O filme "360" do diretor brasileiro Fernando Meirelles apresenta uma dramaturgia rapsódica, feita basicamente de fragmentos de histórias de diversos personagens que uma hora ou outra irão se encontrar ou não. Esse tipo de dramaturgia já foi testada em outros filmes, mas aqui, surge leve e despretensiosa. O filme foi muito criticado e eu sinceramente não entendo os porquês dessa crítica toda. O filme não é uma oitava maravilha, mas não é ruim. De jeito nenhum. A trilha sonora é linda, assim como a fotografia que tem achados interessantes e os atores estão bem. E algumas histórias chamam mais atenção que outras, mas é assim como na vida real. O que eu mais gostei do filme é que ele é um retrato da maneira como estamos nos organizando como humanos na contemporaneidade. Relações amorosas complexas. Desejos reprimidos. E muita solidão. Sim. Muita solidão. A grande sacada é seguir o conselho de um dos personagens e ligar o "foda-se" e curtir o filme. Que vale sim a pena.
Fiquei bastante surpreendido com "LAST NIGHT" ("Apenas uma noite"). Um filme adulto sobre o amor e seus desvãos. Não deixa de ser um filme dolorido, mas não força uma barra, nem quer ser mais do que é. E o que ele é? Um filme simples sobre um assunto complexo e bastante clichê do cinema. Mas o olhar feminino da diretora estreante Massy Tadjedin foge de alguns padrões estabelecidos. Há um aprofundamento humano bastante interessante na maneira como ela aborda as cenas e as personagens. Aliás, os personagens apresentam uma densidade que assusta e incomoda. Incomoda porque nós somos eles. Há ali uma relação de espelhamento não banalizada, mas incômoda e ao mesmo tempo sutil. Recomendo.
"Un Amour de Jeunesse" da diretora francesa Mia Hansen-Løve retrata a paixão de dois adolescentes de maneira bem simples. Camille ama Sullivan. Sullivan ama Camille. Mas ele tem o desejo de viajar e conhecer novas culturas e lugares. Já Camille está satisfeita em ter "apenas" o amor dele. Dessa diferença de sentimentos brota uma separação lenta e dolorida para ambas as partes. Camille sofre, tenta o suicídio, mas se reergue, se apaixona novamente, mas de repente Sullivan volta. Como segurar a tentação de voltar a uma "coisa" já conhecida e não concluída? O peso do passado e sobretudo da memória, essa palavrinha que nos mantém em pé, assombra esses dois jovens. Um filme simples, bonito, com uma belíssima fotografia e trilha sonora inspirada e inspiradora.
"A ÁRVORE" ( The Tree) da diretora francesa Julie Bertuccelli é um ensaio sobre luto. O enredo é bem simples, mas cheio de simbolismos. O que pode agradar uns e desagradar outros. Mas como uma experiência cinematográfica, o filme se garante pela sensibilidade com que a diretora conduz o enredo e também na atuação sempre minimalista e poderosa da Charlotte Gainsbourg, e da pequena Morgana Davies que vive Simone (filha do casal) com uma desenvoltura e carisma que assusta e comove.
Acabei de assistir o filme "La Pivellina" ("Adorável Pivellina") dentro da programação do Festival de Cinema de RP. Apesar de todos os clichês do gênero filme com criança no elenco, os diretores Rainer Frimmel e Tizza Covi conseguem extrair momentos de pura delicadeza e ternura, sem resvalar no sentimentalismo barato. A pequena Asia (nome da atriz e da personagem) é um achado. O filme é dela. E pra ela. E é um deleite acompanhar suas peripécias, de Tia Patty e do garoto Tairo. Um filme que não reinventa a roda, e nem se presta a esse papel, mas que vale o ingresso pela extrema humanidade que a direção consegue extrair de situações impregnadas de uma banalidade que a gente conhece tão bem...
Assisti "O Homem que não dormia" do Edgard Navarro dentro da programação do Festival de Cinema de RP. O filme é atordoante. Apocalíptico. Animalesco. Sublime. Grotesco. Um libelo contra a hipocrisia . Sem nenhum didatismo ou concessão, o diretor faz uma obra que exala uma humanidade raramente vista no cinema nacional. Sem atores globais, ou historinha com começo, meio e fim, o filme é grandioso em suas imperfeições e vicissitudes. Uma obra radical que impressiona pela coragem de bancar aquele enredo daquela maneira.
A história do filme (se é que podemos chamar assim) é um fiapo de dramaturgia. Serve mais como uma desculpa para encarrilhar cenas de puro êxtase mítico/religioso e personagens caricaturais e típicos de certa região esquecida do mapa (o fim do mundo?).
Certo dia, algumas pessoas do vilarejo começam ter pesadelos recorrentes com a imagem de um homem chegando a tal cidade. Ele quer falar alguma coisa. Mas inúmeras vozes impossibilitam o sonhador de entender o que o homem fala. O espectador também não entende. Aliás, para entrar na onda do filme se faz necessário não entender. Ficar livre desse compromisso tão ocidental. Sim. O filme não tem nenhum compromisso com a verossimilhança. Pelo contrário. É preciso encarar a obra com um olhar de criança. “Se tornem como crianças” {Mateus 18:3}. Só assim é possível enxergar o filme. É preciso resgatar aquela atenção desatenta de quando ouvíamos alguém contar uma história antes da gente dormir. É preciso estar desatento. E deixar que a obra reverbere da maneira que ela quiser. A obra é autônoma. Nós somos autônomos. E é nessa relação que a obra ganha importância e significado. A primeira cena, a do pesadelo, é certeira nesse sentido. O filme quer nos dizer “coisas”, mas nossa ansiedade, nossa necessidade de entendimento abafa a voz do filme. É sintomático. E é um excelente prólogo.
O que vem depois disso é um mix de referências poderosíssimas que vão desde Nelson Rodrigues (especialmente “Álbum de Família”) e Guimarães Rosa, passando pela psicanálise (Freud, é o exemplo mais claro com toda a mítica relacionada ao sonho e as perturbações da mente. Mas também tem ecos de Jung, com suas sombras e duplos) e desembocando no cinema desbravador do genial Glauber Rocha. Eu ousaria dizer que “O Homem que não dormia” é um quase “Deus e o Diabo na Terra do Sol” contemporâneo. A crítica ao “modus vivendi”, a ironia, o deboche, a insanidade, o humano estão tanto lá como cá. E Navarro praticamente não deixa pedra sobre pedra. E nem mesmo parece querer dar algum tipo de alento ao espectador. Pelo contrário. Quer fudê-lo cada vez mais e mais. E o faz de maneira absolutamente única. Seu emaranhado de cenas independentes abarcam sentimentos contraditórios. Vão do lírico ao engraçado, do sexual ao infantil. Tudo sem muitas amarras ou explicações. É assim porque é assim. Simples.
Não bastasse tudo isso, o filme tem um visual seco, visceral, desagradável, inóspito mesmo. Como já disse, sem concessões. E é justamente disso tudo que nasce uma coisa muito mais poderosa que qualquer requinte visual. Algo que está mais nos olhos de quem vê, do que em qualquer outro lugar. É um filme pobre. Sim. Mas rico também. É dessa contradição aparente e não mascarada que a obra se garante. Navarro faz um filme pessoal. Sem, no entanto, ser hermético. A obra é. Está lá. Não é um filme difícil. Pelo contrário. É quase infantil. Como já disse também. É nostálgico como lembrar de algo que nunca vivemos. É melancólico como estar com saudade de algo que nunca aconteceu. Que talvez só vivemos no plano da ficção. Nas histórias do nosso rico folclore. Nos contos de fada ou de carochinha contada por nossa avó real, ou a do “Sitio do Pica-pau Amarelo”.
CARALHO! Que porrada! Acabei de assistir o documentário "Dear Zachary: A Letter To A Son About His Father" e estou totalmente atordoado. Impressionante. Belo. Doloroso. Revoltante. Encantador. Tudo ao mesmo tempo. Não quero e nem posso dizer do que se trata. Mas digo apenas uma coisa: Assistam. Mas não procurem maiores informações. Apenas assistam. É incrível e chocante. Chorei. Chorei. Chorei. Umas das coisas mais tristes e comoventes que já assisti.
"A TETA ASSUSTADA", da diretora peruana Claudia Llosa fala sobre o medo. De ser. De tentar ser. De ousar ser. O quê? Há sempre uma não resposta. Mas, se faz necessário o mergulho. E assim somos apresentados à protagonista do longa. Mergulhamos em sua dor, em seu desamparo. Em seu acalanto dolorido. Magaly Solier vive Fausta (meio Antígona, meio Macabéa) com um minimalismo absurdo. Seu rosto e olhar dizem tudo com muito pouco. Um trabalho assombroso que merece ser visto.
"Szelíd teremtés - A Frankenstein-terv" ("FILHO TERNO - O Projeto Frankenstein") do diretor húngaro Kornél Mundruczó é um filme é sobre ausências. Sobre a falta de. E a necessidade de se inventar algo. Uma atualização contemporânea (e poderosa) do tão famoso mito de Frankenstein. Mas esqueça o livro. É um filme feito de um material bruto e aparentemente inacabado (propositalmente inacabado), mas a sutileza estética embevece tudo numa melancolia e tristeza profunda.
"PARA ROMA, COM AMOR" do Woody Allen é sensacional. Allen faz uma crítica ácida à tudo e todos. Não deixando pedra sobre pedra, o filme é extremamente irônico, engraçado e encharcado de alguma melancolia daquilo que se perdeu, e que nunca poderá ser diferente. As situações e personagens são nonsense e a graça e crítica residem nessa caricaturização dos desejos e pulsões de nossa sociedade. Allen em melhor forma.
Que belo filme é “Mãe e Filho” de Alexandre Sokurov.
Um filme onde se é necessário estar distraído para que as coisas aconteçam...
“Mãe e Filho” conta uma história muito simples, uma mãe está doente e um filho cuida dela.
Essa é a história, no entanto nas mãos de Sokurov o enredo ganha contornos outros.
Centrado o tempo todo na relação dos dois, o filme tem um forte poder de transe no espectador, parece que não acompanhamos meramente um filme, mas, sim, que vivenciamos junto com o filho aquele jornada, parece que nos tornamos a mãe dele.
O filho leva a mãe para passear, conta histórias, lê cartões postais antigos e trocam confidências de quando ele era apenas uma criança e ela uma mãe que temia perdê-lo.
É um filme lento, feito de silêncios, de pequenos gestos, de paisagens bucólicas, tristemente belas e sublimes...
Quando o filho leva a mãe para um passeio acompanhamos todo aquele percurso, atentos não pelo racional, mas por algum outro sentimento, talvez o de empatia, ou de felicidade, ou de tristeza... sei lá... é o mesmo sentimento que o filho nutre pela mãe, não tem como classificar, apenas é.
Sokurov domina perfeitamente toda a questão envolvida no ato de filmar, sabe que fazer cinema não é apenas retratar, mas, transcender e isso ele faz o tempo todo.
Suas imagens transpiram vida e melancolia, encharcados de uma nostalgia e lirismo sem fim... o barulho do vento, o desenho que o vento faz nos trigais, os pássaros “cantando” ao fundo, o homem que passa ao longe pela janela... tudo contribui para que o espectador embarque nessa fábula atemporal de Sokurov.
O ator Alexei Ananishnov que interpreta o filho consegue transmitir tanta coisa através de um olhar, de um meio sorriso, de um leve toque de mãos e atriz Gudrun Geyer que faz a mãe atua com um imenso domínio da presença e magnetismo que exerce no filho.
Sokurov não cai no erro de contar ao espectador como as coisas aconteceram para que tudo degringolasse naquela situação. Ele apenas pede a aquiescência do espectador à sua história simples e recompensa àqueles que embarcam em sua história com seqüências maravilhosas, verdadeiro quadros vivos e metafóricos e belos.
Ao falar sobre morte, Sokurov fez um dos mais contundentes libelos da vida.
O diretor esfrega na nossa cara nossa própria mortandade, nossa falibilidade perante a vida.
A seqüência final do passeio solitário do filho pelos arredores, enquanto a mãe descansa na casa é tão tocante, que não vou me atrever a descrevê-la, pois seria reduzi-la.
Digo apenas que Sokurov atinge em imagem a própria noção de vida e morte.
Onde as palavras faltam, as imagens falam por si e se redimensionam por si mesmas.
A morte ronda tudo, tudo ali está impregnado pela ausência e a própria Natureza parece triste pela morte eminente da mãe do rapaz. E a chegada da chuva, personificada pelas negras nuvens que se aproximam cai em forma de lágrimas dos olhos do filho... e talvez, também as do espectador. Ao fim da história e enfim sobra apenas o filho. Um dos filmes mais sublimes que já vi.
“Eu só queria que você soubesse que eu acho que você é o cara mais doce do mundo... e o mais bonito. E eu te amo.”
"Bufallo’ 66” filme de Vincent Gallo é um daqueles filmes que te faz torcer, torcer muito pelo protagonista da história.
Vincent Gallo, além de escrever, dirigir, compor a trilha sonora, ainda atua como ator principal do filme.
Portanto, podemos dizer que literalmente é um filme de Vincent Gallo.
É um filme pessoal, centrado numa história peculiar e dramática.
Vamos a ela: Um homem acaba de sair da cadeia, após ter cumprido pena por um crime que não cometeu, apenas assumiu a culpa como forma de pagamento de dívidas provenientes de uma aposta perdida.
Ele aceita a proposta, fica preso e não conta nada aos pais, inventa uma história e confia nas mãos de seu melhor amigo algumas cartas para serem entregues todo mês aos pais como forma de manutenção de sua história.
O filme começa desse ponto.
Billy está livre e com uma enorme vontade de urinar, procura inúmeros lugares e não encontra e acaba entrando numa academia de ballet, lá no banheiro é abordado por um homossexual e bate nele. Sai do banheiro sem urinar e liga para seus pais. Os pais fazer pressão para que ele vá até a casa deles e leve a esposa também. Ele diz que não pode porque ela está doente. A Mãe implora. Ele aceita. Daí, ele seqüestra uma menina da academia de dança e diz que se ela fizer o que ele mandar, tudo sairá bem. Ela consente. Ele então diz que ela terá que fingir ser sua esposa para seu pai e sua mãe. Ela consente. Chegando lá, conhecemos os pais de Billy, figuras problemáticas e derrotadas. O pai é um cantor fracassado. A mãe tem visíveis problemas de memória, é fanática pela equipe de football local, os Buffalo Bills. Além dessa tragédia familiar, ficamos sabendo que Billy nunca teve uma namorada e quer matar o cara “responsável” pela sua prisão.
Bem, esse é o enredo de “Bufallo’66”. Uma história simples, mas, que nas mãos criativas e sensíveis de Gallo, adquire contornos outros.
O filme não se apressa em apresentar os porquês de Billy ser como é (um sujeito que alterna um comportamento ora doce ora violento, que chora escondido, mas, que se faz de durão), aos poucos vamos conhecendo Billy, através das personagens que o rodeiam, principalmente seu pai e sua mãe. Figuras emblemáticas de uma infância difícil e carente. O diretor usa um recurso muito interessante para mostrar takes do passado, a tela praticamente é preenchida por uma outra pequena tela que vai crescendo, crescendo até dominar todo o espaço. E, é ali nessas cenas que Billy vai sendo construído para o espectador. É ali que entendemos os conflitos pelos quais o personagem passa ao longo do filme. Ao lado de Billy, temos sua “esposa”, uma garota que sem mais nem menos aceita tudo o que Billy lhe manda fazer. Quem é ela? Por que aceita tudo? E ainda parece gostar de estar ali, interpretando um papel para a família de Billy?
Não há resposta, ou melhor até há, porém, essas respostas vem pelas rebarbas da personalidade de Billy. O espectador vê aquilo que está preparado para ver.
É justamente ai que reside a beleza desse filme único.
Essa construção do personagem ao longo do tempo ganha tintas cada vez mais e mais pesadas. E conforme o tempo vai passando nossa empatia para com Billy vai crescendo.
Billy é um homem carente, revoltado, sensível e está disposto a se vingar do homem que o “colocou” na cadeia.
Sabemos de antemão a hora que Billy vai até o local onde o tal homem está e passamos a torcer com toda nossas forças para que ele desista da idéia e fique com a garota que se mostra completamente apaixonado por ele.
Raras vezes eu torci tanto por um personagem assim... algo próximo aconteceu quando li “A Hora da Estrela” e a filha da puta da Clarice Lispector faz Macabéa ser atropelada por um Mercedes Amarelo ao sair da cartomante que tinha lhe dito coisas excelentes.
“(Eu ainda poderia voltar atrás, em retorno aos
minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em
que Macabéa estava de pé na calçada - mas não depende
de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a
olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais
retroceder. Ainda bem que pelo menos não falei e nem
falarei em morte e sim apenas, um atropelamento.)”
Durante toda a meia hora final, assisti o filme nesse espírito de Rodrigo S.M (narrador de “A Hora da Estrela”. Não queria que o tempo passasse e Billy fosse lá se vingar.
Não vou contar o final, onde Gallo dá um aula de cinema e arrasa em seqüências que beiram o grotesco-violento-sublime que é ser humano, em todas suas falhas e lirismo.
Mas que é puta filme, isso é.
Atuação brilhante de Vicent Gallo, ao lado Christina Ricci, Ben Gazzara, Angelica Huston e todo o elenco e com uma trilha sonora sensacional. Além do uso extremamente criativo de diversos ângulos mostrados pela câmera ao longo filme, tais como a estupenda cena do jantar familiar em que vemos materializado ali cada ponto de vista de cada personagem na mesa e também pela bela cena inicial em que a tela vai sendo preenchida com fragmentos da memória de Billy.
"Julien Donkey Boy" do diretor americano Harmony Korine é uma das experiências mais esquizofrênica que já tive relacionada ao cinema.
O diretor conta a história de um rapaz com visíveis problemas mentais que mora com o pai, dois irmãos (um menino e uma menina que está grávida) e a avó que assiste tudo impassível. A Mãe já morreu.
Sem contar uma história com começo, meio e fim, Harmony parece estar mais interessado em situar o espectador na mente perturbada de Julien.
Não é uma tarefa fácil, mas o diretor consegue seu intento.
Ao final do filme estamos tão ou mais perturbados que o “protagonista”.
É um filme incômodo, pestilento, sujo, porém paradoxalmente é um belo filme.
O Pai de Julien é um homem completamente autoritário e neurótico, vivido com brilhantismo pelo diretor de cinema Werner Werzog, é um homem frustrado por ver nos seus três filhos o doloroso retrato de sua “perdição”.
Alias o filme é um brilhante retrato dos “losers”, é um filme de perdedores, dos derrotados, dos “humilhados e ofendidos”, e por isso, mas não só por isso, é um filme difícil.
Sem contar necessariamente uma história o diretor retrata o caos do humano, fazendo uso de fragmentos de discursos filosóficos, religiosos, televisivos e musicais.
“Julien Donkey Boy” é um apanhado dessas referências, é um filme feito de fragmentos, de paradoxos, daquilo tudo que parece querer ficar em nossas mentes.
É um filme que contrapõe a todo o momento, o grotesco versus o sublime, o diretor mostra esses dois componentes como se quisesse dizer que é deles que brota o humano. Ele nos joga isso na cara... sem nenhum pudor e é como avós letárgicas de Julien que assistimos a tudo. Será?
Parece ser essa a provocação de Harmony, ele parece querer que deixemos seu filme, que paremos de acompanhar aquela “história”.
Para tanto, o diretor usa de imagens granuladas, defeituosas, misturadas com fotogramas em movimento, rupturas, ruídos e tudo o mais que possa afugentar os espectadores. Como eu já disse, é um filme incômodo, entretanto, um filme necessário.
A certa altura do filme, o Pai vendo um dos filhos que sonha em ser um grande lutador lutando contra um cesto de lixo, ele o interrompe dizendo: “Você deveria ser um vencedor. Não há nenhum vencedor na casa”. É o mesmo filho que antes o Pai tinha feito à proposta para que ele vestisse as roupas da mãe já morta, sob a alegação de que ele era o mais parecido com a falecida. O Filho recusa. O pai lhe oferece dez dólares. O filho novamente recusa.
A filha está grávida e não se sabe quem é o pai, ela por vezes assume o papel de mãe de Julien, mas, o afeto só parece brotar quando os dois se falam ao telefone.
O Pai é o retrato do perdedor, ele sabe que seu tempo já passou e quer realizar-se através dos filhos, mas, sabe que dali não vai florescer nada.
Numa das melhores cenas do filme, a família toda está jantando e Julien diz que fez um poema e gostaria de dizê-lo, o Pai autoriza, Julien começa: “Meia Noite, Caos. Eternidade, caos. Manhã, caos. Eternidade, caos. Meio-dia, caos. Eternidade, caos. Tarde, caos. Eternidade, caos” e repete exaustivamente o mesmo jogo de palavras. O Pai interrompe e diz que aquilo não é um poema, pois nem sequer rima. O filho protesta. O Pai diz que não gosta daquilo, porque aquilo é arte e que ele gosta das coisas de verdade, não da arte e cita uma cena sanguinolenta de um filme como exemplo de coisa boa e arremata dizendo “Não gosto dos artistas. Odeio seu poema”. Todos continuam jantando, menos Julien.
Julien é interpretado com maestria pelo ator Ewen Bremner, é um daqueles trabalhos que você fica boquiaberto com o talento do ator. Durante o filme, cheguei a pensar que o ator que o interpretava era realmente um doente mental, tamanho o realismo impregnado por Ewen Bremmer.
Alias o filme inteiro parece ser um documentário ou então um reality show daquela família de perdedores, onde até os filhos já nascem mortos. São fetos suicidas. O bebê que segundo a mãe terá um futuro brilhante, já nasce morto. Triste metáfora para um filme todo ele difícil, todo ele metonímico.
O filme é brilhante e dolorido.
O uso repetitivo da ária “O mio babbino caro” é sintomático, na ópera de Puccini, a personagem Lauretta, que está perdidamente apaixonada por Rinuccio, pede ao pai que faça algo pelos Donati. "Por essa gente?" diz ele. "Nada! Não faço absolutamente nada!" É então que Lauretta, com sua célebre ária O mio babbino caro consegue amolecer o coração do pai. Gianni.
“Paizinho, tende piedade, tende piedade” parece ser o Mantra de Julien, só resta saber quem é o “Paizinho”? O próprio pai dele? A sociedade? Deus?
Assistam e levem um soco no estômago para ver se é bom.
“A VIDA É UM SOCO NO ESTÔMAGO” (como escreveu Clarice Lispector em A Hora da Estrela)
Quando assisti “Os Inquilinos” sai do cinema atordoado, sem rumo, extremamente desnorteado, parecendo uma barata tonta. Bianchi tem esse poder, é um dos raros diretores brasileiros com esse poder. O filme (segundo o próprio diretor) “é a história de uma família normal, constituída, que vê a chegada de alguns rapazes que alugaram a casa ao lado da família. Não é, na realidade, uma casa. É um espaço pequeno, um “puxado”. E o longa é mais ou menos o que essa família acha destes rapazes, que dormem ao longo do dia e fazem barulho à noite, sem uma vida regrada.” Bianchi conta essa história do ponto de vista do casal, são eles que observam o três jovens o tempo todo à procura de alguma coisa que valide o que eles pensam do mundo. O pai é um sujeito comum, trabalha sem carteira assinada, estuda à noite, batalha pra manter sua família unida e etc etc. É acima de tudo a história da “queda e ascensão” (invertendo literalmente o título da peça de Brecht) desse homem que acompanhamos atentos . Ele começa o filme como um pai dedicado, amoroso, paciente e aos poucos coagido pela presença dos três inquilinos vai se transformando em medroso, assustado e covarde. O filme questiona o tempo todo a questão da mudança e da estagnação...(o subtítulo do filme é emblemático nesse sentido, “Os incomodados que se mudem”) . Valter, o personagem central do filme, um grande personagem, vivido com maestria pelo ator de teatro Marat Descartes, é ele que enfrenta o dilema de agir ou não agir dentro da realidade sufocante em que está inserido, é dele a grande dúvida existencial. Durante o filme, Valter é pressionado pela mulher, pelos filhos, pelos vizinhos, até pelo cachorro, no entanto, Valter é um estagnado, não quer sair da casa, porque foi construída por seu pai “tijolo por tijolo”, não faz nenhuma denúncia contra os jovens na polícia (com medo de represálias), enfim, ele não age. Na única cena em que tenta agir, quando vai pedir que assinem sua carteira de trabalho na firma em que trabalha, o patrão faz chantagem e ele acaba voltando atrás. Enfim, Valter é um subserviente nato, sua covardia acuada, seu medo latente faz dele um personagem interessante e com grande poder de atração, já que "Um dos erros do povo brasileiro é essa eterna subserviência" segundo o próprio diretor. Sim, somos quase todos subservientes, é um engodo o slogan”sou brasileiro e não desisto nunca”, é falso isso. Nós, os seres “brasileiros” somos falsamente alegres, falsamente libertários, somos um povo desarticulado politica e culturalmente, somos pra estrangeiro ver. Valter é nosso alter-ego em sua brasilidade tão comovente, tão passiva, tão nossa. Como não entender sua angústia, sua impotência diante dos vizinhos mais fortes, mais jovens, mais bonitos e por que não até mesmo mais felizes em sua sede de vida tão afoita e fugaz. Bianchi constroí sua teia em conluio com o público, lentamente, sem pressa e galgado basicamente na iminente tensão de que algo muito ruim está sempre perto de acontecer. O diretor se mostra habilidoso nesse tipo de jogo em que pede ao público sua aquiescência total durante toda a projeção, brincando de um jogo de mostra/não mostra. Bianchi bebe nas fontes do grande dramaturgo alemão Bretolt Brecht para revelar ao Brasil seu próprio retrato de Brasil, uma triste e dolorosa radiografia. O diretor já havia feito isso em outros filmes seu como “Cronicamente inviável” e “Quanto vale ou é por quilo?”. A crítica especializada diz que esse novo filme do diretor é diferente dos anteriores, e por isso mesmo, melhor que os outros. Eu discordo veementemente, Bianchi está mais Bianchi do que nunca, apenas teve seu foco de atenção desviado para uma outra classe social, desta vez, deixou a elite e suas afrontas para trás e centrou fogo no conflito entre a classe média baixa e a violência das grandes cidades. Vem dessa mudança de foco, a transição do diretor de uma linguagem e encenação mais caricata para uma outra mais naturalista e sem afetação. Bianchi opta por filmar a classe média com mais humanidade do que os personagens ricos de outros filmes e extrai com essa alteração um filme menos polêmico, mas, mais contundente e interessante. Um das cenas mais controversas da película é a que acompanhamos o apresentador de tv Datena em seu programa “Brasil Urgente” mostrando um crime de estupro contra uma menina de 8 anos de idade. Na cena os personagens assistem o tal apresentador vociferando barbaridades que só Datena é capaz de berrar, é uma cena chocante em sua poderosa crítica. É uma aula do efeito desfamilirização brechtiana... sabemos quem é aquele apresentador, sabemos o que é aquele programa e sabemos do crime que ele fala no programa, porém há algo ali estranho, há algo de errado... que não sabemos direito o que é. Logo mais pra frente, talvez Bianchi explique o estranho da cena, acompanhamos um grupo de meninas de mais ou menos 8 anos de idade rebolando ao som de “A dança da Bundinha” do grupo Tchakabum, a dança insinuante e extremamente sexual atiça a libido do senhor idoso e desperta um sentimento de impotência no pai. Brincando também com realidade e ficção constroí uma trama de poderosa tensão cujas cenas mais controversas são o sorriso da mulher ao ver o marido invadir a casa dos vizinhos e a cena em que Valter delira (?) que sua filha está tendo um caso com um dos vizinhos. Em contraponto à essa tensão, Bianchi nos entrega uma cena na sala de aula que beira o sublime. A Professora interpretada por Cássia Kiss lê para os alunos o poema “A Morte do Leiteiro” de Carlos Drummond de Andrade. A cena doí porque vemos uma pessoa (a professora) tentando despertar algum senso crítico naqueles alunos da realidade que os cerca. Um pouco de poesia naquele ambiente tão inóspito, tão sufocante, no entanto, logo depois da poesia tiros são ouvidos do lado de fora da escola, a professora apenas diz que os alunos que não quiserem sair pra o recreio podem ficar na sala de aula. Alguns alunos saem, outros ficam, um dos alunos oferece à professora uma coisa num saco pardo, a professora pega, vemos então que era uma bala de coco, a professora morde um pedaço, oferece aos demais alunos, corta pra outra cena. É essa o cinema de Bianchi, é a tradução perfeita do filme. Além de tudo isso que falei aqui, o filme ainda tem um trilha perfeita, excelentes atuações de Marat Descartes e Ana Carbatti e de todo o elenco também, sem exceções e a direção sensacional de Sérgio Bianchi. Nota mil.
Que filme é esse? Estou de cara. "CONFISSÕES" do diretor Tetsuya Nakashima é Genial. Maquiavélico. Sangrento. Frio. Diabólico. Psicológico. Poderoso. O roteiro é uma coisa admirável. E a trilha sonora contraditória provoca o espectador o tempo todo. Estou ainda sem muita reação. Mas de uma coisa eu tenho certeza: É o melhor filme de vingança que já vi. Ah, esses japoneses!!!!
A primeira parte do filme se passa inteiramente numa sala de aula. Uma professora tenta conversar com seus alunos. A esmagadora maioria nem dá bola para o que ela fala. Pouco a pouco, a tensão aumenta. O relato da professora vai interessando os alunos. De repente, toda a classe está em silêncio e a professora, enfim, acaba seu relato. Ela está se despedindo. Aquela é sua última aula. O motivo: A dor da perda de sua filha. A menina afogou-se na piscina do colégio. Não. Ela foi assassinada. E a professora sabe quem são os culpados. E a professora quer vingança. Mas não só isso.
O enredo nos é apresentado de maneira elíptica. Camadas e mais camadas são justapostas na frente do espectador. As tais “confissões” se complementam, se repelem, se contradizem... Tudo ao mesmo tempo. Em quem acreditar? Ou melhor, no que acreditar? Razão e Culpa caminham juntas e de mãos dadas. A obra “Crime e Castigo” do Dostoievski é evocada.
"...E para falar a verdade, se fôssemos analisar as pessoas em todos os seus aspectos, não creio que sobraria depois muita gente boa."
A frase de Raskólnikov é elevada à nona potência. Sim. Em “Confissões”, após a tal análise não sobra praticamente ninguém “bom”. Como já disse, a razão e a culpa são irmãs. Todos os personagens possuem justificativas para os seus atos. Todo mundo tem razão e ao mesmo tempo, não. A contradição é a palavra de ordem e “ganha” quem for mais ardiloso em seus argumentos.
“Meu senhor, meu senhor, todas as pessoas precisam ter ao menos um lugar onde sintam pena dela.”
A baixa auto-estima, a necessidade de impingir comiseração nos outros, a solidão, o abandono está no foco central da obra. A vida parece não valer a pena e então se faz necessário “criar” um mundo “novo” onde o EU seja o personagem principal desta nova história. Ilusão. Ledo Engano. Nada disso funcionará. O Vazio engole aqueles personagens. Seres erráticos, encurralados em seus egos inflados e machucados, sem nem mesmo ter para onde ir. O que resta, então?
Eis que chegamos ao ponto crucial do enredo: a necessidade de ser alguém, de ser reconhecido, de aparecer. Guy Debord em seu livro “A Sociedade do Espetáculo” dá a chave para um entendimento mais profundo:
”O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.”
BINGO!
Essa é a mensagem que aqueles adolescentes (e não só os dois assassinos) buscam descontroladamente: eles querem ser alguém. A pressão social para que sejam bem-sucedidos deforma todo e qualquer senso ou equilíbrio. Não. Não há tempo hábil para formular qualquer pensamento contrário ao bombardeio diário dos comerciais, dos cursinhos, da família, etc, etc, etc ... O mundo tem não sei quantos bilhões de pessoas e todos eles querem o meu lugar. Todos eles são meus inimigos. Eu preciso derrotá-los. Não importa a que preço. E o preço é sempre alto demais. O fato é que assim como Macabéa de Clarice Lispector somos um bando de “incompetentes para a vida”. Quem dera se pudéssemos gritar: “o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim”. Talvez existisse ai uma possibilidade de salvação. Mas não. Não gritamos. Pelo contrário. Calamos. E vamos tentando sobreviver. Tentando subir. Cravando as unhas, pisando em quem quer que seja. Mas sempre pisando primeiro em nós mesmos. Em nossa humanidade. Possíveis Esperanças. Amor guardado.
“Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.”
Não. Não temos direito ao grito. E se não grito, preciso me expressar de alguma outra maneira, não é? E então (BINGO!) eis que nos defrontamos com a sociedade espetacularizada. E nunca esquecer que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizadas por imagens”.
E é aqui que o ciclo encontra seu quase-fim, ou melhor, sua própria finalidade. Os tempos atuais são fartos em produzir imagens e ou material para esse espetáculo. Blogs, redes sociais, celulares, tablet’s, computadores são os abrigos ideais para esse tipo de comportamento.
A necessidade de ser. (O quê?)
De aparecer. (Por quê?)
Não importa. E na verdade, talvez nem se precise (de fato) que a justificativa exista. Basta que seja. Basta que apareça. Impossível não lembrar do livro de Lionel Shriver, o belíssimo e dolorido “Precisamos falar sobre o Kevin”.
“Está bem, é o seguinte: “Você acorda de manhã, assiste à TV e entra no carro e escuta o rádio. Vai para o seu empreguinho ou para sua escolinha, mas não vai ouvir falar disso no noticiário das seis, porque, adivinhe: Não há mesmo nada acontecendo. Você lê o jornal, ou então, quando é ligado nesse tipo de coisa, lê um livro, que dá na mesma que ficar assistindo, só que é mais chato. Você assiste à televisão toda noite, ou então sai para assistir um filme e pode ser que receba um telefonema e possa contar aos seus amigos o que viu. E save, a coisa ta tão ruim que eu comecei a notar que as pessoas na TV, sabe? Dentro da TV? Metade do tempo, elas estão vendo televisão. Ou então, quando você vê um romance num filme. Que é que eles fazem, senão ir ao cinema? Todas essas pessoas, o que elas estão vendo? Gente como eu.”
BINGO! Kevin e os meninos assassinos do filme “Confissões” aprendem a mais importante das lições do mundo contemporâneo: para viver nessa sociedade é preciso sustentar (não seria mais coerente a utilização da palavra “inventar”?) a própria história.
O “Mal” fascina e justamente por isso, relegamo-no ao campo da ficção, mas eis que ele surge cada vez mais avassalador.
Sim. Habitamos um lugar totalmente feito contra nós. Sim. Habitamos uma sociedade absoluta e absurdamente líquida e espetacularizada. É lógico que a resposta a tudo isso, também será líquida e espetacular.
"O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”.
Impressionante o que o diretor Steve McQueen nos apresenta no filme "SHAME" . Nada psicologizante, o filme é apresentado por meio de seus personagens, sobretudo por Brandon (vivido com brilhantismo por Michael Fassbender) e sua irmã Sissy (a ótima Carey Mulligan). É cinema carne-viva/latente/sangue/esperma. Esteticamente deslumbrante, com um roteiro simples e engenhoso, embevecido em pequenas elipses e um minimalismo assustador, McQueen consegue provocar/questionar o espectador mergulhando-o numa atmosfera sombria, quase um sonho (ou pesadelo) angustiante... Acompanhamos não um filme, mas a "via-crúcis" do corpo.
A primeira “via-crúcis” é vivenciada por Brandon, homem que optou pela solidão, aparentemente bem-sucedido, tem um bom emprego, um apartamento legal, veste-se bem, é bonito, charmoso e tem bom papo. Mas nada disso é dito no filme, tudo é mostrado. O personagem age e é assim que o conhecemos. As primeiras cenas são dedicadas a mostrar Brando existindo. Em quase todas, há um componente em comum: Brandon é fascinado por sexo. Seja no trabalho, em casa, no metrô, ele sempre está pensando ou fazendo isso. Tudo vai bem até que...
... A segunda “via-crúcis” entra em cena. Ela é Sissy, irmã de Brandon. Ela nos é apresentada primeiro por inúmeros telefonemas que ela faz para a casa do irmão sem sucesso. Ele nunca atende as ligações e chega a se irritar com a insistência dela. Até que...
... Ela aparece do nada na casa dele. Sim. Ela tinha as chaves. A primeira cena de Sissy é especialmente bem orquestrada. Ela aparece de maneira sinuosa, pelo espelho, completamente nua e dizendo que vai precisar passar um dia ali, pois tem um show na cidade e brigou com o namorado. Sissy cantará num bar chique da cidade. Brandon não gosta muito de ter alguém perturbando seu sossego, mas acaba cedendo. E é aqui que o inferno de ambos começa.
A presença física da irmã faz com que Brandon tenha uma dificuldade de ser quem ele realmente é. Seus atos precisam ser pensados, para que sua compulsão ao sexo não acabe aparecendo. Mas tudo em seu apartamento é uma denuncia disso. Revistas pornográficas, sites de sexo no computador, punheta no banheiro. A solidão que até então acobertava o comportamento de Brandon é colocada em xeque.
Sua irmã nos é apresentada como uma cantora extremamente sensível (sua versão do clássico “New York, New York” é arrepiante, a cena mais linda de todo o filme) e uma pessoa totalmente carente de afeto. Brandon e Sissy são seres errantes, erráticos, tortos. Mas a direção não perde tempo em tentar explica-los. Não. Aqueles dois personagens existem. São palpáveis. E parecidos. A solidão é a mesma. Mas a maneira de encará-la é diferente. O que terá acontecido com esses dois? Quem são os pais deles? Como eles são? E a infância? E o latente componente sexual que há entre ambos? De onde surgiu? Nada disso é explicitado. Mas, está ali. Quem tiver olhos, que veja.
Nova Iorque é um personagem importantíssimo na trama. Ela parece inspirar certa dose de melancolia e desespero genuíno naqueles personagens, sobretudo em Brandon, que vive ali há mais tempo. Sim. A cidade nunca dorme. Brandon parece nunca estar completamente descansado. Sempre está alerta. À procura de algo ou alguém.
Daí que “Shame” é um filme sobre o vazio. A ausência. O nada. E a não aceitação disso. “Shame” é um filme sobre os caminhos encontrados por esses dois personagens para lidar com angústia e no contexto mostrado, só é possível alcançar esse “alento” através da fuga desesperada de qualquer contato mais profundo com o outro e o desenvolvimento de um comportamento onde se busca o excesso em algo, ou bebida, drogas, sexo ou até mesmo a própria criminalidade e a arte.
Sissy desperta em Brandon sentimentos contraditórios, ao mesmo tempo em que se vê que ele a ama, ele também a repele e humilha. Sissy representa a mulher. O alvo preferencial de Brandon em suas investidas sexuais. Ela é a personificação de todas as mulheres que ele deseja. Ao conhecer o chefe dele, Sissy transa com ele na mesma noite, comportamento exatamente igual às mulheres que o irmão conhece. Sissy de certa forma aguça um sentimento de culpa em Brandon. Algo que sempre esteve ali, mas escondido, latente, que agora explode de maneira avassaladora.
O pensador francês Jean Baudrillard em seu livro “A Transparência do Mal” diz que atualmente vivemos num estado de pós-orgia, aquele momento explosivo da modernidade em que tudo parece permitido, e arremata com a pergunta “O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Brandon e Sissy vivem nesse mundo e encontram como possível resposta ao questionamento de Baudrillard uma simulação da orgia, um fingimento, onde só é possível repetir todas as cenas, porque tudo já foi feito e deixado para trás. As cenas iniciais de “Shame” são exatamente assim. Repetição. Repetição de um mesmo comportamento obsessivo. Repetição de um padrão que até então dava certo. “Quando tudo é sexual, nada mais é sexual, e o sexo perde toda a sua determinação” (Baudrillard). Brandon lá pelas tantas, parece chegar a essa conclusão. Mas será que ainda há tempo? O desejo de punição, como um expurgo disso tudo, é trilhado. Mas antes o excesso, e se já não há o confronto com outro, defronta-se consigo mesmo. A descida rumo ao Inferno é trilhada por ambos os irmãos. Nem mesmo a tentativa desesperada de afeto parece resolver. A conversa que começa lírica e bela, acaba tenebrosa, violenta e acusatória. Parece termos chegado ao fim. “Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo.” Brando e Sissy parecem fadados ao fracasso, à solidão e à irreconciliação.
“O pior é a compreensão, que é só uma função sentimental e inútil. O verdadeiro conhecimento é o daquilo que nunca compreenderemos nos outros” (Baudrillard).
Talvez Brandon e Sissy aprendam essa lição... Sim. Talvez!
Primeiro filme longe de seu país de origem, Abbas Kiarostami mostra com "Cópia Fiel" que ele tem um tema e que o persegue em quase toda sua filmografia. Daí que não podemos esquecer que tudo aquilo é um jogo, onde papéis se invertem o tempo todo. Enfim, tudo é apenas encenação o tempo todo. Kiarostami provoca aqueles que ainda acreditam nessas coisas velhas e rançosas chamadas "personagem", "história", "começo, meio e fim". Esqueça tudo isso. O diretor iraniano tem compromisso apenas com o agora. Não há Ágon. Há apenas dois seres brincando de ser. No fundo, isso é a essência de toda a humanidade e da arte, não?
“Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira. Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós”.
Nelson Rodrigues escreveu em 1945 a tragédia em três atos “Álbum de Família”, peça em que personagens atemporais utilizam-se da supressão de qualquer possibilidade de realidade exterior para mostrar o que há de mais abjeto e louco nesse ideal chamado família. Nelson não poupa nada nem ninguém. Sua metralhadora cheia de mágoas está apontada para todos os lados. De certa forma, o filme "Kynodontas" (“Dente Canino”) do diretor grego Giorgos Lanthimos também tem esse mesmo intuito.
O enredo de "Kynodontas" é extremamente simples e num primeiro momento pode ate soar lírico ou até mesmo parecer com um conto de fadas qualquer. Um aviso: Não se enganem.
O filme conta a história de uma família composta por pai, mãe e três filhos (um homem e duas mulheres) que vive completamente isolada da sociedade. Não sabemos exatamente os motivos. Mas o fato é que excetuando a figura do pai que sai todos os dias para trabalhar, ninguém daquela família parece ter saído daquela casa. Muros Altos e o fato dela ser localizada fora da cidade garantem a privacidade necessária. O filme não perde tempo em explicações. Quando começa, ouvimos um gravador informando as novas palavras do dia. O estranhamento já está presente desde essa primeira cena, pois as palavras proferidas pela voz do gravador possuem um significado totalmente diferente daquele que conhecemos. Os irmãos ouvem atentos numa espécie de pequeno ritual diário. Em seguida, a irmã mais jovem propõe um jogo de resistência; quem consegue ficar mais tempo com o dedo na água quente ganha. Mas o quê? Corte de cena. Próxima. Uma mulher de olhos vendados é conduzida por um carro dirigido por um homem que ainda não sabemos quem é. Ele é o pai e está levando uma mulher para que seu filho pratique sexo com ela. O filho se exercita. A mulher chega. Eles tiram a roupa. Transam. Tudo mecanicamente. O filme utiliza-se de uma interpretação bastante controversa. Ao mesmo tempo em que é absurdamente naturalista, é também mecanizada, robótica. Tudo parece ser anódino, sem vida, ensaiado. E literalmente é. Aos poucos e sem nenhum didatismo, o filme vai se impondo ao espectador. Sim. Aquele homem (O Pai) trancafiou seus filhos numa casa e não permite que eles saiam dali. O método utilizado por ele é, sobretudo, um terrorismo sutil disfarçado de boa educação. Seus filhos são figuras ingênuas e infantilizadas que acreditam em qualquer bobagem contada pelo pai. A mãe é uma figura omissa, que não tem apresenta nenhuma capacidade de reagir àquilo tudo. E eles vão vivendo assim... Até que pequenas interferências começam a assombrar aquela casa. A mulher trazida pelo pai para transar com o filho introduz alterações circunstanciais ao enredo e o pai terá cada vez mais dificuldades para evitar que seus filhos tenham qualquer contato com o mundo exterior. O enredo basicamente é isso, mas a maneira com que Lanthimos filma aqueles meros corpos é o mais genial aqui. Sua câmera parada (à la Michael Haneke) provoca inquietação e desespero em que assiste. O filme lentamente se transforma num terror contemporâneo que lembra em alguns momentos o filme “A Vila” do diretor M. Night Shyamalan. Estão tanto lá quanto cá; a mentira, a dominação através do terrorismo psicológico, a tentativa de criação de um universo paralelo em que seja possível se esconder do “mal” e a crítica ao protecionismo familiar. O filme “O Enigma de Kaspar Hauser” é outro que guarda semelhanças com "Kynodontas", só que por razões mais sociológicas. Werner Herzog nesse filme de 1974 nos apresenta um personagem criado numa espécie de caverna longe de qualquer contato com a humanidade (excetuando alguém que vem diariamente lhe trazer comida). Um belo dia, esse homem é trazido até a cidade e tem inicio sua saga de conhecimento das coisas fora da caverna.
Falando nisso, o Mito da Caverna de Platão é uma inspiração de todos os filmes citados acima e não poderia ser diferente com "Kynodontas"
“Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. (...) Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?“
"Kynodontas" é exatamente isso. Só que é mostrado de maneira fragmentada e muito mais cruel. Quais são as motivações para o pai fazer o que faz? Por que a mãe é omissa nessa história? As crianças já nasceram naquele lugar? Ou foram trazidas para lá? Teriam elas alguma lembrança do mundo de fora dos muros de casa? São perguntas sem respostas que perturbam ainda mais o espectador. Diante de uma sociedade doente aquele pai teria o direito de enclausurar seus filhos e impossibilitá-los de qualquer conexão com o mundo?
Novamente pergunta sem resposta. Podemos até classificar a situação toda de nefasta, mas a motivação do Pai parece ser bem intencionada. E esse é a provocação do diretor.
Daí que "Kynodontas" apresenta seu melhor desempenho quando questiona o modo como nos organizamos como sociedade atualmente. Sim. Porque cada vez mais famílias optam por morar em condomínios fechados distantes da cidade em busca de tranqüilidade e segurança. Qual o preço dessa opção? Altíssimo, respondo eu.
“A incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam e reforçam: quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera.”
Sim. Esse é o mundo que vivemos. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman em seu livro “Modernidade Líquida” nos defronta com a própria criação e conseqüente resultado desse comportamento, onde qualquer possibilidade de alteridade é riscada sob o jugo de ser extremamente perigosas. Sim. O Pai do filme tenta desesperadamente livrar sua família de um mundo doente, mas acaba engendrado-os num novo mundo ainda mais doentio e nefando. Para aquele Pai (e não só ele) o outro estranho só traz consigo coação, mal estar e sofrimento... Então pra quê continuar vivendo assim? Por que não inventar uma nova habitação possível? Talvez porque essa nova possibilidade de habitação seja fruto da alienação e da infantilização do outro.
O filme lembra em muitos aspectos o caso da menina Natascha Kampusch que foi seqüestrada aos 10 anos de idade e passou 8 anos sendo submetida a todo tipo de violência física e ou psicológica. Aos 18 anos ela conseguiu fugir, mas nunca conseguiu de fato retomar uma vida “normal”. Vive enclausurada e sozinha e com medo de qualquer contato mais profundo com o outro. Numa entrevista esclarecedora e corajosa, ela rejeitou o rótulo de monstro que quiseram dar para o seu algoz: “Ninguém é totalmente bom ou mau”. E quando perguntada sobre os seus sentimentos para com o homem que a seqüestrou, ela disse: “Aproximar-se do sequestrador não é uma doença. Criar um casulo de normalidade no âmbito de um crime não é uma síndrome. É justamente o oposto. É uma estratégia de sobrevivência em uma situação sem saída”.
A Filha Mais Velha do filme numa decisão quase suicida tentará fugir daquele “paraíso” criado pelo pai e conhecer o que o mundo lá fora lhe reserva.
“- Quando um filho está pronto para deixar sua casa...? - Quando cai seu canino direito, ou, o esquerdo, tanto faz. - Nesse momento, o corpo está pronto para enfrentar todos os perigos. - Para deixar a casa a salvo se deve usar o carro. - Quando se pode aprender a dirigir? - Quando o Canino direito voltar a crescer, ou, o esquerdo, tanto faz.”
A cena chave de todo o filme é esse diálogo travado entre o Pai e seus filhos, é essa possível “solução” que dará condição psicológica para a Filha Mais Velha tomar a decisão de romper com o cordão umbilical tardio que a liga aquela casa.
O mais impressionante de todo o filme é a maneira lúcida com o que o diretor coloca nossos conceitos mais profundos em xeque e como através disso, fica provado, que somos seres culturais e nosso comportamento nada mais é que uma resposta aos estímulos que recebemos... A atitude do pai embora exacerbada encontra eco no modus vivendi dos atuais proprietários de casas em condomínios fechados onde as únicas coisas que unem os vizinhos são o dinheiro e o medo.
Baudrillard no livro “A Transparência do Mal” escreve que o princípio do Mal não é moral, mas um princípio de complexidade, estranheza, sedução e, sobretudo, um principio vital de desligação.
“Desde o paraíso, ao qual seu acontecimento pôs fim, é o princípio do conhecimento. Já que fomos expulsos por delito do conhecimento, vamos ao menos retirar disso todos os benefícios.”
Sim. Na teoria de Baudrillard, o conhecimento é o Mal e toda a negação da alteridade é um processo autodestruidor. É exatamente o que acontece no filme. Ao negar a possibilidade do conhecimento do “Mal”, o pai acaba criando algo mais monstruoso que o próprio mal em si.
“Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo”.
“Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a vida te lavrar a cara, antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer alma, sabia? Quer que eu diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer. Será que ainda consigo, como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.”
O filme “Weekend” do diretor Andrew Haigh poderia muito facilmente ter como prólogo esse texto do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu. Sim. Assim como em “A Dama da Noite”, conto de onde esse trecho foi retirado, o filme narra o encontro fortuito de duas pessoas num bar. No conto de Caio, uma mulher mais velha e um garoto. Em “Weekend”, um homem e um outro homem. Dito assim, parece que a possibilidade de que aja algo de singular entre eles seja difícil, mas não. Aqui, o diretor muito sabiamente não condiciona os personagens homoafetivos em meros arremedos e ou caricaturas que vemos na maioria dos filmes do gênero. Muito pelo contrário. O nome “Weekend” não poderia ser mais apropriado. Traduz perfeitamente a ideia central do roteiro. Russell nos é apresentado como alguém que parece nunca se sentir bem onde está. Seu olhar e seu corpo traduzem uma espécie de tristeza latente. Ele é gay. Mas pouquíssimas pessoas sabem. No começo do filme, ele está numa comemoração numa casa de amigos. Sim. Todos são heteros. Menos ele. Não que aja algum tipo de preconceito contra ele. Não. Isso não acontece. Mas ele é diferente e sabe disso. Seu incomodo ele guarda consigo mesmo. Não divide com ninguém. Ao sair da festinha, ele decide passar numa balada gay e lá se interessa por um carinha. Corte de cena. Dia seguinte. Russel está fazendo café e segura duas xícaras: é a dica que precisávamos para sacar que ele está com o tal carinha. Dito e feito. Sim. Eles transaram. E papo vai, papo vem, o tal carinha pede que Russel grave um depoimento falando de como foi a noite entre eles. O tal carinha é Glen e ele possui pretensões artísticas que só saberemos mais tarde... Russel num primeiro momento sente-se incomodado com o pedido, mas diante da insistência do outro, acaba cedendo. Pouco a pouco, a intimidade entre ambos cresce, eles trocam telefonemas e marcam de se encontrar mais tarde. O que poderia apenas ser uma ficada de fim de semana, ganha contornos outros. Sutilmente o filme mostra o desabrochar do afeto que vai surgindo entre eles e consequentemente a nossa tomada de posição como espectador acontece exatamente nesse ponto.
A primeira parte do filme é propositalmente frívola, como é a maioria dos relacionamentos nascidos de uma mera ficada de fim de semana. No entanto, quando a intimidade entre eles cresce, o filme cresce junto também. E é especialmente prazeroso acompanhar a maneira inteligente e sensível com que o diretor oferece a guinada ao público.
“Weekend” é um filme simples, alicerçado basicamente na força de um bom roteiro e no trabalho sincero dos dois atores protagonistas. Sem arroubos melodramáticos (“Isso aqui não é nosso Notting Hill”), o diretor concebe um filme atualíssimo.
Russel é um homem bastante introvertido, enquanto que Glen é seu oposto, mas por incrível que pareça, quem se abre mais para o outro é Russel. Seu desejo de compartilhar sua vida com alguém é comovente. Glen não curte esses papos. Acho isso tudo bobo e heteronormativo. Glen quer construir uma possibilidade de história nova. Ele quer algo que talvez não exista. Ele é um artista. Ou está tentando ser. Daí que o diálogo entre essas duas pessoas (duas visões de mundo) é tenso e dilacerante. Também nós estamos nesse barco. Eu, você e todos nós. Sim.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman esmiúça como poucos a fragilidade dos laços humanos contemporâneos no livro “Amor Líquido”; estamos numa encruzilhada, numa passagem de um estado para o outro. Bauman explica que passamos do estado sólido para o líquido, e essa mudança altera não só o modo com que nos relacionamos com o outro, como também aspectos políticos, econômicos e sociais. Temos ao mesmo tempo que lidar com nosso desejo de segurança e nossa necessidade de independência e ou liberdade. Russel personifica o primeiro item, já Glen o segundo. Russel está desesperado por um relacionamento, Glen não. Ele quer “curtir”. Fracasso à vista, não? Lógico que sim. Não que Glen não sinta algo por Russel. Não é isso. Ele apenas não quer repetir um padrão que já provou ser fadado ao malogro. Como resolver o impasse? Há uma saída? E acima de tudo, quais são os riscos de escolher entre uma coisa ou outra? O livro de Bauman é todo ele dedicado a “responder” essa questão:
“O que sabemos, o que desejamos saber, o que lutamos para saber, o que devemos tentar saber sobre amor ou rejeição, estar só ou acompanhado e morrer acompanhado ou só - será que tudo isso poderia ser alinhado, ordenado, adequado aos padrões de coerência, coesão e completude estabelecidos para assuntos de menor grandeza? Talvez sim - quer dizer, na infinitude do tempo.”
O certo é que não se pode aprender a amar, nem tampouco se ensinar. O amor nos pega sempre desprevenido. Como no livro “A Fera na Selva” do Henry James. O Amor é a própria personificação da fera na selva.
“A fera estivera de fato à espreita, e , àquela altura, já havia dado o bote... “
Mas não podemos nos esquecer que os tempos são outros. Não podemos nos esquecer que estamos chafurdados até o pescoço numa cultura extremamente capitalista onde tudo parece um imenso fast-food e nada feito para durar mais que alguns instantes de prazer. Está ai o filme “Shame” que não me deixa mentir. Somos todos Brandon. Mas também somos todos Cabíria e em nossas noites procuramos algo ou alguém para amar. Coisas opostas, não? Não. Tudo intrinsecamente tão ligado. Seria isso a tal roda que Caio Fernando Abreu fala no texto “A Dama Noite”? A roda que gira com todo mundo dentro, enquanto esperamos o amor, sentados numa mesa de bar... Parados e patetas.
“Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar.(...) Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. (...) Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro.”
Sim, Caio. Um dia encontraremos. Sim. E um dia deixaremos que escorra como água por entre os nossos dedos. Sim. E tudo isso porque somos ainda apenas crianças assustadas perante aquilo que nunca entenderemos direito!
O filme francês "O Último dos Loucos" do diretor Laurent Achard "conta" uma história do ponto de vista de uma menino de quase 11 anos de idade, calado e que muito raramente demonstra algum tipo de reação, na maior parte do tempo, o vemos andando sorumbático pela casa, pela rua etc. O menino de nome Martin assiste a degradação de sua família com uma expressão enigmática, com aquela cara que não nos deixa adivinhar o que ele está pensando, nunca. Sua família composta por avó paterna e extremamente rigída, um pai apático, uma mãe enlouquecida que não sai de seu quarto, um irmão poeta, bebâdo e homossexual e a empregada da casa, Malika, amorosa e que parece ser o único ponto lúcido naquela casa opressiva, além do pequeno Martin. O filme possuiu silêncios poderosos e angustiantes, o diretor é habiloso em levar o espectador por caminhos desconhecidos, além de brincar com nossa expectativa em relação à história. Laurent nos faz ficar numa ansiedade enquanto ao final, apesar de já sabermos que algo de ruim acontecerá, não sabemos como nem quanto. O filme é uma tragédia anunciada desde seu início e isso só faz aumentar seu carater fóbico. Sobre os atores é notável a interpretação de todos, com destaque para o ator que faz o irmão e a atriz que faz a mãe. No entanto é em cima da atuação enigmática do pequeno Julien Cochelin que o filme é alicerçado, apesar de em grande partes da cena não oferecer reação nenhuma ao espectador, o menino nos comove na cena em que chora pela desaparecimento da amiga e quando sorri ao ouvir o irmão contar uma história. "O Último dos Loucos" é um daqueles filmes que nos angustiam, pois, nos vemos a todo momento naqueles personagens, é como se de repente, sem saber bem porquê, possamos nos transformar neles. Um filme duro, seco e certeiro como um soco em plena boca do estômago.
David Linch não faz filmes, mas poesia. Seus filmes são verdadeiros legados poéticos, em que "resta" ao público entrar ou não nesse universo particular. O que Linch tem a nos comunicar é simples, muito simples, mas o que acontece é que ao lidar com essa material poético que é lúdico e onírico, o diretor transforma tudo isso num processo mental envolto no ato de sonhar, e Freud já dizia que quando penetrarmos mais a fundo nisso, tudo se transforma em escuridão. Linch trabalha com a temática dos “sonhos” em suas mais variadas significações;
“Conjuntos de idéias e imagens mais ou menos confusas e disparatadas, que se apresentam durante o sono. Utopia; ficção, fantasia, visão, aspiração, desejo.”
Isso Linch nos mostra claramente o tempo todo e com ele as regras do jogo são claras e definidas logo de cara. Como já disse, ou se entra no jogo ou não. Ele compensa quem aceita suas “brincadeiras” com um cinema extremamente autoral, contemporâneo e desafiador. Constrói sua história junto com o público, numa mistura interessante entre narração e ação. Primeiro acontece uma narração, a preparação para a cena, alguém conta um coisa e logo depois a vemos em imagem, numa legitima demonstração de conhecimento dos métodos artísticos do alemão Bertold Brecht. Não há surpresas, tudo é dito antes. O filme para mim ocorre naqueles milésimos de segundos em que a personagem da senhora conta a lenda cigana à Nikki Grace e lhe diz que se contasse a mesma história no dia seguinte ela estaria sentada no outro lado da sala e dito isto aponta um sofá, Nikki olha e tudo vem a tona. Todos seus desejos, frustações, utopia, fantasia entram em cena, como num sonho. Num primeiro momento tudo é muito confuso e parece que nada fará sentido, pois foi mutilado pela infidelidade da memória de quem sonhou, que como diz Freud pode ter perdido exatamente as partes mais importantes de seu conteúdo.
Nikki se perde em seus desejos, ou seria na realização de seus desejos?, onde se vê duplicada ou triplicada num universo extremamente insuportável para uma mulher atual, que se vê dividida entre dona de casa, trabalho, gravidez, amante e ainda por cima no caso de Nikki, sua profissão que consiste em “interpretar” outras pessoas e mais tendo que voltar a fazer sucesso numa Hollywood extremamente competitiva. É claro que ninguém agüenta e extravasa isso de alguma maneira e qual maneira melhor do que sonhando? Num sonho, as cadeias inconscientes do pensamento ativo em nossas mentes são abudantes e todas lutam por encontrar expressão e é isto que vemos nas muitas faces de Nikki; Nikki dona de casa, Nikki atriz, Nikki amante, Nikki prostituta, Nikki Mãe (grávida) etc. O filme apesar de longo em seu tempo cronológico é extremamente curto em seu tempo onírico (dura o tempo que Nikki olha na direção do sofá apontado pela velha e se vê lá), o tempo de um sonho de um humano, variando de 10 a 30 segundos. Neste tempo curto, Linch prova por que é o DIRETOR vivo mais interessantes entre os cineastas, constrói cenas antológicas tais como a dança das prostitutas no quarto, a cena em que Nikki se vê numa tela de cinema, todas as seqüências envolvendo os coelhos, e a melhor delas, a cena em que Nikki “morre” na Calçada da Fama, sem contar toda seqüência final do filme que beira o sublime. Enfim, Linch é um diretor que possui uma obsessão e que parece estar sempre fazendo o mesmo filme e isso é um elogio digno dos maiores cineastas que já se atreveram a fazer cinema. Além disso, o filme possui ótimas interpretações com destaque absoluto para Laura Dern que dá credibilidade às mais variadas Nikki’s, uma trilha muito bem escolhida, iluminação que cria os meandros da “ficção” humana muito bem e uma direção excepcional.
“Caos Calmo” veio cheio de recomendações, visto que já tinha adorado “O Quarto do Filho” e amigo já tinha me falado maravilhas desse.
O roteiro é excelente e Nanni dá um show, sabendo conduzir as emoções do personagem muito bem, indo da comédia ao drama em poucos segundos.
Pietro (Nanni Moretti) é um executivo bem sucedido, em um casamento feliz e pai de Cláudia, uma menina de 10 anos. Após ter salvado duas mulheres que estavam se afogando na praia, ele descobre, ao chegar em casa, que sua esposa morreu repentinamente. A partir daí, sua vida muda radicalmente. É nessa mudança que o filme se centra e ganha contornos quase que de protesto. Pietro passa grande parte de seu dia, esperando a filha na praça em frente à escola e ali ele observa a rotina da praça e começa a olhar o mundo de outra maneira, como se toda aquela paz e rotina pudessem aplicar sua solidão e dor. A praça é o grande personagem do filme, representante de uma outra forma de encarar o mundo. É ali que ele vê o vendedor de jornais, a garota bonita que passeia com o cachorro, o dono do restaurante onde faz as refeições e numa das cenas mais bonita do filme, brinca com um menino que tem síndrome de Down. Pietro passa a dar mais valor ao que se passa na praça do que aos negócios e pouco a pouco vai se reconstruindo até confronto final com seus medos. Enfim, um bom filme e com uma ótima trilha, destaque para Cigarretes & Chocolate Milk do Rufus Wainwright. Ah, o filme também tem uma cena quentíssima de sexo que deixou o Vaticano e os "Cahiers du Cinéma" chocados. Pura hipocrisia, pois a cena é linda e tem contornos oníricos.
Estou com essa pergunta martelando minha cabeça agora e lembrei de “Noites de Cabíria” do Fellini e mais uma vez senti exatamente as mesmas sensações da primeira vez que o vi.
Ri mas partes engraçadas, da falta de jeito dela, chorei quando ela percebe que o mundo que habita é sempre dos outros e nunca dela, me angustiei quando ela é enganada e sempre deixada de lado por quase todos.
Cabíria traz em si uma pureza latente, uma ingenuidade teimosa, muitos diriam que ela é burra, mas não consigo pensar assim, vejo-a como um ser-humano ainda não corrompido, sinto que ela ainda não perdeu aquela coisa “morna e ingênua que vai ficando no caminho”.
Sua trajetória é o caminho de todos aqueles que ainda acreditam na humanidade, que ainda acreditam no amor, não essa bobagem romântica que se convencionalizou chamar de amor e não passa de cio.
Fellini é cruel nesse filme, pois nos mostra a todo momento, que o mundo é feio, cínico e habitado por pessoas aproveitadoras.
Isso é mostrado em todos os âmbitos, seja ele moral, ético ou religioso e principalmente na excelente cena em que Cabíria e sua amigas prostitutas vão a Igreja levar o homem aleijado para ser curado.
O diretor nos mostra como o comêrcio em torno de Deus e seus santos suplantam qualquer resquício de uma verdadeira religiosidade, Fellini nos mostra que o que resta é apenas manipulação e falsidade.
Não satisfeito com isso, faz com que sua protagonista fique triste pois seus pedidos não foram atendidos pela Virgem Maria, “Ninguém mudou, nada mudou, nossos pedidos não foram atendidos”, ao passo que sua amiga responde mais ou menos assim “ E você acreditou que mudaria?”.
Sim, Cabíria acreditou que mudaria.
Dias desses uma amiga me perguntou: “Você fala tanto nessa Cabíria. Você realmente se sente como ela?”
Na hora, apenas respondi que sim.
Agora, minha amiga, te responderei a verdade:
Sou Cabíria na medida que conservo sua ingenuidade perante o mundo e as pessoas.Sempre quando acabo de ser usado ou passado para trás de alguma maneira, fico pensando que nunca mais vou me deixar iludir, que encararei o mundo de outras formas, mas no instante seguinte sempre aparece para mim um pequeno grupo de jovens tocando e cantando alegremente pela floresta e eu que estava chorando e desiludido, volto a acreditar nas pessoas e conseqüentemente em mim mesmo e olho pra frente e dou um leve sorriso para o público e continuo minha caminhada.
Anos atrás, estava lendo coisas a respeito do filme e me deparei com um depoimento de Fellini sobre o filme e fiquei estupefato por ler algo tão sensível de um criador:
“E assim, para Noites de Cabiria, pensei: quero fazer um filme que conte as aventuras de uma infeliz que, a despeito de tudo, espera confusamente, ingenuamente, por melhores relações entre os homens, simplesmente melhores relações; e ao fim do filme quero lhe dizer: “Escuta, fiz você passar por todo tipo de desgraça, mas você me é tão simpática que quero compor-lhe uma pequena serenata”. E depois, sobre essa idéia talvez um pouco ingênua, imaginei uma cena. Tratava-se de uma mulher, de uma personagem infeliz que, ao fim de uma aventura ainda mais terrível que as outras, deveria perder de maneira absoluta e definitiva sua confiança na humanidade que a rodeava. E então me perguntei: por que essa personagem, num dado momento, não pode se convencer de que há alguém que lhe diz gentilmente e com simpatia: “Você tem razão”? E assim essa personagem se tornou Cabiria, e suas aventuras se tornaram aquelas de uma prostituta que vive como um pequeno camundongo num meio aterrorizante, continuamente esmagada pela realidade, mas que atravessa a vida com inocência e aquela misteriosa confiança. Ao fim do filme eu a faço encontrar um grupo exuberante de pessoas bem jovens, de uma humanidade ao limiar da vida, que gentilmente, debochando um pouco mas com candura, exprime-lhe sua gratidão cantando uma canção. Foi dessa idéia que, finalmente, nasceu todo o filme.”
"O que significa matar um homem comparado com contratá-lo para um trabalho assalariado?"
O filme “Trabalhar Cansa” expõe algo do pensamento do alemão Bertolt Brecht, mas aqui despido de todo e qualquer didatismo ou lado político. Não há mais lados. Ou melhor, até há: Eu versus Os Outros. Num sistema capitalista como o nosso esse é o pensamento dominante e quem pensa fora disso está literalmente fodido. O filme toca nesse calcanhar de Aquiles de uma maneira absolutamente diferente. Foge dos clichês do gênero e faz um dos filmes mais interessante dessa nova safra de filmes brasileiros. Esqueça a estética Globo Filmes. Não é esse o cinema praticado pela dupla Juliana Rojas, Marco Dutra e também digo que esse cinema é praticamente impossível de ser definido. É híbrido. Além. Inclassificável.
Centrado basicamente no casal Helena e Otávio, o filme é uma crítica ao modus vivendi de nossa contemporaneidade dominada por interesses capitalistas. O filme não julga, apenas mostra. Somos nós quem fazemos as possíveis conexões. Nada é entregue de mão beijada. Não há infatilização do roteiro e muito menos do espectador. O filme é todo composto de pequenas alterações na rotina familiar quando Helena decide abrir um mercado de bairro e seu marido perde o emprego. Para conciliar a nova rotina de trabalho com a criação da filha do casal, a mãe contrata um babá para ficar com a menina em tempo quase integral. A babá que vem indicada por algum conhecido não terá carteira assinada e ganhará um salário mínimo. Ela acha pouco, mas Helena argumenta que tem outras pessoas interessadas no emprego. Ela aceita. O marido agora desempregado começa a procurar um novo emprego e não consegue se adaptar aos novos métodos empregatícios, chegando até mesmo a abandonar uma patética dinâmica de grupo. Os tempos são outros. A modernidade é líquida e tudo escorre pelas mãos. A ausência de um emprego influi na dignidade daquele homem. Ele começa a perder sua função de provedor e não sabe mais como se inserir como humano na sociedade. O dinheiro é status. É ele quem define quem é quem.
Enquanto isso, Helena começa a sentir o peso da responsabilidade de ser dona de seu próprio negócio. A relação que ela estabelece com seus empregados é, num primeiro momento, amistosa. Mas com o passar dos dias e quando alguns produtos começam a sumir do estoque, ela se vê impelida a tomar algumas atitudes.
Brecht na obra “A Alma Boa de Setsuan” coloca uma situação bastante parecida. Chen-Te, uma prostitua é escolhida pelos Deuses como a única alma boa existente (ou que eles puderam achar), como prêmio, ela recebe uma quantia em dinheiro e abre uma pequena tabacaria. Aos poucos, os vizinhos começam a explorar sua bondade, tirando-lhe a possibilidade do sustento. Chen Te então decide criar uma espécie de alter-ego “ruim”, Chui Ta. É ele quem será responsável por expulsar os parasitas da tabacaria e restabelecer a ordem.
“Vocês não vão encontrar minha prima: ela sinceramente lamenta não poder pôr em prática, o tempo todo, o Mandamento da Hospitalidade. Mas vocês são demais, infelizmente! Isso aqui é uma tabacara, e é o ganha-pão da senhorita Chen Te”.
Daí que Helena pouco a pouco aprende a criar essa espécie de alter-ego. Helena demite um funcionário suspeito de ter roubado algumas coisas do mercado, e começa a vistoriar as bolsas de seus empregados antes do fim do expediente. O que era uma relação amigável torna-se rancorosa. A relação de poder é estabelecida e acaba com a possibilidade do afeto. O desemprego de seu marido afeta a relação do casal. Sem dinheiro, Otávio vira alvo fácil da agressividade repentina da mulher: “Você está com medo que sua filha te ache um bosta?”
O amor que até então se mantinha distante das relações mercadológicas acaba despido de ilusões diante da ausência de dinheiro. Amor nessa nova configuração é apenas fraqueza. Apenas mais uma mercadoria a ser descartada quando vencer o prazo de validade.
“Somos idiotas? Não! Falta-nos a brutalidade necessária? Não! (...) Os tempos andam terríveis, esta cidade é um inferno, mas assim mesmo vamos tentando subir, cravando as unhas na parede lisa... De repente, o azar dá em cima de um: começa a amar e pronto, lá se vai! É bastante um momento de fraqueza e a gente está liquidado. Mas, como se livrar de umas tantas fraquezas, e do amor que é a mais fatal de todas? Não é possível. O preço é alto demais. Diga, com toda a franqueza: a gente pode estar sempre de pé atrás? Enfim, que mundo é este? Carícias tornam-se estrangulamentos, Cada suspiro é um grito de pavor: Por que esvoaçam corvos agourentos? É alguém que vai a um encontro de amor!”
O texto acima retirado da peça de Brecht ilustra bem a situação toda. Otávio enfraquece Helena. Para se manter no “poder”, ela precisa aprender a frieza necessária.
Aos pouco e bem sutilmente, eventos estranhos começam a ocorrer no mercadinho de Helena; produtos somem misteriosamente, um fedor começa a ser sentido pelos fregueses, portas que se abrem sozinhas e assim vai. O clima de terror é sugerido de maneira inteligente, deixando sempre espaço para a dúvida. Essa violência hiper-moderna encontra eco na personalidade culpada de Helena, é ela que vivencia as situações de terror. É ela quem se defronta com o seu próprio simulacro.
“O Poder só existe por essa força simbólica de designar o Outro, o Inimigo, o desafio, a ameaça, o mal”.
Baudrillard no livro “A Transparência do Mal” escreve que tornamo-nos muito fracos em nossa energia satânica ao nos deixar irradiar de valores positivos. Sim. Vivemos numa sociedade que diz acreditar nesses tais valores positivistas, mas que na prática é apenas uma rejeição do mal em si mesmo. Esse é o aprendizado de Helena, que além de tudo, ainda se vê cada vez mais distante de sua filha e vendo-a substituir o afeto que sentia por ela agora na nova relação com a babá, que não está nem um pouco satisfeita em não ter sua carteira de trabalho assinada, de não ser alguém nessa sociedade dominada pelas relações financeiras.
Já Otávio procura nas palestras motivacionais uma possível saída para o estado de letargia em que se encontra. Sim. Precisamos cada vez mais de conselhos e conselheiros. Buscamos cada vez mais exemplos para conseguirmos viver, e é importante salientar (como define Zygmunt Bauman) a diferença entre líderes e conselheiros; líderes precisam ser seguidos, enquanto conselheiros são contratados e podem ser demitidos. Baudrillard define essa nova cultura do aconselhamento ou coaching como extremamente viciosa, pois quanto mais se procura, mais se precisa e mais se sofre. Eis o paradoxo de nossos tempos. Otávio “aprende” que o mundo é uma selva e ele precisa entrar em contato com sua porção primitiva para disputar uma vaga de emprego com os outros que estão na mesmíssima situação que ele. Quem vai ser empregado? Quem vai ser alguém? A questão permanece em aberto no filme e não nos abandona após a sessão. Muito pelo contrário. O que era para ser só um filme mostra-se um retrato fiel daquilo que fizemos de nós mesmo e nossos semelhantes. Os pequenos rituais diários agüentarão mais quanto tempo antes da explosão?
360
3.4 928 Assista AgoraO filme "360" do diretor brasileiro Fernando Meirelles apresenta uma dramaturgia rapsódica, feita basicamente de fragmentos de histórias de diversos personagens que uma hora ou outra irão se encontrar ou não. Esse tipo de dramaturgia já foi
testada em outros filmes, mas aqui, surge leve e despretensiosa. O filme foi muito criticado e eu sinceramente não entendo os porquês dessa crítica toda. O filme não é uma oitava maravilha, mas não é ruim. De jeito nenhum. A trilha sonora é linda, assim como a fotografia que tem achados interessantes e os atores estão bem. E algumas histórias chamam mais atenção que outras, mas é assim como na vida real. O que eu mais gostei do filme é que ele é um retrato da maneira como estamos nos organizando como humanos na contemporaneidade. Relações amorosas complexas. Desejos reprimidos. E muita solidão. Sim. Muita solidão. A grande sacada é seguir o conselho de um dos personagens e ligar o "foda-se" e curtir o filme. Que vale sim a pena.
Apenas uma Noite
3.5 787 Assista AgoraFiquei bastante surpreendido com "LAST NIGHT" ("Apenas uma noite"). Um filme adulto sobre o amor e seus desvãos. Não deixa de ser um filme dolorido, mas não força uma barra, nem quer ser mais do que é. E o que ele é? Um filme simples sobre um assunto complexo e bastante clichê do cinema. Mas o olhar feminino da diretora estreante Massy Tadjedin foge de alguns padrões estabelecidos. Há um aprofundamento humano bastante interessante na maneira como ela aborda as cenas e as personagens. Aliás, os personagens apresentam uma densidade que assusta e incomoda. Incomoda porque nós somos eles. Há ali uma relação de espelhamento não banalizada, mas incômoda e ao mesmo tempo sutil. Recomendo.
Adeus, Primeiro Amor
3.3 192"Un Amour de Jeunesse" da diretora francesa Mia Hansen-Løve retrata a paixão de dois adolescentes de maneira bem simples. Camille ama Sullivan. Sullivan ama Camille. Mas ele tem o desejo de viajar e conhecer novas culturas e lugares. Já Camille está satisfeita em ter "apenas" o amor dele. Dessa diferença de sentimentos brota uma separação lenta e dolorida para ambas as partes. Camille sofre, tenta o suicídio, mas se reergue, se apaixona novamente, mas de repente Sullivan volta. Como segurar a tentação de voltar a uma "coisa" já conhecida e não concluída? O peso do passado e sobretudo da memória, essa palavrinha que nos mantém em pé, assombra esses dois jovens. Um filme simples, bonito, com uma belíssima fotografia e trilha sonora inspirada e inspiradora.
A Árvore
3.5 137 Assista Agora"A ÁRVORE" ( The Tree) da diretora francesa Julie Bertuccelli é um ensaio sobre luto. O enredo é bem simples, mas cheio de simbolismos. O que pode agradar uns e desagradar outros. Mas como uma experiência cinematográfica, o filme se garante pela sensibilidade com que a diretora conduz o enredo e também na atuação sempre minimalista e poderosa da Charlotte Gainsbourg, e da pequena Morgana Davies que vive Simone (filha do casal) com uma desenvoltura e carisma que assusta e comove.
Adorável Pivellina
3.5 7Acabei de assistir o filme "La Pivellina" ("Adorável Pivellina") dentro da programação do Festival de Cinema de RP. Apesar de todos os clichês do gênero filme com criança no elenco, os diretores Rainer Frimmel e Tizza Covi conseguem extrair momentos de pura delicadeza e ternura, sem resvalar no sentimentalismo barato. A pequena Asia (nome da atriz e da personagem) é um achado. O filme é dela. E pra ela. E é um deleite acompanhar suas peripécias, de Tia Patty e do garoto Tairo. Um filme que não reinventa a roda, e nem se presta a esse papel, mas que vale o ingresso pela extrema humanidade que a direção consegue extrair de situações impregnadas de uma banalidade que a gente conhece tão bem...
O Homem Que Não Dormia
2.6 57Assisti "O Homem que não dormia" do Edgard Navarro dentro da programação do Festival de Cinema de RP. O filme é atordoante. Apocalíptico. Animalesco. Sublime. Grotesco. Um libelo contra a hipocrisia . Sem nenhum didatismo ou concessão, o diretor faz uma obra que exala uma humanidade raramente vista no cinema nacional. Sem atores globais, ou historinha com começo, meio e fim, o filme é grandioso em suas imperfeições e vicissitudes. Uma obra radical que impressiona pela coragem de bancar aquele enredo daquela maneira.
A história do filme (se é que podemos chamar assim) é um fiapo de dramaturgia. Serve mais como uma desculpa para encarrilhar cenas de puro êxtase mítico/religioso e personagens caricaturais e típicos de certa região esquecida do mapa (o fim do mundo?).
Certo dia, algumas pessoas do vilarejo começam ter pesadelos recorrentes com a imagem de um homem chegando a tal cidade. Ele quer falar alguma coisa. Mas inúmeras vozes impossibilitam o sonhador de entender o que o homem fala. O espectador também não entende. Aliás, para entrar na onda do filme se faz necessário não entender. Ficar livre desse compromisso tão ocidental. Sim. O filme não tem nenhum compromisso com a verossimilhança. Pelo contrário. É preciso encarar a obra com um olhar de criança. “Se tornem como crianças” {Mateus 18:3}. Só assim é possível enxergar o filme. É preciso resgatar aquela atenção desatenta de quando ouvíamos alguém contar uma história antes da gente dormir. É preciso estar desatento. E deixar que a obra reverbere da maneira que ela quiser. A obra é autônoma. Nós somos autônomos. E é nessa relação que a obra ganha importância e significado. A primeira cena, a do pesadelo, é certeira nesse sentido. O filme quer nos dizer “coisas”, mas nossa ansiedade, nossa necessidade de entendimento abafa a voz do filme. É sintomático. E é um excelente prólogo.
O que vem depois disso é um mix de referências poderosíssimas que vão desde Nelson Rodrigues (especialmente “Álbum de Família”) e Guimarães Rosa, passando pela psicanálise (Freud, é o exemplo mais claro com toda a mítica relacionada ao sonho e as perturbações da mente. Mas também tem ecos de Jung, com suas sombras e duplos) e desembocando no cinema desbravador do genial Glauber Rocha. Eu ousaria dizer que “O Homem que não dormia” é um quase “Deus e o Diabo na Terra do Sol” contemporâneo. A crítica ao “modus vivendi”, a ironia, o deboche, a insanidade, o humano estão tanto lá como cá. E Navarro praticamente não deixa pedra sobre pedra. E nem mesmo parece querer dar algum tipo de alento ao espectador. Pelo contrário. Quer fudê-lo cada vez mais e mais. E o faz de maneira absolutamente única. Seu emaranhado de cenas independentes abarcam sentimentos contraditórios. Vão do lírico ao engraçado, do sexual ao infantil. Tudo sem muitas amarras ou explicações. É assim porque é assim. Simples.
Não bastasse tudo isso, o filme tem um visual seco, visceral, desagradável, inóspito mesmo. Como já disse, sem concessões. E é justamente disso tudo que nasce uma coisa muito mais poderosa que qualquer requinte visual. Algo que está mais nos olhos de quem vê, do que em qualquer outro lugar. É um filme pobre. Sim. Mas rico também. É dessa contradição aparente e não mascarada que a obra se garante. Navarro faz um filme pessoal. Sem, no entanto, ser hermético. A obra é. Está lá. Não é um filme difícil. Pelo contrário. É quase infantil. Como já disse também. É nostálgico como lembrar de algo que nunca vivemos. É melancólico como estar com saudade de algo que nunca aconteceu. Que talvez só vivemos no plano da ficção. Nas histórias do nosso rico folclore. Nos contos de fada ou de carochinha contada por nossa avó real, ou a do “Sitio do Pica-pau Amarelo”.
Dear Zachary: Um Caso Chocante
4.4 251CARALHO! Que porrada! Acabei de assistir o documentário "Dear Zachary: A Letter To A Son About His Father" e estou totalmente atordoado. Impressionante. Belo. Doloroso. Revoltante. Encantador. Tudo ao mesmo tempo. Não quero e nem posso dizer do que se trata. Mas digo apenas uma coisa: Assistam. Mas não procurem maiores informações. Apenas assistam. É incrível e chocante. Chorei. Chorei. Chorei. Umas das coisas mais tristes e comoventes que já assisti.
A Teta Assustada
3.7 171"A TETA ASSUSTADA", da diretora peruana Claudia Llosa fala sobre o medo. De ser. De tentar ser. De ousar ser. O quê? Há sempre uma não resposta. Mas, se faz necessário o mergulho. E assim somos apresentados à protagonista do longa. Mergulhamos em sua dor, em seu desamparo. Em seu acalanto dolorido. Magaly Solier vive Fausta (meio Antígona, meio Macabéa) com um minimalismo absurdo. Seu rosto e olhar dizem tudo com muito pouco. Um trabalho assombroso que merece ser visto.
Filho Terno - O Projeto Frankenstein
3.1 16"Szelíd teremtés - A Frankenstein-terv" ("FILHO TERNO - O Projeto Frankenstein") do diretor húngaro Kornél Mundruczó é um filme é sobre ausências. Sobre a falta de. E a necessidade de se inventar algo. Uma atualização contemporânea (e poderosa) do tão famoso mito de Frankenstein. Mas esqueça o livro. É um filme feito de um material bruto e aparentemente inacabado (propositalmente inacabado), mas a sutileza estética embevece tudo numa melancolia e tristeza profunda.
Para Roma Com Amor
3.4 1,3K Assista Agora"PARA ROMA, COM AMOR" do Woody Allen é sensacional. Allen faz uma crítica ácida à tudo e todos. Não deixando pedra sobre pedra, o filme é extremamente irônico, engraçado e encharcado de alguma melancolia daquilo que se perdeu, e que nunca poderá ser diferente. As situações e personagens são nonsense e a graça e crítica residem nessa caricaturização dos desejos e pulsões de nossa sociedade. Allen em melhor forma.
Mãe e Filho
3.9 38TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Que belo filme é “Mãe e Filho” de Alexandre Sokurov.
Um filme onde se é necessário estar distraído para que as coisas aconteçam...
“Mãe e Filho” conta uma história muito simples, uma mãe está doente e um filho cuida dela.
Essa é a história, no entanto nas mãos de Sokurov o enredo ganha contornos outros.
Centrado o tempo todo na relação dos dois, o filme tem um forte poder de transe no espectador, parece que não acompanhamos meramente um filme, mas, sim, que vivenciamos junto com o filho aquele jornada, parece que nos tornamos a mãe dele.
O filho leva a mãe para passear, conta histórias, lê cartões postais antigos e trocam confidências de quando ele era apenas uma criança e ela uma mãe que temia perdê-lo.
É um filme lento, feito de silêncios, de pequenos gestos, de paisagens bucólicas, tristemente belas e sublimes...
Quando o filho leva a mãe para um passeio acompanhamos todo aquele percurso, atentos não pelo racional, mas por algum outro sentimento, talvez o de empatia, ou de felicidade, ou de tristeza... sei lá... é o mesmo sentimento que o filho nutre pela mãe, não tem como classificar, apenas é.
Sokurov domina perfeitamente toda a questão envolvida no ato de filmar, sabe que fazer cinema não é apenas retratar, mas, transcender e isso ele faz o tempo todo.
Suas imagens transpiram vida e melancolia, encharcados de uma nostalgia e lirismo sem fim... o barulho do vento, o desenho que o vento faz nos trigais, os pássaros “cantando” ao fundo, o homem que passa ao longe pela janela... tudo contribui para que o espectador embarque nessa fábula atemporal de Sokurov.
O ator Alexei Ananishnov que interpreta o filho consegue transmitir tanta coisa através de um olhar, de um meio sorriso, de um leve toque de mãos e atriz Gudrun Geyer que faz a mãe atua com um imenso domínio da presença e magnetismo que exerce no filho.
Sokurov não cai no erro de contar ao espectador como as coisas aconteceram para que tudo degringolasse naquela situação. Ele apenas pede a aquiescência do espectador à sua história simples e recompensa àqueles que embarcam em sua história com seqüências maravilhosas, verdadeiro quadros vivos e metafóricos e belos.
Ao falar sobre morte, Sokurov fez um dos mais contundentes libelos da vida.
O diretor esfrega na nossa cara nossa própria mortandade, nossa falibilidade perante a vida.
A seqüência final do passeio solitário do filho pelos arredores, enquanto a mãe descansa na casa é tão tocante, que não vou me atrever a descrevê-la, pois seria reduzi-la.
Digo apenas que Sokurov atinge em imagem a própria noção de vida e morte.
Onde as palavras faltam, as imagens falam por si e se redimensionam por si mesmas.
A morte ronda tudo, tudo ali está impregnado pela ausência e a própria Natureza parece triste pela morte eminente da mãe do rapaz. E a chegada da chuva, personificada pelas negras nuvens que se aproximam cai em forma de lágrimas dos olhos do filho... e talvez, também as do espectador. Ao fim da história e enfim sobra apenas o filho. Um dos filmes mais sublimes que já vi.
Buffalo '66
4.1 302 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Eu só queria que você soubesse que eu acho que você é o cara mais doce do mundo... e o mais bonito. E eu te amo.”
"Bufallo’ 66” filme de Vincent Gallo é um daqueles filmes que te faz torcer, torcer muito pelo protagonista da história.
Vincent Gallo, além de escrever, dirigir, compor a trilha sonora, ainda atua como ator principal do filme.
Portanto, podemos dizer que literalmente é um filme de Vincent Gallo.
É um filme pessoal, centrado numa história peculiar e dramática.
Vamos a ela: Um homem acaba de sair da cadeia, após ter cumprido pena por um crime que não cometeu, apenas assumiu a culpa como forma de pagamento de dívidas provenientes de uma aposta perdida.
Ele aceita a proposta, fica preso e não conta nada aos pais, inventa uma história e confia nas mãos de seu melhor amigo algumas cartas para serem entregues todo mês aos pais como forma de manutenção de sua história.
O filme começa desse ponto.
Billy está livre e com uma enorme vontade de urinar, procura inúmeros lugares e não encontra e acaba entrando numa academia de ballet, lá no banheiro é abordado por um homossexual e bate nele. Sai do banheiro sem urinar e liga para seus pais. Os pais fazer pressão para que ele vá até a casa deles e leve a esposa também. Ele diz que não pode porque ela está doente. A Mãe implora. Ele aceita. Daí, ele seqüestra uma menina da academia de dança e diz que se ela fizer o que ele mandar, tudo sairá bem. Ela consente. Ele então diz que ela terá que fingir ser sua esposa para seu pai e sua mãe. Ela consente. Chegando lá, conhecemos os pais de Billy, figuras problemáticas e derrotadas. O pai é um cantor fracassado. A mãe tem visíveis problemas de memória, é fanática pela equipe de football local, os Buffalo Bills. Além dessa tragédia familiar, ficamos sabendo que Billy nunca teve uma namorada e quer matar o cara “responsável” pela sua prisão.
Bem, esse é o enredo de “Bufallo’66”. Uma história simples, mas, que nas mãos criativas e sensíveis de Gallo, adquire contornos outros.
O filme não se apressa em apresentar os porquês de Billy ser como é (um sujeito que alterna um comportamento ora doce ora violento, que chora escondido, mas, que se faz de durão), aos poucos vamos conhecendo Billy, através das personagens que o rodeiam, principalmente seu pai e sua mãe. Figuras emblemáticas de uma infância difícil e carente. O diretor usa um recurso muito interessante para mostrar takes do passado, a tela praticamente é preenchida por uma outra pequena tela que vai crescendo, crescendo até dominar todo o espaço. E, é ali nessas cenas que Billy vai sendo construído para o espectador. É ali que entendemos os conflitos pelos quais o personagem passa ao longo do filme. Ao lado de Billy, temos sua “esposa”, uma garota que sem mais nem menos aceita tudo o que Billy lhe manda fazer. Quem é ela? Por que aceita tudo? E ainda parece gostar de estar ali, interpretando um papel para a família de Billy?
Não há resposta, ou melhor até há, porém, essas respostas vem pelas rebarbas da personalidade de Billy. O espectador vê aquilo que está preparado para ver.
É justamente ai que reside a beleza desse filme único.
Essa construção do personagem ao longo do tempo ganha tintas cada vez mais e mais pesadas. E conforme o tempo vai passando nossa empatia para com Billy vai crescendo.
Billy é um homem carente, revoltado, sensível e está disposto a se vingar do homem que o “colocou” na cadeia.
Sabemos de antemão a hora que Billy vai até o local onde o tal homem está e passamos a torcer com toda nossas forças para que ele desista da idéia e fique com a garota que se mostra completamente apaixonado por ele.
Raras vezes eu torci tanto por um personagem assim... algo próximo aconteceu quando li “A Hora da Estrela” e a filha da puta da Clarice Lispector faz Macabéa ser atropelada por um Mercedes Amarelo ao sair da cartomante que tinha lhe dito coisas excelentes.
“(Eu ainda poderia voltar atrás, em retorno aos
minutos passados e recomeçar com alegria no ponto em
que Macabéa estava de pé na calçada - mas não depende
de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a
olhasse. É que fui longe demais e já não posso mais
retroceder. Ainda bem que pelo menos não falei e nem
falarei em morte e sim apenas, um atropelamento.)”
Durante toda a meia hora final, assisti o filme nesse espírito de Rodrigo S.M (narrador de “A Hora da Estrela”. Não queria que o tempo passasse e Billy fosse lá se vingar.
Não vou contar o final, onde Gallo dá um aula de cinema e arrasa em seqüências que beiram o grotesco-violento-sublime que é ser humano, em todas suas falhas e lirismo.
Mas que é puta filme, isso é.
Atuação brilhante de Vicent Gallo, ao lado Christina Ricci, Ben Gazzara, Angelica Huston e todo o elenco e com uma trilha sonora sensacional. Além do uso extremamente criativo de diversos ângulos mostrados pela câmera ao longo filme, tais como a estupenda cena do jantar familiar em que vemos materializado ali cada ponto de vista de cada personagem na mesa e também pela bela cena inicial em que a tela vai sendo preenchida com fragmentos da memória de Billy.
Assistam!!!
Julien Donkey-Boy
3.8 37TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
"Julien Donkey Boy" do diretor americano Harmony Korine é uma das experiências mais esquizofrênica que já tive relacionada ao cinema.
O diretor conta a história de um rapaz com visíveis problemas mentais que mora com o pai, dois irmãos (um menino e uma menina que está grávida) e a avó que assiste tudo impassível. A Mãe já morreu.
Sem contar uma história com começo, meio e fim, Harmony parece estar mais interessado em situar o espectador na mente perturbada de Julien.
Não é uma tarefa fácil, mas o diretor consegue seu intento.
Ao final do filme estamos tão ou mais perturbados que o “protagonista”.
É um filme incômodo, pestilento, sujo, porém paradoxalmente é um belo filme.
O Pai de Julien é um homem completamente autoritário e neurótico, vivido com brilhantismo pelo diretor de cinema Werner Werzog, é um homem frustrado por ver nos seus três filhos o doloroso retrato de sua “perdição”.
Alias o filme é um brilhante retrato dos “losers”, é um filme de perdedores, dos derrotados, dos “humilhados e ofendidos”, e por isso, mas não só por isso, é um filme difícil.
Sem contar necessariamente uma história o diretor retrata o caos do humano, fazendo uso de fragmentos de discursos filosóficos, religiosos, televisivos e musicais.
“Julien Donkey Boy” é um apanhado dessas referências, é um filme feito de fragmentos, de paradoxos, daquilo tudo que parece querer ficar em nossas mentes.
É um filme que contrapõe a todo o momento, o grotesco versus o sublime, o diretor mostra esses dois componentes como se quisesse dizer que é deles que brota o humano. Ele nos joga isso na cara... sem nenhum pudor e é como avós letárgicas de Julien que assistimos a tudo. Será?
Parece ser essa a provocação de Harmony, ele parece querer que deixemos seu filme, que paremos de acompanhar aquela “história”.
Para tanto, o diretor usa de imagens granuladas, defeituosas, misturadas com fotogramas em movimento, rupturas, ruídos e tudo o mais que possa afugentar os espectadores. Como eu já disse, é um filme incômodo, entretanto, um filme necessário.
A certa altura do filme, o Pai vendo um dos filhos que sonha em ser um grande lutador lutando contra um cesto de lixo, ele o interrompe dizendo: “Você deveria ser um vencedor. Não há nenhum vencedor na casa”. É o mesmo filho que antes o Pai tinha feito à proposta para que ele vestisse as roupas da mãe já morta, sob a alegação de que ele era o mais parecido com a falecida. O Filho recusa. O pai lhe oferece dez dólares. O filho novamente recusa.
A filha está grávida e não se sabe quem é o pai, ela por vezes assume o papel de mãe de Julien, mas, o afeto só parece brotar quando os dois se falam ao telefone.
O Pai é o retrato do perdedor, ele sabe que seu tempo já passou e quer realizar-se através dos filhos, mas, sabe que dali não vai florescer nada.
Numa das melhores cenas do filme, a família toda está jantando e Julien diz que fez um poema e gostaria de dizê-lo, o Pai autoriza, Julien começa: “Meia Noite, Caos. Eternidade, caos. Manhã, caos. Eternidade, caos. Meio-dia, caos. Eternidade, caos. Tarde, caos. Eternidade, caos” e repete exaustivamente o mesmo jogo de palavras. O Pai interrompe e diz que aquilo não é um poema, pois nem sequer rima. O filho protesta. O Pai diz que não gosta daquilo, porque aquilo é arte e que ele gosta das coisas de verdade, não da arte e cita uma cena sanguinolenta de um filme como exemplo de coisa boa e arremata dizendo “Não gosto dos artistas. Odeio seu poema”. Todos continuam jantando, menos Julien.
Julien é interpretado com maestria pelo ator Ewen Bremner, é um daqueles trabalhos que você fica boquiaberto com o talento do ator. Durante o filme, cheguei a pensar que o ator que o interpretava era realmente um doente mental, tamanho o realismo impregnado por Ewen Bremmer.
Alias o filme inteiro parece ser um documentário ou então um reality show daquela família de perdedores, onde até os filhos já nascem mortos. São fetos suicidas. O bebê que segundo a mãe terá um futuro brilhante, já nasce morto. Triste metáfora para um filme todo ele difícil, todo ele metonímico.
O filme é brilhante e dolorido.
O uso repetitivo da ária “O mio babbino caro” é sintomático, na ópera de Puccini, a personagem Lauretta, que está perdidamente apaixonada por Rinuccio, pede ao pai que faça algo pelos Donati. "Por essa gente?" diz ele. "Nada! Não faço absolutamente nada!" É então que Lauretta, com sua célebre ária O mio babbino caro consegue amolecer o coração do pai. Gianni.
“Paizinho, tende piedade, tende piedade” parece ser o Mantra de Julien, só resta saber quem é o “Paizinho”? O próprio pai dele? A sociedade? Deus?
Assistam e levem um soco no estômago para ver se é bom.
“A VIDA É UM SOCO NO ESTÔMAGO” (como escreveu Clarice Lispector em A Hora da Estrela)
Os Inquilinos
3.5 67TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Quando assisti “Os Inquilinos” sai do cinema atordoado, sem rumo, extremamente desnorteado, parecendo uma barata tonta.
Bianchi tem esse poder, é um dos raros diretores brasileiros com esse poder.
O filme (segundo o próprio diretor) “é a história de uma família normal, constituída, que vê a chegada de alguns rapazes que alugaram a casa ao lado da família. Não é, na realidade, uma casa. É um espaço pequeno, um “puxado”. E o longa é mais ou menos o que essa família acha destes rapazes, que dormem ao longo do dia e fazem barulho à noite, sem uma vida regrada.”
Bianchi conta essa história do ponto de vista do casal, são eles que observam o três jovens o tempo todo à procura de alguma coisa que valide o que eles pensam do mundo.
O pai é um sujeito comum, trabalha sem carteira assinada, estuda à noite, batalha pra manter sua família unida e etc etc.
É acima de tudo a história da “queda e ascensão” (invertendo literalmente o título da peça de Brecht) desse homem que acompanhamos atentos .
Ele começa o filme como um pai dedicado, amoroso, paciente e aos poucos coagido pela presença dos três inquilinos vai se transformando em medroso, assustado e covarde.
O filme questiona o tempo todo a questão da mudança e da estagnação...(o subtítulo do filme é emblemático nesse sentido, “Os incomodados que se mudem”) .
Valter, o personagem central do filme, um grande personagem, vivido com maestria pelo ator de teatro Marat Descartes, é ele que enfrenta o dilema de agir ou não agir dentro da realidade sufocante em que está inserido, é dele a grande dúvida existencial.
Durante o filme, Valter é pressionado pela mulher, pelos filhos, pelos vizinhos, até pelo cachorro, no entanto, Valter é um estagnado, não quer sair da casa, porque foi construída por seu pai “tijolo por tijolo”, não faz nenhuma denúncia contra os jovens na polícia (com medo de represálias), enfim, ele não age. Na única cena em que tenta agir, quando vai pedir que assinem sua carteira de trabalho na firma em que trabalha, o patrão faz chantagem e ele acaba voltando atrás.
Enfim, Valter é um subserviente nato, sua covardia acuada, seu medo latente faz dele um personagem interessante e com grande poder de atração, já que "Um dos erros do povo brasileiro é essa eterna subserviência" segundo o próprio diretor.
Sim, somos quase todos subservientes, é um engodo o slogan”sou brasileiro e não desisto nunca”, é falso isso. Nós, os seres “brasileiros” somos falsamente alegres, falsamente libertários, somos um povo desarticulado politica e culturalmente, somos pra estrangeiro ver.
Valter é nosso alter-ego em sua brasilidade tão comovente, tão passiva, tão nossa.
Como não entender sua angústia, sua impotência diante dos vizinhos mais fortes, mais jovens, mais bonitos e por que não até mesmo mais felizes em sua sede de vida tão afoita e fugaz.
Bianchi constroí sua teia em conluio com o público, lentamente, sem pressa e galgado basicamente na iminente tensão de que algo muito ruim está sempre perto de acontecer.
O diretor se mostra habilidoso nesse tipo de jogo em que pede ao público sua aquiescência total durante toda a projeção, brincando de um jogo de mostra/não mostra.
Bianchi bebe nas fontes do grande dramaturgo alemão Bretolt Brecht para revelar ao Brasil seu próprio retrato de Brasil, uma triste e dolorosa radiografia.
O diretor já havia feito isso em outros filmes seu como “Cronicamente inviável” e “Quanto vale ou é por quilo?”. A crítica especializada diz que esse novo filme do diretor é diferente dos anteriores, e por isso mesmo, melhor que os outros.
Eu discordo veementemente, Bianchi está mais Bianchi do que nunca, apenas teve seu foco de atenção desviado para uma outra classe social, desta vez, deixou a elite e suas afrontas para trás e centrou fogo no conflito entre a classe média baixa e a violência das grandes cidades.
Vem dessa mudança de foco, a transição do diretor de uma linguagem e encenação mais caricata para uma outra mais naturalista e sem afetação.
Bianchi opta por filmar a classe média com mais humanidade do que os personagens ricos de outros filmes e extrai com essa alteração um filme menos polêmico, mas, mais contundente e interessante.
Um das cenas mais controversas da película é a que acompanhamos o apresentador de tv Datena em seu programa “Brasil Urgente” mostrando um crime de estupro contra uma menina de 8 anos de idade. Na cena os personagens assistem o tal apresentador vociferando barbaridades que só Datena é capaz de berrar, é uma cena chocante em sua poderosa crítica.
É uma aula do efeito desfamilirização brechtiana... sabemos quem é aquele apresentador, sabemos o que é aquele programa e sabemos do crime que ele fala no programa, porém há algo ali estranho, há algo de errado... que não sabemos direito o que é.
Logo mais pra frente, talvez Bianchi explique o estranho da cena, acompanhamos um grupo de meninas de mais ou menos 8 anos de idade rebolando ao som de “A dança da Bundinha” do grupo Tchakabum, a dança insinuante e extremamente sexual atiça a libido do senhor idoso e desperta um sentimento de impotência no pai.
Brincando também com realidade e ficção constroí uma trama de poderosa tensão cujas cenas mais controversas são o sorriso da mulher ao ver o marido invadir a casa dos vizinhos e a cena em que Valter delira (?) que sua filha está tendo um caso com um dos vizinhos.
Em contraponto à essa tensão, Bianchi nos entrega uma cena na sala de aula que beira o sublime. A Professora interpretada por Cássia Kiss lê para os alunos o poema “A Morte do Leiteiro” de Carlos Drummond de Andrade. A cena doí porque vemos uma pessoa (a professora) tentando despertar algum senso crítico naqueles alunos da realidade que os cerca.
Um pouco de poesia naquele ambiente tão inóspito, tão sufocante, no entanto, logo depois da poesia tiros são ouvidos do lado de fora da escola, a professora apenas diz que os alunos que não quiserem sair pra o recreio podem ficar na sala de aula. Alguns alunos saem, outros ficam, um dos alunos oferece à professora uma coisa num saco pardo, a professora pega, vemos então que era uma bala de coco, a professora morde um pedaço, oferece aos demais alunos, corta pra outra cena.
É essa o cinema de Bianchi, é a tradução perfeita do filme.
Além de tudo isso que falei aqui, o filme ainda tem um trilha perfeita, excelentes atuações de Marat Descartes e Ana Carbatti e de todo o elenco também, sem exceções e a direção sensacional de Sérgio Bianchi.
Nota mil.
Confissões
4.2 855Que filme é esse? Estou de cara. "CONFISSÕES" do diretor Tetsuya Nakashima é Genial. Maquiavélico. Sangrento. Frio. Diabólico. Psicológico. Poderoso. O roteiro é uma coisa admirável. E a trilha sonora contraditória provoca o espectador o tempo todo. Estou ainda sem muita reação. Mas de uma coisa eu tenho certeza: É o melhor filme de vingança que já vi. Ah, esses japoneses!!!!
A primeira parte do filme se passa inteiramente numa sala de aula. Uma professora tenta conversar com seus alunos. A esmagadora maioria nem dá bola para o que ela fala. Pouco a pouco, a tensão aumenta. O relato da professora vai interessando os alunos. De repente, toda a classe está em silêncio e a professora, enfim, acaba seu relato. Ela está se despedindo. Aquela é sua última aula. O motivo: A dor da perda de sua filha. A menina afogou-se na piscina do colégio. Não. Ela foi assassinada. E a professora sabe quem são os culpados. E a professora quer vingança. Mas não só isso.
O enredo nos é apresentado de maneira elíptica. Camadas e mais camadas são justapostas na frente do espectador. As tais “confissões” se complementam, se repelem, se contradizem... Tudo ao mesmo tempo. Em quem acreditar? Ou melhor, no que acreditar? Razão e Culpa caminham juntas e de mãos dadas. A obra “Crime e Castigo” do Dostoievski é evocada.
"...E para falar a verdade, se fôssemos analisar as pessoas em todos os seus aspectos, não creio que sobraria depois muita gente boa."
A frase de Raskólnikov é elevada à nona potência. Sim. Em “Confissões”, após a tal análise não sobra praticamente ninguém “bom”. Como já disse, a razão e a culpa são irmãs. Todos os personagens possuem justificativas para os seus atos. Todo mundo tem razão e ao mesmo tempo, não. A contradição é a palavra de ordem e “ganha” quem for mais ardiloso em seus argumentos.
“Meu senhor, meu senhor, todas as pessoas precisam ter ao menos um lugar onde sintam pena dela.”
A baixa auto-estima, a necessidade de impingir comiseração nos outros, a solidão, o abandono está no foco central da obra. A vida parece não valer a pena e então se faz necessário “criar” um mundo “novo” onde o EU seja o personagem principal desta nova história. Ilusão. Ledo Engano. Nada disso funcionará. O Vazio engole aqueles personagens. Seres erráticos, encurralados em seus egos inflados e machucados, sem nem mesmo ter para onde ir. O que resta, então?
Eis que chegamos ao ponto crucial do enredo: a necessidade de ser alguém, de ser reconhecido, de aparecer.
Guy Debord em seu livro “A Sociedade do Espetáculo” dá a chave para um entendimento mais profundo:
”O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.”
BINGO!
Essa é a mensagem que aqueles adolescentes (e não só os dois assassinos) buscam descontroladamente: eles querem ser alguém. A pressão social para que sejam bem-sucedidos deforma todo e qualquer senso ou equilíbrio. Não. Não há tempo hábil para formular qualquer pensamento contrário ao bombardeio diário dos comerciais, dos cursinhos, da família, etc, etc, etc ... O mundo tem não sei quantos bilhões de pessoas e todos eles querem o meu lugar. Todos eles são meus inimigos. Eu preciso derrotá-los. Não importa a que preço. E o preço é sempre alto demais. O fato é que assim como Macabéa de Clarice Lispector somos um bando de “incompetentes para a vida”. Quem dera se pudéssemos gritar: “o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim”. Talvez existisse ai uma possibilidade de salvação. Mas não. Não gritamos. Pelo contrário. Calamos. E vamos tentando sobreviver. Tentando subir. Cravando as unhas, pisando em quem quer que seja. Mas sempre pisando primeiro em nós mesmos. Em nossa humanidade. Possíveis Esperanças. Amor guardado.
“Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.”
Não. Não temos direito ao grito. E se não grito, preciso me expressar de alguma outra maneira, não é? E então (BINGO!) eis que nos defrontamos com a sociedade espetacularizada. E nunca esquecer que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizadas por imagens”.
E é aqui que o ciclo encontra seu quase-fim, ou melhor, sua própria finalidade. Os tempos atuais são fartos em produzir imagens e ou material para esse espetáculo. Blogs, redes sociais, celulares, tablet’s, computadores são os abrigos ideais para esse tipo de comportamento.
A necessidade de ser. (O quê?)
De aparecer. (Por quê?)
Não importa. E na verdade, talvez nem se precise (de fato) que a justificativa exista. Basta que seja. Basta que apareça. Impossível não lembrar do livro de Lionel Shriver, o belíssimo e dolorido “Precisamos falar sobre o Kevin”.
“Está bem, é o seguinte: “Você acorda de manhã, assiste à TV e entra no carro e escuta o rádio. Vai para o seu empreguinho ou para sua escolinha, mas não vai ouvir falar disso no noticiário das seis, porque, adivinhe: Não há mesmo nada acontecendo. Você lê o jornal, ou então, quando é ligado nesse tipo de coisa, lê um livro, que dá na mesma que ficar assistindo, só que é mais chato. Você assiste à televisão toda noite, ou então sai para assistir um filme e pode ser que receba um telefonema e possa contar aos seus amigos o que viu. E save, a coisa ta tão ruim que eu comecei a notar que as pessoas na TV, sabe? Dentro da TV? Metade do tempo, elas estão vendo televisão. Ou então, quando você vê um romance num filme. Que é que eles fazem, senão ir ao cinema? Todas essas pessoas, o que elas estão vendo? Gente como eu.”
BINGO! Kevin e os meninos assassinos do filme “Confissões” aprendem a mais importante das lições do mundo contemporâneo: para viver nessa sociedade é preciso sustentar (não seria mais coerente a utilização da palavra “inventar”?) a própria história.
O “Mal” fascina e justamente por isso, relegamo-no ao campo da ficção, mas eis que ele surge cada vez mais avassalador.
Sim. Habitamos um lugar totalmente feito contra nós. Sim. Habitamos uma sociedade absoluta e absurdamente líquida e espetacularizada. É lógico que a resposta a tudo isso, também será líquida e espetacular.
"O espetáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores. Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”.
Shame
3.6 2,0K Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Impressionante o que o diretor Steve McQueen nos apresenta no filme "SHAME" . Nada psicologizante, o filme é apresentado por meio de seus personagens, sobretudo por Brandon (vivido com brilhantismo por Michael Fassbender) e sua irmã Sissy (a ótima Carey Mulligan). É cinema carne-viva/latente/sangue/esperma. Esteticamente deslumbrante, com um roteiro simples e engenhoso, embevecido em pequenas elipses e um minimalismo assustador, McQueen consegue provocar/questionar o espectador mergulhando-o numa atmosfera sombria, quase um sonho (ou pesadelo) angustiante... Acompanhamos não um filme, mas a "via-crúcis" do corpo.
A primeira “via-crúcis” é vivenciada por Brandon, homem que optou pela solidão, aparentemente bem-sucedido, tem um bom emprego, um apartamento legal, veste-se bem, é bonito, charmoso e tem bom papo. Mas nada disso é dito no filme, tudo é mostrado. O personagem age e é assim que o conhecemos. As primeiras cenas são dedicadas a mostrar Brando existindo. Em quase todas, há um componente em comum: Brandon é fascinado por sexo. Seja no trabalho, em casa, no metrô, ele sempre está pensando ou fazendo isso. Tudo vai bem até que...
... A segunda “via-crúcis” entra em cena. Ela é Sissy, irmã de Brandon. Ela nos é apresentada primeiro por inúmeros telefonemas que ela faz para a casa do irmão sem sucesso. Ele nunca atende as ligações e chega a se irritar com a insistência dela. Até que...
... Ela aparece do nada na casa dele. Sim. Ela tinha as chaves. A primeira cena de Sissy é especialmente bem orquestrada. Ela aparece de maneira sinuosa, pelo espelho, completamente nua e dizendo que vai precisar passar um dia ali, pois tem um show na cidade e brigou com o namorado. Sissy cantará num bar chique da cidade. Brandon não gosta muito de ter alguém perturbando seu sossego, mas acaba cedendo. E é aqui que o inferno de ambos começa.
A presença física da irmã faz com que Brandon tenha uma dificuldade de ser quem ele realmente é. Seus atos precisam ser pensados, para que sua compulsão ao sexo não acabe aparecendo. Mas tudo em seu apartamento é uma denuncia disso. Revistas pornográficas, sites de sexo no computador, punheta no banheiro. A solidão que até então acobertava o comportamento de Brandon é colocada em xeque.
Sua irmã nos é apresentada como uma cantora extremamente sensível (sua versão do clássico “New York, New York” é arrepiante, a cena mais linda de todo o filme) e uma pessoa totalmente carente de afeto. Brandon e Sissy são seres errantes, erráticos, tortos. Mas a direção não perde tempo em tentar explica-los. Não. Aqueles dois personagens existem. São palpáveis. E parecidos. A solidão é a mesma. Mas a maneira de encará-la é diferente. O que terá acontecido com esses dois? Quem são os pais deles? Como eles são? E a infância? E o latente componente sexual que há entre ambos? De onde surgiu? Nada disso é explicitado. Mas, está ali. Quem tiver olhos, que veja.
Nova Iorque é um personagem importantíssimo na trama. Ela parece inspirar certa dose de melancolia e desespero genuíno naqueles personagens, sobretudo em Brandon, que vive ali há mais tempo. Sim. A cidade nunca dorme. Brandon parece nunca estar completamente descansado. Sempre está alerta. À procura de algo ou alguém.
Daí que “Shame” é um filme sobre o vazio. A ausência. O nada. E a não aceitação disso. “Shame” é um filme sobre os caminhos encontrados por esses dois personagens para lidar com angústia e no contexto mostrado, só é possível alcançar esse “alento” através da fuga desesperada de qualquer contato mais profundo com o outro e o desenvolvimento de um comportamento onde se busca o excesso em algo, ou bebida, drogas, sexo ou até mesmo a própria criminalidade e a arte.
Sissy desperta em Brandon sentimentos contraditórios, ao mesmo tempo em que se vê que ele a ama, ele também a repele e humilha. Sissy representa a mulher. O alvo preferencial de Brandon em suas investidas sexuais. Ela é a personificação de todas as mulheres que ele deseja. Ao conhecer o chefe dele, Sissy transa com ele na mesma noite, comportamento exatamente igual às mulheres que o irmão conhece. Sissy de certa forma aguça um sentimento de culpa em Brandon. Algo que sempre esteve ali, mas escondido, latente, que agora explode de maneira avassaladora.
O pensador francês Jean Baudrillard em seu livro “A Transparência do Mal” diz que atualmente vivemos num estado de pós-orgia, aquele momento explosivo da modernidade em que tudo parece permitido, e arremata com a pergunta “O QUE FAZER APÓS A ORGIA?”
Brandon e Sissy vivem nesse mundo e encontram como possível resposta ao questionamento de Baudrillard uma simulação da orgia, um fingimento, onde só é possível repetir todas as cenas, porque tudo já foi feito e deixado para trás. As cenas iniciais de “Shame” são exatamente assim. Repetição. Repetição de um mesmo comportamento obsessivo. Repetição de um padrão que até então dava certo. “Quando tudo é sexual, nada mais é sexual, e o sexo perde toda a sua determinação” (Baudrillard). Brandon lá pelas tantas, parece chegar a essa conclusão. Mas será que ainda há tempo? O desejo de punição, como um expurgo disso tudo, é trilhado. Mas antes o excesso, e se já não há o confronto com outro, defronta-se consigo mesmo. A descida rumo ao Inferno é trilhada por ambos os irmãos. Nem mesmo a tentativa desesperada de afeto parece resolver. A conversa que começa lírica e bela, acaba tenebrosa, violenta e acusatória. Parece termos chegado ao fim. “Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo.” Brando e Sissy parecem fadados ao fracasso, à solidão e à irreconciliação.
“O pior é a compreensão, que é só uma função sentimental e inútil. O verdadeiro conhecimento é o daquilo que nunca compreenderemos nos outros” (Baudrillard).
Talvez Brandon e Sissy aprendam essa lição... Sim. Talvez!
Cópia Fiel
3.9 452 Assista AgoraPrimeiro filme longe de seu país de origem, Abbas Kiarostami mostra com "Cópia Fiel" que ele tem um tema e que o persegue em quase toda sua filmografia. Daí que não podemos esquecer que tudo aquilo é um jogo, onde papéis se invertem o tempo todo. Enfim, tudo é apenas encenação o tempo todo. Kiarostami provoca aqueles que ainda acreditam nessas coisas velhas e rançosas chamadas "personagem", "história", "começo, meio e fim". Esqueça tudo isso. O diretor iraniano tem compromisso apenas com o agora. Não há Ágon. Há apenas dois seres brincando de ser. No fundo, isso é a essência de toda a humanidade e da arte, não?
Dente Canino
3.8 1,2KTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira. Então, o amor e o ódio teriam de nascer entre nós”.
Nelson Rodrigues escreveu em 1945 a tragédia em três atos “Álbum de Família”, peça em que personagens atemporais utilizam-se da supressão de qualquer possibilidade de realidade exterior para mostrar o que há de mais abjeto e louco nesse ideal chamado família.
Nelson não poupa nada nem ninguém. Sua metralhadora cheia de mágoas está apontada para todos os lados. De certa forma, o filme "Kynodontas" (“Dente Canino”) do diretor grego Giorgos Lanthimos também tem esse mesmo intuito.
O enredo de "Kynodontas" é extremamente simples e num primeiro momento pode ate soar lírico ou até mesmo parecer com um conto de fadas qualquer. Um aviso: Não se enganem.
O filme conta a história de uma família composta por pai, mãe e três filhos (um homem e duas mulheres) que vive completamente isolada da sociedade. Não sabemos exatamente os motivos. Mas o fato é que excetuando a figura do pai que sai todos os dias para trabalhar, ninguém daquela família parece ter saído daquela casa. Muros Altos e o fato dela ser localizada fora da cidade garantem a privacidade necessária. O filme não perde tempo em explicações. Quando começa, ouvimos um gravador informando as novas palavras do dia. O estranhamento já está presente desde essa primeira cena, pois as palavras proferidas pela voz do gravador possuem um significado totalmente diferente daquele que conhecemos. Os irmãos ouvem atentos numa espécie de pequeno ritual diário. Em seguida, a irmã mais jovem propõe um jogo de resistência; quem consegue ficar mais tempo com o dedo na água quente ganha. Mas o quê? Corte de cena.
Próxima. Uma mulher de olhos vendados é conduzida por um carro dirigido por um homem que ainda não sabemos quem é. Ele é o pai e está levando uma mulher para que seu filho pratique sexo com ela. O filho se exercita. A mulher chega. Eles tiram a roupa. Transam. Tudo mecanicamente. O filme utiliza-se de uma interpretação bastante controversa. Ao mesmo tempo em que é absurdamente naturalista, é também mecanizada, robótica. Tudo parece ser anódino, sem vida, ensaiado. E literalmente é. Aos poucos e sem nenhum didatismo, o filme vai se impondo ao espectador. Sim. Aquele homem (O Pai) trancafiou seus filhos numa casa e não permite que eles saiam dali. O método utilizado por ele é, sobretudo, um terrorismo sutil disfarçado de boa educação. Seus filhos são figuras ingênuas e infantilizadas que acreditam em qualquer bobagem contada pelo pai. A mãe é uma figura omissa, que não tem apresenta nenhuma capacidade de reagir àquilo tudo. E eles vão vivendo assim... Até que pequenas interferências começam a assombrar aquela casa. A mulher trazida pelo pai para transar com o filho introduz alterações circunstanciais ao enredo e o pai terá cada vez mais dificuldades para evitar que seus filhos tenham qualquer contato com o mundo exterior. O enredo basicamente é isso, mas a maneira com que Lanthimos filma aqueles meros corpos é o mais genial aqui. Sua câmera parada (à la Michael Haneke) provoca inquietação e desespero em que assiste. O filme lentamente se transforma num terror contemporâneo que lembra em alguns momentos o filme “A Vila” do diretor M. Night Shyamalan. Estão tanto lá quanto cá; a mentira, a dominação através do terrorismo psicológico, a tentativa de criação de um universo paralelo em que seja possível se esconder do “mal” e a crítica ao protecionismo familiar. O filme “O Enigma de Kaspar Hauser” é outro que guarda semelhanças com "Kynodontas", só que por razões mais sociológicas. Werner Herzog nesse filme de 1974 nos apresenta um personagem criado numa espécie de caverna longe de qualquer contato com a humanidade (excetuando alguém que vem diariamente lhe trazer comida). Um belo dia, esse homem é trazido até a cidade e tem inicio sua saga de conhecimento das coisas fora da caverna.
Falando nisso, o Mito da Caverna de Platão é uma inspiração de todos os filmes citados acima e não poderia ser diferente com "Kynodontas"
“Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
(...) Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?“
"Kynodontas" é exatamente isso. Só que é mostrado de maneira fragmentada e muito mais cruel. Quais são as motivações para o pai fazer o que faz? Por que a mãe é omissa nessa história? As crianças já nasceram naquele lugar? Ou foram trazidas para lá? Teriam elas alguma lembrança do mundo de fora dos muros de casa? São perguntas sem respostas que perturbam ainda mais o espectador. Diante de uma sociedade doente aquele pai teria o direito de enclausurar seus filhos e impossibilitá-los de qualquer conexão com o mundo?
Novamente pergunta sem resposta. Podemos até classificar a situação toda de nefasta, mas a motivação do Pai parece ser bem intencionada. E esse é a provocação do diretor.
Daí que "Kynodontas" apresenta seu melhor desempenho quando questiona o modo como nos organizamos como sociedade atualmente. Sim. Porque cada vez mais famílias optam por morar em condomínios fechados distantes da cidade em busca de tranqüilidade e segurança. Qual o preço dessa opção? Altíssimo, respondo eu.
“A incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam e reforçam: quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera.”
Sim. Esse é o mundo que vivemos. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman em seu livro “Modernidade Líquida” nos defronta com a própria criação e conseqüente resultado desse comportamento, onde qualquer possibilidade de alteridade é riscada sob o jugo de ser extremamente perigosas. Sim. O Pai do filme tenta desesperadamente livrar sua família de um mundo doente, mas acaba engendrado-os num novo mundo ainda mais doentio e nefando. Para aquele Pai (e não só ele) o outro estranho só traz consigo coação, mal estar e sofrimento... Então pra quê continuar vivendo assim? Por que não inventar uma nova habitação possível?
Talvez porque essa nova possibilidade de habitação seja fruto da alienação e da infantilização do outro.
O filme lembra em muitos aspectos o caso da menina Natascha Kampusch que foi seqüestrada aos 10 anos de idade e passou 8 anos sendo submetida a todo tipo de violência física e ou psicológica. Aos 18 anos ela conseguiu fugir, mas nunca conseguiu de fato retomar uma vida “normal”. Vive enclausurada e sozinha e com medo de qualquer contato mais profundo com o outro. Numa entrevista esclarecedora e corajosa, ela rejeitou o rótulo de monstro que quiseram dar para o seu algoz: “Ninguém é totalmente bom ou mau”.
E quando perguntada sobre os seus sentimentos para com o homem que a seqüestrou, ela disse: “Aproximar-se do sequestrador não é uma doença. Criar um casulo de normalidade no âmbito de um crime não é uma síndrome. É justamente o oposto. É uma estratégia de sobrevivência em uma situação sem saída”.
A Filha Mais Velha do filme numa decisão quase suicida tentará fugir daquele “paraíso” criado pelo pai e conhecer o que o mundo lá fora lhe reserva.
“- Quando um filho está pronto para deixar sua casa...?
- Quando cai seu canino direito, ou, o esquerdo, tanto faz.
- Nesse momento, o corpo está pronto para enfrentar todos os perigos.
- Para deixar a casa a salvo se deve usar o carro.
- Quando se pode aprender a dirigir?
- Quando o Canino direito voltar a crescer, ou, o esquerdo, tanto faz.”
A cena chave de todo o filme é esse diálogo travado entre o Pai e seus filhos, é essa possível “solução” que dará condição psicológica para a Filha Mais Velha tomar a decisão de romper com o cordão umbilical tardio que a liga aquela casa.
O mais impressionante de todo o filme é a maneira lúcida com o que o diretor coloca nossos conceitos mais profundos em xeque e como através disso, fica provado, que somos seres culturais e nosso comportamento nada mais é que uma resposta aos estímulos que recebemos... A atitude do pai embora exacerbada encontra eco no modus vivendi dos atuais proprietários de casas em condomínios fechados onde as únicas coisas que unem os vizinhos são o dinheiro e o medo.
Baudrillard no livro “A Transparência do Mal” escreve que o princípio do Mal não é moral, mas um princípio de complexidade, estranheza, sedução e, sobretudo, um principio vital de desligação.
“Desde o paraíso, ao qual seu acontecimento pôs fim, é o princípio do conhecimento. Já que fomos expulsos por delito do conhecimento, vamos ao menos retirar disso todos os benefícios.”
Sim. Na teoria de Baudrillard, o conhecimento é o Mal e toda a negação da alteridade é um processo autodestruidor. É exatamente o que acontece no filme. Ao negar a possibilidade do conhecimento do “Mal”, o pai acaba criando algo mais monstruoso que o próprio mal em si.
“Já não é o inferno dos outros, é o inferno do Mesmo”.
Final de Semana
3.9 518 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
“Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a vida te lavrar a cara, antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer alma, sabia? Quer que eu diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer. Será que ainda consigo, como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.”
O filme “Weekend” do diretor Andrew Haigh poderia muito facilmente ter como prólogo esse texto do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu. Sim. Assim como em “A Dama da Noite”, conto de onde esse trecho foi retirado, o filme narra o encontro fortuito de duas pessoas num bar. No conto de Caio, uma mulher mais velha e um garoto. Em “Weekend”, um homem e um outro homem. Dito assim, parece que a possibilidade de que aja algo de singular entre eles seja difícil, mas não. Aqui, o diretor muito sabiamente não condiciona os personagens homoafetivos em meros arremedos e ou caricaturas que vemos na maioria dos filmes do gênero. Muito pelo contrário. O nome “Weekend” não poderia ser mais apropriado. Traduz perfeitamente a ideia central do roteiro. Russell nos é apresentado como alguém que parece nunca se sentir bem onde está. Seu olhar e seu corpo traduzem uma espécie de tristeza latente. Ele é gay. Mas pouquíssimas pessoas sabem. No começo do filme, ele está numa comemoração numa casa de amigos. Sim. Todos são heteros. Menos ele. Não que aja algum tipo de preconceito contra ele. Não. Isso não acontece. Mas ele é diferente e sabe disso. Seu incomodo ele guarda consigo mesmo. Não divide com ninguém. Ao sair da festinha, ele decide passar numa balada gay e lá se interessa por um carinha. Corte de cena. Dia seguinte. Russel está fazendo café e segura duas xícaras: é a dica que precisávamos para sacar que ele está com o tal carinha. Dito e feito. Sim. Eles transaram. E papo vai, papo vem, o tal carinha pede que Russel grave um depoimento falando de como foi a noite entre eles. O tal carinha é Glen e ele possui pretensões artísticas que só saberemos mais tarde... Russel num primeiro momento sente-se incomodado com o pedido, mas diante da insistência do outro, acaba cedendo. Pouco a pouco, a intimidade entre ambos cresce, eles trocam telefonemas e marcam de se encontrar mais tarde. O que poderia apenas ser uma ficada de fim de semana, ganha contornos outros. Sutilmente o filme mostra o desabrochar do afeto que vai surgindo entre eles e consequentemente a nossa tomada de posição como espectador acontece exatamente nesse ponto.
A primeira parte do filme é propositalmente frívola, como é a maioria dos relacionamentos nascidos de uma mera ficada de fim de semana. No entanto, quando a intimidade entre eles cresce, o filme cresce junto também. E é especialmente prazeroso acompanhar a maneira inteligente e sensível com que o diretor oferece a guinada ao público.
“Weekend” é um filme simples, alicerçado basicamente na força de um bom roteiro e no trabalho sincero dos dois atores protagonistas. Sem arroubos melodramáticos (“Isso aqui não é nosso Notting Hill”), o diretor concebe um filme atualíssimo.
Russel é um homem bastante introvertido, enquanto que Glen é seu oposto, mas por incrível que pareça, quem se abre mais para o outro é Russel. Seu desejo de compartilhar sua vida com alguém é comovente. Glen não curte esses papos. Acho isso tudo bobo e heteronormativo. Glen quer construir uma possibilidade de história nova. Ele quer algo que talvez não exista. Ele é um artista. Ou está tentando ser. Daí que o diálogo entre essas duas pessoas (duas visões de mundo) é tenso e dilacerante. Também nós estamos nesse barco. Eu, você e todos nós. Sim.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman esmiúça como poucos a fragilidade dos laços humanos contemporâneos no livro “Amor Líquido”; estamos numa encruzilhada, numa passagem de um estado para o outro. Bauman explica que passamos do estado sólido para o líquido, e essa mudança altera não só o modo com que nos relacionamos com o outro, como também aspectos políticos, econômicos e sociais. Temos ao mesmo tempo que lidar com nosso desejo de segurança e nossa necessidade de independência e ou liberdade. Russel personifica o primeiro item, já Glen o segundo. Russel está desesperado por um relacionamento, Glen não. Ele quer “curtir”. Fracasso à vista, não? Lógico que sim. Não que Glen não sinta algo por Russel. Não é isso. Ele apenas não quer repetir um padrão que já provou ser fadado ao malogro. Como resolver o impasse? Há uma saída? E acima de tudo, quais são os riscos de escolher entre uma coisa ou outra? O livro de Bauman é todo ele dedicado a “responder” essa questão:
“O que sabemos, o que desejamos saber, o que lutamos para saber, o que devemos tentar saber sobre amor ou rejeição, estar só ou acompanhado e morrer acompanhado ou só - será que tudo isso poderia ser alinhado, ordenado, adequado aos padrões de coerência, coesão e completude estabelecidos para assuntos de menor grandeza? Talvez sim - quer dizer, na infinitude do tempo.”
O certo é que não se pode aprender a amar, nem tampouco se ensinar. O amor nos pega sempre desprevenido. Como no livro “A Fera na Selva” do Henry James. O Amor é a própria personificação da fera na selva.
“A fera estivera de fato à espreita, e , àquela altura, já havia dado o bote... “
Mas não podemos nos esquecer que os tempos são outros. Não podemos nos esquecer que estamos chafurdados até o pescoço numa cultura extremamente capitalista onde tudo parece um imenso fast-food e nada feito para durar mais que alguns instantes de prazer. Está ai o filme “Shame” que não me deixa mentir. Somos todos Brandon. Mas também somos todos Cabíria e em nossas noites procuramos algo ou alguém para amar. Coisas opostas, não? Não. Tudo intrinsecamente tão ligado. Seria isso a tal roda que Caio Fernando Abreu fala no texto “A Dama Noite”? A roda que gira com todo mundo dentro, enquanto esperamos o amor, sentados numa mesa de bar... Parados e patetas.
“Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar.(...) Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. (...) Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro.”
Sim, Caio. Um dia encontraremos. Sim. E um dia deixaremos que escorra como água por entre os nossos dedos. Sim. E tudo isso porque somos ainda apenas crianças assustadas perante aquilo que nunca entenderemos direito!
O Último dos Loucos
4.0 10O filme francês "O Último dos Loucos" do diretor Laurent Achard "conta" uma história do ponto de vista de uma menino de quase 11 anos de idade, calado e que muito raramente demonstra algum tipo de reação, na maior parte do tempo, o vemos andando sorumbático pela casa, pela rua etc.
O menino de nome Martin assiste a degradação de sua família com uma expressão enigmática, com aquela cara que não nos deixa adivinhar o que ele está pensando, nunca.
Sua família composta por avó paterna e extremamente rigída, um pai apático, uma mãe enlouquecida que não sai de seu quarto, um irmão poeta, bebâdo e homossexual e a empregada da casa, Malika, amorosa e que parece ser o único ponto lúcido naquela casa opressiva, além do pequeno Martin.
O filme possuiu silêncios poderosos e angustiantes, o diretor é habiloso em levar o espectador por caminhos desconhecidos, além de brincar com nossa expectativa em relação à história.
Laurent nos faz ficar numa ansiedade enquanto ao final, apesar de já sabermos que algo de ruim acontecerá, não sabemos como nem quanto.
O filme é uma tragédia anunciada desde seu início e isso só faz aumentar seu carater fóbico.
Sobre os atores é notável a interpretação de todos, com destaque para o ator que faz o irmão e a atriz que faz a mãe.
No entanto é em cima da atuação enigmática do pequeno Julien Cochelin que o filme é alicerçado, apesar de em grande partes da cena não oferecer reação nenhuma ao espectador, o menino nos comove na cena em que chora pela desaparecimento da amiga e quando sorri ao ouvir o irmão contar uma história.
"O Último dos Loucos" é um daqueles filmes que nos angustiam, pois, nos vemos a todo momento naqueles personagens, é como se de repente, sem saber bem porquê, possamos nos transformar neles.
Um filme duro, seco e certeiro como um soco em plena boca do estômago.
Império dos Sonhos
3.8 433TEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
David Linch não faz filmes, mas poesia.
Seus filmes são verdadeiros legados poéticos, em que "resta" ao público entrar ou não nesse universo particular.
O que Linch tem a nos comunicar é simples, muito simples, mas o que acontece é que ao lidar com essa material poético que é lúdico e onírico, o diretor transforma tudo isso num processo mental envolto no ato de sonhar, e Freud já dizia que quando penetrarmos mais a fundo nisso, tudo se transforma em escuridão.
Linch trabalha com a temática dos “sonhos” em suas mais variadas significações;
“Conjuntos de idéias e imagens mais ou menos confusas e disparatadas, que se apresentam durante o sono.
Utopia; ficção, fantasia, visão, aspiração, desejo.”
Isso Linch nos mostra claramente o tempo todo e com ele as regras do jogo são claras e definidas logo de cara.
Como já disse, ou se entra no jogo ou não.
Ele compensa quem aceita suas “brincadeiras” com um cinema extremamente autoral, contemporâneo e desafiador.
Constrói sua história junto com o público, numa mistura interessante entre narração e ação.
Primeiro acontece uma narração, a preparação para a cena, alguém conta um coisa e logo depois a vemos em imagem, numa legitima demonstração de conhecimento dos métodos artísticos do alemão Bertold Brecht.
Não há surpresas, tudo é dito antes.
O filme para mim ocorre naqueles milésimos de segundos em que a personagem da senhora conta a lenda cigana à Nikki Grace e lhe diz que se contasse a mesma história no dia seguinte ela estaria sentada no outro lado da sala e dito isto aponta um sofá, Nikki olha e tudo vem a tona.
Todos seus desejos, frustações, utopia, fantasia entram em cena, como num sonho.
Num primeiro momento tudo é muito confuso e parece que nada fará sentido, pois foi mutilado pela infidelidade da memória de quem sonhou, que como diz Freud pode ter perdido exatamente as partes mais importantes de seu conteúdo.
Nikki se perde em seus desejos, ou seria na realização de seus desejos?, onde se vê duplicada ou triplicada num universo extremamente insuportável para uma mulher atual, que se vê dividida entre dona de casa, trabalho, gravidez, amante e ainda por cima no caso de Nikki, sua profissão que consiste em “interpretar” outras pessoas e mais tendo que voltar a fazer sucesso numa Hollywood extremamente competitiva.
É claro que ninguém agüenta e extravasa isso de alguma maneira e qual maneira melhor do que sonhando?
Num sonho, as cadeias inconscientes do pensamento ativo em nossas mentes são abudantes e todas lutam por encontrar expressão e é isto que vemos nas muitas faces de Nikki; Nikki dona de casa, Nikki atriz, Nikki amante, Nikki prostituta, Nikki Mãe (grávida) etc.
O filme apesar de longo em seu tempo cronológico é extremamente curto em seu tempo onírico (dura o tempo que Nikki olha na direção do sofá apontado pela velha e se vê lá), o tempo de um sonho de um humano, variando de 10 a 30 segundos.
Neste tempo curto, Linch prova por que é o DIRETOR vivo mais interessantes entre os cineastas, constrói cenas antológicas tais como a dança das prostitutas no quarto, a cena em que Nikki se vê numa tela de cinema, todas as seqüências envolvendo os coelhos, e a melhor delas, a cena em que Nikki “morre” na Calçada da Fama, sem contar toda seqüência final do filme que beira o sublime.
Enfim, Linch é um diretor que possui uma obsessão e que parece estar sempre fazendo o mesmo filme e isso é um elogio digno dos maiores cineastas que já se atreveram a fazer cinema.
Além disso, o filme possui ótimas interpretações com destaque absoluto para Laura Dern que dá credibilidade às mais variadas Nikki’s, uma trilha muito bem escolhida, iluminação que cria os meandros da “ficção” humana muito bem e uma direção excepcional.
Caos Calmo
3.8 59“Caos Calmo” veio cheio de recomendações, visto que já tinha adorado “O Quarto do Filho” e amigo já tinha me falado maravilhas desse.
O roteiro é excelente e Nanni dá um show, sabendo conduzir as emoções do personagem muito bem, indo da comédia ao drama em poucos segundos.
Pietro (Nanni Moretti) é um executivo bem sucedido, em um casamento feliz e pai de Cláudia, uma menina de 10 anos. Após ter salvado duas mulheres que estavam se afogando na praia, ele descobre, ao chegar em casa, que sua esposa morreu repentinamente. A partir daí, sua vida muda radicalmente. É nessa mudança que o filme se centra e ganha contornos quase que de protesto.
Pietro passa grande parte de seu dia, esperando a filha na praça em frente à escola e ali ele observa a rotina da praça e começa a olhar o mundo de outra maneira, como se toda aquela paz e rotina pudessem aplicar sua solidão e dor. A praça é o grande personagem do filme, representante de uma outra forma de encarar o mundo.
É ali que ele vê o vendedor de jornais, a garota bonita que passeia com o cachorro, o dono do restaurante onde faz as refeições e numa das cenas mais bonita do filme, brinca com um menino que tem síndrome de Down.
Pietro passa a dar mais valor ao que se passa na praça do que aos negócios e pouco a pouco vai se reconstruindo até confronto final com seus medos.
Enfim, um bom filme e com uma ótima trilha, destaque para Cigarretes & Chocolate Milk do Rufus Wainwright.
Ah, o filme também tem uma cena quentíssima de sexo que deixou o Vaticano e os "Cahiers du Cinéma" chocados.
Pura hipocrisia, pois a cena é linda e tem contornos oníricos.
Noites de Cabíria
4.5 382 Assista AgoraTEM SPOILER! SE NÃO VIU O FILME, NÃO LEIA!
Qual é o poder da arte?
Estou com essa pergunta martelando minha cabeça agora e lembrei de “Noites de Cabíria” do Fellini e mais uma vez senti exatamente as mesmas sensações da primeira vez que o vi.
Ri mas partes engraçadas, da falta de jeito dela, chorei quando ela percebe que o mundo que habita é sempre dos outros e nunca dela, me angustiei quando ela é enganada e sempre deixada de lado por quase todos.
Cabíria traz em si uma pureza latente, uma ingenuidade teimosa, muitos diriam que ela é burra, mas não consigo pensar assim, vejo-a como um ser-humano ainda não corrompido, sinto que ela ainda não perdeu aquela coisa “morna e ingênua que vai ficando no caminho”.
Sua trajetória é o caminho de todos aqueles que ainda acreditam na humanidade, que ainda acreditam no amor, não essa bobagem romântica que se convencionalizou chamar de amor e não passa de cio.
Fellini é cruel nesse filme, pois nos mostra a todo momento, que o mundo é feio, cínico e habitado por pessoas aproveitadoras.
Isso é mostrado em todos os âmbitos, seja ele moral, ético ou religioso e principalmente na excelente cena em que Cabíria e sua amigas prostitutas vão a Igreja levar o homem aleijado para ser curado.
O diretor nos mostra como o comêrcio em torno de Deus e seus santos suplantam qualquer resquício de uma verdadeira religiosidade, Fellini nos mostra que o que resta é apenas manipulação e falsidade.
Não satisfeito com isso, faz com que sua protagonista fique triste pois seus pedidos não foram atendidos pela Virgem Maria, “Ninguém mudou, nada mudou, nossos pedidos não foram atendidos”, ao passo que sua amiga responde mais ou menos assim “ E você acreditou que mudaria?”.
Sim, Cabíria acreditou que mudaria.
Dias desses uma amiga me perguntou: “Você fala tanto nessa Cabíria. Você realmente se sente como ela?”
Na hora, apenas respondi que sim.
Agora, minha amiga, te responderei a verdade:
Sou Cabíria na medida que conservo sua ingenuidade perante o mundo e as pessoas.Sempre quando acabo de ser usado ou passado para trás de alguma maneira, fico pensando que nunca mais vou me deixar iludir, que encararei o mundo de outras formas, mas no instante seguinte sempre aparece para mim um pequeno grupo de jovens tocando e cantando alegremente pela floresta e eu que estava chorando e desiludido, volto a acreditar nas pessoas e conseqüentemente em mim mesmo e olho pra frente e dou um leve sorriso para o público e continuo minha caminhada.
Anos atrás, estava lendo coisas a respeito do filme e me deparei com um depoimento de Fellini sobre o filme e fiquei estupefato por ler algo tão sensível de um criador:
“E assim, para Noites de Cabiria, pensei: quero fazer um filme que conte as aventuras de uma infeliz que, a despeito de tudo, espera confusamente, ingenuamente, por melhores relações entre os homens, simplesmente melhores relações; e ao fim do filme quero lhe dizer: “Escuta, fiz você passar por todo tipo de desgraça, mas você me é tão simpática que quero compor-lhe uma pequena serenata”. E depois, sobre essa idéia talvez um pouco ingênua, imaginei uma cena. Tratava-se de uma mulher, de uma personagem infeliz que, ao fim de uma aventura ainda mais terrível que as outras, deveria perder de maneira absoluta e definitiva sua confiança na humanidade que a rodeava. E então me perguntei: por que essa personagem, num dado momento, não pode se convencer de que há alguém que lhe diz gentilmente e com simpatia: “Você tem razão”? E assim essa personagem se tornou Cabiria, e suas aventuras se tornaram aquelas de uma prostituta que vive como um pequeno camundongo num meio aterrorizante, continuamente esmagada pela realidade, mas que atravessa a vida com inocência e aquela misteriosa confiança. Ao fim do filme eu a faço encontrar um grupo exuberante de pessoas bem jovens, de uma humanidade ao limiar da vida, que gentilmente, debochando um pouco mas com candura, exprime-lhe sua gratidão cantando uma canção. Foi dessa idéia que, finalmente, nasceu todo o filme.”
Trabalhar Cansa
3.6 211"O que significa matar um homem comparado com contratá-lo para um trabalho assalariado?"
O filme “Trabalhar Cansa” expõe algo do pensamento do alemão Bertolt Brecht, mas aqui despido de todo e qualquer didatismo ou lado político. Não há mais lados. Ou melhor, até há: Eu versus Os Outros. Num sistema capitalista como o nosso esse é o pensamento dominante e quem pensa fora disso está literalmente fodido. O filme toca nesse calcanhar de Aquiles de uma maneira absolutamente diferente. Foge dos clichês do gênero e faz um dos filmes mais interessante dessa nova safra de filmes brasileiros. Esqueça a estética Globo Filmes. Não é esse o cinema praticado pela dupla Juliana Rojas, Marco Dutra e também digo que esse cinema é praticamente impossível de ser definido. É híbrido. Além. Inclassificável.
Centrado basicamente no casal Helena e Otávio, o filme é uma crítica ao modus vivendi de nossa contemporaneidade dominada por interesses capitalistas. O filme não julga, apenas mostra. Somos nós quem fazemos as possíveis conexões. Nada é entregue de mão beijada. Não há infatilização do roteiro e muito menos do espectador. O filme é todo composto de pequenas alterações na rotina familiar quando Helena decide abrir um mercado de bairro e seu marido perde o emprego. Para conciliar a nova rotina de trabalho com a criação da filha do casal, a mãe contrata um babá para ficar com a menina em tempo quase integral. A babá que vem indicada por algum conhecido não terá carteira assinada e ganhará um salário mínimo. Ela acha pouco, mas Helena argumenta que tem outras pessoas interessadas no emprego. Ela aceita. O marido agora desempregado começa a procurar um novo emprego e não consegue se adaptar aos novos métodos empregatícios, chegando até mesmo a abandonar uma patética dinâmica de grupo. Os tempos são outros. A modernidade é líquida e tudo escorre pelas mãos. A ausência de um emprego influi na dignidade daquele homem. Ele começa a perder sua função de provedor e não sabe mais como se inserir como humano na sociedade. O dinheiro é status. É ele quem define quem é quem.
Enquanto isso, Helena começa a sentir o peso da responsabilidade de ser dona de seu próprio negócio. A relação que ela estabelece com seus empregados é, num primeiro momento, amistosa. Mas com o passar dos dias e quando alguns produtos começam a sumir do estoque, ela se vê impelida a tomar algumas atitudes.
Brecht na obra “A Alma Boa de Setsuan” coloca uma situação bastante parecida. Chen-Te, uma prostitua é escolhida pelos Deuses como a única alma boa existente (ou que eles puderam achar), como prêmio, ela recebe uma quantia em dinheiro e abre uma pequena tabacaria. Aos poucos, os vizinhos começam a explorar sua bondade, tirando-lhe a possibilidade do sustento. Chen Te então decide criar uma espécie de alter-ego “ruim”, Chui Ta. É ele quem será responsável por expulsar os parasitas da tabacaria e restabelecer a ordem.
“Vocês não vão encontrar minha prima: ela sinceramente lamenta não poder pôr em prática, o tempo todo, o Mandamento da Hospitalidade. Mas vocês são demais, infelizmente! Isso aqui é uma tabacara, e é o ganha-pão da senhorita Chen Te”.
Daí que Helena pouco a pouco aprende a criar essa espécie de alter-ego. Helena demite um funcionário suspeito de ter roubado algumas coisas do mercado, e começa a vistoriar as bolsas de seus empregados antes do fim do expediente. O que era uma relação amigável torna-se rancorosa. A relação de poder é estabelecida e acaba com a possibilidade do afeto. O desemprego de seu marido afeta a relação do casal. Sem dinheiro, Otávio vira alvo fácil da agressividade repentina da mulher: “Você está com medo que sua filha te ache um bosta?”
O amor que até então se mantinha distante das relações mercadológicas acaba despido de ilusões diante da ausência de dinheiro. Amor nessa nova configuração é apenas fraqueza. Apenas mais uma mercadoria a ser descartada quando vencer o prazo de validade.
“Somos idiotas? Não! Falta-nos a brutalidade necessária? Não! (...) Os tempos andam terríveis, esta cidade é um inferno, mas assim mesmo vamos tentando subir, cravando as unhas na parede lisa... De repente, o azar dá em cima de um: começa a amar e pronto, lá se vai! É bastante um momento de fraqueza e a gente está liquidado. Mas, como se livrar de umas tantas fraquezas, e do amor que é a mais fatal de todas? Não é possível. O preço é alto demais. Diga, com toda a franqueza: a gente pode estar sempre de pé atrás? Enfim, que mundo é este?
Carícias tornam-se estrangulamentos,
Cada suspiro é um grito de pavor:
Por que esvoaçam corvos agourentos?
É alguém que vai a um encontro de amor!”
O texto acima retirado da peça de Brecht ilustra bem a situação toda. Otávio enfraquece Helena. Para se manter no “poder”, ela precisa aprender a frieza necessária.
Aos pouco e bem sutilmente, eventos estranhos começam a ocorrer no mercadinho de Helena; produtos somem misteriosamente, um fedor começa a ser sentido pelos fregueses, portas que se abrem sozinhas e assim vai. O clima de terror é sugerido de maneira inteligente, deixando sempre espaço para a dúvida. Essa violência hiper-moderna encontra eco na personalidade culpada de Helena, é ela que vivencia as situações de terror. É ela quem se defronta com o seu próprio simulacro.
“O Poder só existe por essa força simbólica de designar o Outro, o Inimigo, o desafio, a ameaça, o mal”.
Baudrillard no livro “A Transparência do Mal” escreve que tornamo-nos muito fracos em nossa energia satânica ao nos deixar irradiar de valores positivos. Sim. Vivemos numa sociedade que diz acreditar nesses tais valores positivistas, mas que na prática é apenas uma rejeição do mal em si mesmo. Esse é o aprendizado de Helena, que além de tudo, ainda se vê cada vez mais distante de sua filha e vendo-a substituir o afeto que sentia por ela agora na nova relação com a babá, que não está nem um pouco satisfeita em não ter sua carteira de trabalho assinada, de não ser alguém nessa sociedade dominada pelas relações financeiras.
Já Otávio procura nas palestras motivacionais uma possível saída para o estado de letargia em que se encontra. Sim. Precisamos cada vez mais de conselhos e conselheiros. Buscamos cada vez mais exemplos para conseguirmos viver, e é importante salientar (como define Zygmunt Bauman) a diferença entre líderes e conselheiros; líderes precisam ser seguidos, enquanto conselheiros são contratados e podem ser demitidos. Baudrillard define essa nova cultura do aconselhamento ou coaching como extremamente viciosa, pois quanto mais se procura, mais se precisa e mais se sofre. Eis o paradoxo de nossos tempos. Otávio “aprende” que o mundo é uma selva e ele precisa entrar em contato com sua porção primitiva para disputar uma vaga de emprego com os outros que estão na mesmíssima situação que ele. Quem vai ser empregado? Quem vai ser alguém? A questão permanece em aberto no filme e não nos abandona após a sessão. Muito pelo contrário. O que era para ser só um filme mostra-se um retrato fiel daquilo que fizemos de nós mesmo e nossos semelhantes. Os pequenos rituais diários agüentarão mais quanto tempo antes da explosão?