Rivette fez uma crítica de Kapò, um filme sobre o holocausto, na qual ele escreve apenas sobre uma cena e ignora todas as outras. Na cena em questão, o diretor Gillo Pontecorvo retrata uma judia morrendo no arame farpado de um campo de concentração e faz um movimento com a câmera (um travelling) pra enquadrar melhor a personagem, pra alcançar um ângulo "perfeito" da mão do cadáver em relação ao quadro. O diretor se aproveita de um dos eventos mais lamentáveis e indescritíveis da história pra atingir um plano de proporção agradável e esteticamente satisfatório: para Rivette, isso é abjeto. Vendo comentários acusando Nolan de ser covarde (ou mal intencionado ou o que quer que seja) por não ter representado em Oppenheimer a explosão das bombas atômicas no Japão ou suas consequências, a conclusão lógica é que essas pessoas desejavam um filme abjeto. E, provavelmente, assim desejavam pra sentir a satisfação de prestigiar um filme sério, tão politicamente consciente quando este espectador, e didático pra todos aqueles que não tem a mesma consciência. Não interessa se o filme transformaria o assassinato de milhares de pessoas em planos encantadores, o importante é que o filme teria como tema algo socialmente relevante, independente da ética de sua representação. Pra essas pessoas que acham que é assim que o cinema político opera sobre a sociedade, seria melhor se Oppenheimer tivesse tal direcionamento - pra nossa sorte, não foi o caso. Ao contrário de Kapò, que Rivette destaca uma cena em específico por perceber nela a abjeção, não há alguma cena de Oppenheimer que deva ser destacada por tal motivo, e é talvez esse o maior mérito de Nolan. Esse é um filme que por seu caráter potencialmente problemático (no sentido de que seriam grandes as chances de algum diretor se aproveitar do assunto para retratar questões sérias sem a devida responsabilidade), mais vale elogiá-lo pelo que não está na tela do que pelo que está: ao centrar a maior parte do filme na perspectiva subjetiva do personagem título, Nolan evita toda uma série de potenciais "travellings de Kapò" que poderiam ter ocorrido. Os ataques a Hiroshima e Nagasaki são mostrados apenas como notícias no rádio, e nossa percepção visual dos eventos se restringe à ver tão somente a reação dos personagens principais ao ouvirem a informação horas depois do ocorrido. Escolha muito mais humana, muito mais consciente. Não é um filme que denuncia os crimes da guerra, é um filme que explora as contradições de Oppenheimer e nada mais que isso. Com tal objetivo, Nolan abre mão parcialmente do seu suposto realismo presente em filmes anteriores pra focar em outras possibilidades que uma abordagem mais estilizada permite: os delírios do personagem, sua sexualidade, seus traumas, aparecem de forma mais viva, sem a frieza característica do diretor. Pena que nem todas as cenas são assim: os longos trechos focados no personagem de Robert Downey Jr. têm uma pretensa objetividade que os tornam quase protocolares e por isso destoam - algo que o próprio Nolan deve ter reconhecido, afinal escolheu deixar essas partes em preto e branco e diferenciá-las de forma explícita do resto do filme. À parte disso, antes de qualquer comentário em relação à qualidade do trabalho do diretor, prefiro destacar seu bom senso de se perceber incapaz de mostrar certas coisas. Não se trata de ser impossível ou necessariamente imoral representar no cinema certos temas pesados, mas ao mesmo tempo é comum que esse tipo de filme seja menos sobre a tragédia X ou Y e mais sobre o regozijo do diretor em poder "denunciar" essa tragédia.
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Uma trinca de Poor Things, Saltburn e The Menu que sintetiza tudo de pior que é feito em termos de tentativa de um cinema político. Perfeitamente calculados pra incomodar sem incomodar; pra ganhar alguma repercussão pelo "choque" ao mesmo tempo em que não chocam o suficiente pra atrapalhar o reconhecimento da indústria que perseguem desesperadamente; um pouco progressistas no conteúdo mas formalmente inofensivos. O trabalho do Yorgos ainda vai por um lado da experimentação formal (tanto que ele não só mantém a caricatura propositalmente exagerada que é a marca do seu estilo como a amplifica pra afetar toda a composição visual do filme), mas essa experimentação é contida o suficiente pra não abrir qualquer dúvida em relação à "mensagem" que o diretor quer passar. É uma experimentação estéril que não adiciona sentido e não dialoga com o que é colocado em palavras pelo filme, só reforça de forma redundante. Mesmo com a artificialidade das paisagens, com as atuações super afetadas, esse exagero se mantém como um risco calculado demais pra ser capaz de ultrapassar os limites do discurso raso. O diretor age como quem diz "eu sei que essa fala do personagem foi bem direta, foi de propósito, mas note como o ator gritou e falou de forma engraçada, percebe a ironia?" - sendo que essas impressões de desconforto provocadas pela caricatura raramente contrastam com o que o espectador já sabia desde o início, só reforçam o que já era demasiado explícito. Ainda tem momentos em que o filme constrói algo pelos seus próprios meios. Tem momentos cômicos ou de desenvolvimento de personagem que parecem um fim em si mesmos, que partem das possibilidades abertas pelos conceitos do universo do filme pra primeiro provocar humor e, só depois, estabelecer alguma ideia sobre o que está sendo mostrado - pena que no geral a ordem desses eventos é a inversa. Os méritos da Emma Stone e do Willem Dafoe por exemplo acabam sendo só lampejos em meio a um trabalho irregular como esse.
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Ao fim do julgamento dá pra concluir qualquer coisa e ter razão, afinal é só um filme. Acho que é esse o grande valor do que a Justine Triet faz: deixar mais espaço pra pensar sobre os mecanismos da verdade do cinema do que sobre os mecanismos da verdade do mundo real. Dá pra encontrar o indício que quiser nas expressões dos personagens, são só atores. E, mesmo sendo um filme de roteiro muitas vezes, só com uma direção muito precisa pra convencer que por trás das performances qualquer coisa pode ser válida, sem impor nenhuma verdade sobre nada, sem ultrapassar o que as imagens dizem.
Em mais da metade do filme, Scorsese passa uma única informação: os Osage estão condenados, assim como estiveram os indígenas na história dos EUA, e isso não evolui para ser algo além da notícia. A descoberta do petróleo, as cenas ilustrando os primeiros assassinatos, as decisões de Ernest sob influência de Hale, o casamento - tudo isso é incorporado na história sob o mesmo tom, o mesmo ritmo, pra dizer só que existe uma tragédia em curso (que aparenta ser inevitável) sem trazer novas dimensões aos conflitos. Trata-se tão somente da descrição do genocídio, em que as mortes se sucedem como os desdobramentos lógicos, que por não terem variação de ritmo ou de tom em seu tratamento vem e vão como se fossem uma nota de rodapé ao núcleo da história que realmente interessa, a saga de Mollie e Ernest. Isso me parece proposital: sendo um filme sobre impunidade, ele segue numa lógica em que a frieza do narrador não confiável (já que Ernest é o protagonista) se expressa na forma com que os acontecimentos externos a ele são contados. Mas mesmo assim isso é algo que não demora a virar uma repetição da mesma análise - que ainda mantém algum interesse graças aos dois personagens principais, únicos que a direção meio dispersa torna relevantes. A grande virada é quando o próprio Ernest se vê como mero instrumento da trama em que até então ele acreditava ser o agente efetivo. A partir daí vira um filme de máfia, menos centrado na denúncia fria de um dado e mais no que Ernest e Hale representam. O problema é que isso também parece resultado da direção confusa do Scorsese, que não equilibra a intenção de trazer essa história a público com a intenção de contar uma trama policial: muitas vezes o seu olhar acaba perdido como se mostrasse algo porque tem que mostrar qualquer coisa, seja Ernest cometendo algum crime ou uma reunião dos líderes indígenas, sendo difícil entender onde existe alguma progressão (se é que existe). Demora duas horas pra ter algo que abale esse desenvolvimento uniforme, de modo que parece não adiantar de muita coisa Lily Gladstone dar a vida na interpretação, porque ela acaba sendo só mais um alvo do olhar disperso da direção.
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Parece que a Greta escreveu o roteiro com uma proposta, depois filmou como se estivesse fazendo outro filme totalmente diferente, e cada ator interpretou como se estivesse em um filme à parte. Em algum momento, os produtores que representam a Mattel devem ter alertado que problematizar o roteiro não seria benéfico pra marca, então o que restou foi levar tudo pelo seu sentido mais literal independente do quão contraditório seja o resultado (tanto na estética quanto na abordagem dos temas). Existe em Barbie um musical, uma sátira cheia de sarcasmo, um filme infantil, uma fábula moralista; o filme é um quando Ryan Gosling está na tela (com a lucidez de estar interpretando um boneco cujas aspirações vem de um mundo de fantasia), e é outro quando America Ferrera faz um monólogo de dois minutos sobre a existência feminina sem que o filme, nem por um segundo, considere que esse momento dramático vai ser assistido dentro de um conjunto absolutamente caótico e amorfo. Essa cena do monólogo é representativa por outro motivo: enquanto a personagem fala sem parar, o único recurso que a diretora usa pra que isso não se torne uma leitura de roteiro pura e simples é inserir planos das reações de cada Barbie, todas com o mesmo olhar passivo e inerte de quem poderia estar reagindo a qualquer coisa. Nesse momento tão sério, usa-se a mesma montagem dos números musicais: o foco é mostrar o máximo de gente possível, sem se preocupar se este ou aquele plano parece pertencer mesmo a determinada cena. Se em tom o filme não tem qualquer unidade, a edição e a tela verde onipresente só colaboram pra que essa colagem caótica se torne um incômodo. Independentemente se foi pressão da produtora ou se foi escolha criativa da Greta, a inventividade de alguns momentos muito bons (cenas com o Ken, com a Barbie Estranha, a introdução, o comercial da Barbie depressiva... ou seja, cenas que fazem sentido estar em um todo caótico) fica limitada a esses momentos apenas. Não existe ligação possível entre uma cena em que uma criança diz "Tá legal, Barbie, vamos lá. Você deixa as mulheres mal desde que foi inventada. Você representa o que nossa cultura tem de errado" e outra cena em que a inventora da Barbie diz "Você está diferente. Acho que você está como deve ser" - mas o fato é que no filme elas aparecem ligadas, se enfraquecendo mutualmente e alternando-se com um comercial da Chevrolet e os poucos momentos de respiro em que o Ken e a Barbie Estranha estão em cena.
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Não esperava nada né mas o broxante é que tem uma ou outra cena realmente boa entre a leitura de roteiro protocolar que compõe basicamente quase o filme todo. Nisso até acho coerente as pessoas reclamarem ou darem risada daquelas transições diferenciadas e os planos menos padronizados (apesar de que provavelmente estão reclamando pelos motivos errados), porque eles realmente ficam deslocados quando logo em seguida tem o mesmo tipo de diálogo, o mesmo tipo de plano e as mesmas finalidades de sempre. No fim as coisas que diferenciam seu estilo daquele dos demais filme da Marvel são só migalhas pra tentar abalar um pouquinho a obviedade incontornável imposta pela maior parte do filme.
Parece ser esse o jeito do Eggers de lidar com tradições, questões místicas ou religiosas, enfim: enfatizando o aspecto performático delas, como elas transformam o comportamento dos personagens em uma performance. A essas performances o diretor responde enquadrando os personagens e suas ações como se estivessem em um palco, quase nunca explorando profundidade de campo, de certo modo isolando-os do cenário, e geralmente movendo a câmera na horizontal. Muitos monólogos, muitos discursos, e mesmo os diálogos entre dois personagens raramente são genuínos, parecem emitidos menos direcionados ao interlocutor ali da cena e mais a outro interlocutor do além, que julga e observa - que seria alguma divindade ou a moral que os adestra, mas acaba sendo nós que assistimos. Foi uma escolha interessante pegar uma inspiração óbvia do teatro pra fazer isso e consequentemente hipertrofiar essas características que Eggers já demonstrava nos filmes anteriores. Nesse universo cheio de pose e misticismo, fez sentido, embora tornar o filme também muito posudo certamente não fosse a única saída possível - se haviam mais possiblidades, os fracassos miseráveis nas horas de tornar o drama mais complexo mostram que, infelizmente, foi essa a única saída que o diretor foi capaz de encontrar. De todo jeito, ainda acho que o Robert Eggers tem potencial pra coisas maiores. Continua sendo o melhor diretor que apareceu através da A24. Espero que no futuro esse filme possa ser visto como um ensaio ou um teste pra sua obra-prima que até agora não chegou mas vai chegar se deus quiser.
De alguma forma, as animações traem a vocação original do cinema. A mise-en-scene, que pode ser entendida como o olhar do cineasta diante da realidade que orienta seu manejo da câmera, assume um caráter diferente quando o diretor, ao invés de simplesmente filmar algo que já existe, precisa moldar por completo uma “realidade” e pode fazê-lo sem qualquer tipo de limite. Uma liberdade formal que permite ignorar as limitações da câmera ao brincar com suas imagens mas, por outro lado, pode virar um obstáculo à fascinação do espectador quando o objetivo é convencê-lo que aquelas imagens desenhadas devem ser percebidas e sentidas como se fossem imagens do mundo real. Penso em Hayao Miyazaki, um gênio absoluto, que em meio aos tantos elementos fantásticos de Totoro, Chihiro, Princesa Mononoke, atinge alguns de seus momentos mais bonitos e singelos quando representa as coisas mais mundanas possíveis, como a natureza e os seres humanos. Impossível negar que através desses planos desenhados somos convencidos a perceber, muito além da beleza do traço ou da animação bem feita, a beleza da nossa própria realidade, que por acaso nos é apresentada com uma textura diferente, a textura da animação— não deixa de ser a mesma beleza.
Satoshi Kon em Perfect Blue também é genial porque consegue êxitos similares ao de Miyazaki, mas ao invés da beleza ele revela a abjeção, o horror — que, depois do transe em que o diretor consegue nos colocar, não deixam de ser a abjeção e o horror da nossa própria realidade. O que quero dizer não é que a imersão em um universo animado e a identificação com os sentimentos ali representados seja algo raro, mas sem dúvida é raro um filme atingir ambos no mesmo grau de Perfect Blue, ainda mais considerando os meios usados pra tal. O que ocorre é que depois de algo ser apresentado como digno de credibilidade, o caráter aparente dessas imagens é questionado pelas imagens seguintes. A uma cena que aparentava dar uma chave para desvendar a real natureza da história, segue-se a revelação de que a cena anterior não passava de encenação para uma série de TV— fomos enganados assim como os espectadores ficcionais que viriam a assistí-la. A uma cena em que a protagonista, atriz aspirante em um papel que aceitou para se consolidar na carreira, interpreta uma vítima de abuso, segue-se o preciso momento em que ela se sente, de fato, abusada, independente do caráter ficcional que aquele momento a princípio teria. No fim, as dimensões da vida da personagem, sua vida privada e pública, assim como a realidade e a alucinação, se confundem e invadem umas às outras, e a barreira que as separa progressivamente fica mais dúbia.
Tem vários e vários filmes que propõem algo assim (inclusive Cisne Negro, que em muito se baseou na obra de Satoshi Kon) mas nem por isso Perfect Blue se torna menos especial na sua maneira particular de confundir, de fazer imergir o espectador em um nível superficial de sua realidade animada só pra depois apresentar um nível alternativo dessa realidade e levá-lo mais fundo ainda. Falando assim pode parecer previsível, como se ao saber dessas características fosse possível antecipar as viradas bruscas, mas não acho que seja o caso. A montagem, o aspecto mais brilhante do filme e a partir do qual suas principais questões se apresentam, é rigorosa demais pra dar esse tipo de brecha — mas só assistindo pra entender.
Hesitaria em dizer maneirismo, mas me parece que há uma ambição nesse sentido em alguns lançamentos de terror bem recentes: Maligno, Last Night in Soho, X... Em todos os casos, me incomoda que os diretores pegam apenas os aspectos mais superficiais de suas referências e os repetem sem pensar no novo significado que essas imagens adquirem quando realizadas no dias de hoje. Maligno é com certeza o mais bem-sucedido em seus objetivos, mas Last Night in Soho me leva a pensar que tipo de maneirismo é esse que tenta repetir os mesmos efeitos dos filmes que referencia sem o menor rigor formal para tanto. Como eu disse a respeito de Maligno: acaba sendo uma homenagem pela metade, porque entre uma "inovação" formal e outra (que não alteram o aspecto superficial do estilo que tenta replicar), a essência que tornava aqueles filmes realmente emocionantes se perde - o que não seria um problema caso o cineasta tivesse isso em mente, mas esse obviamente não foi o caso do Edgar Wright
Depois da mesma cena (alguém olhando pro espelho e só insinuando que vai invocar o candyman, geralmente sem chegar aos finalmentes) se repetir à exaustão, me surpreendi muito que justo na última vez que ela aparece finalmente surtiu o efeito desejado, fez o que o filme todo tentou até então: dar algum peso à aparição do Candyman e à antecipação que a precede. Pena que é só na última, no meio das ótimas sequências finais que compensam o tédio do resto.
Até então meu preferido do Ozu era uma comédia chamada Meninos de Tóquio. Mesmo sempre me emocionando com os dramas, acho que não sentia um vínculo tão forte com a maioria deles quanto sentia com aquela comédia. Enfim esse Também Fomos Felizes me pegou de surpresa e proporcionou o que eu sentia que faltava entre os dramas do Ozu. Todos são lindos e emocionantes, mas acho que esse é o mais lindo de todos.
"Maybe he was lucky never knowing what a salaried worker's life is like. (...) You get disillusioned fast if you have a wife and children. (...) We live on. But we're not happy."
Se a Setsuko Hara parecia carregar o peso do mundo todo nas costas e escondia isso através de um sorriso, nesse filme os personagens não se preocupam em manter tal disfarce. Talvez seja essa a surpreendente questão central do choque de gerações em uma sociedade em transformação: a exploração do trabalho, o peso das convenções familiares, a busca por válvulas de escape, enfim, existem desde as gerações anteriores, mas algo que muda é a forma de lidar com essas coisas, a dissimulação que dá lugar à visível angústia. Tudo isso no filme mais "noturno" do Ozu: com seu minimalismo habitual, a mudança formal mais evidente é que a luz parece não iluminar como antes ou passa a ter seu alcance bem reduzido. Mesmo durante o dia, nos raros momentos em que o cenário não é puramente aquele do mundo do trabalho, a natureza a ser observada é permeada por obstáculos que impedem o homem de se regozijar com sua beleza ou encontrar nela algum sentido pra sua existência. O otimismo que parecia se construir durante a reta final até se concluir em um plano muito característico do diretor (mostrando a paisagem externa, as nuvens, as montanhas, enfim, que os personagens observam de dentro de casa), é concluído na verdade em um plano do céu obstruído pela fumaça preta saída da chaminé de uma fábrica... Outros filmes do Ozu são muito muito tristes em diversos sentidos, e talvez aquele disfarce os torne ainda mais tocantes, mas neles há ainda algum otimismo que nesse filme acho ausente. Enfim, são só uns pensamentos soltos sobre mais um filme muito notável do mestre... espero escrever algo mais bem elaborado sobre a obra dele no futuro
O Massacre da Serra Elétrica é um dos meus filmes favoritos de sempre. Por acaso, o reassisti um dia desses, então tinha muitos detalhes ainda frescos na memória. Admito que deu gosto ver a reverência prestada pelo Ti West. Em certo ponto, achei que X estaria pro filme de 74 como Maligno está pro giallo. Não chega a tanto, mas os paralelos são tantos que a comparação entre os dois filmes é uma entre as várias chaves de análise que o filme oferece de forma bem óbvia. Gosto especialmente da primeira metade que foca quase exclusivamente nesse microcosmo de jovens meio separados do mundo, cada um perdido em sua ilusão particular, e que desvia bem a atenção do fato de que ainda deveria ser um filme de terror. Isso poderia proporcionar uma mudança de perspectiva tão violenta e bruca quanto a realizada pelo Tobe Hopper quando ele arrasta sem cerimônia os jovens do seu filme pro inferno um de cada vez. Em X há uma tentativa nesse sentido, como a velocidade em que as mortes se concretizam mostra, mas a violência repentina funciona mais o gancho de uma piada do que qualquer outra coisa. A mentalinguagem, mais uma das chave de análise, dá ao filme um tom de ironia constante que o torna uma comédia bem satisfatória e ao mesmo tempo o impede de ser algo além disso. Não acho que o problema seja "se levar a sério demais", mas sim atirar pra todos os lados, de qualquer jeito, oferecendo repetidamente orientações variadas e mesmo contraditórias, esperando que o tom de ironia sirva pra relevar os pontos que são apenas mal trabalhados. O casal de idosos acaba se tornando uma muleta pra o filme conseguir transitar de alguma forma entre seus vários objetivos, entre seus gêneros, e pra explicitar de forma meio redundante seus temas. Enfim bem interessante olho nesse diretor aí mlk tem futuro
Muito engraçado, mas fiquei com muita pena da atriz do filme original. Claramente tentaram repetir com ela o papel que a Jamie Lee Curtis ocupou no Halloween de 2018, mas sem o mesmo respeito pelo passado e muito menos o bom senso pra entender que o trauma dela em meio a tanta galhofa ia virar também pura chacota.
A pompa típica do Villeneuve é muito eficaz ao baixar a rotação do filme pra engajar o público em um tour pelo universo fantástico que está sendo introduzido. Nisso, o único tom que existe é o da contemplação de algo novo, cujo fim último é impressionar pelo caráter curioso e visualmente impressionante daquele universo - limita-se, então, a ser apenas introdutório, a existir em função de algo que ainda vai ser realizado. No processo de consolidar a promessa de um clímax que só existirá na sequência, as cenas de objetivos mais imediatos, como os momentos de ação, se tornam reféns daquele mesmo tom útil pra atiçar a curiosidade mas anticlimático para o resto. O resultado disso é um filme que consolida Arakis como um universo riquíssimo mas deixa a dúvida se Villeneuve vai conseguir tratá-lo como algo além de imagens, personagens e cenários curiosos quando assim tentar.
Sem alguma paciência não se sente o peso do formalismo. Não que o começo não seja interessante por si só, mas seu ritmo lento e suas repetições se pagam melhor quando momentos que seriam banais se tornam muito reveladores depois de um desenvolvimento tão metódico e contido - tão contido quanto a relação entre os personagens, distanciados pela barreira da formalidade. É especialmente desconcertante, a palavra é essa, ver o protagonista falando "sozinho" durante seus ensaios (entre ele e a fita que sua esposa gravara lendo as falas de quem contracenaria com ele) no carro enquanto a motorista se faz se indiferente, finge que não ouve - como é o seu papel, uma performance entre tantas que existem no filme e que deixam implícito que aquela formalidade a qualquer momento vai sumir; que as performances não são suficientes pra conter os sentimentos desenvolvidos no processo nem pra apagar os que já existiam.
O coming of age mais normal do mundo. Seria injusto usar as indicações ao Oscar, ou selo de filme importante usualmente atribuído somente por conta de representatividade, pra colocá-lo em um nível de pretensão acima desse. Sua maior proeza é aceitar ser um filmes com pessoas com deficiência sem ser um filme sobre deficiências, sem pretender fazer qualquer tipo de síntese sobre questões complexas que uma direção protocolar não seria capaz de abarcar sem se tornar pedante. Postas essas armadilhas de lado, é só um coming of age como tantos outros que já assisti. Talvez sua única singularidade formal seja no tratamento das atuações: sendo em grande parte falado em língua de sinais, exige um esforço de quem assiste (e não compreende os diálogos) pra inferir os significados a partir das atuações - e, merecidamente, o trabalho dos atores acaba sendo bem valorizado nesse processo, com uma naturalidade muito agradável que filmes de Oscar baseados em méritos dos atores raramente conseguem alcançar. Não é suficiente pra ser um grande filme, mas é suficiente pra não ser irritante.
Com alguma folga, o pior indicado ao Oscar de melhor filme que eu já vi.
Essa pérola de filme não é sobre infância, nem sobre inocência, nem sobre a perspectiva de uma criança em um cenário tão conflituoso. Essa criança é só um fantoche pra educar o coitado que assiste através do sentimentalismo mais porco e óbvio possível. A "perspectiva inocente" dela se resume a uma muleta pra justificar a infantilidade do discurso do próprio diretor - que não se trata de mostrar ou desenvolver a incompreensão da criança diante da realidade complexa que a cerca, mas sim da incapacidade do diretor de dar qualquer profundidade às situações que apresenta sem apelar pra alguma frase de efeito óbvia saída da boca dessa criança ou alguma expressão triste que ela faz no fundo do plano - artifícios aproveitados sempre que possível. Essas obviedades que deveriam ser singelas se acumulam como se pela saturação algum sentimento real fosse surgir. A um momento tocante cortado antes de se desenvolver, há um próximo, mais tocante e forte e singelo ainda. E nunca algum que não faça revirar os olhos de tão falso e superficial, e que só pioram por serem tratados como naturais e ainda alternados com protestos e cenas repetidas de violência que recordam, caso alguém tenha esquecido, da importância política desse filme. Em meio a essa casa de bonecas em que Brannagh brinca de filmar seus fantoches, não tem coisa mais irritante do que ele achar que esse papo político deve ser levado a sério e que esse suposto caráter autobiográfico vá ter algum efeito depois de ser moído por uma abordagem tão impessoal e enlatada.
Quando se trata de filmes de heróis, é muito fácil só jogar pra galera. É muito fácil, tão fácil que se tornou regra, terceirizar a responsabilidade em relação aos méritos e defeitos de um filme, reduzindo-o tanto a fatores alheios a qualquer tipo de valor cinematográfico que se torna quase impossível avaliar o trabalho do diretor. Não se trata (da falta) de autoria, mas, diante das obrigações de encaixar uma obra em universo compartilhado ou podá-la segundo o fanservice, os próprios filmes aceitam se restringir a debates que os negam enquanto cinema e os afirmam enquanto um mero suporte pra ilustrar histórias — incluindo com frequência histórias que nem são parte do filme e só vão aparecer em um próximo lançamento, mas que roubam cena como se a empolgação e a antecipação do prazer que geram não fossem alheias ao que o filme de fato constrói. Isso vai desde o MCU até a Liga da Justiça do Zack Snyder, mas não é algo que torne essas obras menores, afinal elas podem ser plenamente bem sucedidas em seus contidos objetivos. A questão é que, ao aceitarem ser peças menores de um universo pré-estabelecido pelo estúdio ou pré-determinado pelo público, entre prelúdios de algum evento mais importante (caso da maioria do MCU) e produtos cuspidos e escarrados das expectativas criadas (caso de Liga da Justiça), terceirizam a apreciação do filme pra algo além dele, como se o impacto imediato ao assistir não bastasse.
Mais difícil é fazer o que Batman faz. Um filme que quer se sustentar sozinho, que se justifica só por ele mesmo, cujo impacto imediato é o essencial; que tenta arrastar aqueles que não estavam predispostos a gostar do filme, ou que não tinham alguma relação emocional prévia com o que é retratado. Esse é o patamar de pretensão em que Batman se coloca — não necessariamente superior, mas alternativo em relação ao panorama descrito no parágrafo anterior. Um patamar no qual ser bem sucedido demanda tanto um cuidado especial na hora de filmar quanto uma compreensão de que os vários aspectos indissociáveis da linguagem devem funcionar em consonância para que, afinal, aquele impacto desejado ocorra — e felizmente, Reeves tem ambos.
Basta lembrar das primeiras “aparições” do Batman, aquelas em que o personagem fica invisível em meio a becos escuros ou espaços aparentemente vazios. Nesses momentos, não há “progressão da história” alguma; revelar o novo traje também não pode ser visto como sua função; nem há planos que funcionem sozinhos por serem visualmente estonteantes; mesmo a narração em primeira pessoa do Bruce (o roteiro) não pode ser destacada das imagens sem perder algo de seu significado. Afinal, esse significado só existe enquanto um sentimento provocado por todos esses componentes associados. Não faz sentido isolar qualquer um deles, sejam as marcantes palavras ditas por Bruce ou a adequadíssima trilha de Michael Giacchino, muito menos explicá-los para algo além do principal: o tesão que é ser manipulado por tudo isso junto a tal ponto que só de olhar pra uma tela permeada pela sombra você entende tudo. Depois disso, quando o Batman, enfim, aparece iluminado o suficiente pra o vermos de fato (e isso serve também pra aparição do batmóvel, só pra citar outro exemplo), o sentimento que brota não provém da simples satisfação daquela expectativa de encontrar um velho conhecido, algo que mesmo a mais porca apresentação seria capaz de produzir e seria suficiente pra provocar gritos na plateia — pelo contrário: é o sentimento que o desenvolvimento da própria cena fez surgir e progressivamente atiçou, como se tivéssemos sido apresentados a um personagem que nunca ouvimos falar antes, mas que apenas bastou essa cena para nos fazer compreendê-lo profundamente. E lógico, nada disso seria possível sem um estilo calibrado pra tanto.
Talvez tenha sido justamente o que faltou aos filmes anteriores do personagem: uma regularidade de estilo que não limitasse de alguma forma o efeito do todo pra privilegiar algum fetiche, nem reduzisse suas possibilidades visuais. No caso do Nolan, era o fetiche pelo realismo, ao qual se opunha de forma paradoxal o desenvolvimento arbitrário da investigação no Cavaleiro das Trevas e anulava qualquer emoção além do êxtase pela ação. Não que o Batman do Reeves não seja realista em grande medida — ele é, no geral, uma narrativa tão pé no chão quanto o filme do Nolan, mas que abraça com vontade as implicações de se ter como protagonista um bilionário traumatizado fantasiado de morcego, e o faz com tal equilíbrio que evita que o filme se torne caricato. Ao seu realismo, à questão social de Gotham, à existência de Bruce Wayne como ser humano, se sobrepõe a existência do Batman como entidade e a contaminação que seu espírito atormentado exerce sobre a representação da realidade que o envolve. Quando Reeves, nas poucas vezes em que enquadra Bruce, o faz como se o personagem fosse uma aberração fora de lugar, é a pura demonstração de que, nesse filme, a ênfase está mais em transmitir esse espírito irracional de alguns personagens do que em uma inserção forçada destes em um “mundo real”.
Pouco importa essa inserção, ainda que esse mundo real, no qual se desenvolvem os dramas da Selina, da polícia e da máfia, exista plenamente no filme e oriente, aos moldes de Se7en, grande parte da narrativa. Esta não chega ser tão estilizada quanto o visual, e Reeves preserva alguma autonomia ao não tentar emular o método de Fincher na hora de filmar, deixando a influência dele mais restrita ao enredo do que qualquer outro aspecto. Se alguém esperava um primor do autorismo, Reeves opera mais dentro do convencional. Seu diferencial é ter domínio do ofício e filmar com gosto, sem ter que prestar contas a ninguém por suas decisões criativas e com alguma liberdade pra brincar com as possibilidades da linguagem no processo. Coisa incomum no gênero, e o resultado final é mais do que suficiente pra demonstrar o valor de se fazer um filme pensando só no filme.
No filme A Sombra do Gato de 1961 tem uma cena em que um dos personagens, culpado de um assassinato, diz que o gato da vítima olhava pra ele com "olhos acusadores". Um gato, sem feições humanas, expressar no olhar algo tão específico dos humanos. Logo um dos investigadores constata que isso não tem cabimento e que não passava do criminoso enxergando, no rosto inexpressivo do gato, um reflexo de sua própria consciência. Era um filme de ficção, e como tal é absolutamente comum embutir, através de qualquer artifício cinematográfico possível, em seres inexpressivos (ou até objetos) emoções humanas - e assim convencer quem assiste que aquele ser ou objeto de fato sente aquilo. No caso de documentários, nada impede que técnicas de convencimento e manipulação similares sejam usadas - e dada a não neutralidade inerente do documentarista, sempre são utilizadas a fim de transmitir determinada tese. A questão é que em um filme como Cow, que retrata basicamente animais inexpressivos ao mesmo tempo em que se apresenta como não ficção, essa manipulação do público é tão arriscada que a qualquer momento pode desembocar na pura falsificação: algo que na ficção é plenamente aceitável, já que estamos dispostos a ser enganados, mas que em um documentário (e especificamente em um documentário que busca o naturalismo em relação ao que retrata) anularia qualquer tipo de efeito positivo.
Um bom exemplo desse tipo de falsificação e do impacto negativo de uma manipulação mal feita, tosca, vergonhosa e forçada é o último vencedor do Oscar de documentário, Professor Polvo, que também tem como "protagonista" um animal. Tomando o filme anterior como parâmetro, fica evidente que os méritos de Cow são mais pelo que deixa de fazer do que pelo que faz. Seria muito conveniente, como em Professor Polvo, se escorar no voice-over, na trilha sonora, entre outras técnicas mais apelativas pra guiar o espectador segurando-o pela mão e forçá-lo a perceber no polvo os significados que os produtores do filme a ele atribuíram com uma fingida naturalidade.
Cow não faz nada disso. Se há alguma tese por trás do ato de filmar fragmentos do cotidiano do animal, ela nunca fica tão evidente ao ponto de direcionar quem assiste a alguma conclusão única, nem a um sentimento único. Isso é possível porque a diretora praticamente se torna invisível no manejo da técnica: nem na montagem, nem na fotografia, nem na trilha sonora (que quase sempre é constituída por músicas tocadas no próprio curral), sua presença (e sua impressão particular sobre o que retrata) se faz sentir com mais força do que aquilo que é mostrado. Escolha acertada. Por um lado evita que o filme caia na manipulação narcisista e irritante de Professor Polvo, por outro torna-o, talvez, mais pobre do que deveria: para além de um exercício sobre a visão do documentarista e sobre a representação de animais nesse tipo de filme, não há quase nada digno de nota. Se a diretora pretendia que o filme fosse mais do que isso, pena.
"They're coming to get you, Barbara". O que torna essa frase tão encantadora é que ela é externalizada só como uma brincadeira desinteressada em relação a um medo de infância, mas automaticamente se torna um presságio: ela antecipa uma ameaça que, pelo poster e título do filme, era óbvia, mas por enquanto ainda estava escondida. Essa tensão que consegue se sustentar sem que algum monstro esteja na tela, apenas pela insinuação de algo que está prestes a ocorrer ou existe em volta do que podemos ver, se repete no decorrer do filme e constitui seus melhores momentos. Estes não são quando um zumbi pula em cima de alguém ou está prestes a isso, mas quando a ameaça apenas paira de forma incerta sobre os personagens: os zumbis que rondam a casa mas não são vistos e portanto não representam perigo imediato; a criança doente no porão que a qualquer momento pode se transformar em outro zumbi; a índole duvidosa de certas pessoas dentro da casa que não passam nenhuma segurança a seus companheiros mas não chegam a ser inimigos. Enfim, ameaças latentes, antecipadas com ansiedade, mas que o espaço extremamente limitado impede de mensurar a real medida de seu perigo - inclusive quando elas são visíveis, como é o caso dos zumbis quando estes aparecem. Com os personagens enclausurados dentro da casa, a TV e o Rádio são seu único vínculo com o universo exterior, que vai sendo iluminado em focos de luz vagos e dispersos conforme as notícias chegam e aos poucos rompem a limitação do espaço. Enquanto o universo do filme se expande e os ocorridos são esclarecidos, porém, os personagens aparecem cada vez mais isolados e impotentes. Na prática, a situação deles pouco se modificou: o que mudou foi a nossa perspectiva em relação ao universo do filme, a qual Romero consegue manipular como bem entende ao mesmo tempo em que contorna as dificuldades que o baixo orçamento impõe.
Mataram a diegese a troco de nada. A dimensão ficcional do filme é sacrificada em função da necessidade de enfatizar em cada escolha formal algum autorismo - mas que no fim das contas só se manifesta através de truques baratos e da inserção contínua de elementos não diegéticos que em nada se conectam ao universo fantástico do filme, e na verdade anulam a imersão nele. A tal ponto que (e isso é o cúmulo) até os elementos internos a esse universo são sentidos como se fossem, eles também, não diegéticos: como se não passassem de mais intervenções arbitrárias do diretor pra forçar ainda mais o filme a ser tão atípico quanto as digressões da montagem e os "inesperados" posicionamentos de câmera.
Não sei se fez sentido. Algumas coisas do que falei não seriam problema a princípio, a questão é que nesse filme não levam a nada. E pra ser sincero deu preguiça de elaborar.
Tem um final alternativo de Blade Runner que foi imposto pelo estúdio na primeira versão lançada: é um final feliz que mostra Deckard e Rachael conseguindo escapar dos problemas, dirigindo através de uma bela paisagem natural cuja existência, pelo que o filme mostrou até então, não era possível. Um otimismo desse não poderia ser mais forçado e incoerente em um filme no qual esses personagens não valem absolutamente nada quando colocados em perspectiva em relação ao universo que o filme constrói ao seu redor. Eles são engolidos pelos incontáveis establishing shots, repetitivos, que, além de não localizar direito a narrativa em algum espaço e tempo específico do vasto universo do filme (a função usual desse tipo de plano), com frequência parecem travar o andamento do enredo, cortando diálogos ou ações que ainda não pareciam devidamente concluídas. Essa montagem desencontrada dá aos personagens a devida irrelevância que o futuro lhes impôs: há um plot de filme noir bem delineado em andamento, fácil de resumir e claro em seus acontecimentos, mas todos os artifícios técnicos possíveis são utilizados para diluí-lo em meio a uma realidade que existe independente de quais consequências esse plot adquira, independente de qualquer tipo de interferência individual.
É muito fácil assistir a esse filme e automaticamente rotulá-lo com um selo de qualidade por sua “linda fotografia”, por conta dos icônicos jogos de luzes e sombras, das silhuetas que tem aparição recorrente, dos planos abertos enquadrando os impressionantes cenários. Avaliações assim, que julgam determinado aspecto técnico como um mérito intrínseco sem considerar sua função no conjunto da obra, nesse caso, ao menos, fazem algum sentido: o universo do filme é o verdadeiro protagonista, torna propício esse tipo de impressão, de modo que a inventividade dos seus visuais por vezes existe de forma autônoma em relação ao resto — e se sobrepõe a todo o resto.
São raríssimos os momentos em que a onipresença da realidade externa aos personagens não é reforçada de alguma forma, mesmo que nada tenha a ver com o acontecimento específico de determinada cena e tire deste o foco exclusivo. Desde momentos cruciais, como quando Rachael descobre uma revelação chocante e ainda assim a luz de faróis continua entrando pela janela e ofuscando sua reação, até em momentos banais, como quando Deckard está lendo um jornal e fica praticamente camuflado pela luz da loja atrás dele e escondido através das silhuetas de pessoas que passam à sua frente sem parar. Não por acaso os planos abertos são uma constante: aumentam a facilidade de se distrair em meio a tanta informação desconexa, ou em meio a fascinação que o universo provoca, mas Ridley não parece interessado em evitar tal impressão.
Esse fundamento da mise-en-scene do Ridley, no fim das contas, permeia até as situações limite em que o foco é menos disperso. Mesmo no embate entre Deckard e Roy no final, ainda não para de chover, luzes desencontradas não param de iluminá-los, os outdoors continuam piscando atrás deles, como se naquele momento nada de incomum acontecesse. O som segue o mesmo padrão, a tal ponto que os gritos de uma replicante enquanto morre ou os uivos de Roy ao perseguir Deckard facilmente poderiam ser confundidos com sons vindos de outras fontes, fontes externas: em todo caso, desvanecem, se dissociam de suas fontes originais pra virar mais uma peça insignificante na realidade do filme. Consequentemente, quando o filme acaba fica uma impressão de “É só isso?”. Contados os mortos, encerrada essa história que poderia ser resumida em três minutos, feito o discurso memorável do Roy, as palavras finais deste se concretizam quando de repente o filme termina
Oppenheimer
4.0 1,1KRivette fez uma crítica de Kapò, um filme sobre o holocausto, na qual ele escreve apenas sobre uma cena e ignora todas as outras. Na cena em questão, o diretor Gillo Pontecorvo retrata uma judia morrendo no arame farpado de um campo de concentração e faz um movimento com a câmera (um travelling) pra enquadrar melhor a personagem, pra alcançar um ângulo "perfeito" da mão do cadáver em relação ao quadro. O diretor se aproveita de um dos eventos mais lamentáveis e indescritíveis da história pra atingir um plano de proporção agradável e esteticamente satisfatório: para Rivette, isso é abjeto. Vendo comentários acusando Nolan de ser covarde (ou mal intencionado ou o que quer que seja) por não ter representado em Oppenheimer a explosão das bombas atômicas no Japão ou suas consequências, a conclusão lógica é que essas pessoas desejavam um filme abjeto. E, provavelmente, assim desejavam pra sentir a satisfação de prestigiar um filme sério, tão politicamente consciente quando este espectador, e didático pra todos aqueles que não tem a mesma consciência. Não interessa se o filme transformaria o assassinato de milhares de pessoas em planos encantadores, o importante é que o filme teria como tema algo socialmente relevante, independente da ética de sua representação. Pra essas pessoas que acham que é assim que o cinema político opera sobre a sociedade, seria melhor se Oppenheimer tivesse tal direcionamento - pra nossa sorte, não foi o caso. Ao contrário de Kapò, que Rivette destaca uma cena em específico por perceber nela a abjeção, não há alguma cena de Oppenheimer que deva ser destacada por tal motivo, e é talvez esse o maior mérito de Nolan.
Esse é um filme que por seu caráter potencialmente problemático (no sentido de que seriam grandes as chances de algum diretor se aproveitar do assunto para retratar questões sérias sem a devida responsabilidade), mais vale elogiá-lo pelo que não está na tela do que pelo que está: ao centrar a maior parte do filme na perspectiva subjetiva do personagem título, Nolan evita toda uma série de potenciais "travellings de Kapò" que poderiam ter ocorrido. Os ataques a Hiroshima e Nagasaki são mostrados apenas como notícias no rádio, e nossa percepção visual dos eventos se restringe à ver tão somente a reação dos personagens principais ao ouvirem a informação horas depois do ocorrido. Escolha muito mais humana, muito mais consciente. Não é um filme que denuncia os crimes da guerra, é um filme que explora as contradições de Oppenheimer e nada mais que isso. Com tal objetivo, Nolan abre mão parcialmente do seu suposto realismo presente em filmes anteriores pra focar em outras possibilidades que uma abordagem mais estilizada permite: os delírios do personagem, sua sexualidade, seus traumas, aparecem de forma mais viva, sem a frieza característica do diretor. Pena que nem todas as cenas são assim: os longos trechos focados no personagem de Robert Downey Jr. têm uma pretensa objetividade que os tornam quase protocolares e por isso destoam - algo que o próprio Nolan deve ter reconhecido, afinal escolheu deixar essas partes em preto e branco e diferenciá-las de forma explícita do resto do filme. À parte disso, antes de qualquer comentário em relação à qualidade do trabalho do diretor, prefiro destacar seu bom senso de se perceber incapaz de mostrar certas coisas. Não se trata de ser impossível ou necessariamente imoral representar no cinema certos temas pesados, mas ao mesmo tempo é comum que esse tipo de filme seja menos sobre a tragédia X ou Y e mais sobre o regozijo do diretor em poder "denunciar" essa tragédia.
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Pobres Criaturas
4.1 1,2K Assista AgoraUma trinca de Poor Things, Saltburn e The Menu que sintetiza tudo de pior que é feito em termos de tentativa de um cinema político. Perfeitamente calculados pra incomodar sem incomodar; pra ganhar alguma repercussão pelo "choque" ao mesmo tempo em que não chocam o suficiente pra atrapalhar o reconhecimento da indústria que perseguem desesperadamente; um pouco progressistas no conteúdo mas formalmente inofensivos.
O trabalho do Yorgos ainda vai por um lado da experimentação formal (tanto que ele não só mantém a caricatura propositalmente exagerada que é a marca do seu estilo como a amplifica pra afetar toda a composição visual do filme), mas essa experimentação é contida o suficiente pra não abrir qualquer dúvida em relação à "mensagem" que o diretor quer passar. É uma experimentação estéril que não adiciona sentido e não dialoga com o que é colocado em palavras pelo filme, só reforça de forma redundante. Mesmo com a artificialidade das paisagens, com as atuações super afetadas, esse exagero se mantém como um risco calculado demais pra ser capaz de ultrapassar os limites do discurso raso. O diretor age como quem diz "eu sei que essa fala do personagem foi bem direta, foi de propósito, mas note como o ator gritou e falou de forma engraçada, percebe a ironia?" - sendo que essas impressões de desconforto provocadas pela caricatura raramente contrastam com o que o espectador já sabia desde o início, só reforçam o que já era demasiado explícito.
Ainda tem momentos em que o filme constrói algo pelos seus próprios meios. Tem momentos cômicos ou de desenvolvimento de personagem que parecem um fim em si mesmos, que partem das possibilidades abertas pelos conceitos do universo do filme pra primeiro provocar humor e, só depois, estabelecer alguma ideia sobre o que está sendo mostrado - pena que no geral a ordem desses eventos é a inversa. Os méritos da Emma Stone e do Willem Dafoe por exemplo acabam sendo só lampejos em meio a um trabalho irregular como esse.
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Anatomia de uma Queda
4.0 809 Assista AgoraAo fim do julgamento dá pra concluir qualquer coisa e ter razão, afinal é só um filme. Acho que é esse o grande valor do que a Justine Triet faz: deixar mais espaço pra pensar sobre os mecanismos da verdade do cinema do que sobre os mecanismos da verdade do mundo real. Dá pra encontrar o indício que quiser nas expressões dos personagens, são só atores. E, mesmo sendo um filme de roteiro muitas vezes, só com uma direção muito precisa pra convencer que por trás das performances qualquer coisa pode ser válida, sem impor nenhuma verdade sobre nada, sem ultrapassar o que as imagens dizem.
Assassinos da Lua das Flores
4.1 614 Assista AgoraEm mais da metade do filme, Scorsese passa uma única informação: os Osage estão condenados, assim como estiveram os indígenas na história dos EUA, e isso não evolui para ser algo além da notícia. A descoberta do petróleo, as cenas ilustrando os primeiros assassinatos, as decisões de Ernest sob influência de Hale, o casamento - tudo isso é incorporado na história sob o mesmo tom, o mesmo ritmo, pra dizer só que existe uma tragédia em curso (que aparenta ser inevitável) sem trazer novas dimensões aos conflitos. Trata-se tão somente da descrição do genocídio, em que as mortes se sucedem como os desdobramentos lógicos, que por não terem variação de ritmo ou de tom em seu tratamento vem e vão como se fossem uma nota de rodapé ao núcleo da história que realmente interessa, a saga de Mollie e Ernest.
Isso me parece proposital: sendo um filme sobre impunidade, ele segue numa lógica em que a frieza do narrador não confiável (já que Ernest é o protagonista) se expressa na forma com que os acontecimentos externos a ele são contados. Mas mesmo assim isso é algo que não demora a virar uma repetição da mesma análise - que ainda mantém algum interesse graças aos dois personagens principais, únicos que a direção meio dispersa torna relevantes.
A grande virada é quando o próprio Ernest se vê como mero instrumento da trama em que até então ele acreditava ser o agente efetivo. A partir daí vira um filme de máfia, menos centrado na denúncia fria de um dado e mais no que Ernest e Hale representam. O problema é que isso também parece resultado da direção confusa do Scorsese, que não equilibra a intenção de trazer essa história a público com a intenção de contar uma trama policial: muitas vezes o seu olhar acaba perdido como se mostrasse algo porque tem que mostrar qualquer coisa, seja Ernest cometendo algum crime ou uma reunião dos líderes indígenas, sendo difícil entender onde existe alguma progressão (se é que existe). Demora duas horas pra ter algo que abale esse desenvolvimento uniforme, de modo que parece não adiantar de muita coisa Lily Gladstone dar a vida na interpretação, porque ela acaba sendo só mais um alvo do olhar disperso da direção.
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Barbie
3.9 1,6K Assista AgoraParece que a Greta escreveu o roteiro com uma proposta, depois filmou como se estivesse fazendo outro filme totalmente diferente, e cada ator interpretou como se estivesse em um filme à parte. Em algum momento, os produtores que representam a Mattel devem ter alertado que problematizar o roteiro não seria benéfico pra marca, então o que restou foi levar tudo pelo seu sentido mais literal independente do quão contraditório seja o resultado (tanto na estética quanto na abordagem dos temas).
Existe em Barbie um musical, uma sátira cheia de sarcasmo, um filme infantil, uma fábula moralista; o filme é um quando Ryan Gosling está na tela (com a lucidez de estar interpretando um boneco cujas aspirações vem de um mundo de fantasia), e é outro quando America Ferrera faz um monólogo de dois minutos sobre a existência feminina sem que o filme, nem por um segundo, considere que esse momento dramático vai ser assistido dentro de um conjunto absolutamente caótico e amorfo.
Essa cena do monólogo é representativa por outro motivo: enquanto a personagem fala sem parar, o único recurso que a diretora usa pra que isso não se torne uma leitura de roteiro pura e simples é inserir planos das reações de cada Barbie, todas com o mesmo olhar passivo e inerte de quem poderia estar reagindo a qualquer coisa. Nesse momento tão sério, usa-se a mesma montagem dos números musicais: o foco é mostrar o máximo de gente possível, sem se preocupar se este ou aquele plano parece pertencer mesmo a determinada cena. Se em tom o filme não tem qualquer unidade, a edição e a tela verde onipresente só colaboram pra que essa colagem caótica se torne um incômodo. Independentemente se foi pressão da produtora ou se foi escolha criativa da Greta, a inventividade de alguns momentos muito bons (cenas com o Ken, com a Barbie Estranha, a introdução, o comercial da Barbie depressiva... ou seja, cenas que fazem sentido estar em um todo caótico) fica limitada a esses momentos apenas. Não existe ligação possível entre uma cena em que uma criança diz "Tá legal, Barbie, vamos lá. Você deixa as mulheres mal desde que foi inventada. Você representa o que nossa cultura tem de errado" e outra cena em que a inventora da Barbie diz "Você está diferente. Acho que você está como deve ser" - mas o fato é que no filme elas aparecem ligadas, se enfraquecendo mutualmente e alternando-se com um comercial da Chevrolet e os poucos momentos de respiro em que o Ken e a Barbie Estranha estão em cena.
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Doutor Estranho no Multiverso da Loucura
3.5 1,2K Assista AgoraNão esperava nada né mas o broxante é que tem uma ou outra cena realmente boa entre a leitura de roteiro protocolar que compõe basicamente quase o filme todo. Nisso até acho coerente as pessoas reclamarem ou darem risada daquelas transições diferenciadas e os planos menos padronizados (apesar de que provavelmente estão reclamando pelos motivos errados), porque eles realmente ficam deslocados quando logo em seguida tem o mesmo tipo de diálogo, o mesmo tipo de plano e as mesmas finalidades de sempre. No fim as coisas que diferenciam seu estilo daquele dos demais filme da Marvel são só migalhas pra tentar abalar um pouquinho a obviedade incontornável imposta pela maior parte do filme.
O Homem do Norte
3.7 947 Assista AgoraParece ser esse o jeito do Eggers de lidar com tradições, questões místicas ou religiosas, enfim: enfatizando o aspecto performático delas, como elas transformam o comportamento dos personagens em uma performance. A essas performances o diretor responde enquadrando os personagens e suas ações como se estivessem em um palco, quase nunca explorando profundidade de campo, de certo modo isolando-os do cenário, e geralmente movendo a câmera na horizontal. Muitos monólogos, muitos discursos, e mesmo os diálogos entre dois personagens raramente são genuínos, parecem emitidos menos direcionados ao interlocutor ali da cena e mais a outro interlocutor do além, que julga e observa - que seria alguma divindade ou a moral que os adestra, mas acaba sendo nós que assistimos. Foi uma escolha interessante pegar uma inspiração óbvia do teatro pra fazer isso e consequentemente hipertrofiar essas características que Eggers já demonstrava nos filmes anteriores. Nesse universo cheio de pose e misticismo, fez sentido, embora tornar o filme também muito posudo certamente não fosse a única saída possível - se haviam mais possiblidades, os fracassos miseráveis nas horas de tornar o drama mais complexo mostram que, infelizmente, foi essa a única saída que o diretor foi capaz de encontrar.
De todo jeito, ainda acho que o Robert Eggers tem potencial pra coisas maiores. Continua sendo o melhor diretor que apareceu através da A24. Espero que no futuro esse filme possa ser visto como um ensaio ou um teste pra sua obra-prima que até agora não chegou mas vai chegar se deus quiser.
Perfect Blue
4.3 815De alguma forma, as animações traem a vocação original do cinema. A mise-en-scene, que pode ser entendida como o olhar do cineasta diante da realidade que orienta seu manejo da câmera, assume um caráter diferente quando o diretor, ao invés de simplesmente filmar algo que já existe, precisa moldar por completo uma “realidade” e pode fazê-lo sem qualquer tipo de limite. Uma liberdade formal que permite ignorar as limitações da câmera ao brincar com suas imagens mas, por outro lado, pode virar um obstáculo à fascinação do espectador quando o objetivo é convencê-lo que aquelas imagens desenhadas devem ser percebidas e sentidas como se fossem imagens do mundo real. Penso em Hayao Miyazaki, um gênio absoluto, que em meio aos tantos elementos fantásticos de Totoro, Chihiro, Princesa Mononoke, atinge alguns de seus momentos mais bonitos e singelos quando representa as coisas mais mundanas possíveis, como a natureza e os seres humanos. Impossível negar que através desses planos desenhados somos convencidos a perceber, muito além da beleza do traço ou da animação bem feita, a beleza da nossa própria realidade, que por acaso nos é apresentada com uma textura diferente, a textura da animação— não deixa de ser a mesma beleza.
Satoshi Kon em Perfect Blue também é genial porque consegue êxitos similares ao de Miyazaki, mas ao invés da beleza ele revela a abjeção, o horror — que, depois do transe em que o diretor consegue nos colocar, não deixam de ser a abjeção e o horror da nossa própria realidade. O que quero dizer não é que a imersão em um universo animado e a identificação com os sentimentos ali representados seja algo raro, mas sem dúvida é raro um filme atingir ambos no mesmo grau de Perfect Blue, ainda mais considerando os meios usados pra tal. O que ocorre é que depois de algo ser apresentado como digno de credibilidade, o caráter aparente dessas imagens é questionado pelas imagens seguintes. A uma cena que aparentava dar uma chave para desvendar a real natureza da história, segue-se a revelação de que a cena anterior não passava de encenação para uma série de TV— fomos enganados assim como os espectadores ficcionais que viriam a assistí-la. A uma cena em que a protagonista, atriz aspirante em um papel que aceitou para se consolidar na carreira, interpreta uma vítima de abuso, segue-se o preciso momento em que ela se sente, de fato, abusada, independente do caráter ficcional que aquele momento a princípio teria. No fim, as dimensões da vida da personagem, sua vida privada e pública, assim como a realidade e a alucinação, se confundem e invadem umas às outras, e a barreira que as separa progressivamente fica mais dúbia.
Tem vários e vários filmes que propõem algo assim (inclusive Cisne Negro, que em muito se baseou na obra de Satoshi Kon) mas nem por isso Perfect Blue se torna menos especial na sua maneira particular de confundir, de fazer imergir o espectador em um nível superficial de sua realidade animada só pra depois apresentar um nível alternativo dessa realidade e levá-lo mais fundo ainda. Falando assim pode parecer previsível, como se ao saber dessas características fosse possível antecipar as viradas bruscas, mas não acho que seja o caso. A montagem, o aspecto mais brilhante do filme e a partir do qual suas principais questões se apresentam, é rigorosa demais pra dar esse tipo de brecha — mas só assistindo pra entender.
Águas Profundas
2.5 364 Assista AgoraGarota Exemplar da shopee
Noite Passada em Soho
3.5 744 Assista AgoraHesitaria em dizer maneirismo, mas me parece que há uma ambição nesse sentido em alguns lançamentos de terror bem recentes: Maligno, Last Night in Soho, X... Em todos os casos, me incomoda que os diretores pegam apenas os aspectos mais superficiais de suas referências e os repetem sem pensar no novo significado que essas imagens adquirem quando realizadas no dias de hoje. Maligno é com certeza o mais bem-sucedido em seus objetivos, mas Last Night in Soho me leva a pensar que tipo de maneirismo é esse que tenta repetir os mesmos efeitos dos filmes que referencia sem o menor rigor formal para tanto. Como eu disse a respeito de Maligno: acaba sendo uma homenagem pela metade, porque entre uma "inovação" formal e outra (que não alteram o aspecto superficial do estilo que tenta replicar), a essência que tornava aqueles filmes realmente emocionantes se perde - o que não seria um problema caso o cineasta tivesse isso em mente, mas esse obviamente não foi o caso do Edgar Wright
A Lenda de Candyman
3.3 508 Assista AgoraDepois da mesma cena (alguém olhando pro espelho e só insinuando que vai invocar o candyman, geralmente sem chegar aos finalmentes) se repetir à exaustão, me surpreendi muito que justo na última vez que ela aparece finalmente surtiu o efeito desejado, fez o que o filme todo tentou até então: dar algum peso à aparição do Candyman e à antecipação que a precede. Pena que é só na última, no meio das ótimas sequências finais que compensam o tédio do resto.
Também Fomos Felizes
4.4 19Até então meu preferido do Ozu era uma comédia chamada Meninos de Tóquio. Mesmo sempre me emocionando com os dramas, acho que não sentia um vínculo tão forte com a maioria deles quanto sentia com aquela comédia.
Enfim esse Também Fomos Felizes me pegou de surpresa e proporcionou o que eu sentia que faltava entre os dramas do Ozu. Todos são lindos e emocionantes, mas acho que esse é o mais lindo de todos.
Começo de Primavera
4.0 8"Maybe he was lucky never knowing what a salaried worker's life is like. (...) You get disillusioned fast if you have a wife and children. (...) We live on. But we're not happy."
Se a Setsuko Hara parecia carregar o peso do mundo todo nas costas e escondia isso através de um sorriso, nesse filme os personagens não se preocupam em manter tal disfarce. Talvez seja essa a surpreendente questão central do choque de gerações em uma sociedade em transformação: a exploração do trabalho, o peso das convenções familiares, a busca por válvulas de escape, enfim, existem desde as gerações anteriores, mas algo que muda é a forma de lidar com essas coisas, a dissimulação que dá lugar à visível angústia. Tudo isso no filme mais "noturno" do Ozu: com seu minimalismo habitual, a mudança formal mais evidente é que a luz parece não iluminar como antes ou passa a ter seu alcance bem reduzido. Mesmo durante o dia, nos raros momentos em que o cenário não é puramente aquele do mundo do trabalho, a natureza a ser observada é permeada por obstáculos que impedem o homem de se regozijar com sua beleza ou encontrar nela algum sentido pra sua existência. O otimismo que parecia se construir durante a reta final até se concluir em um plano muito característico do diretor (mostrando a paisagem externa, as nuvens, as montanhas, enfim, que os personagens observam de dentro de casa), é concluído na verdade em um plano do céu obstruído pela fumaça preta saída da chaminé de uma fábrica...
Outros filmes do Ozu são muito muito tristes em diversos sentidos, e talvez aquele disfarce os torne ainda mais tocantes, mas neles há ainda algum otimismo que nesse filme acho ausente. Enfim, são só uns pensamentos soltos sobre mais um filme muito notável do mestre... espero escrever algo mais bem elaborado sobre a obra dele no futuro
X: A Marca da Morte
3.4 1,2K Assista AgoraO Massacre da Serra Elétrica é um dos meus filmes favoritos de sempre. Por acaso, o reassisti um dia desses, então tinha muitos detalhes ainda frescos na memória. Admito que deu gosto ver a reverência prestada pelo Ti West. Em certo ponto, achei que X estaria pro filme de 74 como Maligno está pro giallo. Não chega a tanto, mas os paralelos são tantos que a comparação entre os dois filmes é uma entre as várias chaves de análise que o filme oferece de forma bem óbvia. Gosto especialmente da primeira metade que foca quase exclusivamente nesse microcosmo de jovens meio separados do mundo, cada um perdido em sua ilusão particular, e que desvia bem a atenção do fato de que ainda deveria ser um filme de terror. Isso poderia proporcionar uma mudança de perspectiva tão violenta e bruca quanto a realizada pelo Tobe Hopper quando ele arrasta sem cerimônia os jovens do seu filme pro inferno um de cada vez. Em X há uma tentativa nesse sentido, como a velocidade em que as mortes se concretizam mostra, mas a violência repentina funciona mais o gancho de uma piada do que qualquer outra coisa. A mentalinguagem, mais uma das chave de análise, dá ao filme um tom de ironia constante que o torna uma comédia bem satisfatória e ao mesmo tempo o impede de ser algo além disso. Não acho que o problema seja "se levar a sério demais", mas sim atirar pra todos os lados, de qualquer jeito, oferecendo repetidamente orientações variadas e mesmo contraditórias, esperando que o tom de ironia sirva pra relevar os pontos que são apenas mal trabalhados. O casal de idosos acaba se tornando uma muleta pra o filme conseguir transitar de alguma forma entre seus vários objetivos, entre seus gêneros, e pra explicitar de forma meio redundante seus temas.
Enfim bem interessante olho nesse diretor aí mlk tem futuro
O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface
2.2 697 Assista AgoraMuito engraçado, mas fiquei com muita pena da atriz do filme original. Claramente tentaram repetir com ela o papel que a Jamie Lee Curtis ocupou no Halloween de 2018, mas sem o mesmo respeito pelo passado e muito menos o bom senso pra entender que o trauma dela em meio a tanta galhofa ia virar também pura chacota.
Duna: Parte 1
3.8 1,6K Assista AgoraA pompa típica do Villeneuve é muito eficaz ao baixar a rotação do filme pra engajar o público em um tour pelo universo fantástico que está sendo introduzido. Nisso, o único tom que existe é o da contemplação de algo novo, cujo fim último é impressionar pelo caráter curioso e visualmente impressionante daquele universo - limita-se, então, a ser apenas introdutório, a existir em função de algo que ainda vai ser realizado. No processo de consolidar a promessa de um clímax que só existirá na sequência, as cenas de objetivos mais imediatos, como os momentos de ação, se tornam reféns daquele mesmo tom útil pra atiçar a curiosidade mas anticlimático para o resto. O resultado disso é um filme que consolida Arakis como um universo riquíssimo mas deixa a dúvida se Villeneuve vai conseguir tratá-lo como algo além de imagens, personagens e cenários curiosos quando assim tentar.
Drive My Car
3.8 385 Assista AgoraSem alguma paciência não se sente o peso do formalismo. Não que o começo não seja interessante por si só, mas seu ritmo lento e suas repetições se pagam melhor quando momentos que seriam banais se tornam muito reveladores depois de um desenvolvimento tão metódico e contido - tão contido quanto a relação entre os personagens, distanciados pela barreira da formalidade. É especialmente desconcertante, a palavra é essa, ver o protagonista falando "sozinho" durante seus ensaios (entre ele e a fita que sua esposa gravara lendo as falas de quem contracenaria com ele) no carro enquanto a motorista se faz se indiferente, finge que não ouve - como é o seu papel, uma performance entre tantas que existem no filme e que deixam implícito que aquela formalidade a qualquer momento vai sumir; que as performances não são suficientes pra conter os sentimentos desenvolvidos no processo nem pra apagar os que já existiam.
No Ritmo do Coração
4.1 754 Assista AgoraO coming of age mais normal do mundo. Seria injusto usar as indicações ao Oscar, ou selo de filme importante usualmente atribuído somente por conta de representatividade, pra colocá-lo em um nível de pretensão acima desse. Sua maior proeza é aceitar ser um filmes com pessoas com deficiência sem ser um filme sobre deficiências, sem pretender fazer qualquer tipo de síntese sobre questões complexas que uma direção protocolar não seria capaz de abarcar sem se tornar pedante. Postas essas armadilhas de lado, é só um coming of age como tantos outros que já assisti. Talvez sua única singularidade formal seja no tratamento das atuações: sendo em grande parte falado em língua de sinais, exige um esforço de quem assiste (e não compreende os diálogos) pra inferir os significados a partir das atuações - e, merecidamente, o trabalho dos atores acaba sendo bem valorizado nesse processo, com uma naturalidade muito agradável que filmes de Oscar baseados em méritos dos atores raramente conseguem alcançar. Não é suficiente pra ser um grande filme, mas é suficiente pra não ser irritante.
Belfast
3.5 291 Assista AgoraCom alguma folga, o pior indicado ao Oscar de melhor filme que eu já vi.
Essa pérola de filme não é sobre infância, nem sobre inocência, nem sobre a perspectiva de uma criança em um cenário tão conflituoso. Essa criança é só um fantoche pra educar o coitado que assiste através do sentimentalismo mais porco e óbvio possível. A "perspectiva inocente" dela se resume a uma muleta pra justificar a infantilidade do discurso do próprio diretor - que não se trata de mostrar ou desenvolver a incompreensão da criança diante da realidade complexa que a cerca, mas sim da incapacidade do diretor de dar qualquer profundidade às situações que apresenta sem apelar pra alguma frase de efeito óbvia saída da boca dessa criança ou alguma expressão triste que ela faz no fundo do plano - artifícios aproveitados sempre que possível. Essas obviedades que deveriam ser singelas se acumulam como se pela saturação algum sentimento real fosse surgir. A um momento tocante cortado antes de se desenvolver, há um próximo, mais tocante e forte e singelo ainda. E nunca algum que não faça revirar os olhos de tão falso e superficial, e que só pioram por serem tratados como naturais e ainda alternados com protestos e cenas repetidas de violência que recordam, caso alguém tenha esquecido, da importância política desse filme. Em meio a essa casa de bonecas em que Brannagh brinca de filmar seus fantoches, não tem coisa mais irritante do que ele achar que esse papo político deve ser levado a sério e que esse suposto caráter autobiográfico vá ter algum efeito depois de ser moído por uma abordagem tão impessoal e enlatada.
Batman
4.0 1,9K Assista AgoraQuando se trata de filmes de heróis, é muito fácil só jogar pra galera. É muito fácil, tão fácil que se tornou regra, terceirizar a responsabilidade em relação aos méritos e defeitos de um filme, reduzindo-o tanto a fatores alheios a qualquer tipo de valor cinematográfico que se torna quase impossível avaliar o trabalho do diretor. Não se trata (da falta) de autoria, mas, diante das obrigações de encaixar uma obra em universo compartilhado ou podá-la segundo o fanservice, os próprios filmes aceitam se restringir a debates que os negam enquanto cinema e os afirmam enquanto um mero suporte pra ilustrar histórias — incluindo com frequência histórias que nem são parte do filme e só vão aparecer em um próximo lançamento, mas que roubam cena como se a empolgação e a antecipação do prazer que geram não fossem alheias ao que o filme de fato constrói. Isso vai desde o MCU até a Liga da Justiça do Zack Snyder, mas não é algo que torne essas obras menores, afinal elas podem ser plenamente bem sucedidas em seus contidos objetivos. A questão é que, ao aceitarem ser peças menores de um universo pré-estabelecido pelo estúdio ou pré-determinado pelo público, entre prelúdios de algum evento mais importante (caso da maioria do MCU) e produtos cuspidos e escarrados das expectativas criadas (caso de Liga da Justiça), terceirizam a apreciação do filme pra algo além dele, como se o impacto imediato ao assistir não bastasse.
Mais difícil é fazer o que Batman faz. Um filme que quer se sustentar sozinho, que se justifica só por ele mesmo, cujo impacto imediato é o essencial; que tenta arrastar aqueles que não estavam predispostos a gostar do filme, ou que não tinham alguma relação emocional prévia com o que é retratado. Esse é o patamar de pretensão em que Batman se coloca — não necessariamente superior, mas alternativo em relação ao panorama descrito no parágrafo anterior. Um patamar no qual ser bem sucedido demanda tanto um cuidado especial na hora de filmar quanto uma compreensão de que os vários aspectos indissociáveis da linguagem devem funcionar em consonância para que, afinal, aquele impacto desejado ocorra — e felizmente, Reeves tem ambos.
Basta lembrar das primeiras “aparições” do Batman, aquelas em que o personagem fica invisível em meio a becos escuros ou espaços aparentemente vazios. Nesses momentos, não há “progressão da história” alguma; revelar o novo traje também não pode ser visto como sua função; nem há planos que funcionem sozinhos por serem visualmente estonteantes; mesmo a narração em primeira pessoa do Bruce (o roteiro) não pode ser destacada das imagens sem perder algo de seu significado. Afinal, esse significado só existe enquanto um sentimento provocado por todos esses componentes associados. Não faz sentido isolar qualquer um deles, sejam as marcantes palavras ditas por Bruce ou a adequadíssima trilha de Michael Giacchino, muito menos explicá-los para algo além do principal: o tesão que é ser manipulado por tudo isso junto a tal ponto que só de olhar pra uma tela permeada pela sombra você entende tudo. Depois disso, quando o Batman, enfim, aparece iluminado o suficiente pra o vermos de fato (e isso serve também pra aparição do batmóvel, só pra citar outro exemplo), o sentimento que brota não provém da simples satisfação daquela expectativa de encontrar um velho conhecido, algo que mesmo a mais porca apresentação seria capaz de produzir e seria suficiente pra provocar gritos na plateia — pelo contrário: é o sentimento que o desenvolvimento da própria cena fez surgir e progressivamente atiçou, como se tivéssemos sido apresentados a um personagem que nunca ouvimos falar antes, mas que apenas bastou essa cena para nos fazer compreendê-lo profundamente. E lógico, nada disso seria possível sem um estilo calibrado pra tanto.
Talvez tenha sido justamente o que faltou aos filmes anteriores do personagem: uma regularidade de estilo que não limitasse de alguma forma o efeito do todo pra privilegiar algum fetiche, nem reduzisse suas possibilidades visuais. No caso do Nolan, era o fetiche pelo realismo, ao qual se opunha de forma paradoxal o desenvolvimento arbitrário da investigação no Cavaleiro das Trevas e anulava qualquer emoção além do êxtase pela ação. Não que o Batman do Reeves não seja realista em grande medida — ele é, no geral, uma narrativa tão pé no chão quanto o filme do Nolan, mas que abraça com vontade as implicações de se ter como protagonista um bilionário traumatizado fantasiado de morcego, e o faz com tal equilíbrio que evita que o filme se torne caricato. Ao seu realismo, à questão social de Gotham, à existência de Bruce Wayne como ser humano, se sobrepõe a existência do Batman como entidade e a contaminação que seu espírito atormentado exerce sobre a representação da realidade que o envolve. Quando Reeves, nas poucas vezes em que enquadra Bruce, o faz como se o personagem fosse uma aberração fora de lugar, é a pura demonstração de que, nesse filme, a ênfase está mais em transmitir esse espírito irracional de alguns personagens do que em uma inserção forçada destes em um “mundo real”.
Pouco importa essa inserção, ainda que esse mundo real, no qual se desenvolvem os dramas da Selina, da polícia e da máfia, exista plenamente no filme e oriente, aos moldes de Se7en, grande parte da narrativa. Esta não chega ser tão estilizada quanto o visual, e Reeves preserva alguma autonomia ao não tentar emular o método de Fincher na hora de filmar, deixando a influência dele mais restrita ao enredo do que qualquer outro aspecto. Se alguém esperava um primor do autorismo, Reeves opera mais dentro do convencional. Seu diferencial é ter domínio do ofício e filmar com gosto, sem ter que prestar contas a ninguém por suas decisões criativas e com alguma liberdade pra brincar com as possibilidades da linguagem no processo. Coisa incomum no gênero, e o resultado final é mais do que suficiente pra demonstrar o valor de se fazer um filme pensando só no filme.
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Cow
3.8 17 Assista AgoraNo filme A Sombra do Gato de 1961 tem uma cena em que um dos personagens, culpado de um assassinato, diz que o gato da vítima olhava pra ele com "olhos acusadores". Um gato, sem feições humanas, expressar no olhar algo tão específico dos humanos. Logo um dos investigadores constata que isso não tem cabimento e que não passava do criminoso enxergando, no rosto inexpressivo do gato, um reflexo de sua própria consciência. Era um filme de ficção, e como tal é absolutamente comum embutir, através de qualquer artifício cinematográfico possível, em seres inexpressivos (ou até objetos) emoções humanas - e assim convencer quem assiste que aquele ser ou objeto de fato sente aquilo. No caso de documentários, nada impede que técnicas de convencimento e manipulação similares sejam usadas - e dada a não neutralidade inerente do documentarista, sempre são utilizadas a fim de transmitir determinada tese.
A questão é que em um filme como Cow, que retrata basicamente animais inexpressivos ao mesmo tempo em que se apresenta como não ficção, essa manipulação do público é tão arriscada que a qualquer momento pode desembocar na pura falsificação: algo que na ficção é plenamente aceitável, já que estamos dispostos a ser enganados, mas que em um documentário (e especificamente em um documentário que busca o naturalismo em relação ao que retrata) anularia qualquer tipo de efeito positivo.
Um bom exemplo desse tipo de falsificação e do impacto negativo de uma manipulação mal feita, tosca, vergonhosa e forçada é o último vencedor do Oscar de documentário, Professor Polvo, que também tem como "protagonista" um animal. Tomando o filme anterior como parâmetro, fica evidente que os méritos de Cow são mais pelo que deixa de fazer do que pelo que faz. Seria muito conveniente, como em Professor Polvo, se escorar no voice-over, na trilha sonora, entre outras técnicas mais apelativas pra guiar o espectador segurando-o pela mão e forçá-lo a perceber no polvo os significados que os produtores do filme a ele atribuíram com uma fingida naturalidade.
Cow não faz nada disso. Se há alguma tese por trás do ato de filmar fragmentos do cotidiano do animal, ela nunca fica tão evidente ao ponto de direcionar quem assiste a alguma conclusão única, nem a um sentimento único. Isso é possível porque a diretora praticamente se torna invisível no manejo da técnica: nem na montagem, nem na fotografia, nem na trilha sonora (que quase sempre é constituída por músicas tocadas no próprio curral), sua presença (e sua impressão particular sobre o que retrata) se faz sentir com mais força do que aquilo que é mostrado. Escolha acertada. Por um lado evita que o filme caia na manipulação narcisista e irritante de Professor Polvo, por outro torna-o, talvez, mais pobre do que deveria: para além de um exercício sobre a visão do documentarista e sobre a representação de animais nesse tipo de filme, não há quase nada digno de nota. Se a diretora pretendia que o filme fosse mais do que isso, pena.
A Noite dos Mortos-Vivos
4.0 549 Assista Agora"They're coming to get you, Barbara". O que torna essa frase tão encantadora é que ela é externalizada só como uma brincadeira desinteressada em relação a um medo de infância, mas automaticamente se torna um presságio: ela antecipa uma ameaça que, pelo poster e título do filme, era óbvia, mas por enquanto ainda estava escondida. Essa tensão que consegue se sustentar sem que algum monstro esteja na tela, apenas pela insinuação de algo que está prestes a ocorrer ou existe em volta do que podemos ver, se repete no decorrer do filme e constitui seus melhores momentos. Estes não são quando um zumbi pula em cima de alguém ou está prestes a isso, mas quando a ameaça apenas paira de forma incerta sobre os personagens: os zumbis que rondam a casa mas não são vistos e portanto não representam perigo imediato; a criança doente no porão que a qualquer momento pode se transformar em outro zumbi; a índole duvidosa de certas pessoas dentro da casa que não passam nenhuma segurança a seus companheiros mas não chegam a ser inimigos. Enfim, ameaças latentes, antecipadas com ansiedade, mas que o espaço extremamente limitado impede de mensurar a real medida de seu perigo - inclusive quando elas são visíveis, como é o caso dos zumbis quando estes aparecem. Com os personagens enclausurados dentro da casa, a TV e o Rádio são seu único vínculo com o universo exterior, que vai sendo iluminado em focos de luz vagos e dispersos conforme as notícias chegam e aos poucos rompem a limitação do espaço. Enquanto o universo do filme se expande e os ocorridos são esclarecidos, porém, os personagens aparecem cada vez mais isolados e impotentes. Na prática, a situação deles pouco se modificou: o que mudou foi a nossa perspectiva em relação ao universo do filme, a qual Romero consegue manipular como bem entende ao mesmo tempo em que contorna as dificuldades que o baixo orçamento impõe.
A Lenda do Cavaleiro Verde
3.6 475 Assista AgoraMataram a diegese a troco de nada. A dimensão ficcional do filme é sacrificada em função da necessidade de enfatizar em cada escolha formal algum autorismo - mas que no fim das contas só se manifesta através de truques baratos e da inserção contínua de elementos não diegéticos que em nada se conectam ao universo fantástico do filme, e na verdade anulam a imersão nele. A tal ponto que (e isso é o cúmulo) até os elementos internos a esse universo são sentidos como se fossem, eles também, não diegéticos: como se não passassem de mais intervenções arbitrárias do diretor pra forçar ainda mais o filme a ser tão atípico quanto as digressões da montagem e os "inesperados" posicionamentos de câmera.
Não sei se fez sentido. Algumas coisas do que falei não seriam problema a princípio, a questão é que nesse filme não levam a nada. E pra ser sincero deu preguiça de elaborar.
Blade Runner: O Caçador de Andróides
4.1 1,6K Assista AgoraTem um final alternativo de Blade Runner que foi imposto pelo estúdio na primeira versão lançada: é um final feliz que mostra Deckard e Rachael conseguindo escapar dos problemas, dirigindo através de uma bela paisagem natural cuja existência, pelo que o filme mostrou até então, não era possível. Um otimismo desse não poderia ser mais forçado e incoerente em um filme no qual esses personagens não valem absolutamente nada quando colocados em perspectiva em relação ao universo que o filme constrói ao seu redor. Eles são engolidos pelos incontáveis establishing shots, repetitivos, que, além de não localizar direito a narrativa em algum espaço e tempo específico do vasto universo do filme (a função usual desse tipo de plano), com frequência parecem travar o andamento do enredo, cortando diálogos ou ações que ainda não pareciam devidamente concluídas. Essa montagem desencontrada dá aos personagens a devida irrelevância que o futuro lhes impôs: há um plot de filme noir bem delineado em andamento, fácil de resumir e claro em seus acontecimentos, mas todos os artifícios técnicos possíveis são utilizados para diluí-lo em meio a uma realidade que existe independente de quais consequências esse plot adquira, independente de qualquer tipo de interferência individual.
É muito fácil assistir a esse filme e automaticamente rotulá-lo com um selo de qualidade por sua “linda fotografia”, por conta dos icônicos jogos de luzes e sombras, das silhuetas que tem aparição recorrente, dos planos abertos enquadrando os impressionantes cenários. Avaliações assim, que julgam determinado aspecto técnico como um mérito intrínseco sem considerar sua função no conjunto da obra, nesse caso, ao menos, fazem algum sentido: o universo do filme é o verdadeiro protagonista, torna propício esse tipo de impressão, de modo que a inventividade dos seus visuais por vezes existe de forma autônoma em relação ao resto — e se sobrepõe a todo o resto.
São raríssimos os momentos em que a onipresença da realidade externa aos personagens não é reforçada de alguma forma, mesmo que nada tenha a ver com o acontecimento específico de determinada cena e tire deste o foco exclusivo. Desde momentos cruciais, como quando Rachael descobre uma revelação chocante e ainda assim a luz de faróis continua entrando pela janela e ofuscando sua reação, até em momentos banais, como quando Deckard está lendo um jornal e fica praticamente camuflado pela luz da loja atrás dele e escondido através das silhuetas de pessoas que passam à sua frente sem parar. Não por acaso os planos abertos são uma constante: aumentam a facilidade de se distrair em meio a tanta informação desconexa, ou em meio a fascinação que o universo provoca, mas Ridley não parece interessado em evitar tal impressão.
Esse fundamento da mise-en-scene do Ridley, no fim das contas, permeia até as situações limite em que o foco é menos disperso. Mesmo no embate entre Deckard e Roy no final, ainda não para de chover, luzes desencontradas não param de iluminá-los, os outdoors continuam piscando atrás deles, como se naquele momento nada de incomum acontecesse. O som segue o mesmo padrão, a tal ponto que os gritos de uma replicante enquanto morre ou os uivos de Roy ao perseguir Deckard facilmente poderiam ser confundidos com sons vindos de outras fontes, fontes externas: em todo caso, desvanecem, se dissociam de suas fontes originais pra virar mais uma peça insignificante na realidade do filme. Consequentemente, quando o filme acaba fica uma impressão de “É só isso?”. Contados os mortos, encerrada essa história que poderia ser resumida em três minutos, feito o discurso memorável do Roy, as palavras finais deste se concretizam quando de repente o filme termina
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