de Robin Coudert, que mistura violinos tenebrosos com temas mais “eletrônicos”, para expressar os estados emocionais de Maria.
Mas, infelizmente, por mais que seja um filme visualmente belo, algumas decisões de Oz Perkins não atingem resultados expressivos. Por mais que sejam características esteticamente curiosas, elas não se sobressaem aos caminhos da trama – que se até a metade sufoca pelo clima de tensão psicológica, não deixa de soar convencional em seu terceiro ato – basicamente, apenas variando um pouco a conclusão do conto clássico e, através da narração de Sophia Lillis, escancarando tudo o que os personagens supostamente aprenderam em sua jornada – algo que deixa as dicas visuais obvias e com significados até ingênuos – como as visões de Maria e a forma como imagina o que liga o “forno” da Bruxa com o lugar onde as crianças entram pela floresta – diminuindo muito o peso do que ela acaba por enfrentar e entender – sem falar que a representação mais jovem de um personagem acaba por não agregar muito ao tema e a narrativa – gerando uma conclusão que ousa até mesmo em tentar fazer um plot twist – quase desnecessário.
Se salvando pelo bonito visual, mas sendo vitima de sua própria ambição temática, Maria e João fica a frente de obras convencionais do gênero, mas dificilmente será tão bem lembrado quanto outras produções do terror que já abordaram seus temas de maneiras mais claras e criativas – a intenção é boa, mas faltou melhores decisões e soluções em seu roteiro.
“Quando vocês superarem as barreiras de filmes com legendas, conhecerão muitos filmes incríveis”.
Pois é – essa frase do oscarizado diretor de Parasita, Bong Joon Ho, nunca me fez tanto sentido quando acabei de ver essa nova (ou “nova”) versão do clássico terror japonês Ju-Oh (de 2002) – essa mania de Hollywood se apropriar de obras orientais precisa terminar! Sério! O mundo precisa evitar filmes como este O Grito, que, posso dizer tranquilamente, é um dos piores filmes que já vi nos últimos cinco anos! Um trabalho tão absurdamente mal realizado e sem proposito, que eu gostaria de apresenta-lo a quem reclamava dos 209 minutos de O Irlandês – estes com certeza não sabem do tédio e irritação que os 94 minutos deste trabalho de Nicolas Pesce consegue passar. Falando de Scorsese, é bom lembrar que este fez uma das poucas versões boas de obras do cinema asiático em Hollywood – Os Infiltrados – mas agora, comparado a este, as refilmagens de filmes de terror japoneses feitas nos anos 2000, como O Chamado (o primeiro apenas) e Água Negra (dirigido pelo brasileiro Walter Salles, um trabalho que merecia ser mais conhecido, inclusive) eram filmes acima da média – porém, algo que não se aplicava aos três filmes hollywoodianos de O Grito – que apenas pegavam o clima tétrico e realmente pesado do original do Japão e misturavam com a formula simples da franquia Pânico – com resultados pouco expressivos, meros caça-níqueis, que o grande público nem sequer faz mais questão de acompanhar atualmente – aliás, fico muito feliz que produtoras norte-americanas como a A24 e a Blumhouse consigam nos trazer agora filmes de terror mais impactantes e reflexivos – mas, infelizmente, nem a Sony, nem os produtores (um deles Sam Raimi, o homem por trás do clássico A Morte do Demônio – como aprovou um projeto desses?) e o diretor e roteirista desta nova empreitada, fazem questão de entender que o cinema evoluiu – e, ainda insistir numa formula desgastada como essa, é dar um passo para trás em questão de qualidade – vide como Atividade Paranormal também se tornou outra franquia estagnada.
Baseando-se no filme de 2002 feito no Japão, mas com algumas referências as produções norte americanas também, o roteiro de Pesce tenta trazer nuances e características novas à já conhecida história – segundo ele próprio declarou à imprensa, é uma “versão hardcore” de O Grito – enfim, não sei onde – ele segue, simplesmente, a cartilha básica desse tipo de filme: jumpscares (inclusive, os sustos mais previsíveis e sem graças que já devo ter tomado na minha vida), personagens com traumas – sim, todos tem algum trauma, mas nenhum realmente bem interligado – efeitos estáticos para mostrar os espíritos/demônios; fotografia cheia de filtros artificiais e escuros – e um trabalho de som que é simplesmente o mesmo das versões anteriores – o tal barulho emitido pela entidade é exatamente igual aos outros filmes! Que inovação, hein! Que “hardcore”!
Abrindo o filme com cenas se passando em Tokyo em 2004 (pelo jeito, um tipo de homenagem ao original), o filme mostra a norte-americana Fiona (Westwood) voltando para os Estados Unidos e trazendo com ela a terrível maldição da entidade/espirito Kayako (Bailey) – maldição que consiste quando alguém morre em um momento de muita raiva ou ódio, fazendo o local onde tudo aconteceu ficar sempre amaldiçoado – explicado por letreiros muito bregas e óbvios logo no inicio – chegando lá, a trama se divide em quatro partes (sim, quatro linhas narrativas quase desconexas!) – enquanto Fiona causa um massacre em sua casa, matando sua filha (Fish) e marido (Brown), o longa salta para 2006, mostrando a detetive policial Muldoon (Riseborough), que vai investigar um estranho corpo encontrado em um carro a beira de uma estrada; algo que a leva a casa onde Fiona morava, onde agora uma estranha senhora (Shaye) vive – para em seguida o diretor voltar para 2005, para nos apresentar aos vendedores da casa, o casal Spencer (Cho e Gilpin), que estão prestes a se tornarem pais.
E aí que me pergunto: qual a ligação de todas essas linhas narrativas? Nenhuma! Absolutamente nenhuma. Pesce utiliza metade do tempo do filme só para apresentar isso – e não desenvolver nada – fazendo todo o elenco passar vergonha – é quase inacreditável como Andrea Riseborough é exposta a ficar fazendo caretas cada vez mais absurdas, como se para demonstrar o trauma de ter perdido o marido recentemente bastasse aparecer com cara de cansada no trabalho – aliás, o filho dela, também tenta demonstrar isso – mas como o diretor não sabe conduzir ninguém, o ator mirim John J. Hansen parece que sofreu uma lobotomia e só recita frases decoradas – vergonhoso, principalmente quando sua mãe usa um método patético para ele controlar a dor por sentir falta do pai – algo que o roteiro ira usar como “chavão” mais para frente; e o casal vivido por John Cho e Betty Gilpin – a moça, coitada, só tem como função chorar por saber que seu bebê nascerá doente – e o que isso tem a ver com a maldição? Ah... o marido dela entrou na casa... pronto! Só isso.
Nicolas Pesce pensa que é algo sinistro inserir personagens obcecados e loucos – a personagem de Lin Shaye e o detetive Wilson de William Sadler são outro exagero de composições – e o jovem cineasta pensa que deformando o rosto de alguém conseguiria tornar algo assustador ou incomodo – de fato, alguns efeitos de maquiagem são bem feitos – mas só alguns – impossível não rir na cena que um personagem (ou melhor, um descarado boneco) despenca de uma escadaria e o que a equipe de efeitos especiais faz é simplesmente borrar de tinta vermelha o chão (confesso que ri muito disso) – da mesma forma que as caras e bocas absurdas da atriz Jacki Weaver, vivendo uma assistente social que trabalha com casos de suicídio assistido (olha o tanto de coisas ou tentativas de temas que são inseridos), não deixam de soar patéticas e, claro, involuntariamente engraçadas.
Entre essa bagunça narrativa, o filme se perde tanto que nem parece ter uma ameaça por trás de tudo – é como se a Kayako original tivesse enviado uma “representante” para os Estados Unidos – e comandado sua matança por telefone – vivendo a suposta “encarnação” da maldição, a menininha Zoe Fish fica a mercê de um diretor que só quer lhe mostrar como uma versão mais simples da Samara de O Chamado – sem jamais soar plausível ou assustador – e, o pior, ofendendo a inteligência do espectador com cenas de tensão patéticas, afinal, Pesce realmente acredita que o espectador não vai entender as tolas idas e vindas no tempo de sua narrativa muito mal elaborada – como não existe nada complexo na história, é impossível se confundir com a trama – ela simplesmente fica inchada e arrastada, com inúmeros problemas de ritmo – o terceiro ato é tão ridículo que é impossível não gargalhar com a atitude de um personagem que, para tentar proteger outro, acaba levando-o direto para o local onde está o perigo – só pra citar um entre vários exemplos de ideias furadas desse filme sem nexo – claro que ainda não consegue ser mais idiota do que o fato do diretor achar que enquadrar a frente de uma casa por alguns minutos é um bom jeito de encerrar o filme...
Se as versões anteriores tinham pelo menos alguma decência em passar suas histórias no próprio Japão, está se esquece completamente disso ao deixar tudo ocorrer em solo estadunidense – enfim, talvez seja melhor desse jeito – para que esse filme fique marcado como um “grito” contra adaptações de obras orientais tão estapafúrdias como essa é.
O Framboesa de Ouro 2021 já tem garantido seus prêmios de pior diretor e filme!
Parece que adaptar videogames para o cinema é uma coisa meio complexa, já que geralmente os resultados (em quase toda a maioria) se saem muito fracos e, várias vezes, tirando até a essência do material original – que, embora seja de uma mídia bem diferente, acabam ficando bem distorcidos – como o caso das franquias Resident Evil, Tomb Raider, Mortal Kombat ou filmes que nem conseguiram sair do primeiro, como o caso de Street Fighter ou Mario Bros. – o único que consigo me lembrar que veio com qualidade foi Terror em Silent Hill, realmente fiel e bem feito.
Tendo essas poucas lembranças de qualidade sobre obras assim, é evidente que não era de se esperar muito de Sonic: O Filme – mas, sob um olhar geral, esta versão do ouriço azul super veloz da Sega acaba sendo um filme divertido, que simplesmente entrega o que promete: risadas dentre uma aventura bem realizada – e, de fato, nada mais além disso – mas é preciso considerar que o roteiro de Patrick Casey e Josh Miller tenta dar mais personalidade ao personagem principal – algo que compensa até mesmo uma certa falta de capricho por parte dos animadores digitais – e é válido lembrar que a Paramount tomou a sensata decisão de acatar as reclamações dos fãs e ter corrigido o visual de Sonic – de fato, bem melhor do que estava no trailer – mas, ainda assim, a dinâmica que o estreante diretor em longas, Jeff Fowler, estabelece não é 100% funcional: as discrepâncias entre os movimentos do ouriço interagindo com os atores nem sempre é bem realizada – em alguns momentos fica bem claro que James Madden está encarando um boneco verde, que seria substituído pela animação do azulão mais tarde – mostrando que o diretor não tem a mesma boa condução de atores com animações, como Robert Zemeckis fez no clássico Uma Cilada para Roger Rabbit, por exemplo.
Esse estranhamento, de fazer parecer que o elenco está interagindo com um desenho da Pixar – foi a sensação que tive algumas vezes – pode ser esquecido se considerarmos que os roteiristas criam uma história que acaba sendo o melhor que poderia se imaginar da clássica trama do jogo original, de 1991 – que, de fato, era simples ao extremo: basicamente, era Sonic enfrentando o Dr. Robotnik e evitando a destruição de seu mundo – mas, agora, a trama começa com nosso protagonista ainda criança, em sua dimensão, cheio de pistas curvadas, gramados e características que remetem ao clássico visual do jogo do Mega Drive – o ouriço acaba sendo vitima do ataque de um grupo de gaviões que quer seus poderes e, como último recurso, acaba fugindo para terra – onde acaba vivendo escondido e sozinho por 10 anos, na floresta próxima a pequena cidade de Green Hills (nome em homenagem a uma das fases do jogo, inclusive), nos Estados Unidos – Sonic (agora com a voz de Ben Schwartz) se sente solitário e acaba, sem querer, chamando a atenção do governo, que envia o egocêntrico e maldoso Dr. Robotnik (Carrey) para localizar o que seria o sinal de energia vindo da pequena cidade – sem opção, o ouriço se revela para o xerife do lugar, o bondoso Tom (Madden), que acaba por ajuda-lo a fugir do implacável cientista.
Ganhando pontos principalmente por seu senso de humor, a trama é funcional dentro do que se propõe – embora seja visível que o número de cenas de ação seja até pequeno – e, algumas delas não muito memoráveis – o longa se destaca pelo trabalho de dublagem para Sonic por parte de Ben Schwartz, que dá dinamismo as falas do ouriço – o que é perfeitamente condizente com a natureza veloz dele – o que torna bacana ele ter como super-herói favorito o Flash e gostar de filmes como Velocidade Máxima – fora o fato de ser justificável ele ser tão tagarela, afinal, o pobrezinho passou dez anos sozinho, sem ter amigos – então precisou interagir com ele próprio – o que torna o choque de finalmente ter um amigo real curioso, quando conhece o xerife de James Marsden – um tipo de papel que parece mais um mero apoio para o protagonista digital, mas que acaba sendo curioso, devido a sutileza do ator – embora ele crie uma afeição bem rápida pelo Sonic, mesmo que acabe sendo confundido como “cumplice de terrorismo” por ajudar o novo amigo – creio que coisas assim não devem ser exigidas em adaptações de games de 16 bits... Ainda assim é eficiente a ligação entre eles – um completando o que deseja para a vida – Sonic não quer deixar a Terra e Tom reluta em deixar o tédio da pequena Green Hills para se aventurar como policial em San Franscisco – um clichê, mas que torna a relação de amizade dos dois mais real.
Embora o elenco de apoio não tenha muito o que fazer, devido a criações pouco criativas – como a esposa de Tom, a Maggie de Tika Sumpter, e sua irmã (de Natasha Rothwell), que tem um ódio um tanto infundado pelo cunhado – servindo apenas para forçar algumas risadas – além do assistente de Robotnik, o Rocha de Lee Madjoub – mas, felizmente, o longa ganha pontos com a composição previsivelmente engraçada de Jim Carrey para o egocêntrico vilão – um personagem tão caricato que somente um ator como Carrey saberia incorporar bem – sua vontade em se mostrar superior a todos a sua volta é algo divertido, fazendo o ator explorar suas caretas absurdas, como já fez em O Máscara, Ace Ventura ou O Mentiroso, por exemplo – tirando o exagero de faze-lo dançar em um certo momento, o resto é uma composição que é o que daria para imaginar de um personagem que, originalmente, era o mais unidimensional possível – e, visualmente, Carrey acaba lembrando bem o vilão do game, com seu bigode pontudo e os clássicos óculos redondos.
Permeado por algumas cenas de ação bem feitas e divertidas, mesmo que sem um cuidado muito grande para a concepção dos movimentos do nosso herói ouriço, Sonic é um trabalho convincente, que deve emocionar os fãs do clássico videogame, além de conseguir a atenção das crianças de hoje – mesmo não tendo um roteiro tão legal quanto Os Incríveis, esta bem longe de ser uma bomba como Pica Pau – O Filme, onde criaturas animadas com atores geraram resultados sofríveis – Sonic é legal o suficiente para funcionar neste meio termo.
Obs.: como parece ser regra nos blockbusters agora – esse ano, Bad Boys e Aves de Rapina já tiveram isso – tem também uma cena durante os créditos finais, dando sinais para uma continuação e uma participação que os fãs do jogo vão gostar...
Uma das coisas que mais dificultam as relações humanas atualmente talvez seja o fato de sermos seres muito apegáveis a bens materiais. Seja um celular, um carro, uma camiseta ou até uma casa – como é o caso do personagem de Casey Affleck em A Ghost Story – uma das viagens mais pessoais, intrigantes e fascinantes sobre a existência humana que o cinema já nos proporcionou nos últimos anos.
O diretor (e também autor do roteiro) David Lowery expressa de uma maneira bastante visceral este ponto de vista, atrelado as dificuldades que temos de conseguirmos nos satisfazermos por completo na vida – afinal, qual o sentido de viver? Será que somente sendo reconhecido por nossos feitos ou se tivermos vivido um amor real (ou que pelo menos pareça real) poderíamos dizer que vale a pena existir?
Não é a toa que o filme faz uma referencia escancarada a Nietzsche – incluindo uma cena onde um livro do filosofo realmente aparece – as referencias sobre o existencialismo estão presente por quase todo o longa – e quando digo “todo o longa” estou tentando insinuar que Lowery planejou cada cena com um significado especifico e importante para a compreensão de toda sua história – contando a vida de um casal (Affleck e Mara), que moram juntos em uma casa. Ele (mencionado como “C” nos créditos finais) sofre um acidente de carro e falece – mas seu espirito/fantasma aparentemente não quer ir embora e acaba voltando e ficando na casa, acompanhando o dia a dia de sua companheira “M” (assim mencionada nos créditos) – sem entender o proposito de sua existência após a morte, ele começa a notar que a passagem de tempo torna-se algo irrelevante – conforme a vida de sua amada começa a mudar – e sua obsessão por encontrar e saber o que está escrito em um pequeno pedaço de papel, que M escondeu em uma fresta de uma parede da casa, faz com que ele se sinta ainda mais preso ao local.
Usando a figura do fantasma no modo mais clássico possível – com Casey Affleck debaixo de um lençol branco com dois furos pretos na parte dos olhos – o resultado que o Lowery alcança em A Ghost Story é inquietante – ao invés de mostrar um fantasma que põe medo nos demais, ele nos apresenta a um espirito que vaga pela terra (ou melhor, o local de sua casa quando era vivo) sem um proposito, mas que permanece esperando por isso – o que o diretor consegue, de fato, é trazer um tipo de terror psicológico sobre a própria existência do ser humano – o que explica o filme ser classificado como um “pós-terror”, como alguns críticos vem dizendo.
Como um fantasma que não se conforma em ter morrido (logo após sua saída do hospital ele “recusa” entrar em uma “porta de luz”, digamos assim), o personagem de Affleck vai passar por uma viagem tortuosa – vendo sua amada em desespero ou tentando de maneiras pouco bem sucedidas superar a perda de seu companheiro – e devo admitir que Lowery consegue demonstrar isso de forma muito incomoda – a cena onde presenciamos a esplêndida Rooney Mara comendo uma torta inteira (praticamente sem cortes) serve para mostrar seu estado de profunda depressão e insatisfação com a vida – além de evidenciar como o passar de tempo para o fantasma é praticamente irrelevante – existem ainda algumas demonstrações de passagem de tempo brilhantes – tornando o tempo em algo mais próximo do que seria sobre o ponto de vista de um espirito, realmente – notória a cena onde Affleck observa Mara saindo diversas vezes pela mesma porta, exemplificando os dias se passando em segundos.
Com uma direção de arte bem simples, mas muito bonita, o filme é dotado de um visual fascinante – é importante ressaltar como a casa e os demais locais que o filme apresenta são tratados quase como se fossem um outro personagem, incorporado ao fantasma de Affleck – afinal, a conquista de um lar pode gerar uma sensação de fazermos parte daquele local, mesmo que ali outras pessoas e situações já tenham passado – mas ninguém permaneceu para sempre, é claro.
Ajudado por uma fotografia carregada de cores claras, sempre remetendo ao branco do lençol do fantasma, demonstrando algum tipo de pureza ou uma espécie de nulidade de opinião sobre o que vê nesta vida após a morte – fora o fato de que o formato do filme nos remete a algo mais intimo – se assemelhando ao formato de tela de uma TV antiga ou de uma foto polaroide, possibilitando angulações fechadas, que passam muito bem o calor humano e realístico (com seus problemas de comunicação no começo) da relação de C e M – que jamais escamba para algo apelativo sentimentalmente – assim como a inserção da música – C é produtor musical e uma de suas produções é usada de forma tocante – principalmente pela apurada edição de imagens – em momento onde M relembra do falecido marido, em meio a flashbacks de quando ela ouviu a canção pela primeira vez.
Mas, afinal: o que estava escrito no papelzinho que M deixou na parede? O que ela escreveu no papel pode ser algo bom ou ruim para o personagem de Affleck, mas só faria sentido para ele – pois seria o momento em que ele finaliza sua missão, descobrindo se sua vida ou seu amor pela personagem de Rooney vale ou não a pena – ou seja, ninguém mais poderia entender.
Enfim, é uma obra extremamente pessoal, instigante e inteligente, ao conseguir fazer com que nos identifiquemos com um fantasma – que, diferentemente de um Patrick Swayze em Ghost, não pode mostrar para nós suas expressões diretamente, podendo apenas senti-las – espelhando, com isso, uma forma de dizer que somos todos fantasmas, que podemos não ser notados pelos outros ou que podemos ser esquecidos um dia – e talvez somente um fantasma entenda isso de verdade, mas, no final, o que importa é justamente o que vivenciamos, unicamente sob nossa própria perspectiva.
Mãe! é um filme difícil de se acompanhar. Mas também é um filme fácil de acompanhar. Tanto quanto em outros de seus trabalhos – como Réquiem para Um Sonho, O Lutador, Cisne Negro ou Noé – este novo longa do renomado cineasta e roteirista Darren Aronofsky consegue ser um filme ao mesmo tempo simples e ao mesmo tempo complexo, profundo e lotado de simbolismos e metáforas sobre temas comuns a todos os seres humanos. Mas o melhor de tudo é que o espectador conseguirá aprecia-lo mesmo que não compreenda todos os seus pontos e ideias expressas em suas quase duas horas de projeção – dado o imenso talento do diretor em conferir uma dinâmica quase absurda em sua câmera – com movimentos, cortes e ritmos precisos – aos moldes do perfeccionismo que o cineasta havia exibido em Cisne Negro.
Não é a toa que Mãe! tem um trabalho de som que beira a perfeição – seja por ruídos de madeiras rangendo, portas se mexendo, o vento balançando a vegetação próxima a casa dos personagens principais – enfim, até o silêncio tem sua função dentro de um filme que não tem uma trilha-sonora musical – na verdade, a trilha – da mesma forma que o mestre Alfred Hitchcock fez em Os Pássaros – são os próprios efeitos sonoros. Além de um visual incrivelmente bem dosado de cores e tons em sua fotografia – a casa em que se passa toda a história realmente parece ser um ser vivo. E esse domínio completo da sétima arte, possibilita que Afonofsky conte uma trama tão simples de um jeito tão espetacular e visceral – como poucos diretores conseguem.
Antes de qualquer coisa: Mãe! é um filme de arte. Se você procura um filme de suspense comum ou propenso ao gênero terror, é melhor procurar outro longa para assistir. Mesmo que estruturalmente lembre muito o clássico do terror O Bebê de Rosemary, de Roman Polansky (que, inclusive, também nos faz lembrar da famosa trilogia do apartamento deste veterano cineasta), o novo trabalho de Aronofsky é um grande drama psicológico sobre um casal que vive em uma casa no campo. Composto por uma jovem (vivida por Jennifer Lawrence, e apenas mencionada como Mãe nos créditos) e um poeta (interpretado por Javier Bardem, e apenas citado como Ele), o casal tem sua paz dissipada com a chegada de um visitante, um Homem (Harris) misterioso, que, logo depois, trás para casa uma Mulher (Pfeiffer) – fazendo com que a Mãe fique desconfiada das intenções do casal visitante e da mudança de comportamento de seu marido – que passa por uma crise criativa para escrever seus poemas – principalmente por estar se recuperando de um terrível incêndio que enfrentou na casa anteriormente.
Com atuações excelentes de todo o elenco, principalmente de Jennifer, que consegue passar a inquietação e incomodo pelas visitas cada vez mais inesperadas a casa e de uma absurdamente irônica e quase insuportável (e talvez por isso marcante) Michelle Pfeiffer, os atores conseguem ir muito além do que seus personagens representam – sendo muito mais do que meros símbolos e metáforas (que discutirei mais a frente) – como é o caso do sempre intenso Javier Bardem e o veterano Ed Harris – passando ainda pela presença rápida, mas extremamente interessante (e importante) dos irmãos (dentro e fora do filme)Brian e Domhnall Gleeson.
ALERTA! SPOILERS à frente! Não é recomendável ler os próximos parágrafos caso você ainda não tenha assistido o filme
Os atores poderiam ser meros bonecos na mão de um diretor que não tivesse experiência ou estilo visual e narrativo para conduzir uma trama tão cheia de possibilidades e mensagens iguais as de Mãe! Através deste plot simples, Aronofsky traça toda a história da humanidade, desde seu nascimento, passando por inúmeros conflitos que o ser humano criou, até chegar ao apocalipse. Obviamente, trata-se de um fundo extremamente religioso ou critico ao religioso – pois não precisamos ser nenhum Sherlock Holmes para notarmos que os personagens de Jennifer e Bardem representam, respectivamente, a Mãe Natureza (e/ou a Virgem Maria) e Deus.
Sendo assim, o filme começa mostrando uma mulher (que não é a Jennifer Lawrence) morrendo em meio às chamas – para, logo em seguida, mostrar a casa (que representa a terra ou a própria natureza, também) sendo reconstruída, através de um cristal que representa o “fruto do conhecimento”, após um incêndio. Desta maneira, o filme indica que Deus acabou de criar o mundo, despertando a Mãe Natureza, que, convenientemente, desperta e levanta da cama, caminhando até a porta da casa, mas sem sair – afinal, ali é o paraíso e ela não consegue sair – com Deus logo chegando e a impedindo de terminar de passar pela porta.
Presa na casa e sem intenção de sair dali, a Mãe Natureza parece apenas trabalhar para Deus – pintando a casa e ajudando o “criador” com seus planos – ainda que sinta algo errado acontecendo – mostrado através da forma como ela toca as paredes e visualiza um coração (de bebê?) batendo – cada vez mais lentamente à medida que o filme avança – representando, possivelmente, o estado da natureza e da terra mesmo.
Com a chegada do Homem e da Mulher – que fazem a metáfora mais obvia do filme, ao representarem, respectivamente, Adão e Eva – com direito a passagem onde Deus parece ter tirado a costela de Adão, para criar Eva/Lilith, já que a personagem de Michelle Pfeiffer aparece após isso – algo que Aronofsky já havia “brincado” em Noé – as coisas começam a perder o controle e a Mãe passa a sofrer por isso – oras, e os homens sempre incomodaram a natureza, não é mesmo? Principalmente ao notar que Deus está mais interessado em dar atenção à família do Homem do que a ela – que, ainda sim, quer cooperar com Ele e tenta impedir que os visitantes adentrem no quarto do personagem de Bardem – quarto este que representa o Jardim do Éden, onde Adão e Eva consomem o fruto proibido – aqui representado pelo fato de quebrarem o cristal que Ele havia guardado no quarto – fazendo com que Adão e Eva sejam expulsos da casa/paraíso.
Pensando que agora as coisas voltariam ao normal, a Mãe é surpreendida pela visita dos irmãos que representam os filhos de Adão e Eva, Abel e Caim, que acabam por brigar e fazendo Abel ser morto por Caim – em uma cena onde o sangue de Abel escorre pelo piso do quarto e entra até o subsolo, onde a Mãe, posteriormente, irá encontrar o instrumento para o apocalipse – representado aqui pela enorme fornalha no solo da casa - e sendo uma alusão clara ao fato de que o homem matar seu semelhante nos leva a um caminho de destruição – que vai contra nossa inteligência – demonstrado pelo sangue escorrendo sobre uma lâmpada (sabedoria), que acaba explodindo (deixando de existir) graças ao choque que leva com o sangue gerado pela violência no mundo.
A partir daí, Deus começa a tentar dar mais atenção à Mãe – momento no qual Aronofsky parece soar uma critica quanto a divindade que o catolicismo dá a genitora de Jesus Cristo – escarado na hora em que a Mãe diz a Ele: “Você quer que eu seja uma mãe mas nem transa comigo”. Eis o amago do filme: Deus precisa do amor da Mãe para existir. Sem a natureza ao seu lado ele não pode concretizar seus planos – mas, como o diretor insinuou em Noé também, Deus aparenta ser uma figura vaidosa – que necessita de “plateia” ou atenção – e, logo após saber que a Mãe estava gravida, consegue inspiração para escrever um poema maravilhoso – que nem sequer é mostrado, na intenção de refletir o conforto das palavras do evangelho sobre as pessoas – que passam a querer entrar na casa para seguir Deus – mesmo que viole o ambiente (natureza) da forma que bem queiram e sabem que estão prejudicando – passado pela forma como a personagem de Lawrence pede inúmeras vezes para os seguidores/visitantes não se apoiarem na pia de cozinha, que não está chumbada, sendo fácil de quebrar.
A partir daí que o filme pode parecer uma loucura – ou melhor, um pesadelo – e está é claramente a intenção do diretor – especialmente através do trabalho de som inquietante e barulhento aqui – ao mostrar a casa tomada pelos homens – representando o fanatismo religioso e as interpretações erradas que a bíblia teve através da história da humanidade – gerando guerras e conflitos entre os seres humanos – a personagem de Kristen Wiig (a editora que publica os poemas dEle), representa muito bem isso, assim como os soldados que invadem a casa – alguns maltratando a Mãe (aqueles que não acreditam na Virgem Maria) e outros defendendo (católicos).
Enfim, a Mãe concebe seu filho – sob o olhar onipresente de Deus – que não hesitará em mostrar seu filho como um salvador/herói – que o povo interpretará da forma que bem entender – revelando aqui o momento mais chocante de todo o filme, onde o bebê recém-nascido acaba tendo o pescoço cruelmente quebrado pela multidão – através de um efeito sonoro angustiante – e, antes ainda, urinando sobre as pessoas – expressando algum tipo de doutrinação errada sobre os homens, talvez? E, ao mostrar as pessoas devorando a carne da criança, o diretor representa de forma pitoresca o fanatismo religioso mundo a fora.
Finalmente, a Mãe se revolta – pois em algum ponto (através do aquecimento global, poluição, queimadas, etc) a natureza se voltará contra o homem – e ela acaba por matar e ferir as pessoas, consumida pela raiva por ter perdido seu filho – mas o ser humano não deixa de se defender e, violentamente, agride a Mãe – através de uma trucagem intensa, onde Jennifer Lawrence parece realmente levar chutes e socos no rosto. Deus, ainda assim, quer que ela perdoe os humanos por seus erros – mas já seria tarde e a Mãe acaba causando o apocalipse, matando todos dentro da casa e se ferindo gravemente – mas, antes de morrer, acaba dando seu amor (coração) a Deus – algo que possibilita que o criador se motive a continuar e comece um novo plano – conforme mostrado pela reconstituição da casa e o despertar de uma outra mulher – da mesma forma que a Mãe abre o longa – e indicando que se inicia mais um plano de Deus – que parece ser algo continuo.
fim dos SPOILERS
Em meio a tudo isso, o filme vai além de ser uma mera critica a bíblia ou a crença em Deus – ele também pode ser interpretado como uma visão sobre a submissão impostas as mulheres – que ainda sofrem por ficarem a mercê dos homens – consumidas e abaladas pelo machismo, onde homens parecem colocar as mulheres como meros objetivos para se motivarem ou ficarem felizes na vida. A verdade é que Aronofsky apenas expõe alguns de seus questionamentos e pensamentos sobre o assunto e tema, deixando o espectador captar a mensagem da melhor forma que puder e, ainda assim, poder também apreciar o filme como entretenimento apenas – e, assim como o cineasta brasileiro Glauber Rocha dizia sobre seus longas, Mãe! acaba sendo mais um filme para ser visto do que comentado – afinal, poderá gerar diversas interpretações – como a desta humilde pessoa que vós escreve.
Dentre os filmes lançados em circuito comercial este ano, com certeza é o melhor e mais criativo até o momento.
Falar sobre a importância de Blade Runner para o cinema moderno é como chover no molhado – uma “chuva” tão intensa quanto o tempo chuvoso da Los Angeles onde se passa a história do original e desta continuação, que ao contrário da maioria dos filmes que tentam “resgatar” obras do passado, funciona imensamente bem como sequência e/ou expansão do universo filosófico riquíssimo da produção inspirada em um livro do mestre da ficção científica, Philip K. Dick.
Blade Runner (o original) era um filme disposto a trazer uma mensagem bela e poética sobre o existencialismo humano – o velho argumento do “ser ou não ser”, misturado às possibilidades que o futuro poderia oferecer a humanidade. Com um visual, temas e metáforas absurdamente criativas, Ridley Scott fez de seu longa um divisor de águas para a arte do cinema com seu trabalho na direção, ajudado por inovações e criatividades com relação a designer de produção, sonorização e, principalmente, fotografia – algo que inspirou inúmeros outros filmes até hoje – dado o seu poder de atingir os sentimentos e percepções dos espectadores com suas belíssimas imagens, que traduziam o clima inspirado nos clássicos filmes noir da Hollywood entre os anos 30 e 50 – Blade Runner era, portanto, um filme policial no futuro – bem longe de ser um mero filme de ação, afinal, com seu ritmo mais lento, conseguia expressar sentimentos que nenhuma obra “acelerada” poderia exprimir.
Tamanho virtuosismo e inspiração logo transformaram aquele filme em um clássico cult – que, curiosamente, foi um fracasso de bilheteria, que ganhou repercussão durante os anos seguintes – principalmente pelas várias edições e “versões definitivas” que Ridley Scott lançou ao longo dos anos – evidentemente, sempre se imaginou o destino dos personagens de Harrison Ford e Sean Young após os eventos do filme – mas, obviamente, muitos ficariam receosos com o que poderia resultar uma sequência de um filme tão vital para o cinema.
Passados 35 anos, eis que temos a resposta – e (acredito não estar exagerando em dizer), o resultado não poderia ser melhor. Aliado a direção de um dos diretores mais expressivos em Hollywood nos últimos anos, Denis Villeneuve (A Chegada, Sicario, O Homem Duplicado), do roteiro bem acabado de Hampton Fancher (também autor do roteiro do filme original) e Michael Green e da fotografia magnifica do gênio Roger Deakins, Blade Runner 2049 é uma experiência absolutamente encantadora e fascinante – ao ser uma ficção científica que realmente propõe discutir de forma séria os problemas e situações que podem influenciar a vida dos seres humanos no futuro – seja a sua simples vontade de existir (e por que existir) até sua vontade de poder criar e controlar tudo o que quiser na vida.
Villeneuve incrementa o universo de possibilidades visto no filme anterior – dizer que já é um clássico talvez seja muito cedo, mas é evidente que 2049 é um filme promissor e poderoso – que vai do intimo mais profundo de seus personagens até um consentimento sobre toda a raça humana – que soara absurdamente real e atual para este mundo nosso de 2017, onde seres humanos continuam brigando e morrendo por suas diferenças de origens, vontades e ambições.
E o mais fascinante de tudo é a fidelidade e respeito pelo original, já que existe um incrível cuidado em conceber cada momento, cada cenário, cada ponto de luz e outros detalhes visuais – a direção de arte traz uma evolução natural vista no mundo de 2019 do primeiro filme – repare como é mantido o pé naquele universo quando o filme apresenta nas ruas de Los Angeles as propagandas da Atari, Pan-Am ou produtos da antiga União Soviética – coisas que não existem no nosso mundo, mas existiam no universo de Blade Runner. O desenho de produção inteiro da produção resgata com muito brilho todo o mundo mostrado no filme original – o que vai do modelo de carro de K ou da compactação que vive em seu apartamento até o edifício de Wallace, suntuoso e aparentemente com uma iluminação que exala uma certa “falsidade” de calor, já que o mundo de 2049 é frio – literalmente e não literalmente, de fato – o que nós faz notar novamente a genialidade do trabalho de fotografia.
Esse enfoque maior no universo desta história possibilita uma visão de um futuro distópico absolutamente verossímil – não é de se espantar que a grande maioria da população se mudou para as colônias interplanetárias tão mencionadas no filme passado ou de como a primeira vista de Los Angeles agora não deixa de lembrar uma grande e interminável favela – aglomerando ainda mais gente de diferentes etnias – o designer de produção é extremamente rico em criar isso, assim como a cidade San Diego, que virou praticamente um lixão ou Las Vegas – com inúmeras estatuas espalhadas entre escombros – provavelmente destruídas por algum conflito nuclear – se contrapondo com a natureza do Deckard de Harrison Ford.
O trabalho de som se mostra tão importante quanto no original, ao sugerir que os ruídos a volta de Leto e Ford funcionem como um tipo de trilha de tensão e suspense – a trilha-sonora assinada por Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer é capaz de manter de forma coerente o clima criado na trilha-sonora genial e antológica de Vangelis – é evidente que não é tão marcante ou bem feita – aliás, certos excessos em algumas partes são as únicas falhas do filme. Mas as composições novas funcional muito bem com os temas de Joi e das memórias de K – ajudando ainda mais a criar a atmosfera que chega a quase sufocar de tão intimista.
Aliás, para expressar o estado emocional dos personagens, Villeneuve e Roger Deakins são extremamente felizes em acompanhar os tons de luzes – algo que o primeiro filme era genial – conforme visto na escura (quase preto e branca) cena onde K luta com Stapper – ou quando as lembranças de um passado feliz e triste passam pela mente de Deckard enquanto conversa com o personagem de Jared Leto em uma sala com iluminação que oscila entre claro e escuro. A paleta de cores do longa é extremamente rica e intensa, já que através de planos longos e movimentos de câmera suaves, deixam os sentimentos em evidência de forma muito natural – nos trazendo ao tom intimista e melancólico de todos os personagens.
E falo todos porque o roteiro realmente confere características únicas para cada um deles – apoiado por um elenco excepcional, Blade Runner 2049 conta com novos rostos que impressionam tanto quanto o elenco incrível do original de 82 – temos a androide Luv de Sylvia Hoeks, que tem uma incrível obsessão por ser perfeita, o Wallace de Jared Leto, que lembra uma versão mais sombria e perturbada do Dr. Tyrell – evocando uma necessidade que muitas corporações parecem ter em querer controlar a humanidade – diante de diálogos reflexivos, é interessante Leto se dar bem em um papel depois do desastre de seu Coringa em Esquadrão Suicida. Passando pela sensibilidade da “companheira-holográfica” de Ana de Armas ou da arrogância e frieza da Tenente Joshi da ótima Robin Wright, ressaltando algo que o filme passado já dizia, sobre o fato dos androides serem mais humanos do que os próprios humanos – inclusive, quando, em certo momento, ela sugere se relacionar sexualmente com K, provavelmente para suprir sua solidão – o que nos traz aos personagens de Ford e Gosling, que, como eram de se esperar, são o coração do filme – o primeiro, aliás, confere uma atuação surpreendentemente emocional, talvez uma de suas melhores no últimos anos, sendo que o segundo, se mostra como um excepcional ator, por conseguir mostrar de forma tão introspectiva as emoções que seu personagem parece evitar ter na maior parte do tempo.
Sendo assim, o ponto de partida é o próprio agente K da policia de Los Angeles, que é um caçador de androides. No ano de 2049, os antigos androides da geração Nexus 6 da Corporação Tyrell foram eliminados ou proibidos, sendo substituídos pelos reformulados androides construídos pela empresa do cientista Wallace (Leto), que pretende deixar suas criações cada vez mais idênticas aos homens – mas, em meio a isso, grupos de antigos replicantes se escondem para sobreviver – e um deles (Bautista) acaba sendo interceptado por K, que, a partir dai, encontrará pistas para uma revelação que poderia mudar para sempre a vida de todos os habitantes da terra – tanto os humanos, quanto os replicantes – e acredito que só isso é possível de ser mencionado sem dar spoilers, já que existem várias reviravoltas pela frente.
Ao contrario da trama do filme original, logo de inicio descobrimos que o K de Gosling é um replicante – afinal, a humanidade realmente “evoluiu” de tal forma que coloca todos os novos replicantes para executarem todos os “trabalhos sujos” que o ser humano deveria fazer – e digo ao contrario obviamente pelo fato de que se o maior mistério do filme anterior era saber se Deckard era um androide ou não, aqui temos um personagem que de cara evidência todas as suas angustias – apesar de ser mais frio do que o personagem de Ford, K já demonstra rapidamente sua vontade em querer compensar sua solidão – como ao utilizar um tipo de software de realidade virtual, que traz para sua casa a projeção holográfica de uma mulher chamada Joi (a personagem de Ana de Armas, obvia referencia a “Joy”, “diversão” em inglês) em algo que lembra bastante o sistema operacional visto no filme de Spike Jonze, Ela – mas aqui não somente com a voz.
Após encontrar ossos enterrados próximos a casa do Sapper de Dave Bautista (em curta, mas marcante participação), K começa a se intrigar pelas descobertas que faz – afinal, constatasse que os restos de ossos eram de uma replicante que deu a luz a uma criança – algo que poderia marcar uma nova era para os replicantes, que seriam mais do que meros escravos para a humanidade – seriam, agora, seres com almas, capazes de terem um propósito em suas vidas, igualizando-se com os seres humanos – algo que a delegada que a Tenente Joshi, tentará impedir as pessoas de saber – como ela mesma diz, “diga que o muro (entre duas espécies diferentes) não existe e comece uma guerra ou mesmo um massacre” – provavelmente à sombra dos interesses das grandes corporações que parecem dominar o mundo visto em Blade Runner – o Wallace de Leto é uma exemplificação clara da vontade de alguns em querer ter um controle semelhante (ou igual) ao de Deus.
Criados a imagem e semelhança dos homens, os replicantes agora começam a querer lutar para saírem da escravidão imposta pelos humanos – mesmo eles não sendo maquinas, parece uma inversão de valores do que vimos em Matrix ou O Exterminador do Futuro. Daí temos a importância de K para todo o filme – uma criação dos seres humanos que tem os mesmos “defeitos” de uma pessoa comum – precisa de vícios (bebida), companheirismo (mesmo que não real) e motivos para seguir sua vida – K difere-se do Roy de Rutger Hauer, afinal, ele não quer apenas viver, mas quer ter um “papel no mundo”, assim como a grande maioria das pessoas.
Esse choque, brilhantemente ressaltado pelo roteiro, é uma das coisas mais tocantes do filme – e, falando sobre Roy, o paralelo feito na ultima cena de K com o personagem do filme original é uma das coisas mais belas já vista no cinema este ano – ainda mais ao som do clássico tema de Vangelis ao fundo – que se no filme anterior era triste por mostrar Roy morrendo com suas emoções e sensações que só ele conhecia, torna-se emocionante aqui por fazer K se sentir feliz (com uma expressão facial genial de Gosling) por ter morrido por uma boa causa – no caso, ter ajudado a causa dos replicantes, como mencionado por uma das lideres da suposta rebelião.
Ryan Gosling, inclusive, prova como é um ator completo, ao fazer de K um personagem marcante justamente por ser alguém que não consegue lidar com suas emoções – repare como ele traz a emoção de ter esperança de ser o filho gerado pela replicante – o que seria uma surpresa linda, afinal transformaria suas “memórias implantadas” em situações reais – mas, ao mostrar que isso não aconteceu, é impossível não lamentar que seu personagem seja realmente um androide “normal”, em vista da forma como demonstra sua decepção.
Revelando que a Rachel de Sean Young (que aparece perfeitamente rejuvenescida digitalmente) teve um filho com Deckard, a trama de 2049 vai ainda mais a fundo em seu tema – fazendo uma referencia a história bíblica de Raquel, uma mulher estéril, que conseguiu se tornar fértil – gerando o questionamento de que os androides poderiam ter almas, de fato – bem salientado pela forma como é (re) introduzida a paixão do personagem de Ford por Rachel – nesse ponto, é importante ressaltar a atuação de Harrison Ford – justamente por emocionar na cena onde tem um encontra uma “cópia” de Rachel.
Mas, afinal, este novo filme comprova se Deckard é um replicante? Villeneuve e os roteiristas são tão respeitosos com o material original, que deixam isto em aberto – mas ele tem mais do que quatro anos (o prazo de vida dos androides do primeiro filme), não é mesmo? Mas como dito por Wallace, Tyrell conseguiu fazer Rachel ter a capacidade de procriar e, aparentemente, o encontro dela com Deckard no original poderia ter sido algo programado – para fazer com que se apaixonassem e tivessem filhos – seria Deckard um replicante diferente, com capacidade de viver mais tempo e ainda envelhecer – acredito que deixar isto em aberto é uma bela maneira de homenagear e estender a complexidade filosófica do filme original – bem completada aqui pelo final, revelando a identidade da filha do ex-Blade Runner, a criadora de sonhos para androides, a Dra. Ana Stelline de Carla Juri, trazendo um belo fecho para o arco dramático e para dar sentido (realmente) à vida de Deckard e seu romance com Rachel.
FIM DOS SPOILERS
O roteiro e a direção complementam toda a trama vista no primeiro longa – afinal, estamos diante de uma história sobre criaturas não humanas que querem ser humanas, mas são perseguidas por humanos que não se importam em ser humanos – o que é uma ironia gigantesca ao constatar que nem com tantos avanços tecnológicos o ser humano não conseguiu preencher seu vazio existencial.
Portanto, não há como sair da sessão deste Blade Runner 2049 sem no mínimo se sentir emocionado por sua tristeza ou por uma suave felicidade que vem justamente de quem só quer viver com liberdade – afinal, estamos presenciando um ponta pé inicial para uma franquia que pode trazer um discurso tão lindamente poético e filosófico que é impossível não tocar o espectador que está disposto a apreciar os caminhos que seus ricos (e clássicos) personagens passarão – Blade Runner 2049 consegue isso não só porque é um filme riquíssimo como arte e tecnicamente perfeito – ele consegue isso porque fala diretamente com a alma de quem assiste, tornando-se uma experiência que não caberá para todos os públicos – é uma obra de arte, acima de tudo.
Provavelmente estamos presenciando o nascimento de um forte candidato a jovem clássico do cinema.
Não é de hoje que o cinema busca justificativas no comportamento das pessoas devido a traumas. A própria essência do drama inclui isto, mas existem projetos capazes de usarem esta composição de forma que justifique todo o andamento de uma narrativa ou temas, evocando uma identificação ou certa solidariedade emocional com os personagens retratados – isso é fundamental em filmes de gênero, onde a irrealidade de certas situações podem ser esquecidas devido ao desenvolvimento correto das personas em tela – portanto, o que o diretor Andy Muschietti faz nesta sequência do sucesso de 2017 pode não ter por trás uma novidade de temas – afinal, o livro do qual foi adaptado, do mestre Stephen King, já abordava o assunto – mas é inegável que ele sabe dosar de maneira precisa todos esses fatores que tornam os personagens de It – sejam suas versões adultas ou adolescentes – em seres multifacetados e interessantes, consequentemente, conseguindo transparecer uma verossimilhança capaz de atingir qualquer espectador. Não são muitos os exemplares de terror de grandes estúdios de Hollywood que conseguem criar tramas com simbolismos, emoções mundanas e observações sobre os temores que as pessoas passam pela vida – e um filme do cinema mainstream iniciar sua história mostrando um ataque violento de um grupo de jovens a um casal homossexual é algo extremamente significativo, por deixar demonstrar que muitos dos males da sociedade se dão por falta do amor ao próximo, do respeito, da ignorância – do pensamento fechado – causas de tantos preconceitos, como a homofobia ou racismo – o filme anterior tinha uma leve critica ao terrorismo, que sempre assusta o ser humano – mas It – Capítulo 2 vai além: o mal não é só representado por assassinos ou bandidos, as pessoas “comuns”, essas que lidamos todos os dias, também tem seu lado perigoso – a maldade surge do silêncio diante da injustiça, ou ao apoiar quem oprime os outros, do bullying praticado nas escolas – enfim, o Pennywise do excelente Bill Skarsgard representa tudo isso e algo mais – sua ameaça é, além de física, psicológica – transformando esta continuação em quase um terror psicológico, em certos pontos. A história se passa 27 anos após o filme passado, com os sete garotos do “Clube dos Otários” já crescidos e tocando suas vidas – deixaram o passado para trás, mesmo que forçadamente – mas, quando coisas estranhas voltam a acontecer na cidade de Derry – e está cidade fictícia, através de seus muitos moradores preconceituosos, racistas ou abusivos, representa uma grande parcela da população – o Mike, de Isaiah Mustafa, percebe que Pennywise estaria de volta e decide convocar os demais amigos – todos enfrentando seus próprios demônios na vida: a Bev de Jessica Chastain vive um relacionamento conturbado; o Bill de James McAvoy não consegue completar bem suas obras literárias e ainda se sente culpado pela morte do irmãozinho Georgie; o Eddie de James Ransone vive sob a pressão de um emprego não muito agradável, além de não estar feliz com seu casamento; o Ben de Jay Ryan que não esqueceu de sua paixão pela Bev; o Richie de Bill Hader que teme inconscientemente retornar a Derry; Mike também lamenta o triste fim de seus pais em um incêndio; e o Stanley de Andy Bean, que convive com a depressão – mesmo assim, os amigos acabam se reunindo para tentar destruir de uma vez por todas a ameaça da Coisa, que volta a tomar conta dos pensamentos do grupo, enquanto que lembranças do verão de 1989 vem a tona, para que várias decisões possam ser tomadas na época atual. Tendo que estabelecer a continuação do desenvolvimento dos sete personagens – habilidosamente bem divididos, sem deixar algum menos enfocado (inclusive a ausência de um certo personagem é incrivelmente bem representada), o roteiro de Gary Douberman segue a evolução deles, demonstrando características da adolescência em suas vidas atuais – nesse ponto o filme é extremamente feliz em ressaltar os estados emocionais de Bill, que, vivido por McAvoy muito bem, conserva até mesmo sua gagueira de modo crível – até mesmo os empregos que escolheram vão se mostrando perfeitos para suas personalidades, como Richie ter virado um comediante – e, por conta disso, o longa consegue se dar bem com o humor, que caracterizava perfeitamente o grupo no filme anterior – embora derrape com relação a Bev de Jessica Chastain, ao inserir de uma maneira artificial que ela vive relacionamentos abusivos – igual vivia quando era abusada por seu pai – algo perdoável pela atuação sempre pontual e expressiva de Chastain e de Sophia Lellis, que vive a versão jovem dela, novamente. O que poderia soar confuso é esclarecido em decisões de edição e transições bem elaboradas e criativas – particularmente gostei do momento onde Mike está ligando para os amigos virem a Derry e seu número aparece sem o nome no celular dos outros seis integrantes – demonstrando sutilmente como a vida adulta atrapalhou a amizade entre eles, afinal, nenhum deles tem sequer o contato dos outros amigos – sem falar quando um céu estrelado se transforma em um quebra cabeças, demonstrando o estado complexo das mentes deles em relação ao embate com Pennywise – inclusive, o longa é, novamente, rico visualmente – seja por sua fotografia com uma paleta de cores incríveis, transformando o vermelho dos balões e maquiagem do palhaço em um sinal de ameaça claro, além de uma mise-en-scène apuradíssima, principalmente quando lida com os flashbacks, mesclando as transições entre as versões adultas dos personagens com discretos efeitos especiais - e isso com o beneficio dos atores mirins compondo da mesma forma espirituosa seus papeis do primeiro capitulo. Mas lamentavelmente existe um certo exagero nessa mistura de passado e presente, que transforma alguns momentos em repetições – como ao mostrar a mãe de Eddie ou ao reforçar o bullying que Ben sofria no colégio – além da inserção pouco funcional do personagem de Teach Grant, que vive a versão adulta do Henry Bowers, que era um rival do Clube dos Otários e tem seu trauma com o pai abusivo retratado de forma superficial, além de que sua fuga de um hospital psiquiátrico para infernizar os outros personagens não muda praticamente nada na trama – essas decisões quase pausam o segundo ato do filme – que só não tem um terceiro ato perfeito dado ao uso errôneo de certas tentativas de causar surpresa nas cenas de tensão – mas, felizmente, não é algo duradouro, afinal, Muschietti tem um domínio exemplar sobre a tensão e jamais apela para sustos fáceis – ele se aproveita novamente da boa concepção dos personagens e os coloca em situações aflitivas, se dando bem com as ciladas que Pennywise traz para os membros do Clube dos Perdedores – as cenas de “ilusão” que o palhaço proporciona são realmente bem executadas – o uso sutil de CGI é um acerto, principalmente na concepção visual do palhaço – repare como sua forma física nunca é igual sempre que aparece – ele aumenta e diminui de tamanho (e forma, as vezes) em cada cena – com efeitos bem renderizados – apoiado, claramente, pela composição visceral de Bill Skarsgard, que se sobressai a sua forte maquiagem e efeitos – assim como outras criaturas que surgem no filme – monstros com características que assustam devido a semelhanças com o passado ou algum trauma dos personagens – como a idosa que Bev encontra em seu antigo apartamento ou uma enigmática aranha com cabeça humana – tudo isso conduzido com uma fluidez que transformam um filme com quase três horas de duração em uma experiência que passa realmente sem cansar. It – Capítulo 2 ainda encontra tempo para uma curiosa participação especial do próprio Stephen King, ao coloca-lo em cena com o personagem de McAvoy fazendo uma brincadeira por não ter gostado do livro deste – obvia referência ao fato de que King não costuma aprovar boa parte das adaptações para cinema de suas obras – e ainda existem referências a outros trabalhos do escritor, como O Iluminado (mais especificamente com o filme do Stanley Kubrick) e com O Apanhador de Sonhos e A Torre Negra – algo que pode ser uma surpresa para os fãs, mesmo que demonstrado de forma sútil. Esta segunda parte da saga de Pennywise versus o Clube dos Otários acaba se mostrando tão boa quanto a anterior, por estender de forma natural e verdadeira seus temas sobre medos e receios para a vida, além de falar com sutileza sobre preconceitos, bullying e a maldade humana – mesmo que não seja um tema inusitado ou inovador, It 2 é ainda um filme de terror envolvente e emocionante, retratando a amizade de forma muito tocante, o que é algo diferente dentre uma história com elementos assustadores, sejam os da ficção ou da realidade por trás de seus personagens complexos e verdadeiros.
Kong: A Ilha da Caveira
3.3 1,2K Assista AgoraPassados oitenta e quatro anos da estreia do clássico King Kong nos cinemas, é impressionante notarmos como uma história simples sobreviveu tão bem ao tempo, ao ponto de sempre estar na mente do público – mesmo graças a refilmagens, sequências ou crossovers lançados ao longo dos anos. A clássica trama de um macaco gigante que se apaixona por uma loira ganha contornos bem mais explosivos e agitados com está nova imaginação dirigida Jordan Jogt-Roberts – encarando pela primeira vez uma superprodução de quase 200 milhões de dólares e recheada de astros do primeiro escalão de hollywood.
O cineasta consegue acertar na linha tênue entre trazer algo novo e se manter respeitoso com relação aos trabalhos originais – ou seja, Jogt-Roberts traz a história de Kong para os anos setenta, em meio à retirada dos Estados Unidos da Guerra do Vietnã, re-imaginando o primeiro encontro do gorila gigante com a civilização. Desta vez não temos mocinhas em perigo – pelo menos não durante todo o tempo – ou alguém querendo procurar a tal da Ilha da Caveira para fazer um filme (como no original de 33 e na refilmagem de 2005) ou para procurar petróleo (como na refilmagem de 1976) – o objetivo da organização Monarch, representada aqui pelo Dr. Bill Randa (Goodman) e seu assistente Houston (Hawkins) é conseguir fundos para ir até a ilha a fim de, supostamente, fazer uma pesquisa geográfica. Ao conseguirem o apoio de um senador norte-americano, eles vão precisar levar para a viagem de navio um guia preparado para desbravar regiões hostis, o aventureiro James Conrad (Hiddleston), a fotografa Mason Weaver (Larson) e a equipe de soldados do Capitão Preston Packard (Samuel L. Jackson), além de alguns cientistas. Mas ao chegarem lá, logo de cara, são surpreendidos pela figura de Kong, disposto a revidar as bombas que os helicópteros dos homens jogam no solo para “pesquisa” – a ilha se revela bem mais do que um campo para ser estudado, como é previsível constatar.
Apesar de ter mais personagens do que o necessário – o personagem de John Ortiz não faria falta alguma para a trama – o roteiro explora de forma curiosa a mentalidade de cada um deles – especialmente para o Hank de John C. Reilly, que vive um sobrevivente da segunda guerra mundial, que caiu na ilha nos anos quarenta e ficou por lá, sem ter como fugir – vem dele o melhor alivio cômico da produção, que não está nem um pouco disposta a se levar a sério – com cenas que vão do estilo de revista em quadrinhos até absurdos completos que só sairiam da mente de uma criança concentrada em um jogo de videogame. O personagem de Samuel L. Jackson, embora parece um maluco desnaturado mesmo, ganha contornos curiosos graças ao trabalho sempre coerente do ótimo ator, que consegue convencer que o publico de que realmente odiou o King Kong desde o primeiro momento que o vê – sim, Jackson é o vilão do filme – o clima de brincadeira se arrasta até um ponto onde o habitual “motherfucker” do ator é satirizado brevemente em um determinado momento. Já Tom Hiddleston não demonstra muita coisa como o aventureiro James, em um personagem criado com o clichê do “não me importo com nada e ninguém, mas vou salvar todo mundo”; e Brie Larson, com sua Mason Weaver (provável homenagem a Sigourney Weaver, por seu trabalho enfrentando “monstros” na série Alien), consegue fazer uma variação de personagens semelhantes aos vividos por Fay Wray, Jessica Lange e Naomi Watts – ao que podemos ver, ela desenvolve uma relação de respeito por Kong, sem jamais cair naquela paixão abusiva que o gorilão demonstrava antes – é claro que aqui não é a intenção do diretor em comparar isso, mas, ainda assim, serve para fugir do clichê – mesmo não sendo muito marcante – felizmente, Larson entrega um dos melhores diálogos em uma conversa com o personagem de Jackson, quando ele questiona que pessoas como Mason (humanistas) foram responsáveis pelos Estados Unidos terem saído do conflito – “Como pessoas sem armas são responsáveis por perder uma guerra?”, responde ela.
Além de escancarar referencias ao clássico Apocalypse Now do Coppola, com helicópteros rumos ao sol, o diretor enche o filme com referências aos anos setenta (bonequinho do presidente Nixon no painel de um dos helicópteros) e músicas da época – soando até exagerado e sem muito proposito – mas, ao menos, nos levando ao sentimento da época. Mas, mesmo assim, Kong: A Ilha da Caveira é um “filme espetáculo”, ou seja, uma produção que sobrevive de seus efeitos especiais e design de produção. E, neste ponto, é realmente um trabalho impressionável, já que se sobressai no terreno de convencer na criação de criaturas criadas em computador – seja os animais gigantescos da ilha como Alces, Aranhas ou monstros parecidos com dragões e dinossauros – mas, felizmente, o trabalho mais impressionante é o do nosso astro principal – utilizando-se da captação de movimentos do ator Toby Kebbell (que também vive um dos soldados do capitão Packard), King Kong nunca pareceu tão grande em tela – de fato, ele tem medidas maiores que as de suas encarnações anteriores – basta notar como um certo personagem ficará na palma de sua mão. O efeito funciona, dado o realismo de movimentos e de detalhes, como os olhos e rugas no rosto e até os pelos que parecem ter sido concebidos um a um. As tonalidades de cores fortes na fotografia também dão um belo e impressionante resultado para os cenários da ilha – sem contar que o diretor mostra bem a ação, com boas angulações – mas algumas um tanto “falsas”, quando mostra Kong lutando com alguns monstros – em movimentos de câmeras impossíveis de serem feitos por uma “câmera real”.
No fim das contas, é um trabalho de ação e fantasia agradável e bem humorado, que acerta em não se estender demais em sua duração e nos apresentar personagens humanos interessantes – tão legais que até compensa uma tentativa gratuita de emocionar com o destino de um deles nos créditos finais. Tecnicamente bonito e estruturado, é um filme a altura do mito de King Kong, dando um futuro para o personagem como uma franquia, como confirma a cena pós créditos – que fará os fãs de monstros gigantes ficarem loucos.
Escrito em 17/03/2017
Godzilla
3.1 2,1K Assista AgoraPode parecer para alguns uma bobeira um filme sobre um monstro maior do que muitos prédios que sai por aí destruindo tudo que encontra pela frente... mas não é não! Muita coisa que o cinema nos proporcionou até hoje consegue ir além de aparências e a história do "Rei dos Monstros" é um exemplo disso.
O filme original foi feito no Japão em 1954 e passava uma mensagem sobre os problemas que o homem causa a natureza e acabam se voltando contra ele; naquele caso, Godzilla representava o mal que o ser humano causa: o monstrengo era um descendente dos dinossauros que sobreviveu nos subterrâneos do Japão e ficou "bombado" com níveis de radiação de testes nucleares realizados no oceano, o que o deixou praticamente indestrutível, pois nem mesmo as bombas atômicas eram capazes de detê-lo, pelo contrario, o deixavam mais forte ainda! Era também uma parábola do temor que os japoneses tinham apos o fim da 2ª guerra, com as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki.
O diretor Gareth Edwards (do filme Monstros, 2010) tinha pela frente o fardo de tentar criar um conceito novo para a história de Gojira; sua intenção parece ser a de manter uma parte do que havia no original, colocando o monstro como uma ameaça da natureza que o ser humano subestima - e, consequentemente, se dá mal por isso, é claro.
Na verdade, o que temos aqui não é uma refilmagem do filme de 54, e sim um filme baseado no longa original, prestando uma homenagem ao clássico. Tomando desta forma, o roteiro desta nova versão ignora tudo que aconteceu nos cerca de 30 filmes de Godzilla que haviam sido feitos. Até a origem é alterada, já que o monstro ainda não apareceu para o público, sendo até então uma lenda japonesa - já nos créditos iniciais acabamos constando isso; os inúmeros testes nucleares feitos no oceano pacífico na década de 50 eram uma desculpa para tentar eliminar o monstro e não deixar o público saber de sua existência.
Aqui a história começa se passando em 1999, quando o importante arqueólogo Serizawa (Ken Watanabe) encontra nas Filipinas os restos mortais de um "parente" de Godzilla, junto de uma criatura monstruosa diferente, ainda em estado de evolução dentro de um casulo; enquanto isso estranhos tremores causam um acidente em uma usina nuclear japonesa
e mata a esposa (Juliette Binochet, fazendo uma ponta bacana) de um dos responsáveis da usina, o americano Joe Brody (Bryan Cranston, um dos destaques do elenco);
E aí entra o querido Godzilla... como o fator de "defesa"... como a ordem natural que visa manter a natureza da terra em ordem! O parasita sendo eliminado!
Até então, tudo bem. Mas só seremos apresentados ao nosso amigo monstrengo depois de quase uma hora de filme. Em parte isso funciona, para causar suspense. Em outra, decepciona, já que na primeira e segunda aparição o diretor mostra muito pouco do bicho, preferindo cortar para imagens de tv filmando ao vivo... ou desviando a câmera do monstro... para mostra-lo na integra mais perto do final. O que não é de todo ruim, pois a conclusão e qualidade gráfica da recriação digital dos seres (tanto Godzilla e os parasitas) é muito boa - fazendo nos esquecer da horrorosa versão de 1998 do Rolland Emmerich; o confronto das criaturas será empolgante (e até emocionante) para os fãs de Kaiju.
Mas o que atrapalha o filme é aquela velha síndrome dos filmes catástrofes: tentar apresentar personagens com mais detalhes para que na hora da tragédia o espectador sinta pena e compaixão para eles lutarem pela sobrevivência. Esse é o ponto falho de Gareth Edwards. Devido à uma construção fraca das personalidades dos personagens, em especial de Ford, que ainda tem a atuação apática de Aaron Taylor-Johnson.
Não só nos filmes catástrofes pode acontece isso. Às vezes em filmes de monstros mesmo. Muitas vezes deu certo como em Aliens com a Sigourney Weaver ou com o Schwarzenegger em Predador. Neste novo Godzilla não temos uma Ripley ou um Alan "Dutch" para nos simpatizarmos e torcermos; e isso torna alguns momentos do filme um tanto sem emoção; acabamos não nos envolvendo com nenhum personagem, a não ser o Godzilla, é claro... na sessão que assisti, um pessoal chegou até a vibrar com um ato do monstro... coisa de nerd!!!
A intenção do diretor é boa mas a realização acaba não atingindo todo o objetivo. Porém, ainda é um filme de monstro correto, que peca por demorar de forma um pouco desnecessária a aparição do personagem-titulo; mas nada disso parece ter afetado tanto o público: rendeu quase 100 milhões de dólares na primeira semana de bilheteria e já teve sinal verde da Warner para ter uma sequência, onde esperamos mais tempo de tela do Godzilla do que de personagens sem personalidade.
Escrito em 24/05/2014
O Céu da Meia-Noite
2.7 511Mesmo tendo experiências com direção em bons trabalhos, como o longa Boa Noite e Boa Sorte (2005) ou na série Catch-22 (2019), parece que George Clooney, como cineasta, ainda precisa aprender mais – afinal, com o Céu da Meia-Noite, ele tenta tornar uma ficção cientifica em um palco para tratar de dilemas familiares e pessoais, assim como Christopher Nolan fez em Interestelar ou Alfonso Cuarón em Gravidade – usando o pano de fundo do aquecimento global, o astro de Hollywood opta por arcos e decisões dramáticas pouco convincentes, apelando, muitas vezes, para um melodrama infundado, que, dada a criação, desenvolvimento e apresentação de personagens pouco inspiradas, transforma esse longa em uma decepção – e o pior: sendo desonesto com o espectador.
Baseado em um livro de Lily Brooks-Dalton, com roteiro escrito por esta em parceria com Mark L. Smith, o filme conta a história de Augustine, vivido pelo próprio Clooney, um renomado cientista, em fase terminal de vida, devido à um câncer severo – se passando no ano de 2049, onde a Terra está a beira do colapso, devido as drásticas e terríveis mudanças climáticas, ele é o último refugiado em uma base de comunicação no polo norte – uma das poucas regiões onde o aquecimento global não causou efeitos – isolado, ele acaba encontrando dentro da estação uma menina (Springall), que não fala, mas acaba ficando ao lado dele, para que consigam chegar até uma antena, que pode ajudar no contato com uma nave espacial, que em missão para tentar estabelecer vida em uma lua de Júpiter, está voltando a Terra – e, agora, cabe a Augustine correr contra o tempo para avisa-los das condições em que o planeta se encontra e garantir o futuro da raça humana.
Com toda essa urgência da trama – simplesmente a “continuidade da vida dos seres humanos” – é impressionante como tanto a direção de Clooney quanto o roteiro não conseguem passar a tensão que isso deveria provocar – optando por trabalhar a questão envolvendo a maternidade/paternidade na vida de cada um de seus personagens, Clooney erra por não dar a devida atenção para todos os personagens – seu único acerto acaba sendo em sua composição como Augustine – demonstrando o peso e cansaço por uma vida não vivida como queria, um relacionamento amoroso que não conseguiu explorar melhor ou a própria solidão em viver na estação no polo norte – Clooney (o diretor) tenta mesclar todos os temores do personagem com a luta para garantir a sobrevivência e continuidade da Terra – fazendo um paralelo disso com a questão de que seu personagem quando jovem (vivido por Ethan Peck, que não se parece em nada com Clooney) luta por encontrar outros planetas para a humanidade continuar, mas dá pouca atenção para sua companheira – indo supostamente contra a vontade de procriação, que suas pesquisas exploram – ainda assim, torna-se até bonita a maneira como tenta interagir com a menina vivida pela pequena Caiolinn Springall – um papel até desafiador para uma criança, já que não diz uma palavra e precisa parecer expressiva – isso torna as sequências na Terra curiosas de se acompanhar até certo ponto – porém, a conclusão acaba sendo somente a utilização de um recurso quase batido de inserir personagens que representam algo por trás, sem mais complexidade nisso – algo que em muitas outras obras é um tipo de linguagem que faz sentido e causa impacto – de Lady Bird até Mãe, do Aronofsky, existem vários exemplos que lidam bem com isso.
Mas aqui, quando passa a mostrar os integrantes da nave espacial, O Céu da Meia-Noite se perde tristemente – e o erro está, justamente, por querer dar a cada membro da missão uma ligação com a questão da maternidade/paternidade – Felicity Jones – em uma atuação quase robótica e inexpressiva – vive uma astronauta gestante, ao passo que o capitão da nave, vivido por David Oyelowo, é o pai da criança – relegando o piloto Mitchell, do Kyle Chandler (que tem o azar de participar de outro conflito familiar fraco em um filme, depois do que fez em Godzilla – Rei dos Monstros) a apenas mostrar que sente falta dos familiares que ficaram na Terra – e o cientista Sanchez de Demián Bichir, que parece ter só a função de ver a outra tripulante da nave, a Maya de Tiffany Boone, como uma filha – e, esta, praticamente sem mais função nenhuma para a trama – culminando numa cena que deveria ser tensa e até triste, mas não causa impacto por não sabermos ao certo exatamente quem os personagens são, de fato – Clooney parece que acha que mostrar os integrantes da nave vendo hologramas antigos de suas famílias é o suficiente para nos identificarmos com eles – como se Maya, por exemplo, demonstrasse quem era só por dizer que tinha um “gatinho inteligente” – é uma falta de inspiração que torna a “mensagem” do longa ainda mais fraca – e, quando disse que o diretor foi desonesto, me refiro, principalmente, à um certo momento no primeiro ato, quando uma personagem procura desesperadamente por sua filha – conforme o terceiro ato mostra, tal momento foi criado só para ajudar a “esconder” uma revelação que não deixa de soar um tanto forçada – e, com todos esses elementos desenvolvidos sem criatividade, jamais consegue emocionar ou cativar o espectador.
Não sendo um desastre completo por seus atributos técnicos – a fotografia é belíssima, tanto em mostrar os ambientes no espaço e, principalmente, pelas paisagens no ártico – enquanto que o design de produção é curioso, por dar um visual um tanto retro para o interior da grande nave espacial – que por fora é bonita com seus imensos arcos espelhados e grandes “antenas infláveis” – ou seja, um bom dinheiro gasto para uma obra de pouca substância – o ritmo lento da narrativa ainda interfere em momentos onde a ação poderia ser mais urgente – sim, como disse antes, o desenrolar da história não capta essa urgência – seja por uma tempestade no meio do gelo, o quase afogamento em um trailer ou uma chuva de gelo enquanto três astronautas andam fora da nave – o que faz com que o compositor Alexandre Desplat precise trabalhar sua trilha em praticamente todos os momentos – “ditando” emoções passo a passo – como se Clooney apenas tivesse lhe dito: “agora você faz um acorde para emocionar... agora coloca algo meio agressivo para causar tensão” – só não fica pior porque o compositor realmente é talentoso e cria boas composições.
Fechando com um plano final tão sem graça – que chega a rivalizar com o fim ridículo da nova versão de O Grito – O Céu da Meia-Noite é aquele tipo de longa que tem boas intenções, mas sua própria pretensão simplória o impede de ser uma experiência verdadeira e introspectiva para o expectador – algo que Clooney não aprendeu com Alfonso Cuarón, quando participou como ator em Gravidade.
Mulher-Maravilha 1984
3.0 1,4K Assista AgoraOs filmes, mesmo que os mais simples e ingênuos, ainda são capazes de ter influência sobre nós – de um jeito ou de outro. Em tempos onde esperança e companheirismo parecem tão distantes, assistir um longa igual Mulher-Maravilha 1984 me causou uma estranheza que não esperava – o fato de lidar com personagens que, mesmo tendo super poderes e fardos típicos das revistas em quadrinhos, ressoam como seres humanos comuns em seus dilemas e problemas pessoais – sem jamais soarem estereotipados – apesar de não ser uma abordagem inédita ou inovadora, esse cuidado da diretora Patty Jenkins nesta continuação do sucesso de 2017 é um ponto que coloca o filme em destaque perante outros do gênero, se tornando um dos melhores trabalhos desse universo da DC/Warner, ainda mais se levarmos em conta que é um longa de super-herói que acaba por nos fazer refletir, mesmo que indiretamente, sobre nossa possível perda de humanidade nos últimos meses devido a pandemia – justamente por abordar questões primárias (mas importantíssimas) como egoísmo e coletividade humana.
Propositalmente abrindo o longa com um flashback, mostrando a jovem Diana (Lilly Aspell) participando de um grande torneio de resistência em Temiscira, Patty Jenkins já dita aí o que os protagonistas enfrentarão em suas vidas – os fardos de arcarem com suas vontades e desejos em contra ponto do bem (ou mal) de quem os cercam – por mais simples que possa parecer, é algo abordado de forma tão graciosa pela diretora (e seu roteiro, co-escrito por Geoff Johns e Dave Callaham) que torna todos os destinos dos três personagens centrais em algo empolgante e verdadeiro – ora, se não nos importamos com quem é retratado na tela, logo perderíamos a lógica em acompanhar o filme.
Já dispensando a apresentação de nossa heroína, Mulher-Maravilha 1984 começa situando Diana (Gal Gadot) em sua vida na década de 80 – vivendo de forma reclusa, mas conseguindo fazer seus atos heroicos disfarçadamente (evitando ser exposta ao grande público), ela também trabalha em um grande museu de Washington, onde conhece outra historiadora, Barbara Minerva (Kristen Wiig), que investiga o valor de uma misteriosa pedra mística, que, segundo lendas, concede desejos aos que a tocam – tal artefato é procurado também por um duvidoso magnata do petróleo, o quase “coaching motivacional”, Maxwell Lord (Pedro Pascall), que planeja muitas coisas com o objeto – fazendo Diana mergulhar em uma trama onde sentimentos antigos precisarão ser postos em xeque para que ela consiga evitar que o mundo se torne um caos completo – principalmente com o retorno de seu grande amor, o piloto Steve Trevor (Chris Pine).
Sem se preocupar em desenvolver os novos personagens e ainda dando atenção aos novos desafios e dilemas de Diana, Petty Jenkins conduz a trama de maneira cuidadosa, dando espaço para mostrar dramas pessoais mesclados com questões sociais – se passando na década de oitenta, o longa é, mesmo assim, absurdamente atual quando lida com vontades e desejos de consumo da população – o que nos traz a vilania do projeto – que se apresenta de forma diferenciada da grande maioria dos filmes do gênero, por jamais colocar os vilões com pretensões apenas megalomaníacas e más – inclusive, esse era um dos poucos defeitos do filme anterior, onde o vilão era escondido até o final e se revelava em uma luta um tanto apressada (creio que nem culpa de Jenkins isso foi, já que houve pressões do estúdio para ficar assim).
Em Mulher-Maravilha 1984 tudo é desenvolvido com calma e detalhes – o que também diferencia o ritmo da obra – se assemelhando bastante, por exemplo, com o desenvolvimento que Richard Donner dava para seu Superman – O Filme em 1978 – sendo assim, sobra tempo para entendermos a personalidade de Barbara Minerva – que sob uma atuação simpática e expressiva da ótima Kristen Wiig, passa perfeitamente a mudança de personalidade da personagem – de uma pessoa tímida e reprimida, para alguém que se questiona do por que é desprezada e humilhada pelos colegas de trabalho e de como se sobressair a isso por bons ou maus motivos – algo que lembra um pouco a composição de Michelle Pfeiffer como Mulher-Gato em Batman – O Retorno – mesmo que agora seja em uma escala menor do que no primeiro filme, os pontos sobre o empoderamento feminino e a luta contra o machismo são bem inseridos – como quando Barbara é assediada por um bêbado na rua – e sua admiração por Diana também é interessante, principalmente quando ela começa a assumir os poderes que, mais tarde, a transformarão na Mulher-Leopardo – enquanto que Gal Gadot cada vez mais se consolida como uma escolha perfeita para ser a Mulher-Maravilha – é notória a sua evolução como atriz desde sua aparição em Batman vs Superman; sabendo agora ser mais expressiva (e, desta vez, de um jeito capaz de realmente emocionar o espectador), a atriz coloca os desafios da personagem a flor da pele – aliás, o roteiro é inteligente em estabelecer toda a postura elegante e intelectual de Diana, mostrando sutilmente como ela se adaptou a vida fora de Temiscira e está ainda mais experiente, conforme demostrando ao utilizar o poder da invisibilidade no clássico avião a jato dos quadrinhos – e estabelece o ponto central do longa, quando precisa abrir mão de suas vontades e desejos pessoais para poder defender o planeta todo – o retorno de Steve Trevor, que poderia soar como um mero apoio para a heroína, tem todo um desenvolvimento adulto e diálogos criveis e bonitos – o que ajuda Chris Pine a compor uma atuação mais leve, porém, útil para estabelecer a bela história de amor entre os dois – fazendo do filme um excelente romance também – conseguindo se sobressair de clichês pela veracidade e química entre o casal.
Mas quem consegue roubar a cena é Pedro Pascoal, transformando seu Max Lord em um vilão multifacetado e com motivações muito reais – algo que poucos filmes de super-herói conseguem – e a composição do ator é até ousada, afinal, ele se equilibra no humor, o que poderia tornar o personagem caricato – mas Pascoal lida com isso de forma tão genial quanto Gene Hackman com o seu Lex Luthor nos filmes do Superman – o que mais impressiona é o fato de nos identificarmos com ele, seja pela sua luta diária em “ser alguém na vida”, tentando de todas as formas fazer sua falsa empresa ser... real – ou em sua relação com seu filho Allister (Lucian Perez), que acaba sendo um ponto chave da trama – as motivações de Lord são encarnadas com atenção e meticulosidade na atuação de Pascoal, tornando o personagem um achado – e, talvez o mais curioso, por mais divertido e cômico que pareça, a premissa dele – “a vida é boa, mas pode ser melhor” ou a forma como ele concede os desejos – acaba sendo, se pararmos para pensar, algo assustador – e, de certa forma, uma crítica aos inescrupulosos e picaretas que tentam vender os esquemas de “pirâmide” ou os coaches que tanto pregam “receitas mágicas” para motivar as pessoas.
E Patty Jenkins mostra isso de forma sútil, mas impactante – ao colocar várias pessoas desejando coisas, a obra expõe o talvez mais perigoso lado do ser humano: o egoísmo. É impossível não imaginar que o mundo se transformaria em um caos completo (como é muito bem demostrando aqui) se todas as pessoas apenas desejassem coisas para seu benefício próprio – repare como a diretora é inteligente em ir situando isso nos personagens – no trio central, especificamente, entre Diana, Barbara e Lord – cada um lida de um jeito com seus desejos – que sempre trarão consequências, principalmente, se não abrirem mão deles quando prejudicam os demais – e isso se estende para o resto do mundo: seja com um egípcio ganancioso que quer terras de seus antepassados (algo que prejudica diretamente a população), uma pessoa que sofre por xenofobia, um presidente que deseja mais poder nuclear para sua nação, alguém que tem medo de perder os poderes que adquiriu ou uma pessoa que tem medo de ser obrigada a renegar seu grande amor – é uma demonstração forte de algo que impressiona pela leveza como é mostrada – principalmente em certo ponto onde um belíssimo monologo joga tudo isso em evidência.
Mas, além de toda essa temática e boa condução de trama, Mulher-Maravilha 1984 é um primor visual – relegando momentos inesquecíveis para o gênero – aliada com uma direção de fotografia magistralmente colorida (mais uma vez se opondo ao visual escuro de boa parte das obras da DC nos cinemas), de Matthew Jensen, Jenkins compõe momentos que beiram a perfeição visual – a já citada abertura em Temiscira, a Mulher-Maravilha utilizando seu laço entre raios no céu ou também quando aprende a fazer uma certa coisa (um momento onde os efeitos digitais ficaram perfeitos, inclusive) e, talvez a cena mais bonita do longa, quando Diana e Steve atravessam a chuva de fogos de artificio do 4 de Julho – e falando em cores, é digno de elogios como a direção de arte consegue captar essa característica através da reconstituição de época – se estendendo aos figurinos e penteados característicos da década de oitenta – esse cuidado em compor as cenas também se estende para a ação – que embora em uma quantidade um pouco menos do que no filme de 2017, entrega momentos muito bem coreografados e enquadrados – seja a primeira aparição da personagem em 1984 em um shopping center, na perseguição com caminhões numa estrada egípcia e na luta na Casa Branca – demostrando o controle perfeito da misce-en-scene da diretora – que só desliza um pouco no confronto entre a guerreira Amazona e a Mulher-Leopardo mais ao fim, com um visual mais escuro e um pouco mais de cortes do que deveria ter.
Mas tudo isso é ainda bem apoiado pela brilhante trilha-sonora de Hans Zimmer – que dita o tom do filme do início ao fim – e isso no bom sentido, sem jamais soar óbvia ou apelativa – fazendo desse trabalho do compositor um de seus melhores dos últimos anos – ele é inteligente em elevar seu tema da personagem, criado lá em 2016 para Batman vs Superman e inserir novas composições – mesclando ainda elementos que Rupert Gregson Williams criou como tema de amor para Diana e Steve em 2017 – é um trabalho cuidadoso, que fez Zimmer utilizar o belo tema “Beautiful Lie” novamente – como se aquele tema do longa de Zack Snyder merecesse um filme melhor para ser executado.
E Mulher-Maravilha 1984 é melhor. Um trabalho feito com muito amor e respeito – assim como toda a essência desta personagem imponente – que, felizmente, chega aos cinemas neste fim de ano – trazendo aquele gostinho de esperança que parece tão distante nos últimos meses – esse filme é sem dúvida um longa necessário para todos nós no momento – e, por mais ingênuo que pareça, serve perfeitamente para evidenciar à todos nós como precisamos evoluir muito para que um dia cheguemos a uma vida em sociedade sem preconceitos, egoísmo e tudo que há de ruim – como dito pela Antiope de Robin Wright, “nada bom nasce de mentiras” – nesses tempos de pandemia, nada mais importante do que a verdade entre as pessoas para garantir nosso bem estar – esse sim, um desejo que provavelmente não teria consequências ruins.
*a cena pós créditos vai emocionar os fãs, finalizando o longa de forma perfeita e encantadora com uma aparição de uma personagem importante, interpretada por uma atriz mais do que especial, maravilhosa!
Tenet
3.4 1,3K Assista AgoraO mestre Stanley Kubrick dizia: “Se pode ser pensado, pode ser filmado” – quem sou eu para contrariar uma declaração de um dos maiores cineastas de todos – mas, vendo este novo trabalho de Christopher Nolan, creio que essa “regra” tenhas suas exceções – Tenet mostra que nem sempre uma história diferente e incomum pode se tornar algo estimulante ou totalmente satisfatório para o espectador – ou, ao menos, visualmente e narrativamente organizado o suficiente para que não soe como uma história apenas desnecessariamente confusa – como, lamentavelmente, é o caso deste filme, escrito e dirigido por Nolan, que, ao longo de uma carreira brilhante (tirando um ou outro momento), sempre foi famoso pela complexidade de suas tramas e na forma cirúrgica como as contava – mas, ao final da sessão de Tenet, confesso que não senti todo esse cuidado de construção narrativa, como havia acontecido em A Origem, sua trilogia do Batman ou até mesmo em Interestelar.
Assim como o filme estrelado por Leonardo DiCaprio em 2010, Tenet também envolve espiões – mas, desta vez, em modo mais clássico, a princípio – ao invés de invadirem sonhos, os personagens agora tem recursos para viajar ou prever o futuro – fazendo do longa uma mistura de ficção cientifica com tramas de James Bond – está franquia, aliás, admirada por Nolan – que insere situações bem aos moldes dos filmes do espião britânico – misturando, nisso tudo, elementos que irão nos remeter a outras obras como Minority Report, o próprio A Origem (pela complexidade da trama) e até Interestelar (pelas questões temporais e de física quântica).
Entretanto, a falha de Nolan (tanto pelo seu roteiro e sua condução de trama), vem de um certo desleixo em apresentar as situações e personagens de maneiras mais dinâmicas – algo primordial para garantir a movimentação de uma trama do gênero – e, se antes, os diálogos expositivos não eram tão incômodos nas obras do cineasta devido a boa fluência dos diálogos, em Tenet isso se torna quase que uma obrigação de cada cena – e, evidentemente, isso acaba por ser cansativo – deixando passagens confusas, demoradas e até mal ritmadas – é como se o diretor acreditasse que misturar tomadas em câmera reversa com outras para frente fosse um recurso genial – o que não é, mas poderia ser interessante – e, convenhamos, há momentos bem feitos disso – mas, no geral, parece ser uma regra forçada e pouco cinematográfica – causando uma sensação inusitada de confusão visual – e totalmente desnecessária – pois a trama não é tão complicada assim – mas, parte das explicações técnicas e cientificas o são – ao ponto de uma personagem dizer que é melhor “não tentar entender” como as coisas funcionam – o que, se comparado ao cuidado narrativo de A Origem, não deixa de ser decepcionante.
Tudo isso para contar a história de um agente da CIA (Washington) – identificado apenas como “o protagonista” – que, após ser capturado em uma missão de recuperação de um misterioso artefato na Ucrânia, recebe um convite para participar de um time secreto de agentes – chamados de “Tenets” – para localizar o perigoso terrorista anglo-russo, Andrei Saitor (Branagh), que tem planos desconhecidos com o item perdido na missão no leste europeu – tentando se aproximar de Saitor através da esposa dele, a avaliadora de quadros valiosos, Katherine (Debicki), o protagonista contará ainda com a ajuda do agente Neil (Pattinson) e com as inusitadas armas supostamente vindas de outra época – envolvendo viagens no tempo e leis de física reversa.
Embora as explicações sejam confusas e até cansativas, a história de Tenet é bem simples – lembrando bem um filme de 007 – note como a desenvoltura do personagem de John David Washington (de Infiltrado na Klan) é parecida, às vezes – e isso é algo bem demonstrado pelo ator, que mostra força e desenvoltura para a ação, sabendo manter uma ironia fina e um pouco de personalidade – ou pelos menos o máximo possível disso, já que o roteiro de Nolan não se aprofunda muito em mostrar tais coisas – afinal, quais as reais motivações dele? Ou do personagem de Robert Pattinson – que, infelizmente, é o “encarregado” de dar todas as explicações sobre os funcionamentos das “leis” dos Tenets – um ótimo ator, que faz o que pode com um personagem que, dada a sua importância, deveria ter sido melhor construído – soando apenas como um coadjuvante de apoio, o melhor amigo do protagonista e nada mais – essa frieza dramática fica visível quando Nolan tenta supostamente emocionar com a relação de amizade dos dois mais ao fim – e o recurso falha, pois isso não foi bem desenvolvido antes.
Essa falta de cuidado também acaba caindo sobre o relacionamento abusivo que a personagem de Elizabeth Debicki vive com o terrorista Andrei de Kenneth Branagh – enquanto que a atriz se esforça para tornar crível o drama de sua personagem sobre a chantagem emocional que sofre para permanecer ao lado do marido autoritário e manter contato com seu filho pequeno, ainda sobra tempo para desenvolver uma tensão sexual com o personagem de Washington – já Branagh faz de seu vilão um ser devidamente temível e asqueroso – tentando evitar alguns clichês em suas expressões, o ator nada pode fazer com diálogos pouco inspirados (“Se você não pode ser minha, não será de mais ninguém”) ou com a tentativa tímida de colocar ideais com alusões religiosas por trás de suas motivações para o terrorismo – além de seu sotaque russo não convencer em todos os momentos – de um ator tão fino como ele, é de se estranhar que sua voz soe artificial em alguns pontos – sem falar que o roteiro chega ao ponto de transformar uma tentativa de homicídio entre o casal em algo... corriqueiro – e até pouco funcional para a trama.
Ainda falhando na forma como insere outros personagens – como a Priya de Dimple Kapadia, sempre pausado a narrativa quando surge – Tenet também relega Michael Caine para uma ponta que só serve para inserir mais alguns diálogos expositivos – uma verdadeira marca registrada desse filme – que, infelizmente, acaba sendo irregular em seus atributos técnicos também – em especial sua edição de imagens – confusa, com cortes rápidos demais em momentos chaves (repare no terceiro ato), tornando as cenas de “inversão” ainda mais complicadas do que deveriam ser – mas, nesse ponto, há detalhes curiosos – especialmente quando as realidades de tempo atual e futuro se encontram – achei particularmente boa a cena onde dois personagens lutam – mostrada uma vez pelo ponto de vista de um e, depois, do outro – há ainda a cena do avião e a emboscada promovida pelo protagonista e por Neil, envolvendo um “engavetamento” com um caminhão de bombeiro e outros veículos – entretanto, Nolan parece ter ficado desleixado para conduzir com mais adrenalina alguns momentos – a perseguição com carros andando de ré soa lenta e até sem ritmo – acho que nunca tinha visto uma tomada com veículos tão devagar em um longa de ação – mas é digno de alguns elogios as cenas reversas de tiroteio e lutas – no geral, bem coreografadas – porém, não muito memoráveis – só ganhando força com o apoio rítmico admirável da ótima trilha-sonora de Ludwig Göransson – substituindo à altura o colaborador habitual de Nolan para música, Hans Zimmer – e a fotografia bem esclarecida de Hoyte Van Hoytema evita o uso de filtros artificiais para suas composições – o que ajuda, principalmente, na batalha final.
Mais longo do que deveria, Tenet ainda promete uma continuação – ditando um universo de filmes que irá necessitar de um cuidado maior para o desenvolvimento de sua trama que viaja pelo tempo – em uma época de roteiros bem alinhados sobre o tema – principalmente na série Dark – Christopher Nolan acaba por entregar sua obra mais fraca – entretanto, com alguns pontos interessantes e até diferenciados – embora não mostrados de uma forma mais criativa ou dinâmica – ou seja, é como ter um belo poema em mãos, mas não conseguirmos ler ele todo de uma forma mais clara.
Algo que espero não acontecer com os próximos projetos do diretor, que, como todos sabem, é um dos melhores de sua geração – ele não pode voltar no tempo como os personagens do filme, mas pode voltar a nos trazer obras melhores acabadas e desenvolvidas como já fez no passado.
Estou Pensando em Acabar com Tudo
3.1 1,0K Assista AgoraQuem nunca passou por alguma situação na qual se viu totalmente a mercê do pensamento de outras pessoas sobre si mesmo? Creio que a maioria das pessoas – e invejo os que conseguem evitar o máximo possível está condição – as projeções que fazemos sobre o que esperamos que irão pensar sobre nós acabam sendo um tipo de abismo, onde damos ao próximo a posição de poder julgar e avaliar nossas condutas, atitudes, opiniões e todo o resto das coisas que constituímos como nossa vida – o que vai direto ao nosso ser – nossas qualidades, habilidades, carreira, relacionamentos, traumas, medos, caráter – tudo que nos leva a angustia que pode ser o viver. Está é a principal discussão que esta adaptação do livro de Ian Reid nos traz, através de seus personagens multifacetados e complexos – um verdadeiro estudo da submissão de muitos seres humanos as taxações e opiniões alheias dos demais e como isso influências (negativamente) na vida dos indivíduos.
Adaptado pelo roteirista que nos presenteou com grandes obras como Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças – além de já ter mostrado ser um grande diretor em obras como Anomalisa e Sinédoque, Nova York – Charlie Kaufman conta de forma criativa e inusitada os tormentos mentais e psicológicos de seus personagens principais aqui – contando a história de um casal, Jake (Jesse Plemons) e sua namorada (Jessie Buckley), que estão a caminho da casa dos pais (Toni Collette e David Thewlis) do primeiro, para apresentar pela primeira vez sua companheira, que, durante o trajeto por uma longa estrada, sob uma pesada nevasca, pensa em terminar o namoro, por não estar se sentindo totalmente à vontade na relação – chegando ao destino, o contato com os pais de Jake faz com que a garota note que há algo muito estranho por trás do rapaz que ela conheceu à poucas semanas atrás – e, consequentemente, algo errado com ela mesma.
Creio que isso seja o suficiente para comentar sobre a sinopse sem dar spoilers – porque Estou Pensando em Acabar com Tudo é aquele tipo de longa que faz você desconfiar de tudo o que aparece – que tem a capacidade de embaralhar os pensamentos sobre passado, presente e futuro como se fossem uma única coisa – e, assim como acontece com nossa mente no dia a dia, quando precisamos lidar com as relações humanas e supostos propósitos de vida, isso nos leva à uma confusão – que Kaufman estabelece de uma maneira muito intensa – e sem se importar em demorar para desenvolve-las – e, infelizmente, talvez esse seja um dos poucos deslizes do projeto – alguns diálogos que soam, às vezes, expositivos demais; entretanto, isso é compensado pela forma verdadeira e até sincera que cada situação é mostrada.
Aliado a um design de produção criativo, que faz questão de mostrar qualquer cenário ou locação como um tipo de sonho ou pintura – creio que não é simplista dizer isso neste caso – tendo em vista que a direção de fotografia acompanha este mesmo pensamento – e, de fato, se torna algo fundamental para separarmos situações reais de outras que não aparentam ser tão verídicas, digamos assim – como a estrada que não parece ter fim; os objetos da casa dos pais de Jake, que remetem inúmeras épocas da vida do rapaz; ou o contraponto de lugares aparentemente mais “fantasiosos” (como o porão da casa, que revela a ligação de um outro personagem com Jake) com o realismo e tristeza dos corredores da escola onde vemos um misterioso e solitário zelador (Guy Boyd) – são características visuais que valorizam e facilitam a experiência – soando apenas enfadonho na viagem de volta do casal – que, devido a repetição de várias opiniões deles – especialmente quando a personagem de Jessie Buckley comenta sobre a personagem de Gena Rowlands no clássico Uma Mulher Sob Influência de John Cassavetes – em evidente paralelo sobre a visão de Jake sobre as mulheres em sua vida – esse momento torna-se cansativo por quase pausar a narrativa – embora soe até natural – afinal, quantas vezes na vida não comparamos feitos pessoais aos de personagens de filmes que gostamos? Aliás, o próprio Jake toma o musical teatral Oklahoma! como um tipo de base e influência para sua vida – enfim, o filme acerta em mostrar como a arte também traça metas não necessariamente reais ou importantes para o ser humano – como dito em certo ponto, “até mesmo nossa realidade é inventada” – há, inclusive, uma brincadeira com filmes que dão esse tipo de “moralidade açucarada” em seus finais felizes, chegando a citar o nome do diretor Robert Zemeckis (de Forrest Gump) – enfim, não seriam as letras de músicas, filmes ou poemas meros escapismos para conseguirmos uma forçada motivação para trabalharmos, nos realizarmos profissionalmente ou amorosamente? Algo que lembra até mesmo o desprezo pela alienação imposta pela sociedade que Tyler Durden demonstrava em Clube da Luta.
Essas e outras ideias são expostas com brilho por Kaufman – que não se preocupa em trabalhar lentamente, para ir revelando traços dos personagens que, aos poucos, vão revelando seus destinos e reais funções narrativas – um espectador mais atento, irá notar lá pela metade do filme do que se trata algumas confusões e mistérios – inclusive, a decisão de estabelecer uma tensão crescente, como um suspense, é algo acertado – que combina com o fato da tensão ser algo presente em nosso dia a dia, principalmente com coisas que não entendemos ou temos receio e medo durante toda a vida.
Estou Pensando em Acabar com Tudo ainda se beneficia de boas atuações – a angustia da namorada de Jake é bem transposta para tela pela eficiente Jessie Buckley – enquanto que Jesse Plemons faz de Jake uma pessoa calma e compreensiva, mas que tem seus momentos de explosão e inseguranças – enquanto que seu pai, vivido com muita ironia pelo ótimo David Thewlis, expressa bem um homem que parece cansado de hábitos repetitivos em seu casamento – ou até mesmo, em um dos melhores momentos do filme, quando debate com a namorada de Jake sobre a subjetividade de sentimentos que a arte pode nos transmitir – “como uma imagem de paisagem, sem pessoas com olhares tristes, pode me deixar triste?” – mas o destaque vem para Toni Collette, que, assim como Thewlis, tem uma breve presença, mas que influência bastante a obra – demonstrando uma assustadora face de uma suposta esquizofrenia, a atriz expressa de forma marcante como a criação de um filho pode ser complexa – que a dosagem de cuidado excessivo com os ensinamentos de vida podem ser difíceis de equilibrar – algo que resulta no que eu tinha mencionado no início – as projeções que fazemos de nós mesmo, mas baseadas nos olhares e opiniões dos demais a nossa volta.
A estratégia de iniciar a narrativa sobre o ponto de vista da namorada de Jake é inteligente – e, logo de cara, é o que Kaufman quer expressar de toda a obra – Estou Pensando em Acabar com Tudo não é sobre ela – é, evidentemente, sobre Jake. Sua namorada não existe – isso fica óbvio quando se confunde com a foto de Jake criança, se parecendo com ela mesma – fazendo dela apenas uma série de pensamentos que ele faz sobre o que muitas mulheres vão pensar sobre ele – eis o motivo dela não ter nenhum nome fixo – ela é chamada de Lucy, Lauren ou Ames – evidenciando o nome de mulheres com as quais teve algum contato, provavelmente – ou nenhum – afinal, o longa é também sobre frustrações – é um tipo de situação que qualquer um pode passar – ter vontade de conhecer uma pessoa em um bar, mas não conseguir conversar ou se aproximar e, depois, lamentar e ficar imaginando que poderia ter acontecido algo.
Sendo assim, toda a viagem de Jake até a casa dos pais, é como se fosse uma viagem em sua mente – ao passado, confrontando sua infância, adolescência e sua entrada na vida adulta – o que explica a personagem de Jessie Buckley visualizar os pais dele em diferentes fases da vida – Jake é um retrato de alguém que deixou sua vida ser moldada pelos gostos e preferencias dos pais – em especial de sua mãe – que o desmerece por não ter nenhum “talento especial” – que o diminui por um prêmio de escoteiro e, ainda assim, o acha uma pessoa dominadora – uma representação complexa de como a relação com os pais molda caráter e detalhes do pensamento de um filho – Kaufman trabalha com todas essas hipóteses de forma bastante aberta, deixando as conclusões para o espectador – é interessante também quando a mãe de Jake confunde a palavra “gênio” com “gênero” – talvez uma possível critica ao modo como alguns pais permitem ou não certos comportamentos dos filhos – seja por atitudes erradas na infância ou, em um grau diferente, sobre como lidar com a orientação sexual da criança ou do adolescente, quando ainda está se descobrindo – o que nos leva a viagem de volta.
A pressa de sua “namorada imaginaria” para ir embora e a forma como ela insiste em pensar que precisa terminar o relacionamento, é a projeção de Jake sobre como as mulheres o veem – sua insegurança para lidar com o amor – afinal, nesta sua imaginação (ou idealização) de uma companheira, Jake a “constrói” como alguém interessante para ele – mas sem a menor ideia do que fazer ou dizer para agrada-la – um reflexo da baixa auto estima de algumas pessoas e de como isso atrapalha a imposição de vontades ou até mesmo a compreensão para lidar com as relações humanas.
Além, evidentemente, dos traumas – a cena onde param na sorveteria é basicamente sobre isso – duas atendentes rindo de um acanhado Jake – um tipo de vislumbre sobre o que o bullyng pode influenciar na vida de alguém e da onde vem seu “medo” pelas mulheres ou relacionamentos – ou, com a outra atendente, que mostra sinais de abuso – mas não consegue expressar isso diretamente – aliás, isso nos traz até mesmo para as ligações que a namorada recebe enquanto está na casa dos pais de Jake – não sei como isso é expressado no livro (que não li), mas me parece que a ideia de mostrar que ela mesma estava ligando para ela e um jeito de demonstrar que o próprio Jake é tão inseguro e tímido que ele mesmo faz sua própria projeção ruim – que ele mesmo não se valoriza ou se respeita – a falta de amor próprio, no caso.
E isso vai nos levar para descobrirmos a verdadeira identidade de Jake – e, não haveria outro lugar para a viagem de carro terminar – a grande escola da cidade onde ele vive – e, nunca conseguiu deixar – um homem que sonhava em ser um grande físico acaba por ser um zelador e auxiliar de limpeza de uma enorme e fria escola – onde vê jovens felizes e sonhadores de um futuro que poderia ser melhor que o dele – felizmente, isso não soa como diminuição do trabalho de zelador, mas transparece apenas a insatisfação do personagem principal – nessa parte, Kaufman utiliza inúmeros recursos subjetivos para mostrar toda frustração do Jake idoso de Guy Boyd – e, também, é aqui onde a questão de compararmos o que a arte nos “ilude” a pensar sobre o que deveríamos fazer na vida – quando a namorada de Jake o encontra em um corredor da escola e eles são substituídos por outros dois atores – e notem como são dois atores com padrões de beleza diferentes dos atores principais – como se fosse a visão que temos baseada nos filmes – onde pessoas bonitas se conhecem se apaixonam facilmente e são “felizes para sempre” – o casal dançando como um musical estrelado por Gene Kelly ou Fred Astaire representa isso perfeitamente – assim como a intervenção de um outro ator como o zelador, que, obviamente, mostra como o próprio Jake sabota sua própria vida – ao deixar seus traumas e inseguranças o dominarem – quando ele se desespera dentro de sua caminhonete fica claro como é afetado pela criação dos pais e dos traumas de infância – ele andar despido atrás da animação do porco cheio de vermes (mencionado no começo) é outra maneira de exemplificar como as pessoas vivem seguindo, sem notar, antigos acontecimentos passados – algo que a psicologia confirma, com as memorias que ficam em nosso subconsciente e, consequentemente, podem moldar nossas condutas morais e psicológicas.
E, enfim, a cena onde o Jake de Plemons aparece envelhecido (com uma maquiagem propositalmente falsa, para exemplificar como aquilo é um acontecimento pouco provável e de pouca relevância), recebendo o prêmio de escoteiro que ele mesmo e sua mãe consideravam irrelevantes – uma cena que soa extremamente triste, por ser um tipo de auto consolação do personagem, por ter aceitado seu destino, que ele queria que fosse diferente, mas, por tudo que acumulou em sua criação e vivências, não conseguiu – desta forma, o último plano deixa claro como o destino de Jake é infeliz e solitário, ou até mesmo mal compreendido – ao enquadrar sua caminhonete encoberta totalmente pelo gelo, com o seu (indesejado) local de trabalho ao fundo – uma representação melancólica e simples com a qual Kaufman fecha o longa, deixando o espectador com a sensação de infelicidade e decepção que Jake termina (ou terminará) sua vida.
Estou Pensando em Acabar com Tudo é um trabalho que surpreende pelo fato de ter sido aprovado pela Netflix também, que não costuma investir tanto em obras com tanta subjetividade de exploração de temas – Charlie Kaufman se mostra um cineasta tão criativo quanto o roteirista que é – mesmo conferindo alguns momentos mais arrastados e expositivos do que deveria, ele traz um cruzamento de sentimentos e sensações que deixará qualquer espectador incomodado – seja pela compreensão ou não compreensão de todas as suas mensagens e citações – ou pelo próprio desespero de seus personagens diante de suas frustrações, não conseguindo escapar do julgamento que toda a sociedade lhes impõe – nisso incluo todas as pessoas a nossa volta, familiares, parentes, amigos, o consumismo que nos é imposto, a arte, etc – algo que pensamos sempre em terminar ou escapar um dia, mas o próprio sistema não nos permite – isso, sem sombra de dúvidas, é algo tenso e assustador para todas as pessoas – pelo menos as que tem alguma consciência disso – o que torna este longa um drama reflexivo e diferenciado.
The Old Guard
3.5 663 Assista AgoraQuando um filme de ação sai das formulas batidas do gênero é sempre um prazer a mais acompanhar os momentos envolvendo as pirotecnias e movimentações em lutas e combates dos personagens – sem falar que o fato de termos personalidades bem concebidas pelo roteiro ajuda muito na identificação e na eventual “torcida” pelas pessoas que vemos em tela – e esse é um ponto curioso de The Old Guard: afinal, seus personagens principais são imortais – ou nem tanto assim – mas o suficiente para que seja validado na trama suas angustias, buscas por propósitos e motivações – e a diretora Gina Prince-Bythewood (do drama A Vida Secreta das Abelhas) consegue se dar bem em um gênero novo para ela – conduzindo com eficiência todo o desenvolvimento de personagens em meio aos tiroteios e lutas – sendo prejudicada, possivelmente, apenas pelo “padrão Netflix de qualidade” – que insiste, obviamente, em tentar consolidar este longa como o primeiro de uma franquia que promete muitas sequências – fora o fato de um certo (e lamentável) tom mais adolescente para o trabalho – já que a inserção de música pop aleatória – que chega a tirar a tensão de alguns momentos – é um recurso tolo para tentar tornar a narrativa mais acessível e leve para o público mais jovem – algo que atrapalha o desenvolvimento um pouco mais profundo de todos os personagens e alguns temas de fundo.
Baseado na graphic novel de Leandro Fernández e Greg Rucka (com roteiro adaptado por este mesmo), The Old Guard conta a história de um secreto grupo de guerreiros imortais – compostos por Joe (Kenzari), Nicky (Marinelli), Booker (Schoenaertz) e a líder Andy (Theron) – com inúmeros feitos ao longo de muitos séculos, o grupo trabalha para quem os pagar melhor em situações importantes para o mundo, especialmente em conflitos armados – mas, ao aceitarem uma missão de resgate pedida por Copley (Ejiofor), um ex-agente da CIA, as coisas tomam um rumo inesperado – ainda mais com o aparecimento de uma nova imortal, a soldado Nile (Layne) – enquanto que Merrick (Melling), um cientista de uma indústria farmacêutica, está interessado em saber da onde vem a imortalidade dos quatro membros da equipe.
A força maior de The Old Guard vem claramente de seu elenco – não é preciso dizer que Charlize Theron é uma atriz tão completa que consegue se desenvolver perfeitamente com muito carisma para o drama e para ação – já vindo de outros longas deste gênero, ela transforma Andy em uma personagem quase tão complexa e multifacetada quanto sua Imperatriz Furiosa de Mad Max: Estrada da Fúria – a personagem, a todo tempo, se questiona do sentido de viver para sempre – afinal, assim como os outros integrantes do time, ela vê todos os seus entes queridos morrendo e nem sequer envelhece – o que torna sua dor pela perda de uma antiga integrante em algo tocante – sem falar que, com isso, a diretora consegue extrair um curioso pano de fundo, conseguindo refletir em nossa realidade – o fato das mulheres serem sempre subjugadas através dos séculos – seja pela igreja na santa inquisição ou no machismo estrutural que permanece até hoje.
Tais impressões sobre algumas minorias são bem inseridas nos demais personagens – como a homofobia, no caso de Nicky e Joe – é curioso a maneira como eles assustam um preconceituoso soldado que os captura apenas discursando sobre a importância de poderem se amar livremente (por séculos, inclusive); ou Nile de Kiki Layne (em boa composição, com direito também a agilidade para as cenas de ação) lidando com o fardo de ter que aceitar sua imortalidade e notar que isso a obriga a abandonar sua mãe solo e seu irmão – refletindo a realidade das mulheres que são obrigadas a cuidarem sem nenhum apoio de seus filhos – e com o Booker de Matthias Schoenarts e o Copley do sempre vibrante Chiwetel Ejiofor fica visível a dor de uma pessoa que precisou aceitar a perda de familiares – no caso do segundo, que não é um imortal, é curiosa sua intenção e certa admiração pelos integrantes do grupo.
Nesse quesito de desenvolvimento, infelizmente, o longa falha com o vilão de Harry Melling, que soa como apenas uma pessoa inescrupulosa, sem motivos por trás que o fariam mais complexo ou inteligente – seu Merrick não deixa de soar como um personagem um tanto perigoso no que acaba expressando – afinal, em tempos onde o negacionismo cientifico vem sendo responsável por muitas das mortes pelo covid-19, colocar um personagem que supostamente representa as fraudes da indústria farmacêutica para poderem lucrar com doenças e vendas de remédios, é um tanto arriscado e discutível – podendo induzir o espectador a ideias mentirosas e, talvez, compactuando com as fake news de diversos teóricos da conspiração que temos por aí.
Mas, mesmo não tendo momentos de ação tão memoráveis ou criativos, The Old Guard se sobressai também por sua boa misce-en-scene, ao dar bons enquadramentos para as cenas de ação, que nunca soam confusas ou difíceis de compreender – evitando cortes bruscos entre os socos, chutes e tiros – há de se criticar um pouco algumas decisões em inserir um flashback em uma cena, para justificar algo que ocorreu poucos instantes antes – resultando em uma pausa narrativa desnecessária – porém, coisas assim são compensadas pelo bom uso dos efeitos de maquiagem para os momentos de “regeneração” dos personagens – com o discreto uso de efeitos digitais e efeitos sonoros que trazem impacto e mais incomodo e realismo à isso.
Mesmo que com algumas decisões meramente mercadológicas para prosseguir como franquia (aliás, há uma importante cena pós-crédito), é um longa de ação de qualidade, que conta com um ótimo elenco e bom ritmo para sua tensa e movimentada trama – além de conseguir se sobressair com a abordagem consciente e atual de sua criativa diretora.
Superman IV: Em Busca da Paz
2.6 234 Assista AgoraA capacidade do ser humano em querer ganhar dinheiro a qualquer custo é sempre vista em projetos cinematográficos. Superman IV é um belo exemplo disso, porém, sua única vantagem com relação ao filme anterior do herói é que a proposta do filme é boa, ao contrário apenas de deixar a produção com cara de comédia como aconteceu em Superman III.
Se associando com a produtora de filmes B dos israelenses Gollan/Globus, Ilya Salkind queria voltar com a franquia e conseguiu trazer todo o elenco de volta com um belo apoio da Warner Bros. na produção, com um orçamento inicial de U$S 36 milhões. Para topar voltar a vestir o uniforme do ultimo filho de Krypton, Christopher Reeve fez exigências no melhor estilo da volta de Sean Connery como James Bond: Reeve queria escrever o roteiro em cima de uma história criada por ele mesmo e também dirigir o longa, além de garantir que mais dois filmes fossem feitos para ele fora da série, afim de provar que seu talento artístico ia além de ser Superman. Resultado: os produtores aprovaram tudo, menos ele ser o diretor, cargo que ficou para o diretor da imitação de Top Gun, Águia de Aço (1986).
A proposta da história de Reeve era algo bem atual para a época: a corrida das armas nucleares entre as superpotências daquele período. O que Superman poderia fazer para ajudar a humanidade a não se perder entre as guerras? Qual a função do Homem de Aço nisso tudo? Questões interessantes que logo logo foram ofuscadas pela incrível quantidade de problemas que a produção estava por enfrentar.
Primeiro foi o corte do orçamento para metade, o que fez várias cenas não serem finalizadas e acabou forçando os produtores a alterarem o roteiro, para tentarem esconder esse buracos – o mais gritante é próximo ao final, quando o Homem Nuclear, sem motivo algum, resolve ir atrás da personagem de Mariel Hemingway – no dvd do filme você pode checar as cenas não finalizadas, que explicam esses momentos. Os cortes orçamentários afetaram com mais força ainda os efeitos especiais, forçando os produtores a utilizarem tomadas de efeitos usadas nos filmes anteriores, tornando certos momentos quase ridículos, como o Superman “tapando” um vulcão com uma montanha, para evitar a destruição de uma cidade por causa de uma erupção (?!) e quando o Homem Nuclear atira a Estatua da Liberdade no meio da cidade... Deu pra entender, neh?
Apesar da boa intenção, o roteiro não chega a ser bom, tendo um ritmo que seria mais adequado para uma série de TV – alías é o filme mais curto de toda série, não chegando nem a uma hora e meia. O desenvolvimento do Homem Nuclear (interpretado pelo inexpressivo Marc Pillow) também é fraco, concebendo o vilão com gritos que mais lembram o Godzilla e dando voz a ele Gene Hackman, com um abominável efeito sonoro. Alias, o Lex Luthor de Hackman só se mostra interessante graças a alguns diálogos divertidos, já que as motivações do megalomaníaco vilão são as mesmas de sempre.
Margot Kidder, Hemingway e Reeve formam uma espécie de “quadrado amoroso” já que temos para elas Superman e Clark como duas pessoas diferentes, o que leva a cena no apartamento de Lois, onde Superman tem que ser Superman para Lois e Clark para Lacy, ao mesmo tempo – momento realmente divertido e mais memorável, digamos assim, do filme.
Superman IV é aquele filme que não deveria ter sido finalizado, para dizer a verdade. Esperando um milagre, o filme foi lançado e, como esperado, não teve retorno algum, passando em branco no cinemas, o que fez Ilya Salkind abandonar definitivamente os direitos sobre a adaptação do herói da DC Comics e acabou por estagnar a carreira do pobre Christopher Reeve.
Realmente, não foi o final que uma série que começou tão bem merecia ter.
Escrito em 02/03/2016
Superman: O Retorno
2.6 778 Assista AgoraQuando anunciaram em 2004 que o novo filme do Homem de Aço seria uma continuação dos clássicos Superman I e II, fiquei empolgado demais, já que estes dois filmes estão entre os meus favoritos de todos os tempos. Era uma aposta ousada do diretor Bryan Singer (X-men 1 e 2) e dos produtores, querer dar continuidade à uma série já parada a muito tempo - 19 anos desde a última vez que Christopher Reeve vestiu o uniforme do herói em Superman IV, que junto da terceira parte, também não tem relação com este Returns). Se de um lado temos o poder da nostalgia em dar um certo prazer em acompanharmos o longa, de outro lado notamos como existe uma pretensão grande demais em fazer do filme uma homenagem à um clássico que não é tão lembrado agora por grande parte do público.
Ao querer dar o mesmo tom de clima e ritmo ao filme, igual Richard Donner fez no original, Singer transforma diversas partes do projeto em cenas lentas, algumas que nem se quer acrescentam nada a narrativa – momentos que poderia ser rápidos, como a visita a Fortaleza da Solidão, se tornam cenas aborrecidas ou sem ritmo – como as lembranças de Clark sobre sua adolescência – momentos que apesar de serem esteticamente belos, não ajudam da forma necessária, soando apenas como explicações para quem não conhece os filmes originais.
Superman Returns conta como a terra sobreviveu 5 anos sem Clark (Brandon Routh), que foi procurar no espaço por outros sobreviventes de Krypton, já que esta se sentindo deslocado na terra por se sentir sozinho. Ao retornar, ele nota como muitos se acostumaram com sua ausência, em especial, é claro, sua amada Lois Lane (Kate Bosworth), que teve um filho e está noiva do sobrinho de Perry White (Frank Langella), Richard (interpretado pelo Cyclope de X-men, James Marsden). Enquanto esteve fora também, Lex Luthor saiu da cadeia e roubou os cristais Kryptonianos da Fortaleza da Solidão, que são capazes de criar terras quando em contato com a agua – além de preparar um plano para matar o Superman – “novidade”!
Com um belo desenho de produção e um uso de CGI bem feito – o que explica o filme ter custado U$S 250 milhões – Superman – O Retorno tem um roteiro eficiente, que só falha em alguns aspectos como no caso de estender certas cenas ou na lógica de algumas coisas – Clark sumiu por 5 anos, Superman também, os dois voltam ao mesmo tempo e ninguém nota que são a mesma pessoa... enfim, algo até normal para a história do Superman. Apesar do ritmo as vezes mais parado, o filme consegue oferecer belas cenas de ação, em especial o resgate do avião no meio da história, onde chegamos a vibrar ao ouvir o tema clássico do herói ao fim da cena. A trilha sonora, feita em cima do trabalho antológico feito por John Willians no filme original, recebe aqui por John Ottman (autor do tema dos X-Men também) novos temas interessantes, como o tema para Lex Luthor e o tema romântico para Lois e Clark, que embora o original seja inesquecível, recebe um tratamento digno por Ottman aqui.
Mas agora lidamos com o maior problema do filme: o romance. Por quê seria tão problemático? Um dos principais requisitos para um romance funcionar no cinema, são o casal de atores que formaram esta história de amor e, nisso, Superman Returns fracassa retumbantemente. Tentando conceber o filme com o mesmo tom romântico do original de 1978, Singer erra aqui também por deixar na mão de dois atores fracos essas funções: o estreante no cinema Brandon Routh se mostra uma escolha ruim para o papel, praticamente inexpressivo, o ator ainda sofre pelo fato de ser comparado com o mito Christopher Reeve, já que, por determinação de Singer, Routh recebe uma maquiagem e em certos momentos, um tratamento digital no rosto (!!!???), para ficar mais parecido com Reeve – pode até lembrar a aparência, mas o ator de poucos recursos não consegue dar aquele diferencial que o Chris conseguia, por parecer estar interpretando duas pessoas diferentes de fato. E Kate Bosworth não chega nem perto de ter aquele carisma e perspicácia que Margot Kidder tinha em Superman – O Filme, se mostrando apática – chega a ser forçada uma cena de choro dela próximo ao filme. Enfim, não parece um casal apaixonado de fato, aniquilando o romance para o filme.
Se a dupla principal de atores falha, o resto do elenco, que conta com várias estrelas, acertou não é? Não. O problema vem novamente do roteiro, que não consegue dar dinamismo ou brilhantismo as atuações, especialmente para Kevin Spacey, que seria uma boa escolha para Lex Luthor, já que o ator mistura o tom cômico que Gene Hackman passava nos filmes originais com o toque mais sinistro que o vilão tem nos quadrinhos – e aqui ele não usa perucas, temos Luthor careca mesmo. O problema é que Spacey não tem em mãos um personagem bem desenvolvido, que sofre pela ausência de novidades em seus atos – Lex quer novamente adquirir terras para enriquecer e matar o Superman com Kryptonita. Alias, o excesso de citações ao filme original, atrapalha um pouco, já que não soa como homenagem, mas sim como imitação as vezes – certos diálogos são idênticos a algumas passagens do filme antigo – como o discurso de Superman após salvar o avião.
Sofrendo com o excesso de referencias e homenagens ao original, Superman – O Retorno é um filme curioso ainda, por pelo menos tentar trazer de volta aquele clima de matine dos filmes antigos, resultando em uma aventura eficiente, mas que poderia ter sido bem melhor senão fosse levada tão a serio pelo diretor, que erra ao querer dar uma resposta para os questionamentos de estar sozinho no mundo ou não para o herói de uma forma um tanto apelativa, em um final quase que choroso – embora não chegue a conseguir fazer isso.
Com uma bilheteria mediana e criticas frias, a Warner logo descartou a possibilidade de dar uma continuação ao filme, ainda mais com o sucesso do realista e impactante segundo filme de Christopher Nolan do Batman, O Cavalheiro das Trevas, o que levou o estúdio a fazer o Reboot da saga do herói, com O Homem de Aço em 2013.
A meu ver, pelo menos, Superman – O Retorno funciona como um fechamento de uma trilogia – considerando que contamos apenas com as historias de Superman I, II e este Returns sendo a terceira parte. Assim, foi um bom final para o trabalho que Richard Donner começou tão bem em 1978.
Escrito em 10/04/2016
Superman II: A Aventura Continua
3.5 252 Assista AgoraFilmado simultaneamente com o primeiro filme, Superman II é um dos primeiros casos de sequência já programada antes da estreia do original. Tal tipo de empreendedorismo cinematográfico foi visto depois em séries como De Volta Para o Futuro, Matrix, Jogos Vorazes, Harry Potter, Universo Marvel e alguns outros. E esta segunda incursão do alienígena de Krypton se mostra, ainda hoje, uma das melhores adaptações de quadrinhos já feitas – foi eleito em listas de fãs de HQ’s. Mas o que faz com que falte uma estrela ali em cima para tornarmos o longa do diretor Richard Lester tão perfeito quanto o original? O que faltou foi Richard Donner.
Donner, diretor do primeiro longa, já tinha filmado quase 75% de Superman II. Mas ao se desentender com os produtores Alexander e Ilya Salkind por questões de salário – o cachê de um milhão de dólares seria para os dois filmes, mas Donner alegou que sabia ser apenas para um – ele foi dispensado do projeto e substituído por Lester, que fez pequenas modificações em algumas cenas filmadas por Donner. Leia essas modificações como adições de humor em muitas cenas, que não chegam a prejudicar o filme, mas mudam um pouco o foco que Donner tinha para o primeiro filme.
O que deixa essas divergências no segundo filme são as mudanças mesmo – recomendo vocês assistirem a versão do Richard Donner deste filme para verem como muitas das ideias realmente se perderam um pouco em Superman II. Mas nem tudo foi culpa de Lester: Marlon Brando queria dois milhões de dólares para voltar como Jor-El. Ao ser recusado, os produtores colocaram a atriz Suzanna York (Lara, mãe biológica de Superman) recitando o texto que seria originalmente de Brando; Gene Hackman – que só topou fazer o filme original por ter gostado da abordagem de Donner – também não quis completar o trabalho (algumas cenas dele foram completadas por dublês);
a resolução da história de amor empolgante entre Lois e Clark é decepcionante – para não dizer absurda, ao vermos Clark apagar a memoria de Lois com um beijo (oi?); e o confronto na fortaleza da solidão no final, com aqueles poderes esquisitos que os três super vilões e Superman usam – o que diabos é aquele “S” gigante “embrulhando” o Non (Jack O’Halloran)???
Mas acreditem: o charme desse filme é tão grande que tudo isso é compensado por inúmeros motivos. Como a história de Mario Puzo já tinha um tom épico e romântico empolgante, ficou bem interessante a ação sem ter que ficar apresentando os personagens e situações. O filme já começa em plena ação, com Superman explodindo uma bomba de hidrogênio no espaço, o que acaba por libertar os três super vilões: Zod (Terence Stamp), Ursa (Sarah Douglas) e Non, todos sedentos por vingança, já que haviam ficado presos na zona fantasma, a mando de Jor-El. Enquanto invadem e começam a dominar a terra, Lois descobre a identidade secreta de Clark e acabam se relacionando, o que faz com que Superman decida excluir seus superpoderes para viver como um ser humano comum com Lois – com a responsabilidade de proteger a terra, ele não conseguiria viver junto de Lois.
O dilema que Clark enfrenta é tratado com boa desenvoltura pelo roteiro, onde as emoções de Lois e Clark transparecem com força – alias, Reeve e Kidder repetem seus papeis com perfeição, totalmente a vontade, o que acaba por se tornar o coração do filme. E ao confrontar os vilões a seguir o filme fica em clima de revista em quadrinhos absoluta: a luta entre os Kryptonianos em uma noite em Metropolis é um momento épico que, apoiado por efeitos especiais inteligentes para época, se mostra um confronto marcante e como referencia para inúmeros filmes de heróis.
É preciso dar destaque para Terence Stamp como o General Zod – me perdoe Michael Shannon, que interpretou Zod em O Homem de Aço (2013), mas a atuação de Stamp tem um ar de sofisticação tão bacana, que podemos vê-lo como um personagem Shakesperiano durante o filme. A forma cordial e ameaçadora que fala é marcante, numa alusão a personagens clássicos da literatura, todos com um vocabulário clássico e formal – seu “ajoelhe-se perante Zod” é antológico.
Muito bem editado e fotografado, Superman II tem um ritmo bem mais acelerado do que o filme original, se adequando como uma aventura para toda a família mais do que clássica, que se não tivesse tantos problemas de bastidores, com certeza teria o mesmo status de clássico do cinema como Superman – O Filme. De qualquer forma, não sairá das mentes dos fãs do super-herói.
Escrito em 11/02/2016
Destacamento Blood
3.8 448 Assista AgoraDono de uma das melhores filmografias de Hollywood nos últimos 30 anos, Spike Lee é um cineasta tão versátil e perspicaz em inserir temas e situações que estimulam e escancaram a rica culta afrodescendente, que sempre esteve antenado em trazer com perfeição para as telas as lutas contra o racismo e o retrato da exploração que a população negra passou nos últimos séculos na América – de obras de abordagens do cotidiano, mas muito marcantes, como Febre na Selva ou Faça a Coisa Certa, passando por biografias históricas como Malcolm X, ou seu longa anterior, o excelente Infiltrado na Klan (para mim, o melhor filme de 2018), Lee, desta vez, aborda uma questão que poucos filmes exploraram no cinema norte-americano: as dores e as consequências da participação da comunidade afrodescendente em diversos conflitos armados em que os Estados Unidos se envolveram ao longo dos anos – já não bastasse a exploração da escravidão e o desrespeito imperdoável da segregação racial, as comunidades negras sempre foram as que mais morreram pela terra do “Tio Sam” – e, na guerra do Vietnã não foi diferente.
Para abordar tal tema, Lee (junto de mais três roteiristas) cria uma trama girando em torno de um grupo de soldados veteranos, que lutaram nas terras vietnamitas nos anos 70, que, atualmente, decidem retornar ao local – são eles: Paul (Lindo), Otis (Peters), Eddie (Lewis) e Melvin (Whitlock Jr.), todos com o objetivo de retornarem ao local onde ocorreram as batalhas com o Destacamento ao qual pertenciam na época da guerra, os Bloods, liderados pelo capitão Stormin’ Norman (Boseman) – tentando resgatar os restos mortais do antigo líder e encontrar um misterioso carregamento de ouro, os quatro veteranos embarcam na missão de resgate, enfrentando alguns contratempos – como a participação inesperada do filho de Paul, o jovem professor David (Majors) e um grupo de ativistas contra as minas terrestres, liderados pela francesa Hedy (Thierry), além da suposta ajuda do misterioso francês Desroche (Reno) e de informações e revelações de um ex-amor de Otis, a vietnamita Tiên (Lan).
Desde seu primeiro frame, Lee deixa bem claro como sua estratégia de inserir informações de personagens reais (como Martin Luther King, Malcolm X ou integrantes de movimentos como dos Panteras Negras) é algo bastante impactante e eficaz para ajudar a contar a história – através de exemplos de situações históricas, o cineasta consegue moldar muito da personalidade de cada um dos integrantes dos Bloods – seja com exemplos de ativistas que visavam uma união do povo negro ou até mesmo com atos separados, como um soldado anônimo que se sacrificou para salvar outros no Vietnã – enfim, é um jeito bem direto de dar relevância para pessoas que ajudaram imensamente na luta pela igualdade e na busca pelos direitos dos afrodescendentes na América – além de todo o movimento de combate contra a Guerra do Vietnã.
O mais interessante é que, embora seja praticamente uma história de aventura também, Destacamento Blood consegue ser, ao mesmo tempo, um drama de guerra bem reflexivo – sem falar que na parte politica Lee não deixa de dar alfinetadas bastante diretas contra Donald Trump e seu suposto flerte com movimentos fascistas – do mesmo modo que fez em Infiltrados na Klan – além disso, o longa ainda tem um tom tão irônico em criticar o histórico da mídia em ter dado, no passado, mais crédito aos brancos pela luta na guerra que é praticamente impossível não admirar certos diálogos, especialmente quando o personagem de Delroy Lindo tenta mostrar sua visão sobre a guerra.
Aliás, falando dos personagens, as criações de personalidade são bem inseridas – o Paul de Delroy Lindo serve para mostrar o lado da comunidade negra que acaba ficando afetado pelo sistema, ao ponto de defender condutas questionáveis de seus lideres políticos e ainda incentivar a ideia de que os Estados Unidos são sempre os “salvadores da pátria” – o dialogo com o personagem de Jean Reno é bem especifico nisso – mas o fato de Paul usar um boné com o slogan de Trump (“Make America Great Again”) é uma sacada simples e inteligente para demonstrar essa moralidade duvidosa do personagem, que, sem dúvidas, torna-se o mais emblemático da obra, sendo multifacetado pelo trauma da guerra e aos problemas para se relacionar com seu filho David, de Jonathan Majors, que tenta se reencontrar emocionalmente com seu pai durante a jornada – algo que, mesmo sendo visto de forma apressada aqui e ali, consegue ser tocante o suficiente para ajudar a entendermos o comportamento impulsivo e desconfiado de Paul – que, muitas vezes, beira a loucura, mas sem jamais deixar de mostrar sua ligação com o passado tenebroso dos combates na guerra.
Os demais integrantes do Destacamento também seguem tais características, mas cada um abordando seus traumas de uma forma – o Otis de Clarke Peters é um exemplo em tentar seguir seus princípios antigos, ainda mais com uma ligação marcante com um amor da época da guerra, a ex-prostituta Tiên – mesmo sendo um ponto em que o roteiro trate de forma um tanto corriqueira – assim como o Eddie de Norm Lewis, um homem motivado pela filosofia de seu antigo capitão, mas que tornou-se refém do cruel sistema financeiro da américa, mas, curiosamente, o mais preocupado em não deixar a ganância atrapalhar os planos do grupo – e temos o Melvin de Isiah Whitlock Jr., um homem que aparentemente não consegue acreditar totalmente no companheirismo que a situação pode criar – mas temos uma representação bastante pertinente dos ideais de combate ao racismo na personificação de Chadwick Boseman como Stormin’ Norman – curiosamente, o interprete do Pantera Negra da Marvel, dando voz a um personagem que lembra muito o discurso do antológico movimento dos Panteras Negras – em um papel que aparece apenas em flashbacks, o ator passa com eficiência a garra do ex-capitão em lutar por causas nobres em meio ao horror da guerra – sendo consciente o suficiente para notar como os vietcongues eram igualmente prejudicados, assim como os jovens das tropas dos Estados Unidos – a própria busca pelo ouro e objetivo disso, fica bem marcado pelas aparições de Norman (sempre pertinentes) – principalmente com relação à Paul, sem dúvidas, o mais afetado com o contato com o antigo líder do Destacamento.
O restante dos personagens também tem seus pesos temáticos – como a ativista francesa vivida Mélanie Thierry, um exemplo de pessoas de classe mais favorecida que acabam se engajando em causas nobres – além do rabugento personagem de Jean Reno, que parece ser o contrário disso – quando alguém da elite quer explorar os menos favorecidos – são inserções simples, mas que ainda ajudam no clima tenso, aventureiro e pesado de certos momentos da história – e, tecnicamente, Destacamento Blood é muito bem desenvolvido – começando por sua fotografia, que tenta captar a grande maioria das paisagens florestais do Vietnã sem muitos filtros – dando uma paleta de cores que soa bastante natural – ao passo que utiliza-se de texturas diferentes apenas para indicar os momentos de flashbacks dos atuais – inclusive, é curiosa a maneira com que muda os formatos de tela – mais quadrado (aos moldes de câmeras antigas de 16mm) quando volta no tempo, deixando o widescreen mais largo (2.35) para os momentos antes de iniciar a missão de busca e o widescreen menos largo (1.85) para quando finalmente se inicia a jornada – é uma maneira visualmente mais fácil de distinguir tais momentos uns dos outros.
Entretanto, o diretor escorrega um pouco no longa somente sobre sua condução narrativa – tornando-se dispersa em alguns momentos – como os inserts de uma radialista vietnamita, nos flashbacks, que, apesar do belo texto, soam mais como pausas que fazer o filme perder o ritmo, tirando alguma tensão de um ou outro momento – e a forma como insere algumas informações de certas figuras históricas as vezes soa apressada demais – algo que também, em poucos momentos, faz o filme parecer ser um pouco mais longo do que deveria – mas sem muita gravidade.
Destacamento Blood acaba sendo uma aventura de guerra perfeitamente encaixada com o momento em que a brutal morte de George Floyd por policiais nos Estados Unidos causa revolta e muita indignação – Spike Lee, como sempre, sabe cutucar bem na ferida do problema – o racismo estrutural – que ainda faz com que os afrodescendentes paguem com suas vidas por apenas lutarem por seus direitos – em situações criadas por pessoas que, definitivamente, não se importam com as vidas negras – e qualquer obra contra isso agora é extremamente bem-vinda para ajudar a ilustrar a barbaridade de movimentos racistas e fascistas que ainda existem no mundo – algo que o final do longa deixa bem claro – de uma maneira tão forte e sincera que somente seu visceral realizador poderia fazer.
365 Dias
1.5 880 Assista AgoraDepois do final da terrível trilogia de 50 Tons de Cinza, sinceramente, não esperava ver outra obra que abordasse de forma tão estereotipada e absurda questões sexuais e amorosas – mas, baseando-se em um livro (ou praticamente uma fanfic) de Blanka Lipinska – uma “versão” polonesa de E.L. James, que, igualmente, precisa de sérias sessões em um analista – chega está produção da Polônia, que parece querer bater o recorde de ruindade, superficialidade, sexismo, misoginia e machismo sobre o comportamento feminino diante do sexo e de situações de abuso.
E falo isso com pesar – porque, sendo um homem, só posso dar meu apoio e simpatia para as causas do movimento feminista – mas, vendo um filme deste (baixo) nível, imagino que qualquer mulher com um mínimo de discernimento mental desaprovaria todas as situações maniqueístas e constrangedoras criadas pelo roteiro (co-escrito pela autora do livro, inclusive). 365 Dias acompanha o mafioso italiano Massimo (Morrone), chefe do crime em sua região, ele acaba se pegando apaixonado por uma turista polonesa em visita a Sicília, a bela executiva Laura (Sieklucka) – que Massimo viu em um sonho anos antes e, por isso, fica obcecado por ela, sequestrando-a. Sendo assim, o mafioso faz uma proposta a ela: que deixe tentar faze-la se apaixonar por ele dentro de 365 dias – só assim podendo voltar para sua vida normal, que Laura aparentemente não demonstra tanto interesse, ainda mais porque tem um relacionamento áspero com seu namorado Martin (Lasowski).
Só pela sinopse é notório como toda a trama é maniqueísta – o namorado de aparência e comportamento desleixado – propositalmente irritante, só para forçar ainda mais a ideia de que o abusador é alguém “melhor”; o sedutor e criminoso que convence qualquer mulher a fazer sexo com ele, pelo simples fato de ter características que os padrões de beleza da sociedade pedem; e, claro, o ridículo sonho que faz Massimo ficar tão perverso em sua busca por Laura – um tipo de ideia que só não é mais ridícula do que quase todos os diálogos da obra – é visível que a dupla de diretores acredita que somente a química sexual é suficiente para um casal ser “feliz para sempre” – afinal, um homem como Massimo (sim, que é um criminoso também) pode “forçar” uma aeromoça a fazer sexo oral nele ou, para despertar a vontade de Laura em ter relações com ele, a fazer assistir outra mulher lhe fazendo mais sexo oral – chama-lo de egoísta seria uma perda de tempo – ah... e, logo em seguida, este homem (descrito por Laura como alguém com um corpo desenhado por Deus e o pênis pelo diabo – sim, existe esse dialogo!) ficar enciumado por sua pretende forçada tentar fazer ciúmes usando roupas curtas e dançando com outros homens – creio que seria impossível transforma-lo numa figura mais machista do que isto.
Massimo acaba deixando Christian Grey no chinelo quando o assunto é explorar suas taras e dominar e humilhar suas “submissas” – aliás, todo o alarde em cima do tal conteúdo de BDSM é desnecessário – a maioria das cenas de sexo são convencionais – se aproveitando de enquadramentos bem feitos e uma misce-en-scene que sabe explorar os espaços dos cenários para não enquadrar os órgãos genitais dos atores – este acaba sendo o único bom atributo técnico de 365 Dias, no final das contas – já que ainda temos uma trilha-sonora que mais parece que ligaram na Rádio Jovem Pan e deixaram tocando aleatoriamente várias músicas pop – uma ou outra até boas, convenhamos – mas é só. Sem contar ainda com a edição sofrível – por exemplo, a sequência inicial mostrando Massimo “negociando” com seus “clientes”, enquanto, ao mesmo tempo, aparece Laura sendo uma mulher emancipada e forte no trabalho – além da confusão de troca de cenas neste ponto, este momento de Laura acaba sendo uma enorme contradição para o que ela vem a fazer mais tarde.
E quando falamos dos atores, é aí que este longa polonês descamba ainda mais – com um personagem tão raso, machista e sem personalidade, Michele Morrone só deixa seu Massimo ainda mais imbecil em suas atitudes – um ser que só tem dinheiro e beleza para oferecer – a total falta de expressões faciais do ator deixa até mesmo suas questões de caráter serem exploradas superficialmente, de um jeito que não parece ser um negócio tão sério e importante o ramo de traficar drogas na Itália – os seguranças vividos por Bronislaw Wroclawski e Otar Saralidze só sabem falar sobre a importância da família de Massimo e isso nunca parece ter relevância – mas, creio que o pior acaba ficando para a pobre Anna Maria Sieklucka, vivendo Laura – uma mulher tão mal concebida pelo roteiro que fica difícil descrever sua real personalidade – e de sabermos se a atriz está tendo alguma atuação boa ou não – o fato é que soa ridículo a maneira como ela rapidamente se apaixona por seu raptor – e a falta de profundidade dos roteiristas e diretoras torna tudo ainda pior, afinal, um conflito sobre a “síndrome de Estocolmo” poderia ser algo curioso – mas isso passa bem longe, sendo igual acontecia nas histórias de E.L. James, onde o amor parece ser algo que só existe em torno de aparecia física e dinheiro – e mesmo tendo 29 anos, Laura mais parece uma adolescente que se apaixonou pela primeira vez, tendo até uma melhor amiga igualmente de pouca idade mental, a insuportável Olga de Magdalena Lamparska – são criações vergonhosas de personagens que ofendem e rebaixam o comportamento feminino.
Toda essa superficialidade e falta de realismo para demonstrar questões sobre o amor e sexualidade só não são piores que o final patético, onde tentam causar comoção e um pouco de suspense em uma história arrastada e repetitiva de seu meio para o fim – e, claro, uma deixa para continuação, que parece ser moda em obras assim – enfim, 365 Dias faz o primeiro filme de 50 Tons de Cinza parecer uma obra-prima – o que, sem dúvidas, é um sinal forte de como está produção vai ficar facilmente entre os piores filmes de 2020.
Uma Vida Oculta
3.9 154É curioso como em tempos onde ainda surgem grupos apoiando causas racistas e fascistas seja mais fácil de entender o peso que um homem como Franz Jägerstätter precisou enfrentar durante a segunda guerra mundial – este mais novo trabalho do lendário Terrence Malick nos faz refletir imensamente sobre a moral e os princípios de um ser humano, que diante de uma situação que lhe causa total aversão, prefere jamais estar do lado dos opressores – que, nem em pensamento ou fingimento, consegue se aliar a causas que ele julga ser intragáveis – e são, obviamente – pois já sabemos hoje toda a dimensão de horrores e atrocidades que o nazismo cometeu.
Se no mundo atual ainda enfrentamos mazelas dolorosas disso, ao menos, podemos nos julgar livres o suficiente para nos manifestarmos contra lideres totalitários ou fanáticos que assumem o poder e tentam alienar a população – evidentemente, que em certos lugares do mundo não é tão simples assim ainda hoje – mas, para quem vivia na Áustria do começo da década de 40, era praticamente impossível se posicionar contra o regime que Adolf Hitler impôs aos austríacos – o personagem de August Diehl se vê nessa situação – fazendeiro e agricultor em um pequeno vilarejo da região, além de ser casado com sua amada esposa Fani (Pachner) e terem três pequenas filhas, ele vê sua vida mudar totalmente ao ser convocado para lutar na guerra junto dos soldados alemães nazistas – indignado com as imagens que via da opressão que os exércitos de Hitler impuseram ao povo europeu, Franz se coloca totalmente contra ao regime, abalando a convivência com seus vizinhos e logo sendo condenado a prisão e ao corredor da morte pelo governo alemão – fazendo sua família também entrar em um doloroso processo, por acompanharem a sua dor e sofrimento de não ser compreendido por sua decisão de jamais aceitar a doutrina nazista.
Como é de costume em sua rica filmografia, Malick (que também é o autor do roteiro, baseado na real história de Franz) consegue extrair inúmeras passagens reflexivas, principalmente ao captar as belíssimas paisagens do vilarejo austríaco – inserindo a natureza, com suas rochas, montanhas e vegetação, como um personagem ou, evidentemente, uma representação de Deus sobre a vida de Franz e sua família, que são católicos devotos – e torna-se sempre curioso o uso de lentes nas câmeras que fazem os personagens parecerem tão grandes quanto as paisagens que os cercam – as cenas de Franz e Fani nos campos são exemplos disso – da mesma forma que Malick mantem está lógica ao empregar o mesmo tipo de enquadramento quando o personagem de Diehl está na prisão – resultando no efeito de claustrofobia e tensão pela morte que parece estar o aguardando.
O elenco ajuda a manter este tom dramático coerente – principalmente pela atuação contida, mas eficiente de August Diehl, que faz de Franz um homem pacato e simples, mas com uma grandeza de espirito que o torna, de fato, alguém que se sobressai à tentação do mal a sua volta – mesmo tendo chances de fingir que apoia o regime nazista, apenas para sobreviver, isto é algo que ele jamais consegue aceitar – e a atuação sem exageros de Diehl deixa isso bem claro – até mesmo no desesperador final do personagem – enquanto isso, Valerie Pachner acaba também seguindo a mesma linha de atuação mais introspectiva, ao retratar a luta de Fani, para cuidar da fazenda e sustento das filhas, apenas com a ajuda de sua irmã Resie (Maria Simon) – a atriz capta perfeitamente a angustia de saber que a morte espera seu marido e, que mesmo ela sendo extremamente fiel aos valores do companheiro, jamais deixa passar a esperança de que seu amado volte vivo para casa – algo, de fato, tocante – principalmente através das leituras das cartas que trocam um para o outro – revelando seus pontos de vistas, valores e morais.
Além disso, para exemplificar que suas crenças religiosas não são extremas e irracionais, Malick insere conflitos entre os personagens que mostram como isso os afetam – como os moradores do vilarejo que passam a maltratar Fani pelo fato do marido ser visto como traidor – demonstrando como a moralidade religiosa da população em nada serve se apoiam causas opressoras, além do posicionamento da igreja local, totalmente influenciada e controlada pelos alemães – aliás, a mesma instituição considerou o personagem de Diehl como um mártir, após o termino da guerra – ou ainda quando Franz é questionado por um companheiro de cela da existência ou não de Deus – ainda há a participação (em seu último trabalho, pois faleceu após as filmagens) do veterano Bruno Ganz, que interpreta um militar nazista, que acaba questionando Franz e a si próprio pela moralidade da situação em que o fazendeiro se encontra.
É fato que as passagens lentas ajudam na intenção do cineasta em fazer refletir sobre o dilema dos personagens e, por si só, a história de Franz já é algo incrível e emocionante – porém, Malick toma algumas decisões que transformam Uma Vida Oculta em filme de quase três horas... que faz você sentir que tem quase três horas! É visível a intenção de retratar a história de um jeito bastante intimo, porém, diversos momentos tornam-se repetitivos – e as narrações em off, das cartas trocadas entre Franz e Fani, acabam também por entrarem nesse ciclo – deixando muitos momentos óbvios e cansativos – apesar do esmero do trabalho de fotografia de Jörd Widmer e dos bonitos acordes de violino da trilha sonora de James Newton Howard, tais recursos estéticos e técnicos soam, no fim das contas, como meros exibicionismos – o que nos faz imaginarmos se um corte de pelo menos uma hora não faria mais eficácia ao projeto. Sem falar que a decisão de colocar os personagens austríacos falando em inglês e os alemães em sua língua original, soa quase que como um insulto a inteligência do espectador, deixando vários momentos implausíveis – principalmente a cena do julgamento.
Enfim, em meio de algumas decisões questionáveis de seu grande realizador – que já fez filmes de níveis estelares como Atrás da Linha Vermelha e A Árvore da Vida – Uma Vida Oculta ainda é um filme apropriado ao momento em que nossa sociedade vive atualmente – afinal, a trajetória de Franz Jägerstätter não pode nunca ser esquecida – um símbolo de alguém que não sucumbiu à opressão de governos racistas e totalmente intolerantes – algo que é perfeito de ficar em nossas consciências para não baixarmos a cabeça para o que temos de enfrentar agora e daqui para frente – como dito pelo pai de Fani (Matthes), “Sofrer uma injustiça é melhor do que causar uma” – diante de fascistas e nazistas, não podemos esquecer que nada vindo deles será justo, portanto, mesmo que a luta seja difícil e penosa, nada é aceitável para admitirmos a postura desses movimentos monstruosos – mesmo que para tentar evitar isso, alguns precisem abdicar de sua paz e até mesmo da própria vida.
Possivelmente, o único e triste consolo ao sabermos de tudo que Franz e tantos outros passaram é imaginarmos e lutarmos para que um dia isso não exista mais.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraSe você imaginar substituir a mesa de comida gigantesca que aparece para os personagens de O Poço por um carrinho de supermercado lotado de álcool em gel (o produto mais valorizado aqui no Brasil agora!), entenderá perfeitamente como as metáforas e simbologias desta produção espanhola para a Netflix são assustadoramente reais e atuais. Enquanto muitos se beneficiam por sua condição financeira superior, outros pagam pelas migalhas que o topo da pirâmide social imposta pelo capitalismo faz sobrar para eles – e, sem sutileza, o diretor Galder Gaztelu-Urrutia alfineta todo o sistema em que vivemos atualmente – seja qualquer um de seus “níveis” (como é dito no longa) – por fatores sociais, econômicos, culturais e religiosos.
Por mais óbvio que pareça toda a análise – e a palavra “óbvio” tem um significado até cômico, já que parece que o Sr. Trimagasi (Eguileor) a usa como um bordão – isso também é uma forma de demonstrar para muitos como esse desnível social é escancarado – que as diferenças socioeconômicas não são um mero exagero pregado por um grupo de pessoas – as exemplificações que O Poço passa são todas pontuais – há significados em praticamente todos os seus planos, enquadramentos e diálogos – isso, por si só, não é algo de que o filme possa se vangloriar tanto – afinal, recentemente podemos ver que o excesso de simbolismos em uma narrativa pode ser um inimigo também, como aconteceu com o terror Maria & João: O Conto das Bruxas – felizmente, os realizadores aqui acertam em apenas apresentar situações que forçam o uso da percepção e até opiniões do espectador – algo que sempre digo: toda boa arte tem o poder de conseguir atingir seu máximo resultado através da subjetividade.
Em uma trama onde todos os personagens (obviamente) representam algo, somos apresentados há um tipo de experimento de correção social em um futuro não muito distante – o poço do titulo nada mais é do que um tipo de clinica de reabilitação para diversos defeitos sociais, digamos assim – seja para criminosos ou pessoas que buscam algum desafio ou melhoria na vida – composto de inúmeros níveis, que possuem apenas um pequeno quarto, que são habitados, cada um deles, por duas pessoas – o aprisionamento destes recebe todos os dias a decida de uma enorme mesa de alimentos – descendo do topo até o fundo, o banquete, à medida que vai passando pelos níveis, vai ficando cada vez com menos alimentos – obrigando aqueles que estão abaixo a comerem, literalmente, restos de comida ou (nos casos extremos) recorrerem ao canibalismo – mas o detalhe é que, a cada 30 dias, os prisioneiros são trocados de níveis – podendo estar em um mês mais próximos do topo (onde tem mais comida) ou mais longe (onde a comida praticamente não chega) – quem acaba de chegar ao lugar é Goreng (Massagué), fazendo companhia para um senhor que já vive ali faz algum tempo, o frio e resmungão Trimagasi – a medida que os dias vão passando – e trocando de níveis – Goreng vai se dando conta do inferno que precisará enfrentar para sair de lá com vida – em meio de outros prisioneiros/moradores imprevisíveis e misteriosos.
Somente por essa sinopse, O Poço já seria uma obra um pouco diferenciada da maioria dos thrillers de suspense – mas o cuidado narrativo que seu diretor impõe ao trabalho é digno o suficiente para alcançar um nível reflexivo e imersivo em algo que realmente se torna perturbador – o que justifica as cenas sanguinolentas, como um tipo de reflexo da selvageria social que o mundo enfrenta – literalmente, sugerindo que muitos são obrigados a se alimentarem uns dos outros, devidos as condições em que vivem.
Aliado por um design de produção simples, mas eficaz, o filme consegue transformar o ambiente pequeno e simplório em algo bastante reconhecível para o espectador – embora todos os níveis tenham as mesmas características, é bastante curioso como os designers são criativos em adicionar detalhes diferentes cada vez mais insalubres conforme vamos chegando mais ao fundo do lugar – algo que as sinalizações do lugar também obedecem – seja a luz vermelha indicando apreensão ou perigo ou pelos efeitos sonoros do próprio alarme, assim como o ruído da mesa de comida descendo o poço – elementos que são propositalmente incômodos para atingir o espectador – assim como a sinistra trilha-sonora de Aránzazu Calleja, que parece usar barulhos de pratos, talheres e copos de vidro para compor algumas de suas melodias, como um tipo de rima com o medo misturado à satisfação quando a mesa aparece.
O elenco também cumpre bem seus papeis – se Ivan Massagué como Goreng consegue passar seu ideal de tentar ser justo e compreensível com os demais companheiros de confinamento, o destaque aqui fica mais para o veterano Zorion Eguileour como Trimagasi – conseguindo, com um tom de voz sarcástico e irônico, transmitir todo o seu desprezo pelos demais – não hesitando em cometer atrocidades para sobreviver – também merece menção a participação silenciosa de Alexandra Masangkay como a misteriosa e violenta Miharu, além de Antonia San Juan, que vive uma espécie de assistente social confinada no lugar.
Mas creio que todos esses bons atributos são só o principio de O Poço – o choque maior que sua trama pode transmitir é, sem dúvidas, através de sua critica e análises sociais e religiosas – que podem ser encaradas sobre diferentes prismas – e acredito que o espectador adverso a questões de luta de classes ou fanatismo religioso talvez não consiga apreciar com bons olhos esta obra – portanto, não leia os próximos parágrafos se ainda não assistiu o longa, pois comentarei sobre o que entendi do filme.
A primeira coisa (e mais escancarada e óbvia) são os níveis do Poço – representando as classes sociais mais abastadas nas partes de cima, a classe média mais ao meio e, claro, os mais pobres ao fundo; entretanto, esta metáfora simples ganha alguns contornos mais diferenciados – repare na questão de que funciona também como uma escala de renda/salário – a troca dos prisioneiros de mês em mês evidencia a questão da falta de empatia da sociedade – creio que todos já tiveram altos e baixos em questões financeiras de tempos em tempos, mas, lamentavelmente, muitos não se colocam no lugar dos outros – o que justifica perfeitamente o fato de quem está nos níveis mais superiores não ter a menor vontade de racionar a comida para os que estão em baixo – “quando eu estava lá em baixo não deixavam comida para mim, agora é minha vez de aproveitar”, diz um dos prisioneiros – afinal, como um outro deles diz, há comida suficiente para todos os níveis, mas os mais altos não pensam nisso, preferindo consumir tudo o que podem – novamente vamos nos lembrar das pessoas de melhor situação financeira estocando comidas e materiais de higiene aqui no Brasil, devido ao coronavírus.
Outro fator curioso é sobre a questão de ajuda ao próximo ou a “solidariedade espontânea” que a personagem de Antonia San Juan cita – o fato do lugar ter sempre duas pessoas por níveis ajuda a visualizarmos isso: no inicio, quando Goreng conhece Trimagasi, fica notório como o ancião visualiza a relação dos dois como uma “relação de troca” – “a partir de agora só vou lhe informar o tanto de coisas que você me informar” – um jeito mais discreto de mostrar como muito das relações humanas funciona na base da troca, literalmente – de fazer algo apenas para poder ter benefícios futuros; o que nos remete à um dos diálogos mais enigmáticos do longa, quando Goreng questiona que os “de cima” não estão racionando a comida para os “de baixo” e, por isso, é taxado de comunista por Trimagasi – e isso talvez nos mostre a questão religiosa inserida em todo o longa.
Goreng é, evidentemente, visualizado como Jesus Cristo. O simples fato de querer racionar comida ou achar soluções para a sobrevivência de outros é o suficiente para o rotularem de socialista – titulo que, com o fanatismo religioso da atualidade, seria colocado até mesmo em Jesus, caso vivesse nos dias de hoje, creio eu. O personagem de Massagué, além de demonstrar em sua aparência as atribuições físicas que o filho de Deus recebeu pela cultura religiosa ocidental (a barba, principalmente), representa a pureza – ele entrou no Poço por livre e espontânea vontade, apenas para conseguir um “certificado” – como se sua busca por significado na vida fosse o mais importante – o fato dele ter escolhido um livro, como seu único objeto a ser levado para o lugar nos remete a sua opção pela literatura, ou mais diretamente, pela inteligência – e, sem dúvidas, o fato de ser Dom Quixote tem muito a ver com o que enfrentará – ora, Dom Quixote envolve um homem que tem que enfrentar inimigos imaginários e fora de sua época – a desigualdade social não seria um inimigo invisível? Ou a pregação de valores religiosos ultrapassados e infundados pelo conservadorismo também não?
Ainda traçando algum paralelo com o livro clássico de Miguel de Cervantes, temos em Trimagasi um tipo de Sancho Pança – ele tenta mostrar para Goreng a realidade da situação do Poço – representando, junto a isso, a visão de mundo mais para o lado da direita conservadora ou alguém que aceita as condições precárias do sistema capitalista e do individualismo – o fato dele ter escolhido a sua super faca cortadora como o objeto que levou para o lugar indica isso – sem falar que o crime que cometeu acidentalmente para ir ao Poço foi em decorrência de sua fixação pelo consumismo – mas já na assistente social de Antonia San Juan é possível visualizarmos um lado mais humanitário – ela divide sua comida com seu cachorro-salsicha (obviamente, mostrando também algum tipo de critica ao abuso que os animais sofrem para serem consumidos pelos humanos – e o triste fim do cãozinho confirma isso), além de tentar racionar e conscientizar os demais a manter o alimento para todos – sendo rechaçada pela ganancia (inclusive pelos “de baixo”) – se entristecendo pelo fato de que somente pela ameaça de Goreng seu pedido é atendido; fora que ela é também voluntária – afinal, era funcionaria do Poço – e, acometida por um câncer, ela vê na ajuda ao próximo um tipo de tentativa de “redenção”, mesmo que imperfeita – tanto ela como Trimagasi acabam sendo usados como um jeito de representar o bem e o mal/emoção e razão dentro de Goreng – uma representação mais simplória de sua consciência – e então surge Miharu e sua fama de louca e assassina durante a suposta busca por sua filha – que ninguém viu e não acreditam que exista – um tipo de figura de linguagem que mostraria como muitas mulheres são subjugadas pela sociedade, que preferem ataca-la do que ajuda-la – seu lado mais humano, em meio a loucura a qual é submetida, é demonstrado pela gratidão que passa para Goreng, por ele ter a ajudado – e a sugestão de que teria feito sexo com ele também mostraria uma espécie de ligação humana entre os dois – contradizendo a imagem de “monstra” da mulher – taxada assim pelo simples fato de tentar garantir a sobrevivência da filha (que falarei mais a frente).
Entretanto, O Poço ganha um contorno mais forte em sua alegoria religiosa quando surge o personagem de Emilio Buale – Barath é aquele tipo de religioso que não faz mal a ninguém – mas, infelizmente, acaba sendo manipulável – e quando tenta subir com uma corda para o nível acima e é questionado se seu Deus é o mesmo dos que estão em cima, fica evidente como a questão religiosa no mundo é segregadora – e de como a intolerância religiosa ou até mesmo o racismo (afinal, Barath é negro) é inserido entre as classes sociais – não a toa, ele acaba literalmente levando merda dos moradores do nível superior ao que estava.
A partir daí, o longa traça uma descida que representa a tentativa de Jesus provar para a “Administração” que o ser humano vale a pena – que pode existir bondade nas pessoas – sendo assim, é visível que o diretor tenta mostrar os integrantes do nível zero como um restaurante de alto nível, com comidas caras e exorbitantes – o que reflete a situação financeira dos grandes empresários detentores das maiores riquezas do planeta – estes, não trocam de níveis de mês a mês – são os que controlam todos que estão abaixo e o que devem consumir (ou até mesmo o tanto que devem consumir) – mostrando que, daí para baixo, ninguém é, literalmente, mais privilegiado do que eles – mas é claro que a “Administração” pode ser vista também como Deus – um Deus do velho testamento, talvez. Mais castigador e rígido – que quer alguma prova de que a humanidade pode ser boa.
Sendo assim, a descida que Goreng e Barath tentam fazer, para deixar os 50 primeiros níveis ficarem apenas um dia de jejum, enquanto que sobraria mais comida para os de baixo, representa, basicamente, a vida de Jesus – que tentava extrair a bondade e justiça das pessoas – os dois acabam tendo que lutar para que os mais gananciosos não toquem na comida, da mesma forma que precisam impedir os mais pobres de exagerarem no consumo; mostrando como o sistema atual em que vivemos é tão selvagem que a violência acaba sendo algo inevitável em certas situações, lamentavelmente – diante dessa alegoria, Galder Gaztelu-Urrutia introduz alguns detalhes riquíssimos: como os pecados capitais (a avareza do prisioneiro com a cama cheia de dinheiro, a luxuria do casal que faz sexo acima do nível de Barath ou os dois homens numa pequena piscina de plástico, ou pela própria gula, etc), as interpretações bíblicas pouco convincentes (o amigo de Barath que lhe dá a ideia de usar o pequeno doce como a “mensagem” para provar que existe bondade nos moradores do Poço) ou a constatação de Goreng de que existem muito mais níveis para baixo do que ele imaginou – uma reflexão forte sobre as classes sociais mais desfavorecidas que nós nem ao menos conhecemos ou imaginamos como são – afinal, nem todos sabem o que é conviver com a fome, como muitos países africanos convivem ou como as crianças da Síria lidam com a guerra, por exemplo.
Ao chegarem ao nível final (o 333, que provavelmente representa a santíssima trindade – Pai, Filho e Espirito Santo), Goreng e Barath encontram a filha de Miharu – e é interessante constatar que ela querer esconder a filha ali é justamente por ser um lugar em que ninguém queria estar – longe da ameaça dos homens – e assim, Goreng finalmente entende que a mensagem é a própria garota – um tipo de forma de mostrar que sacrificar sua vida pela de uma criança (ou a humanidade, igual na história de Jesus) é algo muito mais humano do que ficar um único dia de jejum – ou um único dia sem lucrar, como alguns empresários estão preocupados no momento aqui no Brasil – mesmo alguns deles tendo até bilhões em suas reservas.
A menina acaba sendo a resposta para o sistema – uma resposta para a Administração/Deus – de que, em meio a todas as precariedades em que vivemos, temos capacidade de sermos pessoas com uma solidariedade espontânea e sem vaidades – sem querer apenas se exibir (como algumas celebridades ou empresários também fazem por aí) – o que explica porque a consciência de Goreng (representada pela imagem de Trimagasi) o convence de que ele não deve subir junto com a menina – seu sacrifício torna-se parte da mensagem.
Todos esses detalhes fazem O Poço se mostrar um filme que não tem medo de escancarar suas alegorias – a intenção é realmente mostrar que muitas coisas óbvias estão sendo esquecidas – que a falta de governantes altruístas e responsáveis é um fator determinante para que não nos conscientizemos de que vivemos todos em um lugar brutal e extremamente desigual – onde o funcionamento do mercado parece ser mais importante do que nossas vidas – como dito logo no inicio, “existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem” – diante dessa crise do Covid-19, é hora de notarmos que nossos “representantes” não estão preocupados nem um pouco naqueles de baixo, e nem naqueles que acabam caindo. Uma triste reflexão que este longa da Espanha (um dos lugares com mais contaminados pelo coronavírus) quer tentar nos passar – antes que nosso mundo vire de vez algo idêntico ao que Goreng e seus companheiros enfrentam.
Contágio
3.2 1,8K Assista AgoraO cinema sempre teve e (creio eu) sempre terá uma função social. Quando assisti Contágio pela primeira vez nos cinemas em 2011, não me dava conta de que a ameaça viral que seus personagens enfrentavam poderia ser uma coisa pertinente na vida real – as noticias sobre gripe suína ou a tal da MERS, na época, passavam longe de me amedrontar – o que, provavelmente, contribuiu para que eu não captasse toda a urgência e critica que o diretor Steven Soderbergh (de Traffic, Erin Brocovich e Sexo, Mentiras & Video-Tape) e o roteirista Scott Z. Burns queriam passar.
Revendo agora, noto como nosso estado emocional e social influi na experiência de assistir um filme. Não seria exagerado dizer que os realizadores do longa foram quase que proféticos – existem inúmeras semelhanças com a nossa realidade de combate ao coronavírus – seja pela própria origem da doença na história (que curiosamente tem a ver com um morcego também) ou pela reação pública e as medidas para enfrentar a disseminação do vírus – e, pasmem – o que poderia soar em filmes de zumbi como soluções forçadas ou irreais, tornam-se aqui absolutamente verossímeis – tão real que eu acharia importante este filme ser exibido várias vezes nas emissoras de TV’s do país, como ferramenta de conscientização sobre a doença.
Apresentando vários personagens, em diferentes regiões do mundo, Contágio começa mostrando a norte americana Beth Emhoff (Paltrow), em viagem de trabalho a Hong Kong – após ir em um cassino, ela retorna para os Estados Unidos – em menos de dois dias, começa a se sentir terrivelmente doente – coriza, tosse, febre, aversão a alimentos e líquidos, convulsões – de fato, mais perigoso que o COVID-19 – o que assusta seu marido, Thomas (Damon), que imediatamente a leva para o hospital e descobre que ela esta infectada por um vírus novo e desconhecido – que, em pouquíssimo tempo, se espalha para os moradores da cidade, para todo o estado e, em seguida, todo pais – além de estar surgindo em outros países – além de Hong Kong, Inglaterra e França começam a relatar casos da doença – o que faz o responsável em saúde pública norte americana Ellis Cheever (Fishbourne) chamar a Dra. Erin Mears (Winslet) para investigar o caso – enquanto que a representante da Organização Mundial da Saúde, Leonora Orantes (Cotillard) parte para a Ásia para verificar o estado das vitimas de lá – em meio a isso, o blogueiro Alan Krumwiede (Law) tenta investigar o caso, apontando supostas irregularidades nas medidas tomadas pelo governo, usando teorias de conspiração para tentar provar suas suspeitas.
Didático em apresentar como o vírus se espalha facilmente, o longa é beneficiado por um trabalho de edição e montagem primorosos – onde closes em mãos se tocando ou relando em diversos objetos de cena, tornam-se elementos de tensão – uma maneira marcante de exemplificar o crescimento de uma ameaça invisível, mas letal – os enquadramentos e a direção de fotografia optam por tomadas fechadas, mesmo que em locais abertos – ainda inserindo uma tonalidade esmaecida e fria, a fim de causar uma claustrofobia – evidentemente, como forma de simbolizar a “prisão” que o vírus proporciona aos personagens – algo que a ótima e tensa trilha-sonora de Cliff Martinez também auxilia – ao utilizar acordes eletrônicos com várias linhas de baixo sintetizadas, as músicas conseguem conferir peso e tensão crescente nas cenas.
Contando com um elenco de estrelas que realmente esbanja talento, o roteiro consegue explorar e dar funções criticas eficientes para cada um deles, entrelaçando de forma bem ritmada cada uma de suas histórias – Soderbergh é feliz em representar varias camadas sociais durante a trama – seja pelo norte americano comum de classe média – o personagem de Matt Damon e sua neura (totalmente justificável) em preservar a saúde da filha (Anna Jacob-Heron), além da maneira como se sente preso e impotente em casa, diante da situação da pandemia - o representante público do governo vivido por Laurence Fishbourne, que sente a pressão pública e particular de tentar buscar uma solução para o problema; o que nos leva a questão de quem é ou não privilegiado em situações como essa – sem falar na forma como retrata a luta e sacrifício dos profissionais da saúde e ciência para evitar mais mortes – seja pela cientista vivida por Jennifer Ehle e a médica de Kate Winslet – cuja ambição e determinação tornam-se comoventes pelo seu destino – enquanto que na personagem de Marion Cottilard somos apresentados as pessoas que mais sofrem em meio ao caos de uma contaminação em massa: os mais pobres – os últimos a serem ouvidos ou socorridos, diante da divisão de classes que o mundo capitalista impõe.
Mas, sem dúvidas, um dos personagens mais importantes é o de Jude Law – e creio que através dele temos uma ligação ainda maior com a nossa realidade atual: a questão da desinformação – em um mundo onde noticias falsas se propagam mais rapidamente que os vírus, o papel da suposta imprensa independente torna-se contraditório – o digital influencer vivido por Law não se abala em divulgar dados infundados (sem nenhuma base cientifica) apenas para ganhar visualizações em seu blog (ou canal no YouTube) – atirando teorias como ciência comprovada – o que, consequentemente, se torna influencia para milhões de pessoas que o assistem e seguem – creio que só faltou mencionar que Alan é um terraplanista, já que ele é adepto da teoria de que a indústria farmacêutica dissemina doenças no mundo para vender seus remédios – ou questiona a eficácia dos medicamentos – se para você isso não se assemelha com os estapafúrdios movimentos anti-vacina que temos aqui no Brasil ou com grupos teóricos de conspiração – além de outros que relativizam as consequência da pandemia atual – creio que não moramos no mesmo país.
O longa somente perde força por não dar tanta atenção ou melhor solução para algumas de suas linhas narrativas – a personagem de Cotillard é um exemplo, que surge no primeiro ato e depois só no terceiro, com uma solução um tanto apressada e pouco explorada sobre as crianças que acaba sendo forçada a ajudar – um tipo de critica mais simplória à falta de empátia do sistema para ajudar os mais humildes – sem falar que não deixa de soar um pouco inverossímil o fato do personagem de Matt Damon ter contato direto (por dois dias) com dois infectados e não pegar o vírus – alegando uma imunidade pouco provável – algo que só é compensado pela forma realista com que seu personagem tenta manter a filha a salvo – por mais absurdo que pareça ele expulsar o namorado da moça a força, segurando um rifle na mão.
Evitando clichês que vimos em trabalhos mais exagerados sobre contaminações em massa – como no mediano Epidemia, de 1995 – Contágio capta ainda o caos socioeconômico que a pandemia traz para a sociedade norte-americana, mostrando a ineficiência das politicas públicas de saúde dos Estados Unidos, se tornando um filme quase que obrigatório agora por suas soluções realistas e detalhadas de como uma ameaça viral afeta o mundo inteiro – em meio de figuras públicas que classificam uma doença que já matou mais de 18.000 pessoas no mundo todo (até este exato momento em que escrevo, em 23/03/2020, às 22h15) como uma “gripezinha” ou de “histeria”, é aqui que o cinema e o entretenimento cumprem suas funções de ajudar a trazer luz e reflexão para as pessoas – e, através de seu genial e revelador plano final, traz uma resposta ao espectador que só mostra que o problema da saúde mundial não é culpa de um animal ou de uma nação especifica – o que nos lembra da xenofobia com que os chineses estão sendo vitimados hoje – Soderbergh deixa bem claro que o problema está no ser humano – em sua negligência com o estado social do próximo e de sua exploração e destruição da natureza.
Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica
3.9 663 Assista AgoraLogo em sua introdução, Dois Irmãos nos apresenta ao seu universo, onde seres mágicos e mitológicos, como ciclopes, elfos, orcs, duendes, dragões e vários outros tipos de criaturas fabulescas convivem livres, em um tipo de terra média, onde o uso de suas magias ou feitiços são liberados – tendo apenas que se esforçarem e aprenderem a utilizá-los com bons propósitos – entretanto, quando a tecnológica começa a ganhar forma, tais poderes passaram a soar obsoletos, fazendo com que seu uso (ou o aprendizado para uso) seja algo ultrapassado – tornando-se muito mais fácil para seus habitantes se apoiarem na modernidade – seres metade homem, metade cavalo usam carros; fadas, mesmo com asas, andam de moto – e todo o conhecimento de seus antepassados fica agora apenas como “mitologia” – ou “lendas”.
De uma maneira muito sutil (e delicada), o diretor Dan Scanlon (também um dos autores do roteiro) surpreende por sua abordagem versátil e encantadora – inserindo um subtema realmente atual: se você substituir “magia” por outros elementos como “cultura”, “história” ou “tradições”, notará o poder que esta nova animação da Disney/Pixar consegue atingir – algo bastante pertinente com nossa realidade, onde boa parte da sociedade parece querer esquecer de nossas origens – tanto as culturais, quanto as sociais – enfim, por muitas vezes, não nos lembramos de nossas essências, ou as características que formam nossos aspectos de moralidade, identidade e caráter – algo que os Dois Irmãos do titulo nacional (já que não tem nada a ver com o titulo original, que significa "adiante") lidam sempre em seu cotidiano.
Enquanto o mais jovem, Ian (voz de Tom Holland no original), precisa lidar com sua insegurança para aprender a dirigir ou lidar com seus companheiros de escola – além de se sentir triste pela ausência do pai, que faleceu pouco antes dele nascer – o mais velho, Barney (voz de Chris Pratt) é um tipo de ativista, que quer manter viva a magia que seu povo tanto usava séculos atrás – mas que agora é esquecida pela população – com sua mãe solo, Laurel (voz de Julia Louis-Dreyfus), precisando cuidar dos dois filhos de temperamentos e personalidade diferentes, os dois acabam recebendo um antigo cajado mágico como presente, que seu pai guardou antes de falecer, podendo com isso faze-lo reviver por um dia – o que faz com que os dois – além da mãe e da “empresaria” Die Manticore – embarquem em uma aventura atrás de uma preciosa pedra mágica que completara o feitiço que trará o pai deles de volta por 24 horas – inteiro, já que só conseguiram trazer as pernas dele de volta, por enquanto.
Sabendo dosar bem o humor e a emoção - na maior parte do tempo - a abordagem do diretor é satisfatória justamente por exigir uma atenção as características e comportamentos de cada um de seus personagens – é preciso aplaudir o cuidado na criação das personalidades de Ian e Barney – evidenciando uma multifacetação que os torna absolutamente memoráveis – e, se existe um ou outro momento um pouco mais exagerado para emocionar, o diretor compensa com outros extremamente sutis e delicados – repare na forma como Ian tenta “conversar” com o falecido pai, através de uma gravação em fita K-7 – ou como Barney se sente empolgado quando finalmente embarca na jornada atrás da pedra, por conseguir se sentir ativo e vivenciando o que acredita – da mesma forma que este também se sente triste ao notar que o fato de ser um tipo de militante pela magia acaba fazendo-o ser julgado pelos demais como um delinquente ou um “inútil” – enfim, o que conduz o longa é a relação dos dois – e é impossível não se emocionar ao termino da corrida deles contra o tempo, justamente pela discrição que é mostrada – sem apelos emocionais óbvios, realmente – a lista que Ian faz sobre coisa que precisa fazer com o pai quando este voltar, é um belo exemplo disso – e fico muito feliz com o cuidado do estúdio em traduzir para nossa língua as anotações e escritas, o que dispensa o uso de tradutores ou legendas – causando uma melhor imersão na história.
Essa questão de descoberta e desconstrução para vida também se estende aos coadjuvantes – a criatura meio leão, meio dragão (não consigo me lembrar o nome de sua espécie), Die Manticore (voz da Octavia Spencer no original), é um exemplo mais claro da buscar pelas origens e personalidade própria – e a critica contra o uso desenfreado da tecnologia (ou leia-se como o próprio capitalismo), mostrando ela como alguém que precisou abandonar suas tradições para se adequar ao mundo – não a toa, ela cuida de uma espécie de lanchonete temática, precisando lidar com avaliações do seu estabelecimento em aplicativos de comida – mesmo que um tanto exagerado aqui, já que ela se rebela em poucos minutos dessa condição – sem falar na boa construção da mãe deles, por apresentar Laurel como uma mãe solo corajosa, disposta a proteger de qualquer forma os filhos; e ainda por mostra-la com um namorado, o policial Bronco – indiciando que uma mãe viúva, obviamente, pode encontrar novos relacionamentos para vida – não deixa de ser algo notável que um filme para o público infantil consiga ser tão critico – e de maneira realmente discreta – o que não atrapalhará a apreciação de sua trama pelos pequeninos – que provavelmente darão muitas gargalhadas durante a sessão – enquanto que seus pais poderão dar alguns soluços em meio ao choro espontâneo que Dois Irmãos pode provocar.
Ainda sobre inserir um conteúdo mais adulto por trás de sua boa história, o longa ainda encontra tempo para suaves ponderações sobre homossexualidade e feminismo – repare no pequeno dialogo de duas policiais com os irmãos usando magia para se parecerem com o Bronco (voz de Mel Rodrigues) – onde uma delas diz: “também tenho problemas para cuidar dos filhos da minha namorada” – ou quando Ian, Barney e as pernas de seu pai encaram algumas pequenas fadas que precisam lembrar que suas asas servem para voar – são pequenas doses de diversidade inseridas de modo funcional, que vão além de um discurso de politicamente correto – mas ainda assim necessário para que nossa sociedade se dê conta de evitar preconceitos.
E, mais uma vez, esse cuidado com detalhes também se apropria do design de produção e dos animadores digitais – conferindo inúmeros detalhes, que ajudam na composição dos personagens e do universo em que vivem – coisas como um posto de gasolina chamado “Swamp Gas” (Gasolina do Pântano) ou a forma como mostra um céu ao anoitecer com duas luas, ou as ruas e carros de uma metrópole – realmente, muito realista – assim como coisas mais intimas, como o quarto de Ian, com vários pôsteres e roupas jogadas no chão, evidenciando o descuido que tem no dia a dia, sem necessitar de mais explicações – ou a van de Barney, que se torna, realmente, um personagem – com seu nome fazendo referência a esposa do Rei Arthur, Guinevere – fora o cuidado na animação para mostrar as fotos do falecido pai dos dois – sem mencionar o jeito simpático e bonito como as pernas do pai se “comunicam” com os filhos, através do tateado ou de passos de dança. Tudo isso aliado a uma paleta de cores lindíssima – tanto pelas paisagens que apresenta, tanto até mesmo pelos tons de cores e detalhes nas peles de cada espécie que aparece em cena – vide a barba por fazer de Barney ou o cabelo enrolado de Ian, por exemplo.
São esses detalhes que compensam até mesmo um terceiro ato um pouco apressado em sua resolução ou na forma como introduz uma ameaça mais monstruosa (digamos assim) – onde uma certa critica a alienação em estudos parece ser colocada – mas não muito bem expressada, creio eu – enfim, no final da sessão o choro será difícil de ser evitado, mas será verdadeiro – mostrando como a luta desses dois adoráveis irmãos reside em uma busca por superar a falta que um ente tão querido faz em suas vidas – o que acaba por ajuda-los a entender suas origens e, consequentemente, o que realmente são e o que os fazem ter uma ligação fundamental para que sirvam de alicerce um para o outro – Disney e Pixar mais uma vez atingem nossos corações com outra história belíssima e inteligente.
O Homem Invisível
3.8 2,0K Assista AgoraNão é de hoje que o cinema mainstream enfrenta uma crise de criatividade – o excesso de refilmagens, reboots e adaptações repetidas, sem dúvidas, desestimulam boa parte do público a comprar seus ingressos – mas, é claro, que existem exceções – e fiquei bastante satisfeito em notar que o diretor (e também roteirista aqui) Leigh Whannell conseguiu atualizar de uma maneira bastante séria e tensa está história clássica do lendário escritor H.G. Wells – suas decisões de protagonismo, temas de fundo e algumas metáforas e criticas sociais fazem toda a diferença – tornando O Homem Invisível em um assustador estudo da realidade que muitas mulheres passam sob a pressão de figuras masculinas opressoras e manipuladoras.
Embora seja uma adaptação do livro de 1897 – que tinha uma versão clássica estrelada por Claude Rains em 1933, um marco na história dos efeitos especiais – a trama agora tem quase nada em relação à história original – tirando o sobrenome do cientista e uma breve vista de um homem enfaixado (marca registrada do filme dos anos trinta) em um hospital, a história parte de uma atualização dos conceitos originais – se o homem invisível de Rains tinha aspectos da filosofia de Nietzsche, especificamente da obra “O Super-Homem”, onde é imaginado um cidadão que, com um poder grande adquirido, o usaria apenas para seu beneficio, subjugando os demais – e fazendo alusões até mesmo a “dominar o mundo” – está nova versão viaja por um caminho mais intimo, mas nem por isso menos perigoso – para isso, se o protagonismo antes era do personagem-título, agora é sob o ponto de vista da vitima.
Partindo de uma metáfora bastante simples – obviamente, o homem invisível representa a figura de homens que não são vistos (ou notados) pelo resto da sociedade – mas se tornam extremamente perigosos e torturadores (e bem visíveis) para as mulheres, as quais eles abusam – quem passa por essa traumática situação é a arquiteta Cecilia Kass (Moss), vivendo em um relacionamento perigoso, praticamente presa na luxuosa casa do cientista Adrian Griffin (Cohen) – ela acaba por fugir do local, recebendo, dias depois, a noticia de que seu ex-namorado cometeu suicídio – deixando uma herança para ela, que somente será recebida caso ela não cometa nenhum crime ou não seja considerada mentalmente incapaz – a partir daí, o inferno que vivia com o ex-companheiro acaba por aumentar – com diversos incidentes atrapalhando sua relação com a família que está lhe dando abrigo agora – o policial James (Hodge) e sua filha Sydney (Reid) – além de com sua irmã (Dyer) – Cecilia suspeita que Adrian forjou seu suicídio e encontrou uma forma de ficar invisível, para prejudica-la e enlouquece-la – fazendo todos a sua volta suspeitarem que ela está realmente perdendo sua sanidade.
Nesse clima sufocante de tensão psicológica, Whannell acerta a mão por conduzir a trama sem pressa – ele desenvolve o drama, a pressão e o medo que Cecilia tem, não só pela ameaça invisível, mas pelo mundo todo – pois veja a sugestão das situações: a personagem de Elisabeth Moss passa exatamente pelo drama que diversas mulheres sofrem, ao tentarem pedir ajuda contra uma ameaça que ninguém quer saber ou ver – sendo taxada de louca, apenas pelo fato do criminoso se esconder do resto da sociedade – as tristes estatísticas aqui no Brasil, por exemplo, mostram como muitas perdem a vida devido a isto – por mais que ela tente explicar o que acontece, acaba sendo sempre questionada por todos – como ao tentarem justificar o comportamento do agressor pelo fato dele ser rico e que, por isso, Cecilia estava com ele só por interesse financeiro – parece absurdo, mas isso acontece com as mulheres, de fato – inclusive, outras mulheres, lamentavelmente, se esqueceram de que esta infeliz condição foi imposta pelo machismo estrutural na sociedade – o roteiro do próprio diretor é inteligente também em mostrar como Adrian tenta desestabilizar Cecilia em todas as suas camadas da vida – seja atrapalhando sua carreira, suas amizades e familiares – além de inserir uma sutil (mas verdadeira) critica ao fato de homens manipularem ou forçarem as mulheres a maternidade – numa espécie de afronta da sociedade patriarcal contra a independência feminina.
Contando com bons atores coadjuvantes, como o próprio Oliver Jackson-Cohen como Adrian, passando bem seu olhar de opressor e desprezo – além de Aldis Hodge como James e a menina Storm Reid como Sydney – o destaque maior do longa é, com certeza, na atuação excelente de Elisabeth Moss – a atriz consegue ser versátil ao ponto de exibir traços da personalidade de Cecilia que estão sendo destruídos pelo relacionamento tóxico no qual se envolveu – repare como ela consegue ainda passar um ar de tentar ser feliz em meio ao caos, quando resolve presentear os amigos que lhe ajudaram ou quando fica com pena do cachorro de seu ex – além disso, suas expressões e olhar perdido marcam perfeitamente a sensação de perseguição e fobia em sair para o mundo – mostrando como é uma grande atriz, Moss transforma um simples caminhar até a caixa de correio em um modo de visualizarmos como sua personagem se tornou frágil em encarar o mundo, devido a presença de um homem opressor em sua vida – sem falar da forma como encara, literalmente, a presença do ser invisível – pois veja o desafio da atriz aqui, ao ter que atuar para o “nada” ou, provavelmente, com alguém vestido de verde, que seria “retirado” na pós-produção – um trabalho marcante desta grande atriz.
Nesse clima de suspense crescente, o longa também acerta em suas concepções e ideias visuais – e creio que o maior acerto aqui seja a discrição – ao evitar dar explicações improváveis para um fato tão improvável como a invisibilidade, o roteiro foge de diálogos expositivos e absurdas tentativas de justificar fatos sem muita base técnica – algo que tanto O Homem Sem Sombra de Paul Verhoeven e o filme de 1933 tinham – a forma como é adquirida aqui é um tanto absurda ainda, mas achei mais plausível do que as experiências com uma planta que simplesmente tira a cor das coisas – sem falar que o modo como a direção de arte e a equipe de efeitos especiais exemplifica as lutas e “pegadas” do homem invisível são extremamente bem feitas, optando por um realismo que assusta – evitando sustos desnecessários e conseguindo realmente surpreender em certos momentos – como uma certa cena em que um objeto surge do nada durante uma conversa e causa algo terrível – como estamos diante de uma ameaça que não podemos ver, o trabalho de edição de som acaba sendo fundamental – com resultados excelentes, é recomendável assistir o longa no cinema ou em um bom sistema de som, para causar uma imersão e tensão maior – algo que também é reforçado pelo boa trilha sonora de Benjamin Wallfisch – criando toques de um contra baixo sintetizado e assustador – além de inserir violinos que dão mais peso e também um certo alivio para alguns momentos de medo, tristeza e desespero de Cecilia.
Pecando apenas por algumas soluções na trama que soam um tanto forçadas – como a ligação do irmão de Adrian, o advogado Tom (do Michael Dorman) – ou quando Cecilia precisa voltar para a casa do agressor para conseguir provas contra ele – mesmo que tenha uma função para complementar a trama mais tarde – ainda assim, o filme se sobressai por dar uma solução um tanto ambígua, mas satisfatória, para a trama – especialmente sobre tocar no assunto de como as mulheres devem se defender de homens como Adrian – e até que ponto a justiça é realmente justa para esse tipo de situação – ou o fato de que a sociedade precisa ver tudo escancaradamente para tirar suas supostas conclusões – vide a forma como o filme sempre insere imagens de câmeras de segurança, como se fosse o olhar da sociedade, digamos assim – algo que Whannell se aproveita bem para compor o último ato.
Junto da direção acertada e da magnifica atuação de Elisabeth Moss, O Homem Invisível é um suspense grandioso e capaz de fazer o espectador pensar sobre o tema que aborda – dando uma pequena noção do drama terrível de inúmeras mulheres que sofrem em relacionamentos abusivos.
Maria e João: O Conto das Bruxas
2.6 527Entre essa onda de se apropriar de histórias clássicas dos contos de fadas, em filmes como Branca de Neve e o Caçador ou João & Maria: Caçadores de Bruxas, é uma notícia boa que este segundo longa-metragem do diretor Oz Perkins (filho do falecido Anthony Perkins, o Norman Bates do clássico Psicose) tenha, em sua proposta, um pouco da ousadia que vimos em projetos de cineastas tão promissores quanto Robert Eggers (A Bruxa, O Farol), Ari Aster (Hereditário, Midsommar) ou até mesmo Jordan Peele (Corra, Nós) – ficando longe de elevar tudo para um mero filme de ação, como nos exemplos citados. Mas, infelizmente, o lado ruim é que Perkins e o roteirista Rob Hayes não tem a mesma visão para inserir seus temas bem antenados com sua trama, que, ao mesmo tempo que foge de elementos batidos do terror, se choca com uma falta de novidades em sua abordagem temática.
Aliás, logo no titulo já é possível notar um pouco do que se trata: o nome de Maria antes de João, que era ao contrario no conto clássico – fazendo aqui surgir o tema sobre emancipação feminina, com a sociedade encarando as mulheres independentes como bruxas – a falta de ineditismo surge aqui, pois Robert Eggers já trabalhou com isso em A Bruxa – mas, felizmente, Perkins está disposto a traçar novos paralelos, que explora às vezes com eficiência e outras com superficialidade – uma das vantagens, é tentar considerar a suposta história original do conto – a versão mais conhecida, dos Irmãos Grimm, era bastante suave, convenhamos – mas a lenda em qual se baseava tinha aspectos bem mais sinistros – como ao explorar os efeitos que a Idade Média causava sobre as mulheres, mais especificamente as mães e a criação de seus filhos – assim como a pobreza, que gerava o fantasma da fome – sem falar da Peste Negra, que quase acabou com a humanidade – tais pontos são explorados no filme, em maior ou menor grau – portanto, não estranhe que muitas passagens e caminhos da história sejam bem diferentes das versões mais infantis do conto.
Embora com características de outra época, a história se passa (provavelmente) no século XVIII, contando como os irmãos Maria (Lillis) e João (Leakey) foram expulsos de casa e precisaram entrar em uma floresta para encontrarem um novo lar – perdidos e com fome, encontram uma misteriosa casa, onde uma estranha senhora (Krige) os convidam para entrar e morar – planejando secretamente engorda-los para poder come-los mais tarde.
É interessante como o diretor se dá bem quando faz reflexões sobre as partes da trama que realmente são do conto conhecido – a forma como a Bruxa “faz” suas comidas, por exemplo, é algo sinistro e realmente horrendo – mas torna-se um tanto forçado quando ele tenta inserir “novidades”, como o padre que acaba ajudando os dois a entrarem na floresta – talvez uma critica superficial a igreja católica e sua capacidade de querer proporcionar o bem, mas ao mesmo tempo de julgar e punir os indivíduos – o padre os ajuda, mas não se importa em expulsa-los do local onde estavam querendo abrigo – ou Maria e João consumindo cogumelos na floresta, como se estivessem realmente drogados, mostrando o destino de crianças sem a proteção familiar por perto, se perdendo com as drogas, ou todo o inicio, contando a história sobre a “menina do capuz rosa”, que serve como exemplificação do fardo que muitas das mulheres precisavam para viverem – e, nisso, o filme se difere um pouco do trabalho que citei de Robert Eggers, em tentar mostrar também como a vida não é nada gentil com as mães solo, como mostrado pelo desespero da mãe deles, que não consegue cria-los, temendo que morram de fome pela pobreza em que vivem – mas é curioso que isso seja explorado por um outro lado, como na má criação dos filhos ou negligência por parte dos pais – seja por uma mãe que não suporta o sacrifício do pai pela filha – por um ciúmes infundado – ou o fato de Maria se sentir pressionada em ter que cuidar do irmão menor, pois ele ainda não sabe muito sobre a vida – mostrando como muitas vezes a sociedade impõe o papel de cuidadora somente para a mulher, não se importando tanto com o fato do homem (ou o pai mesmo) não estar por perto para ajudar na criação. Ou seja: basicamente, Maria e João é sobre como as mulheres devem usar seu “poder” – se a questão parece ambígua inicialmente para Maria, na Bruxa vivida por Alice Krige temos o lado obscuro, onde decisões erradas podem gerar comportamentos extremos e perigosos – aliás, a atriz capta de forma sinistra a mentalidade maléfica da personagem, de forma realmente marcante, por demostrar a inteligência e o controle que tem sobre a situação.
Se o pequeno Samuel Leakey tem capacidade de expressar bem a curiosidade e duvidas que João tem sobre o mundo novo em que se aventuram – como o fato de querer ser lenhador, mesmo sem saber como usar o machado – é Sophia Lillis que realmente se sobressai em uma bela composição, ao transformar Maria em uma personagem multifacetada, que demonstra perfeitamente sua frustração e incertezas sobre as coisas que lhe são impostas – como no inicio, ao ficar indignada com o machismo e assédio de um homem de classe rica que a queria para cuidar de sua mansão, mas com segundas intenções – o mesmo vale para a forma como a jovem atriz expressa bem sua irritação com o irmão lhe questionando sobre tudo – mas ainda assim conseguindo revelar o amor que tem por ele, temendo as ameaças e “falsos presentes” que a vida costuma oferecer para os mais fracos e ingênuos – desde It – A Coisa eu já dizia que ela seria uma grande atriz em Hollywood.
Maria, de fato, é o carro chefe do filme – até mesmo sua aparência aqui serve como homenagem do diretor ao terror psicológico, já que tanto sua palidez quanto seu cabelo curto lembram muito a personagem de Mia Farrow no clássico O Bebê de Rosemary – e, falando da parte visual, Maria e João é um deslumbre: a fotografia belíssima de Galo Olivares é realmente digna de aplausos – evita-se o uso de filtros escuros – algo que muitos abusam para sequências ambientadas em locais com pouca iluminação – o tom de luz de velas é algo primorosamente captado, como no quarto onde Maria e João buscam abrigo e em toda a casa da Bruxa, fazendo sombras assustadoras – algo que tem o apoio do inteligente design de produção de Jeremy Reed, se apoiando em rimas visuais, como o fato de representar o perigo e mistério através de triângulos – como visto quando a menina de capuz rosa é amaldiçoada ou no próprio formato da casa na floresta – e a ideia de filmar o longa com o formato de câmera mais quadrado (próximo das TV’s antigas) é eficiente para demonstrar o tom claustrofóbico no qual os personagens se inserem, dando dimensões grandes para a floresta, por exemplo, mas ainda assim mantendo o enquadramento centralizado nos atores, dando uma impressão de estarem em um local mais fechado – o que condiz com as sensações em que passam – ao abrir o filme em widescreen, o diretor tenta sugerir que uma mulher com mais poder teria um mundo mais “aberto”, digamos assim – e o trabalho sonoro é discreto, contando com o apoio de uma boa trilha-sonora de Robin Coudert, que mistura violinos tenebrosos com temas mais “eletrônicos”, para expressar os estados emocionais de Maria.
Mas, infelizmente, por mais que seja um filme visualmente belo, algumas decisões de Oz Perkins não atingem resultados expressivos. Por mais que sejam características esteticamente curiosas, elas não se sobressaem aos caminhos da trama – que se até a metade sufoca pelo clima de tensão psicológica, não deixa de soar convencional em seu terceiro ato – basicamente, apenas variando um pouco a conclusão do conto clássico e, através da narração de Sophia Lillis, escancarando tudo o que os personagens supostamente aprenderam em sua jornada – algo que deixa as dicas visuais obvias e com significados até ingênuos – como as visões de Maria e a forma como imagina o que liga o “forno” da Bruxa com o lugar onde as crianças entram pela floresta – diminuindo muito o peso do que ela acaba por enfrentar e entender – sem falar que a representação mais jovem de um personagem acaba por não agregar muito ao tema e a narrativa – gerando uma conclusão que ousa até mesmo em tentar fazer um plot twist – quase desnecessário.
Se salvando pelo bonito visual, mas sendo vitima de sua própria ambição temática, Maria e João fica a frente de obras convencionais do gênero, mas dificilmente será tão bem lembrado quanto outras produções do terror que já abordaram seus temas de maneiras mais claras e criativas – a intenção é boa, mas faltou melhores decisões e soluções em seu roteiro.
O Grito
1.9 332 Assista Agora“Quando vocês superarem as barreiras de filmes com legendas, conhecerão muitos filmes incríveis”.
Pois é – essa frase do oscarizado diretor de Parasita, Bong Joon Ho, nunca me fez tanto sentido quando acabei de ver essa nova (ou “nova”) versão do clássico terror japonês Ju-Oh (de 2002) – essa mania de Hollywood se apropriar de obras orientais precisa terminar! Sério! O mundo precisa evitar filmes como este O Grito, que, posso dizer tranquilamente, é um dos piores filmes que já vi nos últimos cinco anos! Um trabalho tão absurdamente mal realizado e sem proposito, que eu gostaria de apresenta-lo a quem reclamava dos 209 minutos de O Irlandês – estes com certeza não sabem do tédio e irritação que os 94 minutos deste trabalho de Nicolas Pesce consegue passar.
Falando de Scorsese, é bom lembrar que este fez uma das poucas versões boas de obras do cinema asiático em Hollywood – Os Infiltrados – mas agora, comparado a este, as refilmagens de filmes de terror japoneses feitas nos anos 2000, como O Chamado (o primeiro apenas) e Água Negra (dirigido pelo brasileiro Walter Salles, um trabalho que merecia ser mais conhecido, inclusive) eram filmes acima da média – porém, algo que não se aplicava aos três filmes hollywoodianos de O Grito – que apenas pegavam o clima tétrico e realmente pesado do original do Japão e misturavam com a formula simples da franquia Pânico – com resultados pouco expressivos, meros caça-níqueis, que o grande público nem sequer faz mais questão de acompanhar atualmente – aliás, fico muito feliz que produtoras norte-americanas como a A24 e a Blumhouse consigam nos trazer agora filmes de terror mais impactantes e reflexivos – mas, infelizmente, nem a Sony, nem os produtores (um deles Sam Raimi, o homem por trás do clássico A Morte do Demônio – como aprovou um projeto desses?) e o diretor e roteirista desta nova empreitada, fazem questão de entender que o cinema evoluiu – e, ainda insistir numa formula desgastada como essa, é dar um passo para trás em questão de qualidade – vide como Atividade Paranormal também se tornou outra franquia estagnada.
Baseando-se no filme de 2002 feito no Japão, mas com algumas referências as produções norte americanas também, o roteiro de Pesce tenta trazer nuances e características novas à já conhecida história – segundo ele próprio declarou à imprensa, é uma “versão hardcore” de O Grito – enfim, não sei onde – ele segue, simplesmente, a cartilha básica desse tipo de filme: jumpscares (inclusive, os sustos mais previsíveis e sem graças que já devo ter tomado na minha vida), personagens com traumas – sim, todos tem algum trauma, mas nenhum realmente bem interligado – efeitos estáticos para mostrar os espíritos/demônios; fotografia cheia de filtros artificiais e escuros – e um trabalho de som que é simplesmente o mesmo das versões anteriores – o tal barulho emitido pela entidade é exatamente igual aos outros filmes! Que inovação, hein! Que “hardcore”!
Abrindo o filme com cenas se passando em Tokyo em 2004 (pelo jeito, um tipo de homenagem ao original), o filme mostra a norte-americana Fiona (Westwood) voltando para os Estados Unidos e trazendo com ela a terrível maldição da entidade/espirito Kayako (Bailey) – maldição que consiste quando alguém morre em um momento de muita raiva ou ódio, fazendo o local onde tudo aconteceu ficar sempre amaldiçoado – explicado por letreiros muito bregas e óbvios logo no inicio – chegando lá, a trama se divide em quatro partes (sim, quatro linhas narrativas quase desconexas!) – enquanto Fiona causa um massacre em sua casa, matando sua filha (Fish) e marido (Brown), o longa salta para 2006, mostrando a detetive policial Muldoon (Riseborough), que vai investigar um estranho corpo encontrado em um carro a beira de uma estrada; algo que a leva a casa onde Fiona morava, onde agora uma estranha senhora (Shaye) vive – para em seguida o diretor voltar para 2005, para nos apresentar aos vendedores da casa, o casal Spencer (Cho e Gilpin), que estão prestes a se tornarem pais.
E aí que me pergunto: qual a ligação de todas essas linhas narrativas? Nenhuma! Absolutamente nenhuma. Pesce utiliza metade do tempo do filme só para apresentar isso – e não desenvolver nada – fazendo todo o elenco passar vergonha – é quase inacreditável como Andrea Riseborough é exposta a ficar fazendo caretas cada vez mais absurdas, como se para demonstrar o trauma de ter perdido o marido recentemente bastasse aparecer com cara de cansada no trabalho – aliás, o filho dela, também tenta demonstrar isso – mas como o diretor não sabe conduzir ninguém, o ator mirim John J. Hansen parece que sofreu uma lobotomia e só recita frases decoradas – vergonhoso, principalmente quando sua mãe usa um método patético para ele controlar a dor por sentir falta do pai – algo que o roteiro ira usar como “chavão” mais para frente; e o casal vivido por John Cho e Betty Gilpin – a moça, coitada, só tem como função chorar por saber que seu bebê nascerá doente – e o que isso tem a ver com a maldição? Ah... o marido dela entrou na casa... pronto! Só isso.
Nicolas Pesce pensa que é algo sinistro inserir personagens obcecados e loucos – a personagem de Lin Shaye e o detetive Wilson de William Sadler são outro exagero de composições – e o jovem cineasta pensa que deformando o rosto de alguém conseguiria tornar algo assustador ou incomodo – de fato, alguns efeitos de maquiagem são bem feitos – mas só alguns – impossível não rir na cena que um personagem (ou melhor, um descarado boneco) despenca de uma escadaria e o que a equipe de efeitos especiais faz é simplesmente borrar de tinta vermelha o chão (confesso que ri muito disso) – da mesma forma que as caras e bocas absurdas da atriz Jacki Weaver, vivendo uma assistente social que trabalha com casos de suicídio assistido (olha o tanto de coisas ou tentativas de temas que são inseridos), não deixam de soar patéticas e, claro, involuntariamente engraçadas.
Entre essa bagunça narrativa, o filme se perde tanto que nem parece ter uma ameaça por trás de tudo – é como se a Kayako original tivesse enviado uma “representante” para os Estados Unidos – e comandado sua matança por telefone – vivendo a suposta “encarnação” da maldição, a menininha Zoe Fish fica a mercê de um diretor que só quer lhe mostrar como uma versão mais simples da Samara de O Chamado – sem jamais soar plausível ou assustador – e, o pior, ofendendo a inteligência do espectador com cenas de tensão patéticas, afinal, Pesce realmente acredita que o espectador não vai entender as tolas idas e vindas no tempo de sua narrativa muito mal elaborada – como não existe nada complexo na história, é impossível se confundir com a trama – ela simplesmente fica inchada e arrastada, com inúmeros problemas de ritmo – o terceiro ato é tão ridículo que é impossível não gargalhar com a atitude de um personagem que, para tentar proteger outro, acaba levando-o direto para o local onde está o perigo – só pra citar um entre vários exemplos de ideias furadas desse filme sem nexo – claro que ainda não consegue ser mais idiota do que o fato do diretor achar que enquadrar a frente de uma casa por alguns minutos é um bom jeito de encerrar o filme...
Se as versões anteriores tinham pelo menos alguma decência em passar suas histórias no próprio Japão, está se esquece completamente disso ao deixar tudo ocorrer em solo estadunidense – enfim, talvez seja melhor desse jeito – para que esse filme fique marcado como um “grito” contra adaptações de obras orientais tão estapafúrdias como essa é.
O Framboesa de Ouro 2021 já tem garantido seus prêmios de pior diretor e filme!
Sonic: O Filme
3.4 712 Assista AgoraParece que adaptar videogames para o cinema é uma coisa meio complexa, já que geralmente os resultados (em quase toda a maioria) se saem muito fracos e, várias vezes, tirando até a essência do material original – que, embora seja de uma mídia bem diferente, acabam ficando bem distorcidos – como o caso das franquias Resident Evil, Tomb Raider, Mortal Kombat ou filmes que nem conseguiram sair do primeiro, como o caso de Street Fighter ou Mario Bros. – o único que consigo me lembrar que veio com qualidade foi Terror em Silent Hill, realmente fiel e bem feito.
Tendo essas poucas lembranças de qualidade sobre obras assim, é evidente que não era de se esperar muito de Sonic: O Filme – mas, sob um olhar geral, esta versão do ouriço azul super veloz da Sega acaba sendo um filme divertido, que simplesmente entrega o que promete: risadas dentre uma aventura bem realizada – e, de fato, nada mais além disso – mas é preciso considerar que o roteiro de Patrick Casey e Josh Miller tenta dar mais personalidade ao personagem principal – algo que compensa até mesmo uma certa falta de capricho por parte dos animadores digitais – e é válido lembrar que a Paramount tomou a sensata decisão de acatar as reclamações dos fãs e ter corrigido o visual de Sonic – de fato, bem melhor do que estava no trailer – mas, ainda assim, a dinâmica que o estreante diretor em longas, Jeff Fowler, estabelece não é 100% funcional: as discrepâncias entre os movimentos do ouriço interagindo com os atores nem sempre é bem realizada – em alguns momentos fica bem claro que James Madden está encarando um boneco verde, que seria substituído pela animação do azulão mais tarde – mostrando que o diretor não tem a mesma boa condução de atores com animações, como Robert Zemeckis fez no clássico Uma Cilada para Roger Rabbit, por exemplo.
Esse estranhamento, de fazer parecer que o elenco está interagindo com um desenho da Pixar – foi a sensação que tive algumas vezes – pode ser esquecido se considerarmos que os roteiristas criam uma história que acaba sendo o melhor que poderia se imaginar da clássica trama do jogo original, de 1991 – que, de fato, era simples ao extremo: basicamente, era Sonic enfrentando o Dr. Robotnik e evitando a destruição de seu mundo – mas, agora, a trama começa com nosso protagonista ainda criança, em sua dimensão, cheio de pistas curvadas, gramados e características que remetem ao clássico visual do jogo do Mega Drive – o ouriço acaba sendo vitima do ataque de um grupo de gaviões que quer seus poderes e, como último recurso, acaba fugindo para terra – onde acaba vivendo escondido e sozinho por 10 anos, na floresta próxima a pequena cidade de Green Hills (nome em homenagem a uma das fases do jogo, inclusive), nos Estados Unidos – Sonic (agora com a voz de Ben Schwartz) se sente solitário e acaba, sem querer, chamando a atenção do governo, que envia o egocêntrico e maldoso Dr. Robotnik (Carrey) para localizar o que seria o sinal de energia vindo da pequena cidade – sem opção, o ouriço se revela para o xerife do lugar, o bondoso Tom (Madden), que acaba por ajuda-lo a fugir do implacável cientista.
Ganhando pontos principalmente por seu senso de humor, a trama é funcional dentro do que se propõe – embora seja visível que o número de cenas de ação seja até pequeno – e, algumas delas não muito memoráveis – o longa se destaca pelo trabalho de dublagem para Sonic por parte de Ben Schwartz, que dá dinamismo as falas do ouriço – o que é perfeitamente condizente com a natureza veloz dele – o que torna bacana ele ter como super-herói favorito o Flash e gostar de filmes como Velocidade Máxima – fora o fato de ser justificável ele ser tão tagarela, afinal, o pobrezinho passou dez anos sozinho, sem ter amigos – então precisou interagir com ele próprio – o que torna o choque de finalmente ter um amigo real curioso, quando conhece o xerife de James Marsden – um tipo de papel que parece mais um mero apoio para o protagonista digital, mas que acaba sendo curioso, devido a sutileza do ator – embora ele crie uma afeição bem rápida pelo Sonic, mesmo que acabe sendo confundido como “cumplice de terrorismo” por ajudar o novo amigo – creio que coisas assim não devem ser exigidas em adaptações de games de 16 bits... Ainda assim é eficiente a ligação entre eles – um completando o que deseja para a vida – Sonic não quer deixar a Terra e Tom reluta em deixar o tédio da pequena Green Hills para se aventurar como policial em San Franscisco – um clichê, mas que torna a relação de amizade dos dois mais real.
Embora o elenco de apoio não tenha muito o que fazer, devido a criações pouco criativas – como a esposa de Tom, a Maggie de Tika Sumpter, e sua irmã (de Natasha Rothwell), que tem um ódio um tanto infundado pelo cunhado – servindo apenas para forçar algumas risadas – além do assistente de Robotnik, o Rocha de Lee Madjoub – mas, felizmente, o longa ganha pontos com a composição previsivelmente engraçada de Jim Carrey para o egocêntrico vilão – um personagem tão caricato que somente um ator como Carrey saberia incorporar bem – sua vontade em se mostrar superior a todos a sua volta é algo divertido, fazendo o ator explorar suas caretas absurdas, como já fez em O Máscara, Ace Ventura ou O Mentiroso, por exemplo – tirando o exagero de faze-lo dançar em um certo momento, o resto é uma composição que é o que daria para imaginar de um personagem que, originalmente, era o mais unidimensional possível – e, visualmente, Carrey acaba lembrando bem o vilão do game, com seu bigode pontudo e os clássicos óculos redondos.
Permeado por algumas cenas de ação bem feitas e divertidas, mesmo que sem um cuidado muito grande para a concepção dos movimentos do nosso herói ouriço, Sonic é um trabalho convincente, que deve emocionar os fãs do clássico videogame, além de conseguir a atenção das crianças de hoje – mesmo não tendo um roteiro tão legal quanto Os Incríveis, esta bem longe de ser uma bomba como Pica Pau – O Filme, onde criaturas animadas com atores geraram resultados sofríveis – Sonic é legal o suficiente para funcionar neste meio termo.
Obs.: como parece ser regra nos blockbusters agora – esse ano, Bad Boys e Aves de Rapina já tiveram isso – tem também uma cena durante os créditos finais, dando sinais para uma continuação e uma participação que os fãs do jogo vão gostar...
Sombras da Vida
3.8 1,3K Assista AgoraUma das coisas que mais dificultam as relações humanas atualmente talvez seja o fato de sermos seres muito apegáveis a bens materiais. Seja um celular, um carro, uma camiseta ou até uma casa – como é o caso do personagem de Casey Affleck em A Ghost Story – uma das viagens mais pessoais, intrigantes e fascinantes sobre a existência humana que o cinema já nos proporcionou nos últimos anos.
O diretor (e também autor do roteiro) David Lowery expressa de uma maneira bastante visceral este ponto de vista, atrelado as dificuldades que temos de conseguirmos nos satisfazermos por completo na vida – afinal, qual o sentido de viver? Será que somente sendo reconhecido por nossos feitos ou se tivermos vivido um amor real (ou que pelo menos pareça real) poderíamos dizer que vale a pena existir?
Não é a toa que o filme faz uma referencia escancarada a Nietzsche – incluindo uma cena onde um livro do filosofo realmente aparece – as referencias sobre o existencialismo estão presente por quase todo o longa – e quando digo “todo o longa” estou tentando insinuar que Lowery planejou cada cena com um significado especifico e importante para a compreensão de toda sua história – contando a vida de um casal (Affleck e Mara), que moram juntos em uma casa. Ele (mencionado como “C” nos créditos finais) sofre um acidente de carro e falece – mas seu espirito/fantasma aparentemente não quer ir embora e acaba voltando e ficando na casa, acompanhando o dia a dia de sua companheira “M” (assim mencionada nos créditos) – sem entender o proposito de sua existência após a morte, ele começa a notar que a passagem de tempo torna-se algo irrelevante – conforme a vida de sua amada começa a mudar – e sua obsessão por encontrar e saber o que está escrito em um pequeno pedaço de papel, que M escondeu em uma fresta de uma parede da casa, faz com que ele se sinta ainda mais preso ao local.
Usando a figura do fantasma no modo mais clássico possível – com Casey Affleck debaixo de um lençol branco com dois furos pretos na parte dos olhos – o resultado que o Lowery alcança em A Ghost Story é inquietante – ao invés de mostrar um fantasma que põe medo nos demais, ele nos apresenta a um espirito que vaga pela terra (ou melhor, o local de sua casa quando era vivo) sem um proposito, mas que permanece esperando por isso – o que o diretor consegue, de fato, é trazer um tipo de terror psicológico sobre a própria existência do ser humano – o que explica o filme ser classificado como um “pós-terror”, como alguns críticos vem dizendo.
Como um fantasma que não se conforma em ter morrido (logo após sua saída do hospital ele “recusa” entrar em uma “porta de luz”, digamos assim), o personagem de Affleck vai passar por uma viagem tortuosa – vendo sua amada em desespero ou tentando de maneiras pouco bem sucedidas superar a perda de seu companheiro – e devo admitir que Lowery consegue demonstrar isso de forma muito incomoda – a cena onde presenciamos a esplêndida Rooney Mara comendo uma torta inteira (praticamente sem cortes) serve para mostrar seu estado de profunda depressão e insatisfação com a vida – além de evidenciar como o passar de tempo para o fantasma é praticamente irrelevante – existem ainda algumas demonstrações de passagem de tempo brilhantes – tornando o tempo em algo mais próximo do que seria sobre o ponto de vista de um espirito, realmente – notória a cena onde Affleck observa Mara saindo diversas vezes pela mesma porta, exemplificando os dias se passando em segundos.
Com uma direção de arte bem simples, mas muito bonita, o filme é dotado de um visual fascinante – é importante ressaltar como a casa e os demais locais que o filme apresenta são tratados quase como se fossem um outro personagem, incorporado ao fantasma de Affleck – afinal, a conquista de um lar pode gerar uma sensação de fazermos parte daquele local, mesmo que ali outras pessoas e situações já tenham passado – mas ninguém permaneceu para sempre, é claro.
Ajudado por uma fotografia carregada de cores claras, sempre remetendo ao branco do lençol do fantasma, demonstrando algum tipo de pureza ou uma espécie de nulidade de opinião sobre o que vê nesta vida após a morte – fora o fato de que o formato do filme nos remete a algo mais intimo – se assemelhando ao formato de tela de uma TV antiga ou de uma foto polaroide, possibilitando angulações fechadas, que passam muito bem o calor humano e realístico (com seus problemas de comunicação no começo) da relação de C e M – que jamais escamba para algo apelativo sentimentalmente – assim como a inserção da música – C é produtor musical e uma de suas produções é usada de forma tocante – principalmente pela apurada edição de imagens – em momento onde M relembra do falecido marido, em meio a flashbacks de quando ela ouviu a canção pela primeira vez.
Mas, afinal: o que estava escrito no papelzinho que M deixou na parede? O que ela escreveu no papel pode ser algo bom ou ruim para o personagem de Affleck, mas só faria sentido para ele – pois seria o momento em que ele finaliza sua missão, descobrindo se sua vida ou seu amor pela personagem de Rooney vale ou não a pena – ou seja, ninguém mais poderia entender.
Enfim, é uma obra extremamente pessoal, instigante e inteligente, ao conseguir fazer com que nos identifiquemos com um fantasma – que, diferentemente de um Patrick Swayze em Ghost, não pode mostrar para nós suas expressões diretamente, podendo apenas senti-las – espelhando, com isso, uma forma de dizer que somos todos fantasmas, que podemos não ser notados pelos outros ou que podemos ser esquecidos um dia – e talvez somente um fantasma entenda isso de verdade, mas, no final, o que importa é justamente o que vivenciamos, unicamente sob nossa própria perspectiva.
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraMãe! é um filme difícil de se acompanhar. Mas também é um filme fácil de acompanhar. Tanto quanto em outros de seus trabalhos – como Réquiem para Um Sonho, O Lutador, Cisne Negro ou Noé – este novo longa do renomado cineasta e roteirista Darren Aronofsky consegue ser um filme ao mesmo tempo simples e ao mesmo tempo complexo, profundo e lotado de simbolismos e metáforas sobre temas comuns a todos os seres humanos. Mas o melhor de tudo é que o espectador conseguirá aprecia-lo mesmo que não compreenda todos os seus pontos e ideias expressas em suas quase duas horas de projeção – dado o imenso talento do diretor em conferir uma dinâmica quase absurda em sua câmera – com movimentos, cortes e ritmos precisos – aos moldes do perfeccionismo que o cineasta havia exibido em Cisne Negro.
Não é a toa que Mãe! tem um trabalho de som que beira a perfeição – seja por ruídos de madeiras rangendo, portas se mexendo, o vento balançando a vegetação próxima a casa dos personagens principais – enfim, até o silêncio tem sua função dentro de um filme que não tem uma trilha-sonora musical – na verdade, a trilha – da mesma forma que o mestre Alfred Hitchcock fez em Os Pássaros – são os próprios efeitos sonoros. Além de um visual incrivelmente bem dosado de cores e tons em sua fotografia – a casa em que se passa toda a história realmente parece ser um ser vivo. E esse domínio completo da sétima arte, possibilita que Afonofsky conte uma trama tão simples de um jeito tão espetacular e visceral – como poucos diretores conseguem.
Antes de qualquer coisa: Mãe! é um filme de arte. Se você procura um filme de suspense comum ou propenso ao gênero terror, é melhor procurar outro longa para assistir. Mesmo que estruturalmente lembre muito o clássico do terror O Bebê de Rosemary, de Roman Polansky (que, inclusive, também nos faz lembrar da famosa trilogia do apartamento deste veterano cineasta), o novo trabalho de Aronofsky é um grande drama psicológico sobre um casal que vive em uma casa no campo. Composto por uma jovem (vivida por Jennifer Lawrence, e apenas mencionada como Mãe nos créditos) e um poeta (interpretado por Javier Bardem, e apenas citado como Ele), o casal tem sua paz dissipada com a chegada de um visitante, um Homem (Harris) misterioso, que, logo depois, trás para casa uma Mulher (Pfeiffer) – fazendo com que a Mãe fique desconfiada das intenções do casal visitante e da mudança de comportamento de seu marido – que passa por uma crise criativa para escrever seus poemas – principalmente por estar se recuperando de um terrível incêndio que enfrentou na casa anteriormente.
Com atuações excelentes de todo o elenco, principalmente de Jennifer, que consegue passar a inquietação e incomodo pelas visitas cada vez mais inesperadas a casa e de uma absurdamente irônica e quase insuportável (e talvez por isso marcante) Michelle Pfeiffer, os atores conseguem ir muito além do que seus personagens representam – sendo muito mais do que meros símbolos e metáforas (que discutirei mais a frente) – como é o caso do sempre intenso Javier Bardem e o veterano Ed Harris – passando ainda pela presença rápida, mas extremamente interessante (e importante) dos irmãos (dentro e fora do filme)Brian e Domhnall Gleeson.
ALERTA! SPOILERS à frente! Não é recomendável ler os próximos parágrafos caso você ainda não tenha assistido o filme
Os atores poderiam ser meros bonecos na mão de um diretor que não tivesse experiência ou estilo visual e narrativo para conduzir uma trama tão cheia de possibilidades e mensagens iguais as de Mãe! Através deste plot simples, Aronofsky traça toda a história da humanidade, desde seu nascimento, passando por inúmeros conflitos que o ser humano criou, até chegar ao apocalipse. Obviamente, trata-se de um fundo extremamente religioso ou critico ao religioso – pois não precisamos ser nenhum Sherlock Holmes para notarmos que os personagens de Jennifer e Bardem representam, respectivamente, a Mãe Natureza (e/ou a Virgem Maria) e Deus.
Sendo assim, o filme começa mostrando uma mulher (que não é a Jennifer Lawrence) morrendo em meio às chamas – para, logo em seguida, mostrar a casa (que representa a terra ou a própria natureza, também) sendo reconstruída, através de um cristal que representa o “fruto do conhecimento”, após um incêndio. Desta maneira, o filme indica que Deus acabou de criar o mundo, despertando a Mãe Natureza, que, convenientemente, desperta e levanta da cama, caminhando até a porta da casa, mas sem sair – afinal, ali é o paraíso e ela não consegue sair – com Deus logo chegando e a impedindo de terminar de passar pela porta.
Presa na casa e sem intenção de sair dali, a Mãe Natureza parece apenas trabalhar para Deus – pintando a casa e ajudando o “criador” com seus planos – ainda que sinta algo errado acontecendo – mostrado através da forma como ela toca as paredes e visualiza um coração (de bebê?) batendo – cada vez mais lentamente à medida que o filme avança – representando, possivelmente, o estado da natureza e da terra mesmo.
Com a chegada do Homem e da Mulher – que fazem a metáfora mais obvia do filme, ao representarem, respectivamente, Adão e Eva – com direito a passagem onde Deus parece ter tirado a costela de Adão, para criar Eva/Lilith, já que a personagem de Michelle Pfeiffer aparece após isso – algo que Aronofsky já havia “brincado” em Noé – as coisas começam a perder o controle e a Mãe passa a sofrer por isso – oras, e os homens sempre incomodaram a natureza, não é mesmo? Principalmente ao notar que Deus está mais interessado em dar atenção à família do Homem do que a ela – que, ainda sim, quer cooperar com Ele e tenta impedir que os visitantes adentrem no quarto do personagem de Bardem – quarto este que representa o Jardim do Éden, onde Adão e Eva consomem o fruto proibido – aqui representado pelo fato de quebrarem o cristal que Ele havia guardado no quarto – fazendo com que Adão e Eva sejam expulsos da casa/paraíso.
Pensando que agora as coisas voltariam ao normal, a Mãe é surpreendida pela visita dos irmãos que representam os filhos de Adão e Eva, Abel e Caim, que acabam por brigar e fazendo Abel ser morto por Caim – em uma cena onde o sangue de Abel escorre pelo piso do quarto e entra até o subsolo, onde a Mãe, posteriormente, irá encontrar o instrumento para o apocalipse – representado aqui pela enorme fornalha no solo da casa - e sendo uma alusão clara ao fato de que o homem matar seu semelhante nos leva a um caminho de destruição – que vai contra nossa inteligência – demonstrado pelo sangue escorrendo sobre uma lâmpada (sabedoria), que acaba explodindo (deixando de existir) graças ao choque que leva com o sangue gerado pela violência no mundo.
A partir daí, Deus começa a tentar dar mais atenção à Mãe – momento no qual Aronofsky parece soar uma critica quanto a divindade que o catolicismo dá a genitora de Jesus Cristo – escarado na hora em que a Mãe diz a Ele: “Você quer que eu seja uma mãe mas nem transa comigo”. Eis o amago do filme: Deus precisa do amor da Mãe para existir. Sem a natureza ao seu lado ele não pode concretizar seus planos – mas, como o diretor insinuou em Noé também, Deus aparenta ser uma figura vaidosa – que necessita de “plateia” ou atenção – e, logo após saber que a Mãe estava gravida, consegue inspiração para escrever um poema maravilhoso – que nem sequer é mostrado, na intenção de refletir o conforto das palavras do evangelho sobre as pessoas – que passam a querer entrar na casa para seguir Deus – mesmo que viole o ambiente (natureza) da forma que bem queiram e sabem que estão prejudicando – passado pela forma como a personagem de Lawrence pede inúmeras vezes para os seguidores/visitantes não se apoiarem na pia de cozinha, que não está chumbada, sendo fácil de quebrar.
A partir daí que o filme pode parecer uma loucura – ou melhor, um pesadelo – e está é claramente a intenção do diretor – especialmente através do trabalho de som inquietante e barulhento aqui – ao mostrar a casa tomada pelos homens – representando o fanatismo religioso e as interpretações erradas que a bíblia teve através da história da humanidade – gerando guerras e conflitos entre os seres humanos – a personagem de Kristen Wiig (a editora que publica os poemas dEle), representa muito bem isso, assim como os soldados que invadem a casa – alguns maltratando a Mãe (aqueles que não acreditam na Virgem Maria) e outros defendendo (católicos).
Enfim, a Mãe concebe seu filho – sob o olhar onipresente de Deus – que não hesitará em mostrar seu filho como um salvador/herói – que o povo interpretará da forma que bem entender – revelando aqui o momento mais chocante de todo o filme, onde o bebê recém-nascido acaba tendo o pescoço cruelmente quebrado pela multidão – através de um efeito sonoro angustiante – e, antes ainda, urinando sobre as pessoas – expressando algum tipo de doutrinação errada sobre os homens, talvez? E, ao mostrar as pessoas devorando a carne da criança, o diretor representa de forma pitoresca o fanatismo religioso mundo a fora.
Finalmente, a Mãe se revolta – pois em algum ponto (através do aquecimento global, poluição, queimadas, etc) a natureza se voltará contra o homem – e ela acaba por matar e ferir as pessoas, consumida pela raiva por ter perdido seu filho – mas o ser humano não deixa de se defender e, violentamente, agride a Mãe – através de uma trucagem intensa, onde Jennifer Lawrence parece realmente levar chutes e socos no rosto. Deus, ainda assim, quer que ela perdoe os humanos por seus erros – mas já seria tarde e a Mãe acaba causando o apocalipse, matando todos dentro da casa e se ferindo gravemente – mas, antes de morrer, acaba dando seu amor (coração) a Deus – algo que possibilita que o criador se motive a continuar e comece um novo plano – conforme mostrado pela reconstituição da casa e o despertar de uma outra mulher – da mesma forma que a Mãe abre o longa – e indicando que se inicia mais um plano de Deus – que parece ser algo continuo.
fim dos SPOILERS
Em meio a tudo isso, o filme vai além de ser uma mera critica a bíblia ou a crença em Deus – ele também pode ser interpretado como uma visão sobre a submissão impostas as mulheres – que ainda sofrem por ficarem a mercê dos homens – consumidas e abaladas pelo machismo, onde homens parecem colocar as mulheres como meros objetivos para se motivarem ou ficarem felizes na vida. A verdade é que Aronofsky apenas expõe alguns de seus questionamentos e pensamentos sobre o assunto e tema, deixando o espectador captar a mensagem da melhor forma que puder e, ainda assim, poder também apreciar o filme como entretenimento apenas – e, assim como o cineasta brasileiro Glauber Rocha dizia sobre seus longas, Mãe! acaba sendo mais um filme para ser visto do que comentado – afinal, poderá gerar diversas interpretações – como a desta humilde pessoa que vós escreve.
Dentre os filmes lançados em circuito comercial este ano, com certeza é o melhor e mais criativo até o momento.
Blade Runner 2049
4.0 1,7K Assista AgoraFalar sobre a importância de Blade Runner para o cinema moderno é como chover no molhado – uma “chuva” tão intensa quanto o tempo chuvoso da Los Angeles onde se passa a história do original e desta continuação, que ao contrário da maioria dos filmes que tentam “resgatar” obras do passado, funciona imensamente bem como sequência e/ou expansão do universo filosófico riquíssimo da produção inspirada em um livro do mestre da ficção científica, Philip K. Dick.
Blade Runner (o original) era um filme disposto a trazer uma mensagem bela e poética sobre o existencialismo humano – o velho argumento do “ser ou não ser”, misturado às possibilidades que o futuro poderia oferecer a humanidade. Com um visual, temas e metáforas absurdamente criativas, Ridley Scott fez de seu longa um divisor de águas para a arte do cinema com seu trabalho na direção, ajudado por inovações e criatividades com relação a designer de produção, sonorização e, principalmente, fotografia – algo que inspirou inúmeros outros filmes até hoje – dado o seu poder de atingir os sentimentos e percepções dos espectadores com suas belíssimas imagens, que traduziam o clima inspirado nos clássicos filmes noir da Hollywood entre os anos 30 e 50 – Blade Runner era, portanto, um filme policial no futuro – bem longe de ser um mero filme de ação, afinal, com seu ritmo mais lento, conseguia expressar sentimentos que nenhuma obra “acelerada” poderia exprimir.
Tamanho virtuosismo e inspiração logo transformaram aquele filme em um clássico cult – que, curiosamente, foi um fracasso de bilheteria, que ganhou repercussão durante os anos seguintes – principalmente pelas várias edições e “versões definitivas” que Ridley Scott lançou ao longo dos anos – evidentemente, sempre se imaginou o destino dos personagens de Harrison Ford e Sean Young após os eventos do filme – mas, obviamente, muitos ficariam receosos com o que poderia resultar uma sequência de um filme tão vital para o cinema.
Passados 35 anos, eis que temos a resposta – e (acredito não estar exagerando em dizer), o resultado não poderia ser melhor. Aliado a direção de um dos diretores mais expressivos em Hollywood nos últimos anos, Denis Villeneuve (A Chegada, Sicario, O Homem Duplicado), do roteiro bem acabado de Hampton Fancher (também autor do roteiro do filme original) e Michael Green e da fotografia magnifica do gênio Roger Deakins, Blade Runner 2049 é uma experiência absolutamente encantadora e fascinante – ao ser uma ficção científica que realmente propõe discutir de forma séria os problemas e situações que podem influenciar a vida dos seres humanos no futuro – seja a sua simples vontade de existir (e por que existir) até sua vontade de poder criar e controlar tudo o que quiser na vida.
Villeneuve incrementa o universo de possibilidades visto no filme anterior – dizer que já é um clássico talvez seja muito cedo, mas é evidente que 2049 é um filme promissor e poderoso – que vai do intimo mais profundo de seus personagens até um consentimento sobre toda a raça humana – que soara absurdamente real e atual para este mundo nosso de 2017, onde seres humanos continuam brigando e morrendo por suas diferenças de origens, vontades e ambições.
E o mais fascinante de tudo é a fidelidade e respeito pelo original, já que existe um incrível cuidado em conceber cada momento, cada cenário, cada ponto de luz e outros detalhes visuais – a direção de arte traz uma evolução natural vista no mundo de 2019 do primeiro filme – repare como é mantido o pé naquele universo quando o filme apresenta nas ruas de Los Angeles as propagandas da Atari, Pan-Am ou produtos da antiga União Soviética – coisas que não existem no nosso mundo, mas existiam no universo de Blade Runner. O desenho de produção inteiro da produção resgata com muito brilho todo o mundo mostrado no filme original – o que vai do modelo de carro de K ou da compactação que vive em seu apartamento até o edifício de Wallace, suntuoso e aparentemente com uma iluminação que exala uma certa “falsidade” de calor, já que o mundo de 2049 é frio – literalmente e não literalmente, de fato – o que nós faz notar novamente a genialidade do trabalho de fotografia.
Esse enfoque maior no universo desta história possibilita uma visão de um futuro distópico absolutamente verossímil – não é de se espantar que a grande maioria da população se mudou para as colônias interplanetárias tão mencionadas no filme passado ou de como a primeira vista de Los Angeles agora não deixa de lembrar uma grande e interminável favela – aglomerando ainda mais gente de diferentes etnias – o designer de produção é extremamente rico em criar isso, assim como a cidade San Diego, que virou praticamente um lixão ou Las Vegas – com inúmeras estatuas espalhadas entre escombros – provavelmente destruídas por algum conflito nuclear – se contrapondo com a natureza do Deckard de Harrison Ford.
O trabalho de som se mostra tão importante quanto no original, ao sugerir que os ruídos a volta de Leto e Ford funcionem como um tipo de trilha de tensão e suspense – a trilha-sonora assinada por Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer é capaz de manter de forma coerente o clima criado na trilha-sonora genial e antológica de Vangelis – é evidente que não é tão marcante ou bem feita – aliás, certos excessos em algumas partes são as únicas falhas do filme. Mas as composições novas funcional muito bem com os temas de Joi e das memórias de K – ajudando ainda mais a criar a atmosfera que chega a quase sufocar de tão intimista.
Aliás, para expressar o estado emocional dos personagens, Villeneuve e Roger Deakins são extremamente felizes em acompanhar os tons de luzes – algo que o primeiro filme era genial – conforme visto na escura (quase preto e branca) cena onde K luta com Stapper – ou quando as lembranças de um passado feliz e triste passam pela mente de Deckard enquanto conversa com o personagem de Jared Leto em uma sala com iluminação que oscila entre claro e escuro. A paleta de cores do longa é extremamente rica e intensa, já que através de planos longos e movimentos de câmera suaves, deixam os sentimentos em evidência de forma muito natural – nos trazendo ao tom intimista e melancólico de todos os personagens.
E falo todos porque o roteiro realmente confere características únicas para cada um deles – apoiado por um elenco excepcional, Blade Runner 2049 conta com novos rostos que impressionam tanto quanto o elenco incrível do original de 82 – temos a androide Luv de Sylvia Hoeks, que tem uma incrível obsessão por ser perfeita, o Wallace de Jared Leto, que lembra uma versão mais sombria e perturbada do Dr. Tyrell – evocando uma necessidade que muitas corporações parecem ter em querer controlar a humanidade – diante de diálogos reflexivos, é interessante Leto se dar bem em um papel depois do desastre de seu Coringa em Esquadrão Suicida. Passando pela sensibilidade da “companheira-holográfica” de Ana de Armas ou da arrogância e frieza da Tenente Joshi da ótima Robin Wright, ressaltando algo que o filme passado já dizia, sobre o fato dos androides serem mais humanos do que os próprios humanos – inclusive, quando, em certo momento, ela sugere se relacionar sexualmente com K, provavelmente para suprir sua solidão – o que nos traz aos personagens de Ford e Gosling, que, como eram de se esperar, são o coração do filme – o primeiro, aliás, confere uma atuação surpreendentemente emocional, talvez uma de suas melhores no últimos anos, sendo que o segundo, se mostra como um excepcional ator, por conseguir mostrar de forma tão introspectiva as emoções que seu personagem parece evitar ter na maior parte do tempo.
Sendo assim, o ponto de partida é o próprio agente K da policia de Los Angeles, que é um caçador de androides. No ano de 2049, os antigos androides da geração Nexus 6 da Corporação Tyrell foram eliminados ou proibidos, sendo substituídos pelos reformulados androides construídos pela empresa do cientista Wallace (Leto), que pretende deixar suas criações cada vez mais idênticas aos homens – mas, em meio a isso, grupos de antigos replicantes se escondem para sobreviver – e um deles (Bautista) acaba sendo interceptado por K, que, a partir dai, encontrará pistas para uma revelação que poderia mudar para sempre a vida de todos os habitantes da terra – tanto os humanos, quanto os replicantes – e acredito que só isso é possível de ser mencionado sem dar spoilers, já que existem várias reviravoltas pela frente.
ATENÇÃO! SPOILERS NOS PRÓXIMOS 7 PARÁGRAFOS!
Ao contrario da trama do filme original, logo de inicio descobrimos que o K de Gosling é um replicante – afinal, a humanidade realmente “evoluiu” de tal forma que coloca todos os novos replicantes para executarem todos os “trabalhos sujos” que o ser humano deveria fazer – e digo ao contrario obviamente pelo fato de que se o maior mistério do filme anterior era saber se Deckard era um androide ou não, aqui temos um personagem que de cara evidência todas as suas angustias – apesar de ser mais frio do que o personagem de Ford, K já demonstra rapidamente sua vontade em querer compensar sua solidão – como ao utilizar um tipo de software de realidade virtual, que traz para sua casa a projeção holográfica de uma mulher chamada Joi (a personagem de Ana de Armas, obvia referencia a “Joy”, “diversão” em inglês) em algo que lembra bastante o sistema operacional visto no filme de Spike Jonze, Ela – mas aqui não somente com a voz.
Após encontrar ossos enterrados próximos a casa do Sapper de Dave Bautista (em curta, mas marcante participação), K começa a se intrigar pelas descobertas que faz – afinal, constatasse que os restos de ossos eram de uma replicante que deu a luz a uma criança – algo que poderia marcar uma nova era para os replicantes, que seriam mais do que meros escravos para a humanidade – seriam, agora, seres com almas, capazes de terem um propósito em suas vidas, igualizando-se com os seres humanos – algo que a delegada que a Tenente Joshi, tentará impedir as pessoas de saber – como ela mesma diz, “diga que o muro (entre duas espécies diferentes) não existe e comece uma guerra ou mesmo um massacre” – provavelmente à sombra dos interesses das grandes corporações que parecem dominar o mundo visto em Blade Runner – o Wallace de Leto é uma exemplificação clara da vontade de alguns em querer ter um controle semelhante (ou igual) ao de Deus.
Criados a imagem e semelhança dos homens, os replicantes agora começam a querer lutar para saírem da escravidão imposta pelos humanos – mesmo eles não sendo maquinas, parece uma inversão de valores do que vimos em Matrix ou O Exterminador do Futuro. Daí temos a importância de K para todo o filme – uma criação dos seres humanos que tem os mesmos “defeitos” de uma pessoa comum – precisa de vícios (bebida), companheirismo (mesmo que não real) e motivos para seguir sua vida – K difere-se do Roy de Rutger Hauer, afinal, ele não quer apenas viver, mas quer ter um “papel no mundo”, assim como a grande maioria das pessoas.
Esse choque, brilhantemente ressaltado pelo roteiro, é uma das coisas mais tocantes do filme – e, falando sobre Roy, o paralelo feito na ultima cena de K com o personagem do filme original é uma das coisas mais belas já vista no cinema este ano – ainda mais ao som do clássico tema de Vangelis ao fundo – que se no filme anterior era triste por mostrar Roy morrendo com suas emoções e sensações que só ele conhecia, torna-se emocionante aqui por fazer K se sentir feliz (com uma expressão facial genial de Gosling) por ter morrido por uma boa causa – no caso, ter ajudado a causa dos replicantes, como mencionado por uma das lideres da suposta rebelião.
Ryan Gosling, inclusive, prova como é um ator completo, ao fazer de K um personagem marcante justamente por ser alguém que não consegue lidar com suas emoções – repare como ele traz a emoção de ter esperança de ser o filho gerado pela replicante – o que seria uma surpresa linda, afinal transformaria suas “memórias implantadas” em situações reais – mas, ao mostrar que isso não aconteceu, é impossível não lamentar que seu personagem seja realmente um androide “normal”, em vista da forma como demonstra sua decepção.
Revelando que a Rachel de Sean Young (que aparece perfeitamente rejuvenescida digitalmente) teve um filho com Deckard, a trama de 2049 vai ainda mais a fundo em seu tema – fazendo uma referencia a história bíblica de Raquel, uma mulher estéril, que conseguiu se tornar fértil – gerando o questionamento de que os androides poderiam ter almas, de fato – bem salientado pela forma como é (re) introduzida a paixão do personagem de Ford por Rachel – nesse ponto, é importante ressaltar a atuação de Harrison Ford – justamente por emocionar na cena onde tem um encontra uma “cópia” de Rachel.
Mas, afinal, este novo filme comprova se Deckard é um replicante? Villeneuve e os roteiristas são tão respeitosos com o material original, que deixam isto em aberto – mas ele tem mais do que quatro anos (o prazo de vida dos androides do primeiro filme), não é mesmo? Mas como dito por Wallace, Tyrell conseguiu fazer Rachel ter a capacidade de procriar e, aparentemente, o encontro dela com Deckard no original poderia ter sido algo programado – para fazer com que se apaixonassem e tivessem filhos – seria Deckard um replicante diferente, com capacidade de viver mais tempo e ainda envelhecer – acredito que deixar isto em aberto é uma bela maneira de homenagear e estender a complexidade filosófica do filme original – bem completada aqui pelo final, revelando a identidade da filha do ex-Blade Runner, a criadora de sonhos para androides, a Dra. Ana Stelline de Carla Juri, trazendo um belo fecho para o arco dramático e para dar sentido (realmente) à vida de Deckard e seu romance com Rachel.
FIM DOS SPOILERS
O roteiro e a direção complementam toda a trama vista no primeiro longa – afinal, estamos diante de uma história sobre criaturas não humanas que querem ser humanas, mas são perseguidas por humanos que não se importam em ser humanos – o que é uma ironia gigantesca ao constatar que nem com tantos avanços tecnológicos o ser humano não conseguiu preencher seu vazio existencial.
Portanto, não há como sair da sessão deste Blade Runner 2049 sem no mínimo se sentir emocionado por sua tristeza ou por uma suave felicidade que vem justamente de quem só quer viver com liberdade – afinal, estamos presenciando um ponta pé inicial para uma franquia que pode trazer um discurso tão lindamente poético e filosófico que é impossível não tocar o espectador que está disposto a apreciar os caminhos que seus ricos (e clássicos) personagens passarão – Blade Runner 2049 consegue isso não só porque é um filme riquíssimo como arte e tecnicamente perfeito – ele consegue isso porque fala diretamente com a alma de quem assiste, tornando-se uma experiência que não caberá para todos os públicos – é uma obra de arte, acima de tudo.
Provavelmente estamos presenciando o nascimento de um forte candidato a jovem clássico do cinema.
It: Capítulo Dois
3.4 1,5K Assista AgoraNão é de hoje que o cinema busca justificativas no comportamento das pessoas devido a traumas. A própria essência do drama inclui isto, mas existem projetos capazes de usarem esta composição de forma que justifique todo o andamento de uma narrativa ou temas, evocando uma identificação ou certa solidariedade emocional com os personagens retratados – isso é fundamental em filmes de gênero, onde a irrealidade de certas situações podem ser esquecidas devido ao desenvolvimento correto das personas em tela – portanto, o que o diretor Andy Muschietti faz nesta sequência do sucesso de 2017 pode não ter por trás uma novidade de temas – afinal, o livro do qual foi adaptado, do mestre Stephen King, já abordava o assunto – mas é inegável que ele sabe dosar de maneira precisa todos esses fatores que tornam os personagens de It – sejam suas versões adultas ou adolescentes – em seres multifacetados e interessantes, consequentemente, conseguindo transparecer uma verossimilhança capaz de atingir qualquer espectador.
Não são muitos os exemplares de terror de grandes estúdios de Hollywood que conseguem criar tramas com simbolismos, emoções mundanas e observações sobre os temores que as pessoas passam pela vida – e um filme do cinema mainstream iniciar sua história mostrando um ataque violento de um grupo de jovens a um casal homossexual é algo extremamente significativo, por deixar demonstrar que muitos dos males da sociedade se dão por falta do amor ao próximo, do respeito, da ignorância – do pensamento fechado – causas de tantos preconceitos, como a homofobia ou racismo – o filme anterior tinha uma leve critica ao terrorismo, que sempre assusta o ser humano – mas It – Capítulo 2 vai além: o mal não é só representado por assassinos ou bandidos, as pessoas “comuns”, essas que lidamos todos os dias, também tem seu lado perigoso – a maldade surge do silêncio diante da injustiça, ou ao apoiar quem oprime os outros, do bullying praticado nas escolas – enfim, o Pennywise do excelente Bill Skarsgard representa tudo isso e algo mais – sua ameaça é, além de física, psicológica – transformando esta continuação em quase um terror psicológico, em certos pontos.
A história se passa 27 anos após o filme passado, com os sete garotos do “Clube dos Otários” já crescidos e tocando suas vidas – deixaram o passado para trás, mesmo que forçadamente – mas, quando coisas estranhas voltam a acontecer na cidade de Derry – e está cidade fictícia, através de seus muitos moradores preconceituosos, racistas ou abusivos, representa uma grande parcela da população – o Mike, de Isaiah Mustafa, percebe que Pennywise estaria de volta e decide convocar os demais amigos – todos enfrentando seus próprios demônios na vida: a Bev de Jessica Chastain vive um relacionamento conturbado; o Bill de James McAvoy não consegue completar bem suas obras literárias e ainda se sente culpado pela morte do irmãozinho Georgie; o Eddie de James Ransone vive sob a pressão de um emprego não muito agradável, além de não estar feliz com seu casamento; o Ben de Jay Ryan que não esqueceu de sua paixão pela Bev; o Richie de Bill Hader que teme inconscientemente retornar a Derry; Mike também lamenta o triste fim de seus pais em um incêndio; e o Stanley de Andy Bean, que convive com a depressão – mesmo assim, os amigos acabam se reunindo para tentar destruir de uma vez por todas a ameaça da Coisa, que volta a tomar conta dos pensamentos do grupo, enquanto que lembranças do verão de 1989 vem a tona, para que várias decisões possam ser tomadas na época atual.
Tendo que estabelecer a continuação do desenvolvimento dos sete personagens – habilidosamente bem divididos, sem deixar algum menos enfocado (inclusive a ausência de um certo personagem é incrivelmente bem representada), o roteiro de Gary Douberman segue a evolução deles, demonstrando características da adolescência em suas vidas atuais – nesse ponto o filme é extremamente feliz em ressaltar os estados emocionais de Bill, que, vivido por McAvoy muito bem, conserva até mesmo sua gagueira de modo crível – até mesmo os empregos que escolheram vão se mostrando perfeitos para suas personalidades, como Richie ter virado um comediante – e, por conta disso, o longa consegue se dar bem com o humor, que caracterizava perfeitamente o grupo no filme anterior – embora derrape com relação a Bev de Jessica Chastain, ao inserir de uma maneira artificial que ela vive relacionamentos abusivos – igual vivia quando era abusada por seu pai – algo perdoável pela atuação sempre pontual e expressiva de Chastain e de Sophia Lellis, que vive a versão jovem dela, novamente.
O que poderia soar confuso é esclarecido em decisões de edição e transições bem elaboradas e criativas – particularmente gostei do momento onde Mike está ligando para os amigos virem a Derry e seu número aparece sem o nome no celular dos outros seis integrantes – demonstrando sutilmente como a vida adulta atrapalhou a amizade entre eles, afinal, nenhum deles tem sequer o contato dos outros amigos – sem falar quando um céu estrelado se transforma em um quebra cabeças, demonstrando o estado complexo das mentes deles em relação ao embate com Pennywise – inclusive, o longa é, novamente, rico visualmente – seja por sua fotografia com uma paleta de cores incríveis, transformando o vermelho dos balões e maquiagem do palhaço em um sinal de ameaça claro, além de uma mise-en-scène apuradíssima, principalmente quando lida com os flashbacks, mesclando as transições entre as versões adultas dos personagens com discretos efeitos especiais - e isso com o beneficio dos atores mirins compondo da mesma forma espirituosa seus papeis do primeiro capitulo.
Mas lamentavelmente existe um certo exagero nessa mistura de passado e presente, que transforma alguns momentos em repetições – como ao mostrar a mãe de Eddie ou ao reforçar o bullying que Ben sofria no colégio – além da inserção pouco funcional do personagem de Teach Grant, que vive a versão adulta do Henry Bowers, que era um rival do Clube dos Otários e tem seu trauma com o pai abusivo retratado de forma superficial, além de que sua fuga de um hospital psiquiátrico para infernizar os outros personagens não muda praticamente nada na trama – essas decisões quase pausam o segundo ato do filme – que só não tem um terceiro ato perfeito dado ao uso errôneo de certas tentativas de causar surpresa nas cenas de tensão – mas, felizmente, não é algo duradouro, afinal, Muschietti tem um domínio exemplar sobre a tensão e jamais apela para sustos fáceis – ele se aproveita novamente da boa concepção dos personagens e os coloca em situações aflitivas, se dando bem com as ciladas que Pennywise traz para os membros do Clube dos Perdedores – as cenas de “ilusão” que o palhaço proporciona são realmente bem executadas – o uso sutil de CGI é um acerto, principalmente na concepção visual do palhaço – repare como sua forma física nunca é igual sempre que aparece – ele aumenta e diminui de tamanho (e forma, as vezes) em cada cena – com efeitos bem renderizados – apoiado, claramente, pela composição visceral de Bill Skarsgard, que se sobressai a sua forte maquiagem e efeitos – assim como outras criaturas que surgem no filme – monstros com características que assustam devido a semelhanças com o passado ou algum trauma dos personagens – como a idosa que Bev encontra em seu antigo apartamento ou uma enigmática aranha com cabeça humana – tudo isso conduzido com uma fluidez que transformam um filme com quase três horas de duração em uma experiência que passa realmente sem cansar.
It – Capítulo 2 ainda encontra tempo para uma curiosa participação especial do próprio Stephen King, ao coloca-lo em cena com o personagem de McAvoy fazendo uma brincadeira por não ter gostado do livro deste – obvia referência ao fato de que King não costuma aprovar boa parte das adaptações para cinema de suas obras – e ainda existem referências a outros trabalhos do escritor, como O Iluminado (mais especificamente com o filme do Stanley Kubrick) e com O Apanhador de Sonhos e A Torre Negra – algo que pode ser uma surpresa para os fãs, mesmo que demonstrado de forma sútil.
Esta segunda parte da saga de Pennywise versus o Clube dos Otários acaba se mostrando tão boa quanto a anterior, por estender de forma natural e verdadeira seus temas sobre medos e receios para a vida, além de falar com sutileza sobre preconceitos, bullying e a maldade humana – mesmo que não seja um tema inusitado ou inovador, It 2 é ainda um filme de terror envolvente e emocionante, retratando a amizade de forma muito tocante, o que é algo diferente dentre uma história com elementos assustadores, sejam os da ficção ou da realidade por trás de seus personagens complexos e verdadeiros.