A Pele Que Habito. Abraços Partidos. Volver. Má Educação. Fale Com Ela. Tudo Sobre Minha Mãe. A Flor do Meu Segredo. Depois de dramas, melodramas e suspenses, Pedro Almodóvar, o diretor espanhol mais aclamado das últimas décadas, volta em Os Amantes Passageiros (Los Amantes Pasajeros, 2013) a um terreno que conhece muito bem: a comédia.
Mesmo tendo momentos pontuais de humor em todos os seus últimos longas, havia muito que Pedro não se entregava ao escracho e ao riso frouxo com tanta vontade. Retomando e abraçando o exagero de personagens incomuns e tramas absurdas, o diretor cria um filme mosaico que se passa num espaço diminuto, e por meio de pequenos esquetes ele faz rir e choca seu público, seja por declarações inesperadas ou por falas e imagens que beiram a escatologia, na mesma medida.
Costurando subtramas irregulares (há o pai que busca a filha que saiu de casa para ser dominatrix; o ator famoso que mente adoidado para suas mulheres; uma figura estranha e paranoica que acha que a eminente tragédia aérea é um golpe a sua vida; o piloto bissexual que é casado, pai de dois filhos e mantém um relacionamento com seu comissário de bordo; a sensitiva que por ser virgem acha que inibe os homens; o recém casal que só faz dormir; entre outros) em uma história de um voo que enfrenta problemas e não consegue aterrissar porque não tem um dos trens de pouso, Almodóvar, que como de hábito além de dirigir escreve, parece mais interessado em criar boas sequências independentes do que unificá-las em um filme.
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Michael Haneke é considerado hoje um dos melhores diretores em atividade. Seus últimos dois filmes ganharam a Palma de Ouro em Cannes e foram celebrados como grandes acontecimentos cinematográficos. A Professora de Piano, filme de 2001, é seu primeiro filme maduro em que ele abandona uma estética de violência extremamente gráfica, cheia de referencias a cultura pop e videogames e adota o ar contido, preciso e denso que lhe valeria tantos prêmios.
Isso não quer dizer que A Professora de Piano não seja um filme violento, ele é, e muito, mas se trata de uma violência interna, do corpo, mas principalmente da alma, motivada e por isso muito mais difícil de escapar do que o banho de sangue gratuito que ele apresentou em Funny Games (não por acaso traduzido no Brasil como Violência Gratuita).
O filme é uma adaptação do romance A Pianista, da ganhadora do Nobel Elfriede Jelinek e tem como protagonista Erika Kohut (Isabelle Huppert), uma professora de piano que vive com a mãe controladora e é dona de desejos sexuais obscuros. Erika não é exatamente reprimida sexualmente, mas emocionalmente, a invasão e o controle da mãe não roubam dela apenas a possibilidade de uma existência física, mas também de uma vida interior, de uma personalidade. Haneke é maravilhoso ao construir a relação entre as duas em sutilezas, como Erika dormir na cama da mãe apesar de ter seu próprio quarto, e na interpretação das atrizes, ao invés de inundar seu filme com clichês psicanalíticos e verborragia, o que muitos diretores fariam.
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Se você vai fazer um filme sobre algum assunto controverso, polêmico ou qualquer coisa nesse campo semântico, uma coisa que eu considero muito necessária é a ausência de julgamentos. E essa é uma das coisas que faz Boogie Nights – Prazer Sem Limites (Boogie Nights, 1997), do Paul Thomas Anderson, funcionar: os fatos são expostos, as pessoas são mostradas indo a extremos bons e ruins, mas ninguém é condenado por suas ações. O olhar do diretor, aliás, reconhece a humanidade e fraqueza de seus personagens e sabe mostrá-los de um modo natural, sem aquele tom irritante de quem quer catequizar o expectador ou expor algo para que a gente perceba que é feio, sujo e blábláblá.
Boogie Nights é sombriamente cômico, muito divertido e totalmente original. Atravessando o auge da era disco, de 1977 a 1984, o diretor oferece uma exploração visual deslumbrante do cenário do entretenimento adulto – ou, num português claro, da indústria pornográfica. Centrado num grupo de atores, produtores de diretores de filmes hardcore, o longa nos mostra que seus integrantes são como uma família unida. Na saúde, na doença, na alegria e na tristeza, eles estão todos ali uns para os outros. E não é só pela abordagem do tema que Boogie Nights chama a atenção, é também pela técnica de P.T.A., que demonstra segurança, paixão pela exploração de possibilidades e por uma nova maneira de se contar histórias: combinando o lado sórdido de suas personagens com o lado humanitário, Paul mostra que todo mundo é composto de valores dúbios e, por isso, os julgamentos não cabem em suas narrativas.
Em linhas gerais, Boogie Nights trata da ascensão e da queda de Eddie Adams (Mark Wahlberg), um adolescente bonito que trabalha na cozinha de uma boate em San Fernando Valley. Em casa, o ambiente que Edddie encontra não é dos melhores: seu pai é completamente passivo e submisso e sua mãe faz questão de lembrar, a todo tempo, que ele é um fracasso completo. Porém, quando Jack Horner (Burt Reynolds), um produtor pornô de sucesso, o vê na boate em que trabalha, as coisas mudam de figura, já que Jack lhe promete uma carreira promissora no ramo. Ingênuo e manipulável, Eddie, em pouco tempo, fica completamente imerso em seu novo universo que, pelo clima familiar, substitui o afeto de seus pais. E, claro, há também o estilo sedutor de vida, regado a sexo, drogas e rock’n’roll.
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Antes de começar a falar a respeito de Cinderela Baiana, preciso deixar vocês com uma reflexão: haters gonna hate. Sempre. Nada nunca será unânime e estará livre de críticas. Dito isso, a gente pode começar a falar a respeito dessa maravilha esquecida que os anos 90 (sempre eles!) nos proporcionaram.
Quando seu estrelato enquanto dançarina do É O Tchan! atingia o ápice, Carla Perez resolveu que era hora de mostrar ao mundo que era mais do que uma loira gostosa. E o modo que encontrou para fazer isso, foi lançar uma espécie de cinebiografia sua. Narrando a infância pobre no interior da Bahia – e mostrando a pobreza de determinadas regiões do estado -, as dificuldades de perder a mãe ainda na infância e as lutas enfrentadas por Carlinha e seu pai quando partem para Salvador em busca de uma vida melhor, os envolvidos em Cinderela Baiana criaram uma pérola do trash nacional. Embora alguns insistam em dizer que é horrível e não tem mérito nenhum, eu digo que não é bem por aí. Se tem uma coisa que a gente pode bater no peito e falar que diretor, roteirista e atores conseguiram fazer com louvor foi tornar o longa genuíno. Exatamente pela inocência com que tudo é feito. É como se eles não tivessem noção nenhuma do que era necessário. Só contassem mesmo com a vontade de executar o projeto.
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Assim como as tortas feitas por Jenna Hunterson, protagonista de Garçonete, tem um sabor especial, esse filme – que num primeiro contato pode parecer apenas mais uma comédia romântica água com açucar – também possui um algo a mais. Dirigido e escrito pela finada Adrienne Shelly, ele parece feito com o mesmo afeto com que a personagem principal cozinha.
Sua história gira em torno de uma garçonete (a fofa Keri Russell, muito à vontade no papel) que trabalha num bar/restaurante de gosto duvidoso. Casada com um homem negligente e grosseiro, grávida e sem perspectivas de mudança, ela passa a notar que sua vida pode se tornar melhor quando surge a chance de participar de um concurso culinário. Para adicionar um “tempero” a mais na trama, a moça nota ainda que é difícil controlar a queda que possui pelo seu médico – e que ele também retribui todo esse encantamento.
Se a trama não é muito inovadora, Adrienne consegue extrair o melhor dela, mostrando bastante carinho por sua criação. Há personagens cativantes, reviravoltas (quase) sempre convincentes, momentos de humor e drama na mesma medida e, principalmente, sentimento. Mas mesmo com um leve tom de conto de fadas, tudo é bastante pé no chão: Jenna se decepciona, esbarra com diversas frustrações, e o máximo de alívio que a trama possui em determinadas sequências são os flashs sonhadores (e saborosos) da garçonete ou a participação de alguns coadjuvantes, como sua melhor amiga ou o resmungão Old Joe.
É uma vida cotidiana, mas com tanto potencial para ser algo mais – e que a protagonista vez ou outra nem nota existir -, que você torce de verdade pra que ela quebre esse “roteiro” quadradinho, encare outros horizontes e se aventure pela vida que sempre quis ter. É essa empatia sincera que torna a experiência de ver Garçonete marcante.
É daqueles filmes que deixam um gosto bom com você depois que termina, com um apanhado de ingredientes misturado com cuidado e fácil de agradar.
Bem antes de Lady Gaga tentar se mostrar original devido à sua extravagância. Muito, muito antes que a moça se tornasse um astro pop que toca piano de um modo, hmm, peculiar. Décadas antes que Gaga decidisse que vestir o personagem nas ruas e se comportar como ele era legal, houve Liberace (Michael Douglas). E se em Lady Gaga tudo soa como releitura, pastiche ou forçação de barra, em Liberace tudo era originalidade. Os candelabros em cima do piano, as roupas kitsch, o ego gigantesco (exibido no palco e fora dele), as declarações WTF, o estrelato que sobe a cabeça, a necessidade de superexposição e afeto e, claro, o modo como tudo isso pode se tornar destrutivo.
À primeira vista, Steven Soderbergh não pareceu uma escolha muito certeira para fazer tal filme. O colorido que retratar Liberace exigiria, bem como as doses certeiras de trágico e cômico, soavam como algo com o que Almodóvar poderia trabalhar. Mas, o fato é que Soderbergh conseguiu fazer um filme com a sua cara – no sentido de velocidade, agilidade e um tom bastante analítico – e ainda assim dar conta de tratar a respeito de todos os aspectos citados. Por meio do cuidado, quase obsessivo, com a exposição de detalhes e dos excessos – nos figurinos, na casa e na própria personalidade do biografado – o diretor constrói um filme engraçado, vibrante, triste e, porque não, um pouco perturbador. Todas as figuras ali, em algum nível, causam repulsa e piedade. E isso é exposto sem julgamentos e sem objetivos moralizantes. A ausência de uma tomada de partido de Steven Soderbergh mostra que não há um herói ou um vilão na história de Liberace: há apenas pessoas quebradas, carentes e dependentes de aprovação levando as suas necessidades a um extremo destrutivo.
Liberace, principalmente, por sua obsessão por si mesmo, que fica bastante clara quando ele força Scott (Matt Damon) a passar por uma série de cirurgias plásticas para se parecer com um “jovem Liberace”. Mas, ao mesmo tempo, é inevitável que você lamente pelo quanto a fama – e o seu amor por ela – apagaram de sua personalidade. O único objetivo do pianista é conservar seus fãs, não importando quem ele precisa atropelar no trajeto. Desse modo, ficamos sabendo de sua coleção de ex amantes, todos mais jovens, que eram dispensados por seu empresário tão logo um outro rapaz bonito se aproximava dele. Dentro do longa, isso funciona como uma maneira de demonstrar o medo que Liberace tinha da velhice. Era como se mantendo o ambiente e as pessoas ao redor de si jovens, ele conseguisse, de algum modo, se manter jovem. Outro fator que coopera para que o público não sinta desprezo pelo personagem é o fato de que ele era “obrigado” a sustentar mentiras, como um noivado com uma patinadora, para que a verdade sobre sua sexualidade não se tornasse pública, já que isso simbolizaria um baque em sua popularidade.
Scott, o “amante da vez” e aquele que passou mais tempo ao lado do pianista, também é uma figura que nos provoca sentimentos confusos. Sua submissão e vontade extrema de agradar, aliadas a uma certeza de que ele não tinha absolutamente nada se Liberace perdesse o interesse por ele, fazem com que ele abra mão até mesmo o seu rosto e a sua individualidade para conservar o relacionamento dos dois. Após passar pelas cirurgias plásticas, seu rosto fica completamente desfigurado e, aos poucos, seu corpo vai sendo consumido pela “Dieta Californiana” (que consiste, basicamente, em misturar anfetaminas com álcool), indicada a ele por seu cirurgião Jack Startz (Rob Lowe).
E já que estamos falando em Rob Lowe, aqui é preciso ressaltar o trabalho incrível dos responsáveis pela maquiagem de Behind The Candelabra. Lowe se encontra tão deformado e tão grotesco que levamos alguns minutos para reconhece-lo. E o ator compõe um personagem tão asqueroso e tão frívolo que não podemos deixar também de ressaltar o seu talento. Aliás, indo um pouco além, o grande trunfo de Candelabra são os seus atores. Michael Douglas está tão afetado e tão exagerado que chega a irritar, mas que não poderia ser uma representação melhor de Liberace. Arrisco a dizer que caso o filme não tivesse sido feito para a TV, Michael poderia esperar por uma indicação ao Oscar.
Entre excessos e reflexões, um ritmo ágil e muitos cristais svarowski, Steven Soderbergh entrega uma cinebiografia que tem como principal mérito não tentar justificar quaisquer ações de seu “homenageado”. Nem para o bem, e nem para o mal. Parece que o diretor não se importa se gostamos ou não de Liberace, mas antes quer contar a sua história. Com todos os tropeços e enganos possíveis para que a gente possa ter uma dimensão da grandeza e do sucesso do pianista, mas também seja capaz de enxergar o quanto ele tinha de humano e, exatamente por isso, cheio de defeitos.
Behind The Candelabra, de Steven Sodebergh Behind The Candelabra. Com: Michael Douglas, Matt Daemon, Rob Lowe, Scott Bakula, Randy Lowel, Eric Zuckerman
“As pessoas são como tapete. De vez em quando, precisam de um chacoalhão”.
A frase dita bem no começo do filme por um dos protagonistas de Colegas (Colegas, 2012) – o mais recente filme do diretor Marcelo Galvão (de Belini e o Demônio) e agraciado com o prêmio de melhor filme na Mostra de SP de Cinema e com o Kikito de Ouro do Festival de Cinema de Gramado – funciona como a grande moral do filme.
De um jeito leve e divertido (que em determinados momentos cai até no pastelão), mas sem ser em nenhum momento depreciativo, Marcelo trabalha temas como a quebra de preconceitos, a inclusão e o poder da mídia sensacionalista; em um roadmovie que conta a história de Stalone, Aninha e Márcio, três adolescentes que fogem da clínica em que foram internados por seus pais em busca da realização de seus sonhos (Stalone sonha em ver o mar, Aninha em se casar com um músico e Márcio em voar).
Viciado em filmes, é de Stalone a ideia da fuga da clínica. Os três jovens roubam o carro do zelador do prédio (vivido pelo sempre competente Lima Duarte e que faz as vezes de narrador da história) e para sobreviver durante a viagem, roubam postos de gasolina, supermercados e lanchonetes. A partir daí, a mídia cria o mito da gangue de adolescentes com Síndrome de Down que são altamente perigosos e que causam o terror e a destruição por onde passam. Ao longo do filme, os três se metem em muitas confusões, mas acabam conseguindo (mesmo que acidentalmente) escapar da atrapalhada polícia e indo parar em outro país.
Se Marcelo inovou ao realizar um longa onde os protagonistas têm Síndrome de Down, falhou, entretanto, na construção dos seus diálogos e no desenvolvimento do roteiro. Falta ao filme ritmo e por muitas vezes as ações acabam se tornando repetitivas e pouco criativas. As falas dos personagens dão a impressão de ser um grande arranjado de frases prontas, partindo muitas vezes pra clichês.
Mas as funções sociais e humanas de Colegas ainda são o mais importante e nesse quesito, o roteiro trabalha muito bem. Os protagonistas são felizes e capazes, que sonham, se apaixonam, se emocionam e se aventuram por si, sem precisar de auxílios de outras pessoas. Marcelo colabora assim, para que seja colocada uma pedra definitiva na ideia de que o portador de Síndrome de Down é pior do que uma pessoa que não possui a síndrome.
Mesmo com algumas falhas, Colegas cumpre muito bem a função de inclusão social e de quebra de preconceitos. Duvido que ao terminar o filme, você não esteja com cisco nos olhos e que sua visão não mude em relação a várias coisas da vida. Marcelo Galvão nos faz de tapete. E nos chacoalha muito bem.
Colegas, de Marcelo Galvão, 2012. Colegas. Com: Ariel Goldenberg, Rita Pokk, Breno Viola, Rui Unas, Deto Montenegro, Juliana Didone, Leonardo Miggiorin e Lima Duarte.
Ginger (Elle Fanning) e Rosa (Alice Englert) são amigas desde a infância. Elas nasceram em 1945, o último ano da Segunda Guerra Mundial. Sob o signo de uma constante ameaça nuclear. Desse modo, mesmo que as primeiras sequências em que vemos as duas sejam permeadas por euforia adolescente, seu universo é desenhado por Sally Potter, a diretora do longa, com tons de marrom e cinza, marcado por ambientações que nos transmitem a impressão de umidade e frio. Por meio da criação de tais ambientes, o espectador ganha consciência do contexto de medo em que vivem as personagens título.
Apesar de inseridas nesse espaço, as garotas se comportam como duas adolescentes comuns, que estão descobrindo o seu lugar no mundo e sua própria identidade. Por isso, procuram exercer diversas atividades consideradas adultas. Beijam-se como modo de praticar “para quando for necessário”, fumam seus primeiros cigarros juntas, vão a reuniões de grupos anti-guerra e, para o horror do pai de Ginger, Roland (Alessandro Nivola), visitam uma igreja.
Ginger, pelas influências dos pais e dos amigos deles, é mais voltada para atividades intelectuais. Escreve poesia, ouve jazz e cita Simone de Beauvoir para contra argumentar as afirmações lidas por Rosa em uma revista adolescente. Rosa, por sua vez, dá pouca importância para essas coisas, mas tem mais consciência de sua própria sexualidade e do impacto que possui sobre homens mais velhos. Por mais que pareçam opostas, as meninas se assemelham em um ponto crucial: as duas se encontram à deriva, esquecidas pelas figuras adultas de suas vidas. Dessa forma, o ambiente permissivo em que vivem, acaba funcionando como algo prejudicial, que levará as duas ao limite.
Devido à liberdade que lhes é concedida, durante toda a projeção do longa somos levados a acreditar que elas possuem uma maturidade e um desenvolvimento psicológico que nem mesmo os adultos presentes em sua vida possuem. E é somente quando se encontram completamente fragilizadas que Ginger e Rosa vão deixar transparecer que são apenas adolescentes. Graças a proximidade e ausência de julgamentos com que a câmera filma Elle Fanning e Alice Englert somos capazes de perceber a sua inocência e o quanto ainda são meninas, por mais que se esforcem para parecer mulheres.
Por meio de uma história marcada por altos e baixos, onde o que se passa no interior das personagens tem tanta importância quanto o que ocorre no mundo exterior, Ginger e Rosa nos mostra que amadurecimento não é algo que, simplesmente, vem com o tempo e a idade. É algo que se constrói todos os dias, seja por meio de decepções ou mesmo novas experiências. E isso nunca é algo fácil de se atingir.
Ginger & Rose, Sally Potter, 2013. Ginger e Rosa. Com Elle Fanning, Alice Englert, Alessandro Nivola, Annette Benning, Oliver Platt, Christina Hendricks, Timothy Spall e Jodhi May.
Quando Julie Delpy lançou 2 Dias em Paris (2 Days In Paris, 2007) – filme que protagonizou, escreveu, musicou e dirigiu – muita gente apontou semelhanças com os trabalhos que a atriz desenvolvia com Richard Linklater, diretor de Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) e Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004). Embora a comparação fosse injusta (as personagens de Delpy tinham alma, originalidade e não eram cópias das figuras de Linklater), ela não era totalmente descabida: tanto nos filmes do diretor quanto no filme de Delpy o interesse do espectador era conduzido por diálogos ora engraçados, ora tristes; a câmera ficava boa parte do tempo na mão; os protagonistas sempre pareciam ir a um lugar; havia a questão das brincadeiras relacionadas as diferenças culturais de seus protagonistas; e, claro, como o próprio título sugeria, havia uma data certa para que os eventos terminassem. Se os ecos de Linklater fizeram com que Julie criasse um filme agridoce que dispunha de um final muito mais significativo do que todos os 100 minutos que o antecediam, nessa espécie de continuação o alvo de Julie é outro.
Com piadas repletas de ironia e sarcasmo, Delpy emula a persona de Woody Allen e cria sua Marion com simpatia e carisma. As semelhanças com Woody, aliás, transcendem os diálogos e aparecem nos óculos de aro grosso e também em algumas características psicológicas.
Interpretando a mesma Marion de seis anos atrás, Julie compreende que não há necessidade de reprisar o papel do outro longa. Em vez disso, ela constrói uma personagem mais leve, menos histérica, tão neurótica quanto antes e, de certa forma satisfeita com a vida que leva (e isso pode ser visto pelo modo que ela se move e também pela postura que adota em situações específicas). A impressão que fica é que Marion, de fato, viveu e aprendeu durante os anos de hiato que separam um filme de outro. Como se nesse ínterim as mudanças que sabemos que aconteceram em sua vida (a separação de Jack, a morte da mãe, o casamento com Mingus, a maternidade) tivessem a moldado. Dito isso, é notável a capacidade da moça (não só como atriz mas também como autora) de delimitar com destreza o perfil de sua personagem (percebam como logo na introdução ela resolve em poucos minutos toda e qualquer questão que tenha ficado em aberto no longa anterior, respondendo com leveza as perguntas que o representante mais afoito do público faria).
Tendo como cenário a cidade de Nova York, o enredo de 2 Dias em Nova York se desenvolve quando Marion e seu esposo, Mingus (Chris Rock), recebem em sua casa seu pai (Albert Delpy, pai da atriz da vida real), sua irmã (Alexia Landeau) e o atual namorado dela (Alexandre Nahon) – que não por acaso é ex-namorado de Marion -. A partir desse momento, confusões rocambolescas relacionadas ao choque cultura (algo que já havia sido retratado em 2 Dias em Paris), ditam o tom do filme e funcionam como motor para que a trama se desenvolva a caminho de uma inevitável catarse.
O bacana é perceber que no repertório de referências absorvidas por Julie há espaço não só para Allen como também para Altman (notem que todos os diálogos são proferidos quase que ao mesmo tempo, acentuando ainda mais a sensação de bagunça e “realidade” – mesmo nas situações mais absurdas), e que o humor que ela realiza transcende a questão textual (a sequência final, por exemplo, mostra que há boas ideias em relação ao humor físico). No fim das contas, até mesmo os arcos que pareceram acrescidos apenas para causar um maior estranhamento (como o fato de Marion vender de papel passado sua alma em uma exposição de arte) passam a fazer sentido, arrancando não só boas risadas como também sorrisos de ternura, revelando que mais do ecos de outros cineastas há algo genuíno (e de certa forma ingênuo) no material que apresenta.
2 Days in New York, de Julie Delpy, 2012. 2 Dias em Nova York. Com: Julie Delpy, Chris Rock, Albert Delpy, Vincent Gallo, Alexia Landeau, Alexandre Nahon, Kate Burton, Dylan Baker e Daniel Brühl.
Remakes podem ter diversas motivações para serem feitos: quando um filme europeu ou latino-americano faz um sucesso inesperado e Hollywood aproveita para vender a ideia ao público americano que não vê filmes com legendas, porque um diretor quer revisitar sua própria obra ou porque parece rentável atualizar um clássico de outras épocas e vende-lo para novas gerações. A Morte do Demônio (Evil Dead, 2013) é sem dúvida o último caso: o filme que lançou Sam Raimi não foi exatamente refeito, mas relido, adaptado ao paladar de uma geração acostumada a zumbis realistas e computação gráfica.
A história sofreu algumas alterações: agora o enredo se centra em Mia, uma jovem que decide largar as drogas e para isso convoca seu irmão e melhores amigos para se internar em uma cabana enquanto ela passa pela abstinência. A tentativa de tornar os personagens mais profundos, mais dramáticos, faz com que o longa comece clichê, mas é um acerto de Fede Alvarez (o estreante que dirige o filme, produzido pelo próprio Raimi) manter essa história apenas como pano de fundo e usa-la quando convém para amarrar a trama dos demônios. O que se segue é a mesma coisa do filme original: os jovens encontram um livro encapado em pele no porão, sem querer liberam os demônios que habitam a floresta e durante 40 minutos subsequentes eles lutam por suas vidas.
A Morte do Demônio sem dúvidas começa fraco: a explicação desnecessária para os demônios na floresta, a menina viciada, o drama entre ela e o irmão, as atuações ruins… Tudo isso soa como Stigmata, Na Companhia do Medo, ou qualquer filme de terror supostamente profundo e sem graça. Mas quando o sangue começa a jorrar na tela, Alvarez se encontra.
Se havia algo de genuinamente perturbador na artificialidade do primeiro Evil Dead, aqui, ao menos em um primeiro momento, o terror vem por meio do realismo. As feridas e o sangue são realistas suficiente para que o espectador se incomode, a dor dos personagens causa uma reação real e por vezes a sala toda interage em expressões de nojo e aflição. Funciona, incomoda, mas falta charme, ironia e tudo aquilo que tornou tão emblemático o original.
Mas a violência escala rapidamente e o que era realista vai se tornando absurdo. Os personagens decepam os próprios membros sem qualquer apego e em jatos de sangue dignos de Tarantino, o filme assume definitivamente sua veia trash e demonstra porque é um remake que funciona.
A Morte do Demônio não é fiel ao original, mas o tem sempre em mente: há pequenas referências divertidas, como um moletom da Michigan University, há uma personagem que desenha, e mesmo a forma do colar que o irmão de Mia dá de presente a ela. E se por um lado existem alterações de roteiro, por outro Alvarez chega até a repetir planos de Raimi e toda sua decupagem é uma homenagem ao cineasta. A consciência que o diretor tem de seu trabalho e do objetivo de seu filme também ajudam.
Alvarez sabe que precisa vender, sabe que o que está fazendo é tentar atrair uma audiência fascinada com The Walking Dead para os filmes de terror e quem sabe dar novo fôlego comercial ao gênero e ironiza suas próprias saídas fáceis. Ele dá uma trilha sonora brega e planos com cara de anos 80 a cena mais emocionalmente dramática do filme, faz sua protagonista arrancar o braço de baixo de um carro como se fosse borracha e termina tudo com uma chuva (literalmente) de sangue. É nojento, irreal e sim, ruim, mas é exatamente isso que se espera de A Morte do Demônio e funciona.
No fim, o remake não é inventivo, ou original como o filme de Sam Raimi, mas não o perde de vista, honra sua memória e assume com dignidade o trabalho de atualiza-lo e devolve-lo a vida. Cumpre sua função de incomodar, entrega a quantidade de sangue esperada e, mesmo sem a ironia fina do primeiro, diverte.
Evil Dead, de Fede Alvarez, 2013. A Morte do Demônio. Com: Jane Levy, Shiloh Fernandez, Lou Taylor Pucci, Jessica Lucas e Elizabeth Blackmore.
“Quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem. Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci. Mas depois, como de costume, obedeci.“
Parece meio absurda a ideia de criar um filme inteiro tendo como base alguns versos de uma música de poucos minutos. Não, não parece absurdo. Parece desnecessário. E impraticável. Como é possível prolongar um momento que dura segundos em sequências de minutos inteiros? Em O Abismo Prateado (O Abismo Prateado, 2013), novo filme de Karim Aïnouz, funciona como resposta.
Sem se preocupar em estabelecer um enredo propriamente dito, Aïnouz foca a sua atenção em uma única personagem. Com a câmera colada no rosto de sua atriz principal durante quase toda a projeção, o diretor traduz em quadros (um mais bonito do que o outro) suas angústias mais íntimas. Não há amarras ou limites. Tudo parece solto, alinhavado. Como se estivéssemos diante de uma experiência totalmente orgânica. O desespero não só soa real como também parece tangível, palpável.
Por meio de enquadramentos fechados, de uma montagem que corta frames quando julga necessário, de uma trilha musical que é quebrada por silêncios e de uma câmera que emula toda a subjetividade da insanidade, O Abismo Prateado consegue fazer com que criemos um laço verdadeiro com Violeta (Alessandra Negrini).
Quase sem diálogos, o roteiro escrito por Beatriz Bracher, com base na música Olhos nos Olhos, de Chico Buarque, acompanha o cotidiano de uma dentista que vê seu mundo desabar quando recebe uma ligação de seu esposo dizendo que está a abandonando. Agindo por impulso, ela deixa seu consultório, vai atrás de seu marido e na busca por um sentido experimenta sensações de tédio, vazio, preenchimento, compaixão e ternura.
Se o filme funciona em seu silêncio, o mérito não é só de Karim, mas também de Alessandra Negrini. Defendendo com os dentes sua Violeta, a atriz consegue comunicar a confusão mental e emocional de sua personagem sem precisar de momentos catárticos. A sutileza da composição pode ser vista na sequência em que ela pega um táxi e a taxista tenta conversar acerca de sua vida pessoal. A maneira com que ela reage, estando distante e respondendo de maneira monossilábica (demonstrando resquícios de melancolia e confusão e ainda assim parecendo doce) ilustra bem a meticulosidade e complexidade do trabalho.
… E a tal música que inspirou a obra finalmente dá as caras no final do longa. De duas maneiras inesperadas. E o final, em si, coerente e cheio de significado, funciona como alento e permite que nós, espectadores, voltemos a respirar com facilidade depois de 85 minutos de tensão. E mostra, de uma vez por todas, que é possível sim adaptar alguns versos em filme. Neste caso, em um ótimo filme.
O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz, 2013. O Abismo Prateado. Com: Alessandra Negrini, Thiago Martins e Otto Jr.
As personagens principais de Ferrugem e Osso (De Rouille et D’Os, 2012) são fortes. Cada qual a sua maneira, elas demonstram sua força através de seus corpos, suas palavras, suas ações e, principalmente, suas reações.
Quando colocadas em frente a problemas reais, as duas titubeiam. Demonstram medo. Insegurança. E erram. Tais quais pessoas de verdade. Talvez esse seja o grande mérito do filme: durante todo o tempo, Jacques Audiard, o diretor, não se esforça para que gostemos de seus protagonistas. E parece não fazer esforços para que os odiemos. É tudo natural.
Lidando com dois tipos quebrados – tanto física quanto emocionalmente -, Audiard narra a evolução de seres diferentes que se encontram em momentos nada felizes de suas vidas. Stéphanie, interpretada por Martion Cottilard, é inteligente, independente e incrivelmente bonita. Tudo parece funcionar em sua vida, até que durante um espetáculo em um parque aquático uma baleia a ataca e, por consequência, ela perde suas pernas. Alain, vivido por Matthias Schoenaerts, compõe o outro polo do longa de um jeito impulsivo, violento e bruto. Sua personagem é uma sobrevivente. Pai solteiro, não se relaciona com ninguém intimamente. Sexo é sexo, briga é briga e a vida, como um todo, é simples – e brutal.
O choque de cultura e as situações limites que cada um passa entre os 120 minutos de filme nos fazem crer que estamos assistindo, como intrusos, dois personagens que não buscam redenção – apenas sobrevivem sem a menor perspectiva de felicidade (por esse motivo, cenas como a de que Alain ganha uma luta ganha um significado todo especial, visto que tanto ele quanto Stéphanie experimentam uma sensação de felicidade genuína que, não por acaso, foi alcançada a custo de sangue e dor).
A paleta de cores gelada, a ausência de trilha musical durante quase todo o tempo, e a escassez das palavras, tornam Ferrugem e Osso uma experiência dolorosa. Funcionando muito bem graças a montagem (repare como o uso inteligente da trilha sonora e os cortes da imagem na sequência em que Stéphanie sofre o acidente causa tensão) e a atuação de Cotillard e Matthias Schoenaerts (ambos indicados em Cannes ano passado nos prêmios de atuação), o filme exige do espectador bastante atenção para que suas sutilezas sejam notadas e apreciadas. Mesmo com momentos catárticos, como a sequência em que a personagem de Marion descobre que não tem mais suas pernas, alguns dos instantes mais sutis são tão fortes e impactantes quanto. A cena em que Alain sugere que poderia transar com Stéphanie, por exemplo, revela muito sobre o caráter de ambos.
Essa sutileza que permeia todo o relacionamento dos dois é quebrada abruptamente no terceiro ato do longa. Se até então a condução de Ferrugem e Osso dava sinais que não haveria redenção para Stéphanie e Alain, no final, todo o trabalho de composição é quase que jogado fora em decorrência a um fato que soa artificial e parece ter como único propósito oferecer um tipo de felicidade pré-fabricada aos espectadores e as personagens.
O problema só não chega a ser maior porque os atores realmente acreditam no que fazem, e também porque o texto do diretor, escrito em parceria com Thomas Bidegain e Craig Davidson, guarda para os últimos minutos o trecho falado mais bonito de todo o longa (que justifica, entre outras coisas, o título do filme). As palavras são tão avassaladoras que permanecemos atônicos mesmo após o fim – que tal qual o destino de suas personagens, soa incompleto, melancólico, agridoce e extremamente possível. E forte. Bem forte.
De Rouille et D’Os, de Jacques Audiard, 2012. Ferrugem e Osso. Com: Marion Cotillard, Matthias Schoenaerts, Armand Verdure, Céline Sallette, Bouli Lanners e Corinne Masiero
Cores (Cores, 2012) é um filme cínico. Dotado de um humor que não provoca riso, mas sorrisos amargos, o longa é construído de contrastes – o que fica óbvio logo de cara por causa de seu título (todo o filme é em branco e preto), suas personagens (todos são jovens, cheios de sonhos, vivem numa cidade que não para e mesmo assim são absorvidos pelo tédio) e situações quase absurdas, originadas por pensamentos banais.
As observações feitas por seus protagonistas soam cruéis e honestas e, às vezes, pretensiosas. Em linhas gerais, pode-se dizer que Cores fala sobre três amigos que em meio a uma rotina massacrante passam o tempo conversando, se preocupando com contas, bebendo, se drogando vez ou outra e, eventualmente, transando. Essa inquietude, prolixidade e falta de ação representa muito bem o estado de espírito das pessoas que vemos em cena e também serve para adjetivar o próprio filme. Sem uma trama definida, a câmera de Francisco Garcia, diretor e co-roteirista do projeto, percorre corpos e rostos criando quadros bonitos e explorando espaços, parecendo buscar, tal qual as personagens que mostra, uma cura para o próprio tédio.
Tédio este que é demonstrado lindamente na sequência em que jovens bebendo e se divertindo parecem tristes, na parte em que os amigos decidem ir para praia e o carro quebra e também num momento chave em que uma metáfora de purificação ganha vida em imagens (maravilhosamente fotografadas).
Se as intenções são boas e as ideias também, o mesmo não se pode dizer da execução. Enfraquecido com diálogos pobres (a parte em que a mocinha encontra um affair chega a ser constrangedora por conter frases feitas e lugares comuns) e atuações um tanto quanto artificiais (por parte de Pedro di Pietro e Guilherme Leme), Cores exige do espectador uma certa condescendência para ser apreciado e, em contrapartida, parece não oferecer nada em troca.
É como se o vazio e a vulgaridade (normalidade?) opaca de seus protagonistas contaminasse todo o longa. E isso não é de todo mal, uma vez que o projeto ganha pela honestidade: enquanto versa sobre o tédio e sobre o nada ele, ao final de tudo, entrega exatamente isso.
Cores, de Francisco Garcia, 2012. Cores. Com: Acauã Sol, Simone Iliescu, Pedro di Pietro, Maria Célia Camargo, Guilherme Leme, Graça de Andrade e Tonico Pereira.
Nos primeiros minutos de Amor Profundo (The Deep Blue Sea, 2011), comecei a pensar a respeito das semelhanças entre Hester, personagem defendida brilhantemente por Rachel Weisz, e outras duas protagonistas de histórias de amor com cunho trágico, Emma Bovary e Anna Karenina. Pensem comigo: Hester é uma vítima de suas próprias paixões e decisões. Não importa o quanto seus amores sejam destrutivos, ela insiste em vivê-los porque não consegue conceber a sua vida sem tais sentimentos. Frequentemente associa o amor e a morte. Perceberam? Pois é. Hester parece ter saído diretamente de um romance realista do século XIX. Você pode estar pensando que isso soa deslocado, mas a verdade é que tais histórias são atemporais: sempre vai existir uma mocinha trágica disposta a se jogar na linha do trem por um sujeito charmoso e covarde.
Hester é casada com um juiz, William Coyller (Simon Russel Beale), pelo menos duas décadas mais velho do que ela. Nas sequências em que a vemos acompanhada do marido, percebemos que ela não se encaixa no universo do qual ele faz parte – o que é evidenciado especialmente pela visita que fazem à mãe aristocrática e arcaica (Ann Mitchell) de William -, mas que nutre por ele alguma espécie de ternura. Ele, por sua vez, a ama. O problema entre os dois não é a idade, a mãe ou mesmo a sensação de não pertencimento: Hes procura por um amor que a faça perder o controle e a tranquilidade oferecida por Bill nunca será capaz de preencher essa necessidade.
E é aí que entra o outro vértice desse triângulo, o ex-militar Freddie Page (Tom Hiddleston). Freddie sabe exatamente o que dizer, quando dizer e em que tom dizê-lo. É irresistivelmente charmoso e seu mundo é excitante, marcado por noites de bebedeira, música e dança. Enfim, tudo o que é oferecido por ele está bem distante da polidez e da apatia a que Hester estava acostumada. Porém, como se poderia esperar, as coisas com Freddie não são estáveis. Há brigas demais, negligência demais. Tudo parece ser regido por impulsos e não há espaço para considerar como as ações praticadas afetam o outro. Ele lhe oferece a intensidade que ela buscava, mas isso vem com um preço que, ao expectador, parece alto demais.
O cenário do pós-guerra em Londres serve para reforçar a bagunça psicológica de Hester. O caos em que se encontra é encenado por Terrence Davies como se fosse uma ópera, de modo que o longa é iniciado pelo Concerto para Violino e Orquestra Opus 14, de Samuel Barber. Durante seus sete primeiros minutos não se tem uma fala. Vê-se somente algumas lembranças de Hes, filmadas de um jeito muito etéreo e luxuoso, que reforça a ideia de que a personagem paira entre a vida e a morte. Posteriormente, quando ela é “acordada” e a ação do filme começa a se desenvolver, a postura dos atores em cena e o jeito com que os diálogos são construídos nos remetem ao teatro e nos fazem lembrar daquilo que serviu como matéria prima para a confecção do roteiro de Amor Profundo: uma peça de mesmo nome, escrita em 1952, por Terrence Rattingan.
Amor Profundo é uma das coisas mais arrebatadoras que assisti em um tempo considerável. Pelas cores utilizadas, pelos planos, pelos diálogos certeiros… Mas, principalmente, por que é orgânico e humano.
The Deep Blue Sea, de Terrence Davies, 2011. Amor Profundo. Com: Rachel Weisz, Tom Hiddleston, Simon Russel Beale, Ann Mitchell.
Em 2008, a Marvel decidiu investir em um filme do Homem de Ferro, personagem um tanto desconhecido de seu universo e visto com ressalvas mesmo por aqueles envolvidos com HQs. O carisma de Robert Downey Jr. e o foco no humor ácido do personagem fizeram do filme um sucesso inesperado e hoje Tony Stark é a maior estrela do estúdio.
Homem de Ferro 3 vem na esteira da bilheteria absurda de Os Vingadores e o filme parece exatamente isso: a Marvel ganhando dinheiro certo e apostando no “em time que está ganhando…”
A trama começa com um Tony Stark em crise: assombrado pelos acontecimentos de Os Vingadores e tendo problemas para se adaptar ao posto de homem maduro exigido por Pepper Potts agora que ela passou de secretária-babá para namorada. Stark será tirado de sua inércia quando um ataque terrorista fere gravemente seu amigo e ex-segurança e a investigação o leva ao perigoso terrorista Mandarim. No entanto, ele precisa fazer isso sem sua conhecida armadura, que foi danificada em uma explosão organizada pelo vilão.
Filmes de super-herói são em primeiro lugar filmes de ação e, sendo assim, viradas complicadas de roteiro e mergulhos profundos na psicologia dos personagens podem ser dispensados. Foi o que fez Os Vingadores com bastante eficiência. Por outro lado, era um filme de conjunto que tratava de uma “mitologia” extensa e que tinha na química entre seus personagens o elemento que amarrava as explosões e ets. Homem de Ferro é um filme de um homem só e esse homem, a exemplo da maior parte dos super-heróis, é uma figura controversa.
Mas Tony Stark não é controverso como o Batman, ou mesmo a Viúva Negra, seu personagem não tem grandes traumas do passado ou demônios internos, ao contrário, a dificuldade da personalidade de Stark está exatamente em sua imensa frivolidade e o novo filme parece esquecer disso. Não faz muito sentido que Stark seja assombrado pelo que aconteceu em Nova Iorque, menos ainda porque seu personagem parecia estar quase se divertindo no filme anterior. Além disso, o conflito homem real X super herói ou a trama em que um herói perde seus poderes (no caso, a armadura) e deve encontrar sua força dentro do homem comum é o clichê do clichê dos filmes de super-herói.
Homem de Ferro 3 quer dar ao personagem uma profundidade que ele não possui e acaba perdendo o que ele tem de característico e interessante. Ao tentar tornar Tony Stark tridimensional tudo que a Marvel consegue é deixa-lo plano e sem a mesma graça dos filmes anteriores.
Embora o carisma de Downey Jr. continue funcionando, as melhores piadas vem de um garotinho de 10 anos. Apesar disso as sequências de ação são eficientes e a virada de roteiro do Mandarim é quase genial (e um tapa na cara dos que duvidaram da possibilidade de adaptar o personagem).
Outro problema, que para maior parte do público talvez não chegue a ser um problema, é que a Marvel desperdiça de novo a chance de ter uma personagem feminina forte. Pepper Potts é inteligente, eficiente e capaz de comandar uma empresa gigantesca, mas está constantemente no lugar de donzela em perigo. Exceto por uma sequência de talvez 30 segundos, tudo que Potts faz é cobrar Stark, ser incapaz de vê-lo pelo que é, achar a armadura uma perda de tempo (vamos lembrar que o Homem de Ferro foi um dos maiores responsáveis pela vitória em Os Vingadores) e precisar ser salva por ele. Talvez esse tipo de enfoque seja parte do motivo pelo qual eu era a única mulher não acompanhando o namorado em uma sessão lotada de sábado à noite.
No fim, Homem de Ferro 3 diverte, mas não com o frescor que costumava apresentar, nem com a despretensão de Os Vingadores. É um filme morno, menos ruim do que Thor, mas bem aquém das possibilidades do personagem.
Iron Man 3, de Shane Black, 2013. Homem de Ferro 3. Com: Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow, Guy Pearce, Don Cheadle, Ben Kingsley.
“Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé, que vai defender a classe operária, salvar a classe operária e cantar o que é bom para a classe operária. Nenhum operário foi consultado, não há nenhum operário no palco, talvez nem mesmo na plateia, mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários. Os operários que se calem. Que procurem seu lugar, com sua ignorância, porque Tom Zé e seus amigos estão falando do dia que virá e na felicidade dos operários.”
Trecho da música Classe Operária, de Tom Zé.
Doméstica (Doméstica, 2013) se vende como um filme sobre aquelas que sempre foram coadjuvantes: as empregadas mensalistas. Mas a verdade é que o documentário de Gabriel Mascaro é sobre outra coisa. Ou melhor, outras coisas.
Dando a missão de retratar a vida de suas empregadas, Gabriel entrega a sete jovens de diferentes classes sociais, regiões e hábitos uma câmera. Não há regra pré-estabelecida. Basta filmar o que eles acharem interessante. Parece banal, não é?
Mas não, não é. Criando antagonistas e denunciando a hipocrisia latente desses que são verdadeiros “sinhozinhos”, Gabriel monta os recortes de olhares com uma coerência assustadora. A cada filmete a intenção do diretor fica mais clara e percebemos que por mais diferente que sejam a vida das empregadas retratadas todas as histórias possuem pontos em comum.
Desse modo, pode-se dizer que o traço mais marcante de Doméstica é a vaidade explícita de alguns patrões. Cada um, cada qual a sua maneira, demonstra diferentes níveis de interesse por suas empregadas e parecem mais preocupados em demonstrar que são bondosos para com eles ao dizer frases como “ela é quase da família” ou “ele come da minha comida“, fazendo com que a doméstica, que deveria ser o foco, acabe como um mero veículo de exibição. Então Gabriel revela que o filme não é sobre domésticas, mas sobre seus chefes e as relações deles para com elas.
Por sua vez, as empregadas retratadas apresentam traços que variam entre ingenuidade, submissão e ressentimento. Percebemos por olhares e por respostas ora espontâneas, ora pensadas; diferentes tipos de nuances e sentimentos.
O último segmento, em especial, sintetiza muito bem as intenções dos filmes. O garoto que o registra parece alheio a vida da pessoa que o serve, e, quando ele toca uma música de Bob Dylan e olha o vazio, vira vilão da história. Sua mãe, que depõe a respeito da mulher que é apenas quatro anos mais velha que ela e que brincava junto com ela na infância, demonstra resquícios de culpa e condescendência. A mensalista, por outro lado, revela com suas pausas e silêncios suas verdadeiras emoções. É como se ela não pudesse dizer que não é feliz porque sabe das consequências que suas palavras terão. Então, nesse exercício sutil de observação, as coisas continuam como estão.
E continuam mesmo. Ao final do filme percebemos que algumas daquelas mulheres eram filhas de outras mulheres com a mesma profissão – mostrando que as raízes escravagistas se fazem presentes, mesmo que veladas. Percebemos também que há quem deixe os filhos com uma empregada para trabalhar como empregada em outro lugar. Notamos e sentimos o abandono de um certo personagem. E percebemos, principalmente, que há uma infinidade de sentimentos por todo o lado.
Na última sexta-feira assisti ao filme que você fez a respeito de sua irmã, Elena. Fiquei muito impressionado. Ele era muito bonito.
A combinação de sua voz, tão doce e baixa, com aquelas imagens, recortes de registros e música, fizeram com que eu me sentisse íntimo e próximo de você e de Elena. Veja só que bobagem! Eu, que nunca as conheci, estava ali, numa sala escura, não só interessado como também absorto em suas vidas. Era como se estivesse lendo (vendo?) por cima dos ombros uma carta endereçada a outra pessoa. Como se o real destinatário soubesse de minha indiscrição, mas não se importasse.
De certa maneira eu fiz mesmo isso, não fiz? Na verdade, você que fez quando mostrou as cartas em áudio que sua irmã tinha feito durante o tempo em que esteve em Nova York querendo ser atriz de cinema. Achei bonito demais da conta o sonho dela. E mais ainda a maneira com que ela encontrou de descrever isso. O que você escolheu filmar (e o jeito que você fez isso) também foi lindo. A câmera na mão, a falta de foco, o excesso de luzes. Tudo que eu imaginaria a respeito da cidade e das sensações que Elena descreveu nos áudios estava ali, concreto, graças à você. Acho que você também imaginou o que ela passou do mesmo jeito que eu.
Mas não sei, sabe, Petra. Fiquei incomodado. Assim, de verdade. Porque ao mesmo tempo em que eu estava intrigado (e eu juro que estava!) sobre o destino de sua irmã perdida, comecei a achar que a reconstrução dos lugares por meio das imagens, da música e até das entrevistas (especialmente a que fez com sua mãe) eram forçadas. Desculpe. Não quero te chamar de oportunista. Quando o filme chegou ao final (na verdade, antes disso) eu sabia que você não era. Só que essa sensação me acompanhou por um tempo – em sequências inteiras. Fiquei pensando que talvez Elena, o longa, fosse muito mais forte se as cenas fossem menos maquiadas, menos posadas. Fiquei pensando até que ponto o que você dizia era verdadeiro. Se as palavras – tão bonitas! – tinham sido pensadas ou repensadas (mesmo sabendo que elas eram frutos de um roteiro, porque documentários tem roteiros) ou se você falava mesmo daquele jeito. Se as fusões nos quadros, se as transições de imagens e se a teatralidade da coisa toda buscava emular algum momento ou ludibriar pelo simples gosto de manipular. Na parte em que você faz aquela espécie de dança (com as mãos) para falar sobre seu renascimento/superação, por exemplo, cheguei a desacreditar em tudo.
Depois fiquei pensando se isso não era a maneira que você encontrou de exorcizar seus demônios e sentimentos. Porque eu sei que você sentiu de verdade tudo aquilo. Talvez não daquele jeito. Ou talvez exatamente daquele jeito, não sei. (Abro um parentese para confidenciar algo. Aquela coisa que sua mãe disse no momento chave do filme, que ela pensou em… Você sabe, me deixou deveras emocionado. Lembrei da pessoa que mais amei na vida. E das coisas que ela me contou sobre o acontecimento mais triste de todos. E aí senti muito. Por causa do filme, por causa de você e por causa dela.)
Me perdi. Não foi de propósito, eu juro. Voltando a falar sobre a suposta artificialidade… Mandei tudo as favas no final. Quando vi você e seus pares submersos, flutuando, entendi, finalmente, que tudo era verdade, assim, doído mesmo. Porque a metáfora, embora fosse miraculosamente construída (aliás, parabéns à você e a seus diretores de fotografia por a escolha da luz e dos ângulos – vê-las ali, de cima, foi mais do que lindo), dizia muito sobre uma sensação real.
Acho que arte o papel da arte é esse, não é? Falar. Seja com as verdades tangíveis ou as verdades que a gente cria porque elas não existem fora da gente. E sabe, você falou. Comigo, com sua irmã e, tenho certeza, com quem quer que tenha assistido seu filme.
Elena, de Petra Costa, 2013. Elena. Com: Petra Costa e Elena Andrade.
Lá pelo meio de Terapia de Risco eu estava completamente rendida. Pensando que estava diante de um suspense realmente bom (o que não acontecia há um tempo), admirada com a atuação da Rooney Mara (acreditem: Lisbeth Salander é só a ponta do iceberg!) e pensando que, talvez, o Soderbergh devesse mesmo se aposentar, como os boatos recentes afirmam. Gosto da carreira dele de um modo geral, mas sempre digo que as pessoas deviam parar enquanto estão no ápice. Quando faltavam 20 minutos para que os créditos finais de Terapia de Risco subissem, minha opinião se modificou.
A ação de Terapia se inicia quando Martin Taylor (Channing Tatum), um figurão de Wall Street, é liberado da cadeia. Sua esposa, Emily Taylor (Rooney Mara), se encontra fragilizada e sem saber como se adaptar à nova situação. Então, um belo dia, saindo do estacionamento de seu prédio, ela decide chocar o seu carro contra um muro de concreto. A tentativa não resulta em nada mais que alguns arranhões e no encontro entre Emily e aquele que passaria a ser seu psiquiatra, Johnatan Banks (Jude Law). Para ter uma visão mais ampla de Emily, Jon decide entrar em contato com sua antiga psiquiatra, que havia tratado a moça na ocasião da prisão de seu marido, a doutora Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones). Tudo parecia ir muito bem até que num ataque de sonambulismo (um dos efeitos colaterais do antidepressivo receitado por Jon) acaba matando Martin. E, evidentemente, não se lembrando de nada, já que não estava consciente quando o fato se desenrolou.
Desde os primeiros minutos, a trama se desenvolve de uma maneira ágil, que fisga o expectador e o transporta para dentro da tela. Além de intrigados por Emily, ficamos intrigados a respeito do quanto as ações que presenciamos são mesmo culpa da droga e o quanto há ali dos desejos da personagem. Além disso, começamos a pensar sobre o papel da mídia em julgamentos que se tornam conhecidos em território nacional/mundial, a necessidade de se apontar um culpado e sobre a indústria farmacêutica, que disponibiliza para consumo medicamentos cujos efeitos negativos ainda não foram plenamente identificados. Pensamos, então, estar diante de mais uma das história de Soderbergh sobre o impacto que forças muito maiores do que indivíduos podem ter em suas vidas, tal como o diretor havia feito em Erin Brockovich, Contágio e Traffic. O modo escorregadio como tudo isso é construído também serve para reforçar essa impressão, que permanece conosco até que surge o clímax de Terapia de Risco.
A necessidade de dar muitas explicações, o tom forçado dos diálogos e o excesso de reviravoltas (desnecessárias) fazem com que o filme se perca um pouco. E que perca também em impacto. Seria melhor que o roteiro mantivesse algumas coisas em suspenso e, dessa maneira, se poupasse de alguns momentos constrangedores, como a última cena entre Emily e Victoria, digna de fazer parte de um episódio de Revenge (e eu não me lembrei só pelos nomes das protagonistas!) ou de um capítulo de novela das 9. Não somente pelo que foi citado, mas pelo tom fantasioso, completamente fora da realidade das personagens (em especial Victoria), que as coisas assumem nesse momento.
Mesmo que o único problema de Terapia seja o seu clímax, ao fim da projeção tem-se a impressão de que, de alguma forma, o restante foi prejudicado pelo desfecho. Caso essa seja mesmo a despedida de Soderbergh de Hollywood, ele pode ir certo de que criou títulos memoráveis. Mas eu não gostaria que o homem que dirigiu Sexo, Mentiras e Videotape me deixasse como última lembrança um desfecho ruim.
Side Effects, de Steven Soderbergh, 2013. Terapia de Risco. Com: Rooney Mara, Channing Tatum, Jude Law, Catherine Zeta-Jones.
Lembro que meu primeiro contato com Gia – Fama & Destruição (Gia, 1998) foi numa noite entediante anos atrás. Estava buscando algo na TV para me distrair ou pelo menos me dar sono, foi aí que me deparei com Angelina Jolie sendo incrível no papel de Gia. A partir daí não consegui mais desgrudar meus olhos da tela. E olha que essa primeira vez que assisti era dublado.
Baseado numa história real sob a direção de Michael Cristofer, o filme emula um documentário e retrata a trajetória chocante da supermodelo, que fez muito sucesso no fim dos anos 1970 ao início dos anos 1980, Gia Carangi, ou apenas Gia (Angelina Jolie), como ficou conhecida em todo o mundo.
Ela deixa a sua vida de garçonete no restaurante do pai na Filadélfia para arriscar tudo sendo modelo em Nova York. Sem saber e sem se importar muito se não passaria apenas de mais um rostinho bonito, ela faz seu primeiro teste com Wilhelmina Cooper (Faye Dunaway), que mais tarde se torna responsável pela carreira eletrizante dela.
Com um bom desenvolvimento e mesclando entre depoimentos de pessoas próximas de Gia (mãe, o distante pai, algumas pessoas que trabalharam com ela, o grande amor da sua vida etc.) e a angustia relatada pela modelo em seu diário, o longa faz com que, logo de início, o expectador queira consumi-lo de uma só vez.
Gia tinha um crescente desejo dentro si que, aparentemente, nunca foi preenchido, levando-a assim a procurar a resposta de sua tristeza nas drogas. Sempre muito carente, imediatista e manipuladora, logo sua vida pessoal conturbada foi passando por cima de seu trabalho e consequentemente levando-a ao esquecimento.
É um filme triste, reflexivo e apaixonante. Não há como negar que “Too beautiful to die. Too wild to live.” (“Bela demais para morrer. Selvagem demais para viver”) não defina por inteiro, o inteiro que Gia Marie Carangi nos entregou em sua potente e rápida carreira.
Gia, de Michael Cristofer, 1998 Gia – Fama & Destruição. Com: Angelina Jolie, Elizabeth Mitchell, Faye Dunaway, Mercedes Ruehl, Edmund Genest.
É como se fosse um delírio de febre. É, acho que Em Transe (Trance, 2013) é isso. Com cortes rápidos, cores quentes, e ângulos pouco usuais, Danny Boyle retoma os tiques que o tornaram conhecido e soa frenético, esperto e ligeiro.
Ligeiro a ponto de que a gente nem perceba que seu filme tem 101 minutos. Tendo como ponto de partida a vida Simon (James McAvoy), um leiloeiro que se acomuna com alguns bandidos para roubar um quadro de Goya, Em Transe começa rápido e só faz acelerar. Depois de uma abertura impressionante (em que vemos o tal roubo), Boyle reordena os elementos vistos em cena para criar um universo bastante particular. E só quando a doutora Elizabeth (Rosario Dawson, esplêndida) aparece em cena – a fim de fazer com que Simon se recorde onde escondeu o quadro – é que temos noção (e algumas pistas) da verdadeira história que Danny quer contar.
Cheio de bom humor e ritmo, o longa avança em cima das descobertas que Elizabeth faz enquanto Simon está sob efeito de sua hipnotize. Logo percebemos que o leiloeiro traiu seus sócios porque tinha medo de morrer quando entregasse o quadro. E logo notamos que ninguém ali parece totalmente puro. A evolução do trio de protagonistas, aliás, é digna de nota: acrescentando nuances e acentuando ou omitindo traços que sempre estiveram lá, os atores, cheios de carisma, criam composições intrigantes.
Sugestões são desenhadas diante de nossos olhos, apagadas, desmentidas e reforçadas – de acordo com a vontade do diretor. Fica óbvio em determinado momento que Boyle quer que participemos e, por isso, nos entrega todas as fichas para que joguemos e articulemos junto com o filme. Apostando em reviravoltas, o roteiro de Joe Ahearne e John Hodgee apresenta novas camadas a cada sequência. O perigo eminente, as traições e as imagens (que parecem refletir não a realidade, mas a percepção que as personagens tem dos espaços) injetam em Em Transe fôlego e consciência.
Mesmo com algumas pontas soltas e algumas falhas (a falta de química entre Dawson e Cassel, por exemplo), o impacto de Em Transe (tido, em parte, graças ao apuro estético que é notável em todos os minutos) se sobressai a seus defeitos e seu final, didático e explicativo, agrega valor ao recolher todas as pistas deixadas durante a projeção.
E como um espasmo de febre que surge e que vai, Em Transe simplesmente termina. E a gente acha ótimo quando isso acontece.
Trance, de Danny Boyle, 2013. Em Transe. Com: James McAvoy, Vincent Cassel, Rosario Dawson, Danny Sapani, Wahab Sheikn, Tuppence Middleton e Matt Cross.
Aqui está um daqueles filmes que te seduz só pelo curioso cartaz. Ao menos esse foi o meu caso, além dos fatos dele ser de 2009, ter saído há meses em TVs por assinatura e até alguns dias atrás estar na programação de estreias nos cinemas – a distribuidora, Esfera Filmes, desistiu de lançá-lo, pelo menos por enquanto. O que é uma pena, pois com a polêmica em torno do PEC (Proposta de Emenda à Constituição) em alta, certamente as situações iniciais retratadas no longa seriam um prato cheio nas discussões (de mesa de bar) sobre o assunto.
Vencedor de diversos prêmios em festivais mundo à fora, A Criada (La Nana, 2009) conta a história de Raquel (maravilhosamente interpretada por Catalina Saavedra – vale ressaltar), uma empregada introvertida e solitária, que abdica de sua própria vida e familiares para servir a família Valdés – dedicação essa que já perdura há 23 anos. Se sentindo parte pertencente ímpar daquela família, Raquel reluta quando sua patroa anuncia que contratará uma ajudante para ela.
Raquel não vê essa contratação como um alívio no serviço da casa e sim como uma ameaça. Um visível medo da família – especialmente dos filhos – gostarem mais da “impostora” do que dela. Determinada a defender o seu território, Raquel assume de vez sua identidade paranoica e vai desde dar sumiço num gatinho até desinfetar o banheiro toda vez que a ajudante o utiliza.
O que nas primeiras cenas parecia ser uma crítica ríspida sobre essa falsa relação fraternal entre empregado e patrão (Raquel comemorando sua festa surpresa de aniversário organizado pela família, recebendo uniforme de presente e logo levantando da mesa pra lavar o prato de todos), logo se torna um produto de humor negro primoroso. Manobra arriscada do diretor, Sebastián Silva, seguir por uma vertente totalmente oposta a apresentada inicialmente, mas ainda assim muito gratificante para (alguns) espectadores.
La Nana, de Sebastián Silva, 2009. A Criada. Com: Catalina Saavedra, Claudia Celedón, Agustín Silva, Alejandro Goic, Andrea García-Huidobro, Mariana Loyola.
Há algumas semanas li por aí um moço falando que estava curioso em ver como adaptariam para o cinema vida de João de Santo Cristo, personagem da emblemática Faroeste Caboclo, da Legião Urbana. Ele falou que estava intrigado, principalmente, em saber como Maria Lúcia apareceria, do nada, com uma Winchester 22 no duelo final entre Jeremias e João e ninguém perceberia. E como João levaria cinco tiros nas costas e sobreviveria. E, mais do que tudo, ele queria descobrir como o público perceberia que o tal moço que tinha raiva do mundo só queria falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só… Ah, vocês conhecem o resto da música.
O que vocês não conhecem são as invencionices do filme Faroeste Caboclo. E que filme! Se apegando a tríade Jerê-João-Maria, René Sampaio, o diretor, colore as lacunas deixadas pela composição de Renato Russo e cria um conto de amor que funciona a ponto de fazer com que a gente torça e sofra por uma história que a gente já sabe o final.
Isso só acontece porque ele gasta tempo para contar a história de suas personagens e encontra espaço tanto para referenciar a obra que dá base ao filme como também para incrementar com o que ele acha que vai fazer o longa funcionar. Por meio de flashbacks de passagens-chave a gente entende quem é João (Fabrício Boliveira) e o que o motiva. Entende quem é Maria Lúcia. E entende também o porquê dos dois estarem juntos e se apaixonarem. E por mais que a justificativa da postura de antagonista de Jeremias (Felipe Abib) seja torpe, a gente até engole e não se importa muito porque…
Porque todo o resto é animal. Com belos quadros que expressam muito bem a melancolia de Brasília e das personagens que lá vivem, Faroeste Caboclo tem imagens poderosas. Os planos que mostram Maria Lúcia (Isis Valverde) nos telhados enquanto olha a cidade, a infância da personagem título, a chegada de João (saindo da rodoviária e vendo as luzes de natal), e o trecho final são deslumbrantes. A coisa só não é melhor por causa do desenho de som.
Se antecipando muitas vezes, a trilha incidental acaba soando intrusiva e ilustrativa demais. Nos momentos mais leves ela parece piscar para o espectador, dando orientações de “agora você tem que rir”, “ó, fica de olho que vai acontecer algo tenso” e etc. Pior ainda foi a decisão de inserir uma narração óbvia. A gravidade da escolha é tamanha que em determinadas sequências (como na de abertura) a voz de João “briga” com as imagens e as enfraquece, deixando tudo tão mastigadinho e expositivo que a redundância não só confunde como também irrita – o que é uma pena, levando em conta o já mencionado apurado trabalho imagético do longa.
Mas maior do que qualquer equívoco e acidente de percurso (além do problema da trilha, a direção de arte apela para o óbvio nos objetos e cores que compõem a casa da personagem pai de Maria Lúcia), é o final grandioso que René prepara. Se apoiando em referências que vão de De Palma a Sergio Leone, o diretor alterna tons e humores e brinca com o cinema de gênero, fazendo valer o título de faroeste que o longa apresenta.
Poética e impactante, a sequência final é poderosa e coerente com o resto da narrativa – se mostrando tão épica quanto a música que a originou.
Faroeste Caboclo, de René Sampaio, 2013. Faroeste Caboclo. Com: Fabrício Boliveira, Isis Valverde, Felipe Abib, Antonio Calloni, César Troncoso, Rodrigo Pandolfo e Marcos Paulo.
A criatividade dos diretores e roteiristas das décadas de 50 e 60 para driblar a censura e o moralismo está entre as coisas que mais me encantam em produções da época. Especialmente aquelas contando com o nome de Marilyn Monroe, já que, mesmo sem querer, a atriz acabou conhecida pelo forte apelo sexual. Quando ela se encontrava em cena, algumas vezes, o tom de sua voz e a maneira como posicionava o seu corpo eram suficientes para que sugestões sexuais fossem feitas. E num filme que conta com o título original de Let’s Make Love é claro que isso não poderia ser diferente. Portanto, ver cenas como a última canção do longa e a clássica My Heart Belongs To Daddy incluídas no corte final do filme é surpreendente. E isso só aconteceu, sem dúvidas, graças ao roteiro inventivo. Preservando ambiguidades e se apoiando no clichê de que “a maldade está nos olhos de quem vê”, Norman Krasna e Hal Kanter, os roteiristas de Adorável Pecadora, criam algo que, ao expectador de hoje, soa deliciosamente inocente. De uma inocência que provoca, que incita, mas ainda assim inocente.
A ação de Adorável Pecadora se desenvolve quando o playboy Jean-Marc Clement (Yves Montand) descobre que um musical off Broadway, cujo intuito é satirizar a sua vida, está em fase de produção. Ao invés de tentar vetar The Billionaire por meios legais, Jean decide se aproximar dos responsáveis pela produção e conferir o que exatamente é o objeto de escárnio da peça. Em sua primeira aparição no teatro, ele vê a magnética Amanda Dell (Monroe) ensaiando o seu solo no espetáculo. Fascinado pela beleza da moça, bem como pelo fato de que ela não sabe quem ele é, Jean-Marc decide assumir o papel de si mesmo em The Billionaire para poder ter mais contato com Amanda. Em pouco tempo o playboy se encontra intensamente apaixonado por ela e surpreso com o fato de que alguém pode amar mais do que o seu dinheiro. Afinal, para Amanda, ele é um ator que, constantemente, se encontra em dificuldades, assim como tantas outras pessoas do meio.
Daí para frente o longa se dedica a mostrar o relacionamento dos dois. Porém, o verdadeiro objetivo, para mim, está em demonstrar a magia do show business. George Cukor, o diretor do filme, parece mais interessado em explicitar a cena teatral de Greenwich Village do que os seus personagens. Ele demonstra, com maestria, o caos dos bastidores do teatro. Os primeiros ensaios, onde ainda não se sabe bem qual a cara dar a cada personagem; o envolvimento dos patrocinadores que, algumas vezes, pode moldar determinada peça em direções completamente opostas às desejadas… Esse tipo de coisa. E, no fim, vemos como a criatividade, que acaba por superar a falta de recursos e outros empecilhos vivenciados constantemente por artistas, tem um impacto grande e positivo na vida de Clement: seu mundo se torna mais mágico, mais colorido e menos burocrático. Arrisco dizer que a arte foi capaz de transformar partes da personalidade autocentrada do moço. E, claro, o amor também teve lá o seu papel.
Embora algumas pessoas insistam em dizer que não temos Marilyn em seu melhor nesse filme, eu não consigo concordar. A destreza com que Amanda Dell é construída, a inocência e o apelo sexual da personagem nos mostram tudo aquilo que tornou a atriz conhecida. Quando Clement entra no teatro pela primeira vez e vê Amanda ensaiando, o contraste entre o tom meio sacana da canção de Cole Porter e o modo quase angelical com o qual a moça é apresentada (a luz realça a brancura de sua bela e o loiro de seus cabelos) fazem com que o público se torne tão voyeiur quanto Jean-Marc Clement – que fantasia escutar (!) tais canções sugestivas em companhia da atriz. Além disso, Cukor demonstra consciência do amor da câmera por sua estrela e não hesita em abusar da beleza de seu rosto e em apostar em figurinos que realcem as suas curvas.
No fim, Adorável Pecadora não é uma obra prima como os outros musicais de Cukor. Está longe de contar com o glamour e o orçamento astronômico (para a época) de My Fair Lady. Mas é um filme delicioso, cheio de sugestões bem feitas e interessantes, que te mantém preso durante toda a projeção. E, se isso tudo não for suficiente para você, eu tenho certeza que Marilyn no auge de sua beleza será.
Let’s Make Love, de George Cukor. Adorável Pecadora. Com: Marilyn Monroe, Yves Montand, Tony Randall e Frankie Vaughan.
Românticos Anônimos (Les Émotifs Anonymes, 2010) é uma comédia romântica sobre medo. Você deve estar se perguntando: Mas hein? Pois é.
Neste filme francês, escrito e dirigido por Jean-Pierre Améris, o tema principal é a timidez extrema e o medo de viver. Angélique (Isabelle Carré) é uma mulher que tem medo de tudo. Frequenta inclusive um grupo de apoio para pessoas como ela, que começam a compartilhar seus medos com: ‘Olá, sou fulano/a e sou emotivo/a’. Na primeira vez que Angélique se apresenta, sofre um desmaio tal o seu pavor de se expor. O medo de viver é tão grande que Angélique esconde que é uma chocolatière (expert em chocolates) de primeira. Por sete anos conseguiu trabalhar anonimamente em sua casa, se fazendo passar por um ‘ermitão’ que produzia chocolates excelentes, mas quando o dono da loja de chocolates para quem ela trabalhava morre, Angélique se vê numa encruzilhada.
Cantando uma versão francesa de I Have Confidence In Me, música que Julie Andrews cantou no filme A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), Angélique parte para procurar emprego em uma fábrica de chocolates que está à beira da falência. Aqui ela conhece o dono Jean-René (Bonoît Poelvoorde), que sofre dos mesmos males que ela, e cujo lema do pai ficou para sempre em sua mente: ‘Que nada nos aconteça’. Jean-René consegue ser ainda mais fechado e tímido do que a protagonista. Uma das cenas mais tragicômicas acontece num restaurante onde estão tendo o primeiro encontro, e Jean-René precisa se desculpar a cada minuto para ir ao banheiro devido ao nervosismo extremo, e no fim, fica tão mortificado em ter dado um super fora que foge pela janela do banheiro.
Românticos Anônimos não é um filme para cínicos. É um filme para almas como as de Angélique e Jean-René, românticas, sensíveis, medrosas e que lutam diariamente contra seus próprios fantasmas. O melhor de tudo é que o diretor, que sofre dos mesmos males de Jean-René, retratou um assunto pesado com delicadeza e humor. E chocolate, bastante chocolate.
Les Émotifs Anonymes, de Jean-Pierre Améris, 2010. Românticos Anônimos. Com: Isabelle Carré, Benoît Poelvoorde, Lorella Cravotta, Lisa Lamétrie, Pierre Niney e Swann Arlaud.
Os Amantes Passageiros
3.1 648 Assista AgoraA Pele Que Habito. Abraços Partidos. Volver. Má Educação. Fale Com Ela. Tudo Sobre Minha Mãe. A Flor do Meu Segredo. Depois de dramas, melodramas e suspenses, Pedro Almodóvar, o diretor espanhol mais aclamado das últimas décadas, volta em Os Amantes Passageiros (Los Amantes Pasajeros, 2013) a um terreno que conhece muito bem: a comédia.
Mesmo tendo momentos pontuais de humor em todos os seus últimos longas, havia muito que Pedro não se entregava ao escracho e ao riso frouxo com tanta vontade. Retomando e abraçando o exagero de personagens incomuns e tramas absurdas, o diretor cria um filme mosaico que se passa num espaço diminuto, e por meio de pequenos esquetes ele faz rir e choca seu público, seja por declarações inesperadas ou por falas e imagens que beiram a escatologia, na mesma medida.
Costurando subtramas irregulares (há o pai que busca a filha que saiu de casa para ser dominatrix; o ator famoso que mente adoidado para suas mulheres; uma figura estranha e paranoica que acha que a eminente tragédia aérea é um golpe a sua vida; o piloto bissexual que é casado, pai de dois filhos e mantém um relacionamento com seu comissário de bordo; a sensitiva que por ser virgem acha que inibe os homens; o recém casal que só faz dormir; entre outros) em uma história de um voo que enfrenta problemas e não consegue aterrissar porque não tem um dos trens de pouso, Almodóvar, que como de hábito além de dirigir escreve, parece mais interessado em criar boas sequências independentes do que unificá-las em um filme.
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A Professora de Piano
4.0 685 Assista AgoraMichael Haneke é considerado hoje um dos melhores diretores em atividade. Seus últimos dois filmes ganharam a Palma de Ouro em Cannes e foram celebrados como grandes acontecimentos cinematográficos. A Professora de Piano, filme de 2001, é seu primeiro filme maduro em que ele abandona uma estética de violência extremamente gráfica, cheia de referencias a cultura pop e videogames e adota o ar contido, preciso e denso que lhe valeria tantos prêmios.
Isso não quer dizer que A Professora de Piano não seja um filme violento, ele é, e muito, mas se trata de uma violência interna, do corpo, mas principalmente da alma, motivada e por isso muito mais difícil de escapar do que o banho de sangue gratuito que ele apresentou em Funny Games (não por acaso traduzido no Brasil como Violência Gratuita).
O filme é uma adaptação do romance A Pianista, da ganhadora do Nobel Elfriede Jelinek e tem como protagonista Erika Kohut (Isabelle Huppert), uma professora de piano que vive com a mãe controladora e é dona de desejos sexuais obscuros. Erika não é exatamente reprimida sexualmente, mas emocionalmente, a invasão e o controle da mãe não roubam dela apenas a possibilidade de uma existência física, mas também de uma vida interior, de uma personalidade. Haneke é maravilhoso ao construir a relação entre as duas em sutilezas, como Erika dormir na cama da mãe apesar de ter seu próprio quarto, e na interpretação das atrizes, ao invés de inundar seu filme com clichês psicanalíticos e verborragia, o que muitos diretores fariam.
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Boogie Nights: Prazer Sem Limites
4.0 551 Assista AgoraSe você vai fazer um filme sobre algum assunto controverso, polêmico ou qualquer coisa nesse campo semântico, uma coisa que eu considero muito necessária é a ausência de julgamentos. E essa é uma das coisas que faz Boogie Nights – Prazer Sem Limites (Boogie Nights, 1997), do Paul Thomas Anderson, funcionar: os fatos são expostos, as pessoas são mostradas indo a extremos bons e ruins, mas ninguém é condenado por suas ações. O olhar do diretor, aliás, reconhece a humanidade e fraqueza de seus personagens e sabe mostrá-los de um modo natural, sem aquele tom irritante de quem quer catequizar o expectador ou expor algo para que a gente perceba que é feio, sujo e blábláblá.
Boogie Nights é sombriamente cômico, muito divertido e totalmente original. Atravessando o auge da era disco, de 1977 a 1984, o diretor oferece uma exploração visual deslumbrante do cenário do entretenimento adulto – ou, num português claro, da indústria pornográfica. Centrado num grupo de atores, produtores de diretores de filmes hardcore, o longa nos mostra que seus integrantes são como uma família unida. Na saúde, na doença, na alegria e na tristeza, eles estão todos ali uns para os outros. E não é só pela abordagem do tema que Boogie Nights chama a atenção, é também pela técnica de P.T.A., que demonstra segurança, paixão pela exploração de possibilidades e por uma nova maneira de se contar histórias: combinando o lado sórdido de suas personagens com o lado humanitário, Paul mostra que todo mundo é composto de valores dúbios e, por isso, os julgamentos não cabem em suas narrativas.
Em linhas gerais, Boogie Nights trata da ascensão e da queda de Eddie Adams (Mark Wahlberg), um adolescente bonito que trabalha na cozinha de uma boate em San Fernando Valley. Em casa, o ambiente que Edddie encontra não é dos melhores: seu pai é completamente passivo e submisso e sua mãe faz questão de lembrar, a todo tempo, que ele é um fracasso completo. Porém, quando Jack Horner (Burt Reynolds), um produtor pornô de sucesso, o vê na boate em que trabalha, as coisas mudam de figura, já que Jack lhe promete uma carreira promissora no ramo. Ingênuo e manipulável, Eddie, em pouco tempo, fica completamente imerso em seu novo universo que, pelo clima familiar, substitui o afeto de seus pais. E, claro, há também o estilo sedutor de vida, regado a sexo, drogas e rock’n’roll.
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Cinderela Baiana
2.0 1,1KAntes de começar a falar a respeito de Cinderela Baiana, preciso deixar vocês com uma reflexão: haters gonna hate. Sempre. Nada nunca será unânime e estará livre de críticas. Dito isso, a gente pode começar a falar a respeito dessa maravilha esquecida que os anos 90 (sempre eles!) nos proporcionaram.
Quando seu estrelato enquanto dançarina do É O Tchan! atingia o ápice, Carla Perez resolveu que era hora de mostrar ao mundo que era mais do que uma loira gostosa. E o modo que encontrou para fazer isso, foi lançar uma espécie de cinebiografia sua. Narrando a infância pobre no interior da Bahia – e mostrando a pobreza de determinadas regiões do estado -, as dificuldades de perder a mãe ainda na infância e as lutas enfrentadas por Carlinha e seu pai quando partem para Salvador em busca de uma vida melhor, os envolvidos em Cinderela Baiana criaram uma pérola do trash nacional. Embora alguns insistam em dizer que é horrível e não tem mérito nenhum, eu digo que não é bem por aí. Se tem uma coisa que a gente pode bater no peito e falar que diretor, roteirista e atores conseguiram fazer com louvor foi tornar o longa genuíno. Exatamente pela inocência com que tudo é feito. É como se eles não tivessem noção nenhuma do que era necessário. Só contassem mesmo com a vontade de executar o projeto.
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Garçonete
3.5 217Assim como as tortas feitas por Jenna Hunterson, protagonista de Garçonete, tem um sabor especial, esse filme – que num primeiro contato pode parecer apenas mais uma comédia romântica água com açucar – também possui um algo a mais. Dirigido e escrito pela finada Adrienne Shelly, ele parece feito com o mesmo afeto com que a personagem principal cozinha.
Sua história gira em torno de uma garçonete (a fofa Keri Russell, muito à vontade no papel) que trabalha num bar/restaurante de gosto duvidoso. Casada com um homem negligente e grosseiro, grávida e sem perspectivas de mudança, ela passa a notar que sua vida pode se tornar melhor quando surge a chance de participar de um concurso culinário. Para adicionar um “tempero” a mais na trama, a moça nota ainda que é difícil controlar a queda que possui pelo seu médico – e que ele também retribui todo esse encantamento.
Se a trama não é muito inovadora, Adrienne consegue extrair o melhor dela, mostrando bastante carinho por sua criação. Há personagens cativantes, reviravoltas (quase) sempre convincentes, momentos de humor e drama na mesma medida e, principalmente, sentimento. Mas mesmo com um leve tom de conto de fadas, tudo é bastante pé no chão: Jenna se decepciona, esbarra com diversas frustrações, e o máximo de alívio que a trama possui em determinadas sequências são os flashs sonhadores (e saborosos) da garçonete ou a participação de alguns coadjuvantes, como sua melhor amiga ou o resmungão Old Joe.
É uma vida cotidiana, mas com tanto potencial para ser algo mais – e que a protagonista vez ou outra nem nota existir -, que você torce de verdade pra que ela quebre esse “roteiro” quadradinho, encare outros horizontes e se aventure pela vida que sempre quis ter. É essa empatia sincera que torna a experiência de ver Garçonete marcante.
É daqueles filmes que deixam um gosto bom com você depois que termina, com um apanhado de ingredientes misturado com cuidado e fácil de agradar.
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Minha Vida com Liberace
3.7 203 Assista AgoraBem antes de Lady Gaga tentar se mostrar original devido à sua extravagância. Muito, muito antes que a moça se tornasse um astro pop que toca piano de um modo, hmm, peculiar. Décadas antes que Gaga decidisse que vestir o personagem nas ruas e se comportar como ele era legal, houve Liberace (Michael Douglas). E se em Lady Gaga tudo soa como releitura, pastiche ou forçação de barra, em Liberace tudo era originalidade. Os candelabros em cima do piano, as roupas kitsch, o ego gigantesco (exibido no palco e fora dele), as declarações WTF, o estrelato que sobe a cabeça, a necessidade de superexposição e afeto e, claro, o modo como tudo isso pode se tornar destrutivo.
À primeira vista, Steven Soderbergh não pareceu uma escolha muito certeira para fazer tal filme. O colorido que retratar Liberace exigiria, bem como as doses certeiras de trágico e cômico, soavam como algo com o que Almodóvar poderia trabalhar. Mas, o fato é que Soderbergh conseguiu fazer um filme com a sua cara – no sentido de velocidade, agilidade e um tom bastante analítico – e ainda assim dar conta de tratar a respeito de todos os aspectos citados. Por meio do cuidado, quase obsessivo, com a exposição de detalhes e dos excessos – nos figurinos, na casa e na própria personalidade do biografado – o diretor constrói um filme engraçado, vibrante, triste e, porque não, um pouco perturbador. Todas as figuras ali, em algum nível, causam repulsa e piedade. E isso é exposto sem julgamentos e sem objetivos moralizantes. A ausência de uma tomada de partido de Steven Soderbergh mostra que não há um herói ou um vilão na história de Liberace: há apenas pessoas quebradas, carentes e dependentes de aprovação levando as suas necessidades a um extremo destrutivo.
Liberace, principalmente, por sua obsessão por si mesmo, que fica bastante clara quando ele força Scott (Matt Damon) a passar por uma série de cirurgias plásticas para se parecer com um “jovem Liberace”. Mas, ao mesmo tempo, é inevitável que você lamente pelo quanto a fama – e o seu amor por ela – apagaram de sua personalidade. O único objetivo do pianista é conservar seus fãs, não importando quem ele precisa atropelar no trajeto. Desse modo, ficamos sabendo de sua coleção de ex amantes, todos mais jovens, que eram dispensados por seu empresário tão logo um outro rapaz bonito se aproximava dele. Dentro do longa, isso funciona como uma maneira de demonstrar o medo que Liberace tinha da velhice. Era como se mantendo o ambiente e as pessoas ao redor de si jovens, ele conseguisse, de algum modo, se manter jovem. Outro fator que coopera para que o público não sinta desprezo pelo personagem é o fato de que ele era “obrigado” a sustentar mentiras, como um noivado com uma patinadora, para que a verdade sobre sua sexualidade não se tornasse pública, já que isso simbolizaria um baque em sua popularidade.
Scott, o “amante da vez” e aquele que passou mais tempo ao lado do pianista, também é uma figura que nos provoca sentimentos confusos. Sua submissão e vontade extrema de agradar, aliadas a uma certeza de que ele não tinha absolutamente nada se Liberace perdesse o interesse por ele, fazem com que ele abra mão até mesmo o seu rosto e a sua individualidade para conservar o relacionamento dos dois. Após passar pelas cirurgias plásticas, seu rosto fica completamente desfigurado e, aos poucos, seu corpo vai sendo consumido pela “Dieta Californiana” (que consiste, basicamente, em misturar anfetaminas com álcool), indicada a ele por seu cirurgião Jack Startz (Rob Lowe).
E já que estamos falando em Rob Lowe, aqui é preciso ressaltar o trabalho incrível dos responsáveis pela maquiagem de Behind The Candelabra. Lowe se encontra tão deformado e tão grotesco que levamos alguns minutos para reconhece-lo. E o ator compõe um personagem tão asqueroso e tão frívolo que não podemos deixar também de ressaltar o seu talento. Aliás, indo um pouco além, o grande trunfo de Candelabra são os seus atores. Michael Douglas está tão afetado e tão exagerado que chega a irritar, mas que não poderia ser uma representação melhor de Liberace. Arrisco a dizer que caso o filme não tivesse sido feito para a TV, Michael poderia esperar por uma indicação ao Oscar.
Entre excessos e reflexões, um ritmo ágil e muitos cristais svarowski, Steven Soderbergh entrega uma cinebiografia que tem como principal mérito não tentar justificar quaisquer ações de seu “homenageado”. Nem para o bem, e nem para o mal. Parece que o diretor não se importa se gostamos ou não de Liberace, mas antes quer contar a sua história. Com todos os tropeços e enganos possíveis para que a gente possa ter uma dimensão da grandeza e do sucesso do pianista, mas também seja capaz de enxergar o quanto ele tinha de humano e, exatamente por isso, cheio de defeitos.
Behind The Candelabra, de Steven Sodebergh
Behind The Candelabra. Com: Michael Douglas, Matt Daemon, Rob Lowe, Scott Bakula, Randy Lowel, Eric Zuckerman
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Colegas
3.4 606 Assista Agora“As pessoas são como tapete. De vez em quando, precisam de um chacoalhão”.
A frase dita bem no começo do filme por um dos protagonistas de Colegas (Colegas, 2012) – o mais recente filme do diretor Marcelo Galvão (de Belini e o Demônio) e agraciado com o prêmio de melhor filme na Mostra de SP de Cinema e com o Kikito de Ouro do Festival de Cinema de Gramado – funciona como a grande moral do filme.
De um jeito leve e divertido (que em determinados momentos cai até no pastelão), mas sem ser em nenhum momento depreciativo, Marcelo trabalha temas como a quebra de preconceitos, a inclusão e o poder da mídia sensacionalista; em um roadmovie que conta a história de Stalone, Aninha e Márcio, três adolescentes que fogem da clínica em que foram internados por seus pais em busca da realização de seus sonhos (Stalone sonha em ver o mar, Aninha em se casar com um músico e Márcio em voar).
Viciado em filmes, é de Stalone a ideia da fuga da clínica. Os três jovens roubam o carro do zelador do prédio (vivido pelo sempre competente Lima Duarte e que faz as vezes de narrador da história) e para sobreviver durante a viagem, roubam postos de gasolina, supermercados e lanchonetes. A partir daí, a mídia cria o mito da gangue de adolescentes com Síndrome de Down que são altamente perigosos e que causam o terror e a destruição por onde passam. Ao longo do filme, os três se metem em muitas confusões, mas acabam conseguindo (mesmo que acidentalmente) escapar da atrapalhada polícia e indo parar em outro país.
Se Marcelo inovou ao realizar um longa onde os protagonistas têm Síndrome de Down, falhou, entretanto, na construção dos seus diálogos e no desenvolvimento do roteiro. Falta ao filme ritmo e por muitas vezes as ações acabam se tornando repetitivas e pouco criativas. As falas dos personagens dão a impressão de ser um grande arranjado de frases prontas, partindo muitas vezes pra clichês.
Mas as funções sociais e humanas de Colegas ainda são o mais importante e nesse quesito, o roteiro trabalha muito bem. Os protagonistas são felizes e capazes, que sonham, se apaixonam, se emocionam e se aventuram por si, sem precisar de auxílios de outras pessoas. Marcelo colabora assim, para que seja colocada uma pedra definitiva na ideia de que o portador de Síndrome de Down é pior do que uma pessoa que não possui a síndrome.
Mesmo com algumas falhas, Colegas cumpre muito bem a função de inclusão social e de quebra de preconceitos. Duvido que ao terminar o filme, você não esteja com cisco nos olhos e que sua visão não mude em relação a várias coisas da vida. Marcelo Galvão nos faz de tapete. E nos chacoalha muito bem.
Colegas, de Marcelo Galvão, 2012.
Colegas. Com: Ariel Goldenberg, Rita Pokk, Breno Viola, Rui Unas, Deto Montenegro, Juliana Didone, Leonardo Miggiorin e Lima Duarte.
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Ginger & Rosa
3.4 430 Assista AgoraGinger (Elle Fanning) e Rosa (Alice Englert) são amigas desde a infância. Elas nasceram em 1945, o último ano da Segunda Guerra Mundial. Sob o signo de uma constante ameaça nuclear. Desse modo, mesmo que as primeiras sequências em que vemos as duas sejam permeadas por euforia adolescente, seu universo é desenhado por Sally Potter, a diretora do longa, com tons de marrom e cinza, marcado por ambientações que nos transmitem a impressão de umidade e frio. Por meio da criação de tais ambientes, o espectador ganha consciência do contexto de medo em que vivem as personagens título.
Apesar de inseridas nesse espaço, as garotas se comportam como duas adolescentes comuns, que estão descobrindo o seu lugar no mundo e sua própria identidade. Por isso, procuram exercer diversas atividades consideradas adultas. Beijam-se como modo de praticar “para quando for necessário”, fumam seus primeiros cigarros juntas, vão a reuniões de grupos anti-guerra e, para o horror do pai de Ginger, Roland (Alessandro Nivola), visitam uma igreja.
Ginger, pelas influências dos pais e dos amigos deles, é mais voltada para atividades intelectuais. Escreve poesia, ouve jazz e cita Simone de Beauvoir para contra argumentar as afirmações lidas por Rosa em uma revista adolescente. Rosa, por sua vez, dá pouca importância para essas coisas, mas tem mais consciência de sua própria sexualidade e do impacto que possui sobre homens mais velhos. Por mais que pareçam opostas, as meninas se assemelham em um ponto crucial: as duas se encontram à deriva, esquecidas pelas figuras adultas de suas vidas. Dessa forma, o ambiente permissivo em que vivem, acaba funcionando como algo prejudicial, que levará as duas ao limite.
Devido à liberdade que lhes é concedida, durante toda a projeção do longa somos levados a acreditar que elas possuem uma maturidade e um desenvolvimento psicológico que nem mesmo os adultos presentes em sua vida possuem. E é somente quando se encontram completamente fragilizadas que Ginger e Rosa vão deixar transparecer que são apenas adolescentes. Graças a proximidade e ausência de julgamentos com que a câmera filma Elle Fanning e Alice Englert somos capazes de perceber a sua inocência e o quanto ainda são meninas, por mais que se esforcem para parecer mulheres.
Por meio de uma história marcada por altos e baixos, onde o que se passa no interior das personagens tem tanta importância quanto o que ocorre no mundo exterior, Ginger e Rosa nos mostra que amadurecimento não é algo que, simplesmente, vem com o tempo e a idade. É algo que se constrói todos os dias, seja por meio de decepções ou mesmo novas experiências. E isso nunca é algo fácil de se atingir.
Ginger & Rose, Sally Potter, 2013.
Ginger e Rosa. Com Elle Fanning, Alice Englert, Alessandro Nivola, Annette Benning, Oliver Platt, Christina Hendricks, Timothy Spall e Jodhi May.
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Dois Dias em Nova York
2.9 108Quando Julie Delpy lançou 2 Dias em Paris (2 Days In Paris, 2007) – filme que protagonizou, escreveu, musicou e dirigiu – muita gente apontou semelhanças com os trabalhos que a atriz desenvolvia com Richard Linklater, diretor de Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) e Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004). Embora a comparação fosse injusta (as personagens de Delpy tinham alma, originalidade e não eram cópias das figuras de Linklater), ela não era totalmente descabida: tanto nos filmes do diretor quanto no filme de Delpy o interesse do espectador era conduzido por diálogos ora engraçados, ora tristes; a câmera ficava boa parte do tempo na mão; os protagonistas sempre pareciam ir a um lugar; havia a questão das brincadeiras relacionadas as diferenças culturais de seus protagonistas; e, claro, como o próprio título sugeria, havia uma data certa para que os eventos terminassem. Se os ecos de Linklater fizeram com que Julie criasse um filme agridoce que dispunha de um final muito mais significativo do que todos os 100 minutos que o antecediam, nessa espécie de continuação o alvo de Julie é outro.
Com piadas repletas de ironia e sarcasmo, Delpy emula a persona de Woody Allen e cria sua Marion com simpatia e carisma. As semelhanças com Woody, aliás, transcendem os diálogos e aparecem nos óculos de aro grosso e também em algumas características psicológicas.
Interpretando a mesma Marion de seis anos atrás, Julie compreende que não há necessidade de reprisar o papel do outro longa. Em vez disso, ela constrói uma personagem mais leve, menos histérica, tão neurótica quanto antes e, de certa forma satisfeita com a vida que leva (e isso pode ser visto pelo modo que ela se move e também pela postura que adota em situações específicas). A impressão que fica é que Marion, de fato, viveu e aprendeu durante os anos de hiato que separam um filme de outro. Como se nesse ínterim as mudanças que sabemos que aconteceram em sua vida (a separação de Jack, a morte da mãe, o casamento com Mingus, a maternidade) tivessem a moldado. Dito isso, é notável a capacidade da moça (não só como atriz mas também como autora) de delimitar com destreza o perfil de sua personagem (percebam como logo na introdução ela resolve em poucos minutos toda e qualquer questão que tenha ficado em aberto no longa anterior, respondendo com leveza as perguntas que o representante mais afoito do público faria).
Tendo como cenário a cidade de Nova York, o enredo de 2 Dias em Nova York se desenvolve quando Marion e seu esposo, Mingus (Chris Rock), recebem em sua casa seu pai (Albert Delpy, pai da atriz da vida real), sua irmã (Alexia Landeau) e o atual namorado dela (Alexandre Nahon) – que não por acaso é ex-namorado de Marion -. A partir desse momento, confusões rocambolescas relacionadas ao choque cultura (algo que já havia sido retratado em 2 Dias em Paris), ditam o tom do filme e funcionam como motor para que a trama se desenvolva a caminho de uma inevitável catarse.
O bacana é perceber que no repertório de referências absorvidas por Julie há espaço não só para Allen como também para Altman (notem que todos os diálogos são proferidos quase que ao mesmo tempo, acentuando ainda mais a sensação de bagunça e “realidade” – mesmo nas situações mais absurdas), e que o humor que ela realiza transcende a questão textual (a sequência final, por exemplo, mostra que há boas ideias em relação ao humor físico). No fim das contas, até mesmo os arcos que pareceram acrescidos apenas para causar um maior estranhamento (como o fato de Marion vender de papel passado sua alma em uma exposição de arte) passam a fazer sentido, arrancando não só boas risadas como também sorrisos de ternura, revelando que mais do ecos de outros cineastas há algo genuíno (e de certa forma ingênuo) no material que apresenta.
2 Days in New York, de Julie Delpy, 2012.
2 Dias em Nova York. Com: Julie Delpy, Chris Rock, Albert Delpy, Vincent Gallo, Alexia Landeau, Alexandre Nahon, Kate Burton, Dylan Baker e Daniel Brühl.
Publicado originalmente em:
A Morte do Demônio
3.2 3,9K Assista AgoraRemakes podem ter diversas motivações para serem feitos: quando um filme europeu ou latino-americano faz um sucesso inesperado e Hollywood aproveita para vender a ideia ao público americano que não vê filmes com legendas, porque um diretor quer revisitar sua própria obra ou porque parece rentável atualizar um clássico de outras épocas e vende-lo para novas gerações. A Morte do Demônio (Evil Dead, 2013) é sem dúvida o último caso: o filme que lançou Sam Raimi não foi exatamente refeito, mas relido, adaptado ao paladar de uma geração acostumada a zumbis realistas e computação gráfica.
A história sofreu algumas alterações: agora o enredo se centra em Mia, uma jovem que decide largar as drogas e para isso convoca seu irmão e melhores amigos para se internar em uma cabana enquanto ela passa pela abstinência. A tentativa de tornar os personagens mais profundos, mais dramáticos, faz com que o longa comece clichê, mas é um acerto de Fede Alvarez (o estreante que dirige o filme, produzido pelo próprio Raimi) manter essa história apenas como pano de fundo e usa-la quando convém para amarrar a trama dos demônios. O que se segue é a mesma coisa do filme original: os jovens encontram um livro encapado em pele no porão, sem querer liberam os demônios que habitam a floresta e durante 40 minutos subsequentes eles lutam por suas vidas.
A Morte do Demônio sem dúvidas começa fraco: a explicação desnecessária para os demônios na floresta, a menina viciada, o drama entre ela e o irmão, as atuações ruins… Tudo isso soa como Stigmata, Na Companhia do Medo, ou qualquer filme de terror supostamente profundo e sem graça. Mas quando o sangue começa a jorrar na tela, Alvarez se encontra.
Se havia algo de genuinamente perturbador na artificialidade do primeiro Evil Dead, aqui, ao menos em um primeiro momento, o terror vem por meio do realismo. As feridas e o sangue são realistas suficiente para que o espectador se incomode, a dor dos personagens causa uma reação real e por vezes a sala toda interage em expressões de nojo e aflição. Funciona, incomoda, mas falta charme, ironia e tudo aquilo que tornou tão emblemático o original.
Mas a violência escala rapidamente e o que era realista vai se tornando absurdo. Os personagens decepam os próprios membros sem qualquer apego e em jatos de sangue dignos de Tarantino, o filme assume definitivamente sua veia trash e demonstra porque é um remake que funciona.
A Morte do Demônio não é fiel ao original, mas o tem sempre em mente: há pequenas referências divertidas, como um moletom da Michigan University, há uma personagem que desenha, e mesmo a forma do colar que o irmão de Mia dá de presente a ela. E se por um lado existem alterações de roteiro, por outro Alvarez chega até a repetir planos de Raimi e toda sua decupagem é uma homenagem ao cineasta. A consciência que o diretor tem de seu trabalho e do objetivo de seu filme também ajudam.
Alvarez sabe que precisa vender, sabe que o que está fazendo é tentar atrair uma audiência fascinada com The Walking Dead para os filmes de terror e quem sabe dar novo fôlego comercial ao gênero e ironiza suas próprias saídas fáceis. Ele dá uma trilha sonora brega e planos com cara de anos 80 a cena mais emocionalmente dramática do filme, faz sua protagonista arrancar o braço de baixo de um carro como se fosse borracha e termina tudo com uma chuva (literalmente) de sangue. É nojento, irreal e sim, ruim, mas é exatamente isso que se espera de A Morte do Demônio e funciona.
No fim, o remake não é inventivo, ou original como o filme de Sam Raimi, mas não o perde de vista, honra sua memória e assume com dignidade o trabalho de atualiza-lo e devolve-lo a vida. Cumpre sua função de incomodar, entrega a quantidade de sangue esperada e, mesmo sem a ironia fina do primeiro, diverte.
Evil Dead, de Fede Alvarez, 2013.
A Morte do Demônio. Com: Jane Levy, Shiloh Fernandez, Lou Taylor Pucci, Jessica Lucas e Elizabeth Blackmore.
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O Abismo Prateado
3.3 214 Assista Agora“Quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem. Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci. Mas depois, como de costume, obedeci.“
Parece meio absurda a ideia de criar um filme inteiro tendo como base alguns versos de uma música de poucos minutos. Não, não parece absurdo. Parece desnecessário. E impraticável. Como é possível prolongar um momento que dura segundos em sequências de minutos inteiros? Em O Abismo Prateado (O Abismo Prateado, 2013), novo filme de Karim Aïnouz, funciona como resposta.
Sem se preocupar em estabelecer um enredo propriamente dito, Aïnouz foca a sua atenção em uma única personagem. Com a câmera colada no rosto de sua atriz principal durante quase toda a projeção, o diretor traduz em quadros (um mais bonito do que o outro) suas angústias mais íntimas. Não há amarras ou limites. Tudo parece solto, alinhavado. Como se estivéssemos diante de uma experiência totalmente orgânica. O desespero não só soa real como também parece tangível, palpável.
Por meio de enquadramentos fechados, de uma montagem que corta frames quando julga necessário, de uma trilha musical que é quebrada por silêncios e de uma câmera que emula toda a subjetividade da insanidade, O Abismo Prateado consegue fazer com que criemos um laço verdadeiro com Violeta (Alessandra Negrini).
Quase sem diálogos, o roteiro escrito por Beatriz Bracher, com base na música Olhos nos Olhos, de Chico Buarque, acompanha o cotidiano de uma dentista que vê seu mundo desabar quando recebe uma ligação de seu esposo dizendo que está a abandonando. Agindo por impulso, ela deixa seu consultório, vai atrás de seu marido e na busca por um sentido experimenta sensações de tédio, vazio, preenchimento, compaixão e ternura.
Se o filme funciona em seu silêncio, o mérito não é só de Karim, mas também de Alessandra Negrini. Defendendo com os dentes sua Violeta, a atriz consegue comunicar a confusão mental e emocional de sua personagem sem precisar de momentos catárticos. A sutileza da composição pode ser vista na sequência em que ela pega um táxi e a taxista tenta conversar acerca de sua vida pessoal. A maneira com que ela reage, estando distante e respondendo de maneira monossilábica (demonstrando resquícios de melancolia e confusão e ainda assim parecendo doce) ilustra bem a meticulosidade e complexidade do trabalho.
… E a tal música que inspirou a obra finalmente dá as caras no final do longa. De duas maneiras inesperadas. E o final, em si, coerente e cheio de significado, funciona como alento e permite que nós, espectadores, voltemos a respirar com facilidade depois de 85 minutos de tensão. E mostra, de uma vez por todas, que é possível sim adaptar alguns versos em filme. Neste caso, em um ótimo filme.
O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz, 2013.
O Abismo Prateado. Com: Alessandra Negrini, Thiago Martins e Otto Jr.
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Ferrugem e Osso
3.9 821 Assista AgoraAs personagens principais de Ferrugem e Osso (De Rouille et D’Os, 2012) são fortes. Cada qual a sua maneira, elas demonstram sua força através de seus corpos, suas palavras, suas ações e, principalmente, suas reações.
Quando colocadas em frente a problemas reais, as duas titubeiam. Demonstram medo. Insegurança. E erram. Tais quais pessoas de verdade. Talvez esse seja o grande mérito do filme: durante todo o tempo, Jacques Audiard, o diretor, não se esforça para que gostemos de seus protagonistas. E parece não fazer esforços para que os odiemos. É tudo natural.
Lidando com dois tipos quebrados – tanto física quanto emocionalmente -, Audiard narra a evolução de seres diferentes que se encontram em momentos nada felizes de suas vidas. Stéphanie, interpretada por Martion Cottilard, é inteligente, independente e incrivelmente bonita. Tudo parece funcionar em sua vida, até que durante um espetáculo em um parque aquático uma baleia a ataca e, por consequência, ela perde suas pernas. Alain, vivido por Matthias Schoenaerts, compõe o outro polo do longa de um jeito impulsivo, violento e bruto. Sua personagem é uma sobrevivente. Pai solteiro, não se relaciona com ninguém intimamente. Sexo é sexo, briga é briga e a vida, como um todo, é simples – e brutal.
O choque de cultura e as situações limites que cada um passa entre os 120 minutos de filme nos fazem crer que estamos assistindo, como intrusos, dois personagens que não buscam redenção – apenas sobrevivem sem a menor perspectiva de felicidade (por esse motivo, cenas como a de que Alain ganha uma luta ganha um significado todo especial, visto que tanto ele quanto Stéphanie experimentam uma sensação de felicidade genuína que, não por acaso, foi alcançada a custo de sangue e dor).
A paleta de cores gelada, a ausência de trilha musical durante quase todo o tempo, e a escassez das palavras, tornam Ferrugem e Osso uma experiência dolorosa. Funcionando muito bem graças a montagem (repare como o uso inteligente da trilha sonora e os cortes da imagem na sequência em que Stéphanie sofre o acidente causa tensão) e a atuação de Cotillard e Matthias Schoenaerts (ambos indicados em Cannes ano passado nos prêmios de atuação), o filme exige do espectador bastante atenção para que suas sutilezas sejam notadas e apreciadas. Mesmo com momentos catárticos, como a sequência em que a personagem de Marion descobre que não tem mais suas pernas, alguns dos instantes mais sutis são tão fortes e impactantes quanto. A cena em que Alain sugere que poderia transar com Stéphanie, por exemplo, revela muito sobre o caráter de ambos.
Essa sutileza que permeia todo o relacionamento dos dois é quebrada abruptamente no terceiro ato do longa. Se até então a condução de Ferrugem e Osso dava sinais que não haveria redenção para Stéphanie e Alain, no final, todo o trabalho de composição é quase que jogado fora em decorrência a um fato que soa artificial e parece ter como único propósito oferecer um tipo de felicidade pré-fabricada aos espectadores e as personagens.
O problema só não chega a ser maior porque os atores realmente acreditam no que fazem, e também porque o texto do diretor, escrito em parceria com Thomas Bidegain e Craig Davidson, guarda para os últimos minutos o trecho falado mais bonito de todo o longa (que justifica, entre outras coisas, o título do filme). As palavras são tão avassaladoras que permanecemos atônicos mesmo após o fim – que tal qual o destino de suas personagens, soa incompleto, melancólico, agridoce e extremamente possível. E forte. Bem forte.
De Rouille et D’Os, de Jacques Audiard, 2012.
Ferrugem e Osso. Com: Marion Cotillard, Matthias Schoenaerts, Armand Verdure, Céline Sallette, Bouli Lanners e Corinne Masiero
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Cores
2.8 52Cores (Cores, 2012) é um filme cínico. Dotado de um humor que não provoca riso, mas sorrisos amargos, o longa é construído de contrastes – o que fica óbvio logo de cara por causa de seu título (todo o filme é em branco e preto), suas personagens (todos são jovens, cheios de sonhos, vivem numa cidade que não para e mesmo assim são absorvidos pelo tédio) e situações quase absurdas, originadas por pensamentos banais.
As observações feitas por seus protagonistas soam cruéis e honestas e, às vezes, pretensiosas. Em linhas gerais, pode-se dizer que Cores fala sobre três amigos que em meio a uma rotina massacrante passam o tempo conversando, se preocupando com contas, bebendo, se drogando vez ou outra e, eventualmente, transando. Essa inquietude, prolixidade e falta de ação representa muito bem o estado de espírito das pessoas que vemos em cena e também serve para adjetivar o próprio filme. Sem uma trama definida, a câmera de Francisco Garcia, diretor e co-roteirista do projeto, percorre corpos e rostos criando quadros bonitos e explorando espaços, parecendo buscar, tal qual as personagens que mostra, uma cura para o próprio tédio.
Tédio este que é demonstrado lindamente na sequência em que jovens bebendo e se divertindo parecem tristes, na parte em que os amigos decidem ir para praia e o carro quebra e também num momento chave em que uma metáfora de purificação ganha vida em imagens (maravilhosamente fotografadas).
Se as intenções são boas e as ideias também, o mesmo não se pode dizer da execução. Enfraquecido com diálogos pobres (a parte em que a mocinha encontra um affair chega a ser constrangedora por conter frases feitas e lugares comuns) e atuações um tanto quanto artificiais (por parte de Pedro di Pietro e Guilherme Leme), Cores exige do espectador uma certa condescendência para ser apreciado e, em contrapartida, parece não oferecer nada em troca.
É como se o vazio e a vulgaridade (normalidade?) opaca de seus protagonistas contaminasse todo o longa. E isso não é de todo mal, uma vez que o projeto ganha pela honestidade: enquanto versa sobre o tédio e sobre o nada ele, ao final de tudo, entrega exatamente isso.
Cores, de Francisco Garcia, 2012.
Cores. Com: Acauã Sol, Simone Iliescu, Pedro di Pietro, Maria Célia Camargo, Guilherme Leme, Graça de Andrade e Tonico Pereira.
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Amor Profundo
3.2 180 Assista AgoraNos primeiros minutos de Amor Profundo (The Deep Blue Sea, 2011), comecei a pensar a respeito das semelhanças entre Hester, personagem defendida brilhantemente por Rachel Weisz, e outras duas protagonistas de histórias de amor com cunho trágico, Emma Bovary e Anna Karenina. Pensem comigo: Hester é uma vítima de suas próprias paixões e decisões. Não importa o quanto seus amores sejam destrutivos, ela insiste em vivê-los porque não consegue conceber a sua vida sem tais sentimentos. Frequentemente associa o amor e a morte. Perceberam? Pois é. Hester parece ter saído diretamente de um romance realista do século XIX. Você pode estar pensando que isso soa deslocado, mas a verdade é que tais histórias são atemporais: sempre vai existir uma mocinha trágica disposta a se jogar na linha do trem por um sujeito charmoso e covarde.
Hester é casada com um juiz, William Coyller (Simon Russel Beale), pelo menos duas décadas mais velho do que ela. Nas sequências em que a vemos acompanhada do marido, percebemos que ela não se encaixa no universo do qual ele faz parte – o que é evidenciado especialmente pela visita que fazem à mãe aristocrática e arcaica (Ann Mitchell) de William -, mas que nutre por ele alguma espécie de ternura. Ele, por sua vez, a ama. O problema entre os dois não é a idade, a mãe ou mesmo a sensação de não pertencimento: Hes procura por um amor que a faça perder o controle e a tranquilidade oferecida por Bill nunca será capaz de preencher essa necessidade.
E é aí que entra o outro vértice desse triângulo, o ex-militar Freddie Page (Tom Hiddleston). Freddie sabe exatamente o que dizer, quando dizer e em que tom dizê-lo. É irresistivelmente charmoso e seu mundo é excitante, marcado por noites de bebedeira, música e dança. Enfim, tudo o que é oferecido por ele está bem distante da polidez e da apatia a que Hester estava acostumada. Porém, como se poderia esperar, as coisas com Freddie não são estáveis. Há brigas demais, negligência demais. Tudo parece ser regido por impulsos e não há espaço para considerar como as ações praticadas afetam o outro. Ele lhe oferece a intensidade que ela buscava, mas isso vem com um preço que, ao expectador, parece alto demais.
O cenário do pós-guerra em Londres serve para reforçar a bagunça psicológica de Hester. O caos em que se encontra é encenado por Terrence Davies como se fosse uma ópera, de modo que o longa é iniciado pelo Concerto para Violino e Orquestra Opus 14, de Samuel Barber. Durante seus sete primeiros minutos não se tem uma fala. Vê-se somente algumas lembranças de Hes, filmadas de um jeito muito etéreo e luxuoso, que reforça a ideia de que a personagem paira entre a vida e a morte. Posteriormente, quando ela é “acordada” e a ação do filme começa a se desenvolver, a postura dos atores em cena e o jeito com que os diálogos são construídos nos remetem ao teatro e nos fazem lembrar daquilo que serviu como matéria prima para a confecção do roteiro de Amor Profundo: uma peça de mesmo nome, escrita em 1952, por Terrence Rattingan.
Amor Profundo é uma das coisas mais arrebatadoras que assisti em um tempo considerável. Pelas cores utilizadas, pelos planos, pelos diálogos certeiros… Mas, principalmente, por que é orgânico e humano.
The Deep Blue Sea, de Terrence Davies, 2011.
Amor Profundo. Com: Rachel Weisz, Tom Hiddleston, Simon Russel Beale, Ann Mitchell.
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Homem de Ferro 3
3.5 3,4K Assista AgoraEm 2008, a Marvel decidiu investir em um filme do Homem de Ferro, personagem um tanto desconhecido de seu universo e visto com ressalvas mesmo por aqueles envolvidos com HQs. O carisma de Robert Downey Jr. e o foco no humor ácido do personagem fizeram do filme um sucesso inesperado e hoje Tony Stark é a maior estrela do estúdio.
Homem de Ferro 3 vem na esteira da bilheteria absurda de Os Vingadores e o filme parece exatamente isso: a Marvel ganhando dinheiro certo e apostando no “em time que está ganhando…”
A trama começa com um Tony Stark em crise: assombrado pelos acontecimentos de Os Vingadores e tendo problemas para se adaptar ao posto de homem maduro exigido por Pepper Potts agora que ela passou de secretária-babá para namorada. Stark será tirado de sua inércia quando um ataque terrorista fere gravemente seu amigo e ex-segurança e a investigação o leva ao perigoso terrorista Mandarim. No entanto, ele precisa fazer isso sem sua conhecida armadura, que foi danificada em uma explosão organizada pelo vilão.
Filmes de super-herói são em primeiro lugar filmes de ação e, sendo assim, viradas complicadas de roteiro e mergulhos profundos na psicologia dos personagens podem ser dispensados. Foi o que fez Os Vingadores com bastante eficiência. Por outro lado, era um filme de conjunto que tratava de uma “mitologia” extensa e que tinha na química entre seus personagens o elemento que amarrava as explosões e ets. Homem de Ferro é um filme de um homem só e esse homem, a exemplo da maior parte dos super-heróis, é uma figura controversa.
Mas Tony Stark não é controverso como o Batman, ou mesmo a Viúva Negra, seu personagem não tem grandes traumas do passado ou demônios internos, ao contrário, a dificuldade da personalidade de Stark está exatamente em sua imensa frivolidade e o novo filme parece esquecer disso. Não faz muito sentido que Stark seja assombrado pelo que aconteceu em Nova Iorque, menos ainda porque seu personagem parecia estar quase se divertindo no filme anterior. Além disso, o conflito homem real X super herói ou a trama em que um herói perde seus poderes (no caso, a armadura) e deve encontrar sua força dentro do homem comum é o clichê do clichê dos filmes de super-herói.
Homem de Ferro 3 quer dar ao personagem uma profundidade que ele não possui e acaba perdendo o que ele tem de característico e interessante. Ao tentar tornar Tony Stark tridimensional tudo que a Marvel consegue é deixa-lo plano e sem a mesma graça dos filmes anteriores.
Embora o carisma de Downey Jr. continue funcionando, as melhores piadas vem de um garotinho de 10 anos. Apesar disso as sequências de ação são eficientes e a virada de roteiro do Mandarim é quase genial (e um tapa na cara dos que duvidaram da possibilidade de adaptar o personagem).
Outro problema, que para maior parte do público talvez não chegue a ser um problema, é que a Marvel desperdiça de novo a chance de ter uma personagem feminina forte. Pepper Potts é inteligente, eficiente e capaz de comandar uma empresa gigantesca, mas está constantemente no lugar de donzela em perigo. Exceto por uma sequência de talvez 30 segundos, tudo que Potts faz é cobrar Stark, ser incapaz de vê-lo pelo que é, achar a armadura uma perda de tempo (vamos lembrar que o Homem de Ferro foi um dos maiores responsáveis pela vitória em Os Vingadores) e precisar ser salva por ele. Talvez esse tipo de enfoque seja parte do motivo pelo qual eu era a única mulher não acompanhando o namorado em uma sessão lotada de sábado à noite.
No fim, Homem de Ferro 3 diverte, mas não com o frescor que costumava apresentar, nem com a despretensão de Os Vingadores. É um filme morno, menos ruim do que Thor, mas bem aquém das possibilidades do personagem.
Iron Man 3, de Shane Black, 2013.
Homem de Ferro 3. Com: Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow, Guy Pearce, Don Cheadle, Ben Kingsley.
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Doméstica
3.8 124“Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé, que vai defender a classe operária, salvar a classe operária e cantar o que é bom para a classe operária. Nenhum operário foi consultado, não há nenhum operário no palco, talvez nem mesmo na plateia, mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários. Os operários que se calem. Que procurem seu lugar, com sua ignorância, porque Tom Zé e seus amigos estão falando do dia que virá e na felicidade dos operários.”
Trecho da música Classe Operária, de Tom Zé.
Doméstica (Doméstica, 2013) se vende como um filme sobre aquelas que sempre foram coadjuvantes: as empregadas mensalistas. Mas a verdade é que o documentário de Gabriel Mascaro é sobre outra coisa. Ou melhor, outras coisas.
Dando a missão de retratar a vida de suas empregadas, Gabriel entrega a sete jovens de diferentes classes sociais, regiões e hábitos uma câmera. Não há regra pré-estabelecida. Basta filmar o que eles acharem interessante. Parece banal, não é?
Mas não, não é. Criando antagonistas e denunciando a hipocrisia latente desses que são verdadeiros “sinhozinhos”, Gabriel monta os recortes de olhares com uma coerência assustadora. A cada filmete a intenção do diretor fica mais clara e percebemos que por mais diferente que sejam a vida das empregadas retratadas todas as histórias possuem pontos em comum.
Desse modo, pode-se dizer que o traço mais marcante de Doméstica é a vaidade explícita de alguns patrões. Cada um, cada qual a sua maneira, demonstra diferentes níveis de interesse por suas empregadas e parecem mais preocupados em demonstrar que são bondosos para com eles ao dizer frases como “ela é quase da família” ou “ele come da minha comida“, fazendo com que a doméstica, que deveria ser o foco, acabe como um mero veículo de exibição. Então Gabriel revela que o filme não é sobre domésticas, mas sobre seus chefes e as relações deles para com elas.
Por sua vez, as empregadas retratadas apresentam traços que variam entre ingenuidade, submissão e ressentimento. Percebemos por olhares e por respostas ora espontâneas, ora pensadas; diferentes tipos de nuances e sentimentos.
O último segmento, em especial, sintetiza muito bem as intenções dos filmes. O garoto que o registra parece alheio a vida da pessoa que o serve, e, quando ele toca uma música de Bob Dylan e olha o vazio, vira vilão da história. Sua mãe, que depõe a respeito da mulher que é apenas quatro anos mais velha que ela e que brincava junto com ela na infância, demonstra resquícios de culpa e condescendência. A mensalista, por outro lado, revela com suas pausas e silêncios suas verdadeiras emoções. É como se ela não pudesse dizer que não é feliz porque sabe das consequências que suas palavras terão. Então, nesse exercício sutil de observação, as coisas continuam como estão.
E continuam mesmo. Ao final do filme percebemos que algumas daquelas mulheres eram filhas de outras mulheres com a mesma profissão – mostrando que as raízes escravagistas se fazem presentes, mesmo que veladas. Percebemos também que há quem deixe os filhos com uma empregada para trabalhar como empregada em outro lugar. Notamos e sentimos o abandono de um certo personagem. E percebemos, principalmente, que há uma infinidade de sentimentos por todo o lado.
Domésticas, de Gabriel Mascaros, 2013.
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Elena
4.2 1,3K Assista AgoraPetra,
Na última sexta-feira assisti ao filme que você fez a respeito de sua irmã, Elena. Fiquei muito impressionado. Ele era muito bonito.
A combinação de sua voz, tão doce e baixa, com aquelas imagens, recortes de registros e música, fizeram com que eu me sentisse íntimo e próximo de você e de Elena. Veja só que bobagem! Eu, que nunca as conheci, estava ali, numa sala escura, não só interessado como também absorto em suas vidas. Era como se estivesse lendo (vendo?) por cima dos ombros uma carta endereçada a outra pessoa. Como se o real destinatário soubesse de minha indiscrição, mas não se importasse.
De certa maneira eu fiz mesmo isso, não fiz? Na verdade, você que fez quando mostrou as cartas em áudio que sua irmã tinha feito durante o tempo em que esteve em Nova York querendo ser atriz de cinema. Achei bonito demais da conta o sonho dela. E mais ainda a maneira com que ela encontrou de descrever isso. O que você escolheu filmar (e o jeito que você fez isso) também foi lindo. A câmera na mão, a falta de foco, o excesso de luzes. Tudo que eu imaginaria a respeito da cidade e das sensações que Elena descreveu nos áudios estava ali, concreto, graças à você. Acho que você também imaginou o que ela passou do mesmo jeito que eu.
Mas não sei, sabe, Petra. Fiquei incomodado. Assim, de verdade. Porque ao mesmo tempo em que eu estava intrigado (e eu juro que estava!) sobre o destino de sua irmã perdida, comecei a achar que a reconstrução dos lugares por meio das imagens, da música e até das entrevistas (especialmente a que fez com sua mãe) eram forçadas. Desculpe. Não quero te chamar de oportunista. Quando o filme chegou ao final (na verdade, antes disso) eu sabia que você não era. Só que essa sensação me acompanhou por um tempo – em sequências inteiras. Fiquei pensando que talvez Elena, o longa, fosse muito mais forte se as cenas fossem menos maquiadas, menos posadas. Fiquei pensando até que ponto o que você dizia era verdadeiro. Se as palavras – tão bonitas! – tinham sido pensadas ou repensadas (mesmo sabendo que elas eram frutos de um roteiro, porque documentários tem roteiros) ou se você falava mesmo daquele jeito. Se as fusões nos quadros, se as transições de imagens e se a teatralidade da coisa toda buscava emular algum momento ou ludibriar pelo simples gosto de manipular. Na parte em que você faz aquela espécie de dança (com as mãos) para falar sobre seu renascimento/superação, por exemplo, cheguei a desacreditar em tudo.
Depois fiquei pensando se isso não era a maneira que você encontrou de exorcizar seus demônios e sentimentos. Porque eu sei que você sentiu de verdade tudo aquilo. Talvez não daquele jeito. Ou talvez exatamente daquele jeito, não sei. (Abro um parentese para confidenciar algo. Aquela coisa que sua mãe disse no momento chave do filme, que ela pensou em… Você sabe, me deixou deveras emocionado. Lembrei da pessoa que mais amei na vida. E das coisas que ela me contou sobre o acontecimento mais triste de todos. E aí senti muito. Por causa do filme, por causa de você e por causa dela.)
Me perdi. Não foi de propósito, eu juro. Voltando a falar sobre a suposta artificialidade… Mandei tudo as favas no final. Quando vi você e seus pares submersos, flutuando, entendi, finalmente, que tudo era verdade, assim, doído mesmo. Porque a metáfora, embora fosse miraculosamente construída (aliás, parabéns à você e a seus diretores de fotografia por a escolha da luz e dos ângulos – vê-las ali, de cima, foi mais do que lindo), dizia muito sobre uma sensação real.
Acho que arte o papel da arte é esse, não é? Falar. Seja com as verdades tangíveis ou as verdades que a gente cria porque elas não existem fora da gente. E sabe, você falou. Comigo, com sua irmã e, tenho certeza, com quem quer que tenha assistido seu filme.
Elena, de Petra Costa, 2013.
Elena. Com: Petra Costa e Elena Andrade.
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Terapia de Risco
3.6 1,0K Assista AgoraLá pelo meio de Terapia de Risco eu estava completamente rendida. Pensando que estava diante de um suspense realmente bom (o que não acontecia há um tempo), admirada com a atuação da Rooney Mara (acreditem: Lisbeth Salander é só a ponta do iceberg!) e pensando que, talvez, o Soderbergh devesse mesmo se aposentar, como os boatos recentes afirmam. Gosto da carreira dele de um modo geral, mas sempre digo que as pessoas deviam parar enquanto estão no ápice. Quando faltavam 20 minutos para que os créditos finais de Terapia de Risco subissem, minha opinião se modificou.
A ação de Terapia se inicia quando Martin Taylor (Channing Tatum), um figurão de Wall Street, é liberado da cadeia. Sua esposa, Emily Taylor (Rooney Mara), se encontra fragilizada e sem saber como se adaptar à nova situação. Então, um belo dia, saindo do estacionamento de seu prédio, ela decide chocar o seu carro contra um muro de concreto. A tentativa não resulta em nada mais que alguns arranhões e no encontro entre Emily e aquele que passaria a ser seu psiquiatra, Johnatan Banks (Jude Law). Para ter uma visão mais ampla de Emily, Jon decide entrar em contato com sua antiga psiquiatra, que havia tratado a moça na ocasião da prisão de seu marido, a doutora Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones). Tudo parecia ir muito bem até que num ataque de sonambulismo (um dos efeitos colaterais do antidepressivo receitado por Jon) acaba matando Martin. E, evidentemente, não se lembrando de nada, já que não estava consciente quando o fato se desenrolou.
Desde os primeiros minutos, a trama se desenvolve de uma maneira ágil, que fisga o expectador e o transporta para dentro da tela. Além de intrigados por Emily, ficamos intrigados a respeito do quanto as ações que presenciamos são mesmo culpa da droga e o quanto há ali dos desejos da personagem. Além disso, começamos a pensar sobre o papel da mídia em julgamentos que se tornam conhecidos em território nacional/mundial, a necessidade de se apontar um culpado e sobre a indústria farmacêutica, que disponibiliza para consumo medicamentos cujos efeitos negativos ainda não foram plenamente identificados. Pensamos, então, estar diante de mais uma das história de Soderbergh sobre o impacto que forças muito maiores do que indivíduos podem ter em suas vidas, tal como o diretor havia feito em Erin Brockovich, Contágio e Traffic. O modo escorregadio como tudo isso é construído também serve para reforçar essa impressão, que permanece conosco até que surge o clímax de Terapia de Risco.
A necessidade de dar muitas explicações, o tom forçado dos diálogos e o excesso de reviravoltas (desnecessárias) fazem com que o filme se perca um pouco. E que perca também em impacto. Seria melhor que o roteiro mantivesse algumas coisas em suspenso e, dessa maneira, se poupasse de alguns momentos constrangedores, como a última cena entre Emily e Victoria, digna de fazer parte de um episódio de Revenge (e eu não me lembrei só pelos nomes das protagonistas!) ou de um capítulo de novela das 9. Não somente pelo que foi citado, mas pelo tom fantasioso, completamente fora da realidade das personagens (em especial Victoria), que as coisas assumem nesse momento.
Mesmo que o único problema de Terapia seja o seu clímax, ao fim da projeção tem-se a impressão de que, de alguma forma, o restante foi prejudicado pelo desfecho. Caso essa seja mesmo a despedida de Soderbergh de Hollywood, ele pode ir certo de que criou títulos memoráveis. Mas eu não gostaria que o homem que dirigiu Sexo, Mentiras e Videotape me deixasse como última lembrança um desfecho ruim.
Side Effects, de Steven Soderbergh, 2013.
Terapia de Risco. Com: Rooney Mara, Channing Tatum, Jude Law, Catherine Zeta-Jones.
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Gia - Fama e Destruição
4.0 645 Assista AgoraLembro que meu primeiro contato com Gia – Fama & Destruição (Gia, 1998) foi numa noite entediante anos atrás. Estava buscando algo na TV para me distrair ou pelo menos me dar sono, foi aí que me deparei com Angelina Jolie sendo incrível no papel de Gia. A partir daí não consegui mais desgrudar meus olhos da tela. E olha que essa primeira vez que assisti era dublado.
Baseado numa história real sob a direção de Michael Cristofer, o filme emula um documentário e retrata a trajetória chocante da supermodelo, que fez muito sucesso no fim dos anos 1970 ao início dos anos 1980, Gia Carangi, ou apenas Gia (Angelina Jolie), como ficou conhecida em todo o mundo.
Ela deixa a sua vida de garçonete no restaurante do pai na Filadélfia para arriscar tudo sendo modelo em Nova York. Sem saber e sem se importar muito se não passaria apenas de mais um rostinho bonito, ela faz seu primeiro teste com Wilhelmina Cooper (Faye Dunaway), que mais tarde se torna responsável pela carreira eletrizante dela.
Com um bom desenvolvimento e mesclando entre depoimentos de pessoas próximas de Gia (mãe, o distante pai, algumas pessoas que trabalharam com ela, o grande amor da sua vida etc.) e a angustia relatada pela modelo em seu diário, o longa faz com que, logo de início, o expectador queira consumi-lo de uma só vez.
Gia tinha um crescente desejo dentro si que, aparentemente, nunca foi preenchido, levando-a assim a procurar a resposta de sua tristeza nas drogas. Sempre muito carente, imediatista e manipuladora, logo sua vida pessoal conturbada foi passando por cima de seu trabalho e consequentemente levando-a ao esquecimento.
É um filme triste, reflexivo e apaixonante. Não há como negar que “Too beautiful to die. Too wild to live.” (“Bela demais para morrer. Selvagem demais para viver”) não defina por inteiro, o inteiro que Gia Marie Carangi nos entregou em sua potente e rápida carreira.
Gia, de Michael Cristofer, 1998
Gia – Fama & Destruição. Com: Angelina Jolie, Elizabeth Mitchell, Faye Dunaway, Mercedes Ruehl, Edmund Genest.
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Em Transe
3.6 738É como se fosse um delírio de febre. É, acho que Em Transe (Trance, 2013) é isso. Com cortes rápidos, cores quentes, e ângulos pouco usuais, Danny Boyle retoma os tiques que o tornaram conhecido e soa frenético, esperto e ligeiro.
Ligeiro a ponto de que a gente nem perceba que seu filme tem 101 minutos. Tendo como ponto de partida a vida Simon (James McAvoy), um leiloeiro que se acomuna com alguns bandidos para roubar um quadro de Goya, Em Transe começa rápido e só faz acelerar. Depois de uma abertura impressionante (em que vemos o tal roubo), Boyle reordena os elementos vistos em cena para criar um universo bastante particular. E só quando a doutora Elizabeth (Rosario Dawson, esplêndida) aparece em cena – a fim de fazer com que Simon se recorde onde escondeu o quadro – é que temos noção (e algumas pistas) da verdadeira história que Danny quer contar.
Cheio de bom humor e ritmo, o longa avança em cima das descobertas que Elizabeth faz enquanto Simon está sob efeito de sua hipnotize. Logo percebemos que o leiloeiro traiu seus sócios porque tinha medo de morrer quando entregasse o quadro. E logo notamos que ninguém ali parece totalmente puro. A evolução do trio de protagonistas, aliás, é digna de nota: acrescentando nuances e acentuando ou omitindo traços que sempre estiveram lá, os atores, cheios de carisma, criam composições intrigantes.
Sugestões são desenhadas diante de nossos olhos, apagadas, desmentidas e reforçadas – de acordo com a vontade do diretor. Fica óbvio em determinado momento que Boyle quer que participemos e, por isso, nos entrega todas as fichas para que joguemos e articulemos junto com o filme. Apostando em reviravoltas, o roteiro de Joe Ahearne e John Hodgee apresenta novas camadas a cada sequência. O perigo eminente, as traições e as imagens (que parecem refletir não a realidade, mas a percepção que as personagens tem dos espaços) injetam em Em Transe fôlego e consciência.
Mesmo com algumas pontas soltas e algumas falhas (a falta de química entre Dawson e Cassel, por exemplo), o impacto de Em Transe (tido, em parte, graças ao apuro estético que é notável em todos os minutos) se sobressai a seus defeitos e seu final, didático e explicativo, agrega valor ao recolher todas as pistas deixadas durante a projeção.
E como um espasmo de febre que surge e que vai, Em Transe simplesmente termina. E a gente acha ótimo quando isso acontece.
Trance, de Danny Boyle, 2013.
Em Transe. Com: James McAvoy, Vincent Cassel, Rosario Dawson, Danny Sapani, Wahab Sheikn, Tuppence Middleton e Matt Cross.
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A Criada
3.8 104 Assista AgoraAqui está um daqueles filmes que te seduz só pelo curioso cartaz. Ao menos esse foi o meu caso, além dos fatos dele ser de 2009, ter saído há meses em TVs por assinatura e até alguns dias atrás estar na programação de estreias nos cinemas – a distribuidora, Esfera Filmes, desistiu de lançá-lo, pelo menos por enquanto. O que é uma pena, pois com a polêmica em torno do PEC (Proposta de Emenda à Constituição) em alta, certamente as situações iniciais retratadas no longa seriam um prato cheio nas discussões (de mesa de bar) sobre o assunto.
Vencedor de diversos prêmios em festivais mundo à fora, A Criada (La Nana, 2009) conta a história de Raquel (maravilhosamente interpretada por Catalina Saavedra – vale ressaltar), uma empregada introvertida e solitária, que abdica de sua própria vida e familiares para servir a família Valdés – dedicação essa que já perdura há 23 anos. Se sentindo parte pertencente ímpar daquela família, Raquel reluta quando sua patroa anuncia que contratará uma ajudante para ela.
Raquel não vê essa contratação como um alívio no serviço da casa e sim como uma ameaça. Um visível medo da família – especialmente dos filhos – gostarem mais da “impostora” do que dela. Determinada a defender o seu território, Raquel assume de vez sua identidade paranoica e vai desde dar sumiço num gatinho até desinfetar o banheiro toda vez que a ajudante o utiliza.
O que nas primeiras cenas parecia ser uma crítica ríspida sobre essa falsa relação fraternal entre empregado e patrão (Raquel comemorando sua festa surpresa de aniversário organizado pela família, recebendo uniforme de presente e logo levantando da mesa pra lavar o prato de todos), logo se torna um produto de humor negro primoroso. Manobra arriscada do diretor, Sebastián Silva, seguir por uma vertente totalmente oposta a apresentada inicialmente, mas ainda assim muito gratificante para (alguns) espectadores.
La Nana, de Sebastián Silva, 2009.
A Criada. Com: Catalina Saavedra, Claudia Celedón, Agustín Silva, Alejandro Goic, Andrea García-Huidobro, Mariana Loyola.
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Faroeste Caboclo
3.2 2,4KHá algumas semanas li por aí um moço falando que estava curioso em ver como adaptariam para o cinema vida de João de Santo Cristo, personagem da emblemática Faroeste Caboclo, da Legião Urbana. Ele falou que estava intrigado, principalmente, em saber como Maria Lúcia apareceria, do nada, com uma Winchester 22 no duelo final entre Jeremias e João e ninguém perceberia. E como João levaria cinco tiros nas costas e sobreviveria. E, mais do que tudo, ele queria descobrir como o público perceberia que o tal moço que tinha raiva do mundo só queria falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só… Ah, vocês conhecem o resto da música.
O que vocês não conhecem são as invencionices do filme Faroeste Caboclo. E que filme! Se apegando a tríade Jerê-João-Maria, René Sampaio, o diretor, colore as lacunas deixadas pela composição de Renato Russo e cria um conto de amor que funciona a ponto de fazer com que a gente torça e sofra por uma história que a gente já sabe o final.
Isso só acontece porque ele gasta tempo para contar a história de suas personagens e encontra espaço tanto para referenciar a obra que dá base ao filme como também para incrementar com o que ele acha que vai fazer o longa funcionar. Por meio de flashbacks de passagens-chave a gente entende quem é João (Fabrício Boliveira) e o que o motiva. Entende quem é Maria Lúcia. E entende também o porquê dos dois estarem juntos e se apaixonarem. E por mais que a justificativa da postura de antagonista de Jeremias (Felipe Abib) seja torpe, a gente até engole e não se importa muito porque…
Porque todo o resto é animal. Com belos quadros que expressam muito bem a melancolia de Brasília e das personagens que lá vivem, Faroeste Caboclo tem imagens poderosas. Os planos que mostram Maria Lúcia (Isis Valverde) nos telhados enquanto olha a cidade, a infância da personagem título, a chegada de João (saindo da rodoviária e vendo as luzes de natal), e o trecho final são deslumbrantes. A coisa só não é melhor por causa do desenho de som.
Se antecipando muitas vezes, a trilha incidental acaba soando intrusiva e ilustrativa demais. Nos momentos mais leves ela parece piscar para o espectador, dando orientações de “agora você tem que rir”, “ó, fica de olho que vai acontecer algo tenso” e etc. Pior ainda foi a decisão de inserir uma narração óbvia. A gravidade da escolha é tamanha que em determinadas sequências (como na de abertura) a voz de João “briga” com as imagens e as enfraquece, deixando tudo tão mastigadinho e expositivo que a redundância não só confunde como também irrita – o que é uma pena, levando em conta o já mencionado apurado trabalho imagético do longa.
Mas maior do que qualquer equívoco e acidente de percurso (além do problema da trilha, a direção de arte apela para o óbvio nos objetos e cores que compõem a casa da personagem pai de Maria Lúcia), é o final grandioso que René prepara. Se apoiando em referências que vão de De Palma a Sergio Leone, o diretor alterna tons e humores e brinca com o cinema de gênero, fazendo valer o título de faroeste que o longa apresenta.
Poética e impactante, a sequência final é poderosa e coerente com o resto da narrativa – se mostrando tão épica quanto a música que a originou.
Faroeste Caboclo, de René Sampaio, 2013.
Faroeste Caboclo. Com: Fabrício Boliveira, Isis Valverde, Felipe Abib, Antonio Calloni, César Troncoso, Rodrigo Pandolfo e Marcos Paulo.
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Adorável Pecadora
3.7 65 Assista AgoraA criatividade dos diretores e roteiristas das décadas de 50 e 60 para driblar a censura e o moralismo está entre as coisas que mais me encantam em produções da época. Especialmente aquelas contando com o nome de Marilyn Monroe, já que, mesmo sem querer, a atriz acabou conhecida pelo forte apelo sexual. Quando ela se encontrava em cena, algumas vezes, o tom de sua voz e a maneira como posicionava o seu corpo eram suficientes para que sugestões sexuais fossem feitas. E num filme que conta com o título original de Let’s Make Love é claro que isso não poderia ser diferente. Portanto, ver cenas como a última canção do longa e a clássica My Heart Belongs To Daddy incluídas no corte final do filme é surpreendente. E isso só aconteceu, sem dúvidas, graças ao roteiro inventivo. Preservando ambiguidades e se apoiando no clichê de que “a maldade está nos olhos de quem vê”, Norman Krasna e Hal Kanter, os roteiristas de Adorável Pecadora, criam algo que, ao expectador de hoje, soa deliciosamente inocente. De uma inocência que provoca, que incita, mas ainda assim inocente.
A ação de Adorável Pecadora se desenvolve quando o playboy Jean-Marc Clement (Yves Montand) descobre que um musical off Broadway, cujo intuito é satirizar a sua vida, está em fase de produção. Ao invés de tentar vetar The Billionaire por meios legais, Jean decide se aproximar dos responsáveis pela produção e conferir o que exatamente é o objeto de escárnio da peça. Em sua primeira aparição no teatro, ele vê a magnética Amanda Dell (Monroe) ensaiando o seu solo no espetáculo. Fascinado pela beleza da moça, bem como pelo fato de que ela não sabe quem ele é, Jean-Marc decide assumir o papel de si mesmo em The Billionaire para poder ter mais contato com Amanda. Em pouco tempo o playboy se encontra intensamente apaixonado por ela e surpreso com o fato de que alguém pode amar mais do que o seu dinheiro. Afinal, para Amanda, ele é um ator que, constantemente, se encontra em dificuldades, assim como tantas outras pessoas do meio.
Daí para frente o longa se dedica a mostrar o relacionamento dos dois. Porém, o verdadeiro objetivo, para mim, está em demonstrar a magia do show business. George Cukor, o diretor do filme, parece mais interessado em explicitar a cena teatral de Greenwich Village do que os seus personagens. Ele demonstra, com maestria, o caos dos bastidores do teatro. Os primeiros ensaios, onde ainda não se sabe bem qual a cara dar a cada personagem; o envolvimento dos patrocinadores que, algumas vezes, pode moldar determinada peça em direções completamente opostas às desejadas… Esse tipo de coisa. E, no fim, vemos como a criatividade, que acaba por superar a falta de recursos e outros empecilhos vivenciados constantemente por artistas, tem um impacto grande e positivo na vida de Clement: seu mundo se torna mais mágico, mais colorido e menos burocrático. Arrisco dizer que a arte foi capaz de transformar partes da personalidade autocentrada do moço. E, claro, o amor também teve lá o seu papel.
Embora algumas pessoas insistam em dizer que não temos Marilyn em seu melhor nesse filme, eu não consigo concordar. A destreza com que Amanda Dell é construída, a inocência e o apelo sexual da personagem nos mostram tudo aquilo que tornou a atriz conhecida. Quando Clement entra no teatro pela primeira vez e vê Amanda ensaiando, o contraste entre o tom meio sacana da canção de Cole Porter e o modo quase angelical com o qual a moça é apresentada (a luz realça a brancura de sua bela e o loiro de seus cabelos) fazem com que o público se torne tão voyeiur quanto Jean-Marc Clement – que fantasia escutar (!) tais canções sugestivas em companhia da atriz. Além disso, Cukor demonstra consciência do amor da câmera por sua estrela e não hesita em abusar da beleza de seu rosto e em apostar em figurinos que realcem as suas curvas.
No fim, Adorável Pecadora não é uma obra prima como os outros musicais de Cukor. Está longe de contar com o glamour e o orçamento astronômico (para a época) de My Fair Lady. Mas é um filme delicioso, cheio de sugestões bem feitas e interessantes, que te mantém preso durante toda a projeção. E, se isso tudo não for suficiente para você, eu tenho certeza que Marilyn no auge de sua beleza será.
Let’s Make Love, de George Cukor.
Adorável Pecadora. Com: Marilyn Monroe, Yves Montand, Tony Randall e Frankie Vaughan.
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Românticos Anônimos
3.9 494Românticos Anônimos (Les Émotifs Anonymes, 2010) é uma comédia romântica sobre medo. Você deve estar se perguntando: Mas hein? Pois é.
Neste filme francês, escrito e dirigido por Jean-Pierre Améris, o tema principal é a timidez extrema e o medo de viver. Angélique (Isabelle Carré) é uma mulher que tem medo de tudo. Frequenta inclusive um grupo de apoio para pessoas como ela, que começam a compartilhar seus medos com: ‘Olá, sou fulano/a e sou emotivo/a’. Na primeira vez que Angélique se apresenta, sofre um desmaio tal o seu pavor de se expor. O medo de viver é tão grande que Angélique esconde que é uma chocolatière (expert em chocolates) de primeira. Por sete anos conseguiu trabalhar anonimamente em sua casa, se fazendo passar por um ‘ermitão’ que produzia chocolates excelentes, mas quando o dono da loja de chocolates para quem ela trabalhava morre, Angélique se vê numa encruzilhada.
Cantando uma versão francesa de I Have Confidence In Me, música que Julie Andrews cantou no filme A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), Angélique parte para procurar emprego em uma fábrica de chocolates que está à beira da falência. Aqui ela conhece o dono Jean-René (Bonoît Poelvoorde), que sofre dos mesmos males que ela, e cujo lema do pai ficou para sempre em sua mente: ‘Que nada nos aconteça’. Jean-René consegue ser ainda mais fechado e tímido do que a protagonista. Uma das cenas mais tragicômicas acontece num restaurante onde estão tendo o primeiro encontro, e Jean-René precisa se desculpar a cada minuto para ir ao banheiro devido ao nervosismo extremo, e no fim, fica tão mortificado em ter dado um super fora que foge pela janela do banheiro.
Românticos Anônimos não é um filme para cínicos. É um filme para almas como as de Angélique e Jean-René, românticas, sensíveis, medrosas e que lutam diariamente contra seus próprios fantasmas. O melhor de tudo é que o diretor, que sofre dos mesmos males de Jean-René, retratou um assunto pesado com delicadeza e humor. E chocolate, bastante chocolate.
Les Émotifs Anonymes, de Jean-Pierre Améris, 2010.
Românticos Anônimos. Com: Isabelle Carré, Benoît Poelvoorde, Lorella Cravotta, Lisa Lamétrie, Pierre Niney e Swann Arlaud.
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