Um escrito poético que penso combinar com o filme:
“Não tema seus tempos de deserto a questionar suas forças, concentrar suas dores e, muitas vezes, esmorecer suas cores. O deserto escancara sua fraqueza, dissolve seus limites e te põe nu. Até que se queimem, em calor escaldante, suas incoerências. E resfriem, em noites geladas, suas verdades mais ricas, até então, por você, ignoradas”.
Sou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho de minha análise sobre este filme: (lembrando que às vezes há spoiler)
..."Antes de tudo e, de forma inquestionável para todos nós, a natureza é mãe. Tanto é assim que reconhecemos com facilidade a expressão “mãe natureza”. E é ela a escolha que McCandless faz para si na intenção de se desligar da família e dos moldes sociais vigentes, num movimento de busca de sua própria identidade. No entanto, é interessante notar que o protagonista escolhe para esse fim, a natureza, importante símbolo materno. Poderíamos supor que um movimento, obviamente inconsciente, regressivo ou de retorno ao calor do ninho da infância, estaria inserido nessa escolha. Claramente notamos que McCandless passa por uma importante fase de transição e conflito"...
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema" Espero que goste! Abraço
Sou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho de minha análise sobre este filme: (lembrando que às vezes há spoiler)
..."Sabemos que a sociedade em geral desaprova a expressão de algumas emoções, como por exemplo, a raiva. Isso leva algumas pessoas a reprimirem e evitarem demonstrar tal emoção, muitas vezes passando a ter pouco acesso à ela e chegar ao extremo de negar sua existência e experiência. Tais indivíduos geralmente são passivos e às vezes excessivamente tolerantes. A repressão de uma emoção não a extingue e, nas palavras de Jung, “tudo que resiste, persiste”. Desta forma, a raiva se acumula no inconsciente e gera tensão, numa tentativa de poder se expressar. Torna-se grande o risco do indivíduo subitamente passar ao polo da agressividade e transformar em palavras ou atos, os elementos da sombra que estavam reprimidos. Segundo Jung, “A sombra apresenta-se muitas vezes como um ato impulsivo ou inadvertido. Antes de se ter tempo para pensar, irrompe a observação maldosa, comete-se a má ação, a decisão errada é tomada, e confrontamo-nos com uma situação que não tencionávamos criar conscientemente...”
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema" Espero que goste! Abraço
Sou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho de minha análise sobre este filme:
"...Nesse grande momento de dor, percebemos pai e filha tentando seguir com firmeza a rotina dos dias conseguindo, no entanto, apenas uma frágil estabilidade. Rasa e seca. Vivem este duro período de vazio de maneira emocionalmente árida, carecendo da flexibilidade úmida que as lágrimas, o escorrer das emoções ou o transbordar da dor poderiam lhes possibilitar..."
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes (lembrando que em alguns casos há spoiler) pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema" Abraço
Sou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho sobre este filme:
..."Claramente o envelhecimento é um processo de invasões e perdas até seu objetivo final, a morte. É o dissipar da última parcela de energia da vida que vai se tornando cada vez mais lenta e rarefeita e busca, como se soubesse o caminho, o alvo do repouso total"...
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes (lembrando que há spoiler) pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema" Abraço
Na minha maneira de apreciar o cinema, achei este filme mais caricato do que simbólico, exagerado e cansativo em alguns momentos, tamanha necessidade de impactar quem assiste. O simbolismo da criação é a beleza maior da película, infelizmente explorada de forma desnecessariamente grotesca e desconfortável ao expectador. No meu entendimento, um filme não precisa ser aversivo para ser reflexivo.
Acompanhamos a inocência do protagonista na realização daquilo que confere sentido à sua vida. Lembrando as palavras de Viktor Frankl: "Quem tem um 'porquê', enfrenta qualquer 'como'". Um filme onde testemunhamos a simplicidade em seu esplendor!!
O mesmo deserto que revela as estrelas, esconde as barbáries da ditadura de Pinochet. Este é um importante documento histórico que precisa chegar à luz de nossa consciência e permanecer em nossa memória como lembrança de que sempre precisamos evoluir como seres humanos.
Recebemos de nossos pais aquilo que puderam nos dar. E nos frustramos porque, jovens, queremos mais e queremos tudo. Crescemos indignados jurando que a carência que carregamos não perpetuaremos. Seremos diferentes, seremos novos, seremos tudo. Seremos?
O filme nos faz pensar em quanto nos diferenciamos e em quanto ainda somos os mesmos e vivemos, como nossos pais... (Belchior)
Sou psiquiatra e analista junguiana e fiz uma análise psicológico desse filme bastante impactante: (quem gostar tenho outras análises no site psiquecinema ou página do face) Aí vai:
O filme nos faz sentir a dor de um luto e da violência moral, física e emocional causada pelo bullying. Além disso, nos faz ouvir também, os gritos de angústia presentes na maneira silenciosa de sofrer de Alejandra e Roberto .
O título “Depois de Lucia” nos localiza em que tempo se passa o filme, ou seja, na falta de Lucia, que acabara de falecer. E é essa ausência, presente em todo o filme, que preenche o abatimento contido dos personagens.
Bullying
O bullying escolar tem sido definido como a hostilidade intencional e frequente de um aluno mais velho ou mais forte, ou de um grupo de alunos, (como é o caso do filme) dirigida a outro, podendo gerar diversas consequências físicas, morais e emocionais para aquele que o sofre, desde uma angústia acentuada até o assassinato ou suicídio. A vítima do bullying se constitui num bode expiatório, que é um alvo ideal para o agressor. Quando o sofredor do bullying demonstra ansiedade, chora ou não se defende, o agressor pode se sentir superior e satisfazer impulsos de crueldade e agressividade, além de se sentir bem, mesmo quando são outros que atacam a vítima.
De maneira simplificada, segundo a psicologia de Jung, aquilo que não aceitamos em nossa personalidade, reprimimos e estes elementos constituirão nossa sombra. Esta nos é inconsciente e teremos a tendência de projetá-la em outro indivíduo. No bullying efetuado por um grupo, o aluno agredido está sendo alvo da projeção de elementos sombrios coletivos e não da sombra de apenas um indivíduo. Independente de quais elementos estejam sendo projetados na vítima, que podem ser, “o feio, o estranho, o diferente, o fraco, o burro, o incompetente”, isso ocorre para que o coletivo possa expiar esses elementos que, embora negados, lhes pertence.
Quando existe alguém que carregue estas projeções, a maioria pode se sentir bem em sua mediocridade e essa é uma das grandes crueldades do coletivo. Segundo Jung, no grupo a emoção é contagiosa e o anonimato libera instintos e forças primitivas. Visto que a consciência de um grupo é inferior à consciência individual, cria-se um tipo de alma animal coletiva.
A respeito da vítima, podemos supor que inconscientemente este indivíduo possui um alto grau de agressividade que não consegue expressar de forma adequada. Ao sacrificar a expressão deste sentimento, se torna o alvo da maldade projetada dos agressores que a transformam em atos cruéis e cuja execução fica facilitada pela passividade da vítima. Esta pessoa que sofre a violência precisará, assim, passar por um processo onde possa se tornar consciente de sua sombra, no caso de sua agressividade não aceita e reprimida, a fim de passar a externá-la para sua própria proteção e defesa.
Alejandra vive um momento bastante delicado e doloroso devido à morte da mãe, possivelmente carregando raiva pelo que a vida lhe impôs e eventualmente algum grau de culpa. Tudo isso vivido de forma contida, sem a troca de emoções com o pai e em silêncio. Em função da provável fragilidade em que se encontra e por estar vivenciando os fortes sentimentos de impotência que a morte causa, a garota pode ter se tornado vulnerável e indefesa frente ao mundo e sua maldade.
Luto
Pai e filha sofrem em silêncio. Na tentativa de evitar a expressão das emoções trazidas pela dor do luto, substituem tal vivência pelo empenho em se oferecerem cuidados recíprocos. Parecem, desta forma, querer se unir e somar forças evitando levar problemas ou tristezas um ao outro. Mas como vemos com o desenrolar da história, tentar poupar dificuldades acaba resultando em distanciamento. Ao negarem suas dores ou raivas decorrentes do luto, correm o risco de se tornarem passivos e vítimas indefesas de atos violentos como ocorre com Alejandra ou, de maneira compensatória, se tornarem ativos e explosivamente destrutivos, como no caso de Roberto.
Nesse grande momento de dor, percebemos pai e filha tentando seguir com firmeza a rotina dos dias conseguindo, no entanto, apenas uma frágil estabilidade. Rasa e seca. Vivem este duro período de perda de maneira emocionalmente árida, carecendo da flexibilidade úmida que as lágrimas, o escorrer das emoções ou o transbordar da dor poderiam lhes possibilitar. Este movimento e profundidade emocional que os personagens não são capazes de experimentar, o filme trará, como compensação e contraste, nas imagens da profundeza do oceano e suas ondas. O início da película mostra Alejandra próxima ao mar e também enfatiza seu gosto pela água nas cenas onde nada na piscina. Além disso, é pelo mar que ela encontra uma ‘solução’ e foge da maldade praticada por seus pares. E por último, também é o mar que acolhe a vingança de Roberto no final do filme. A água simboliza os sentimentos e as emoções em movimento que estão negadas e reprimidas, surgindo apenas do lado de fora da vida de pai e filha. A partir desse simbolismo, abordarei a operação alquímica denominada “solutio”.
A alquimia foi estudada e entendida por Jung como uma forma de compreender o que se passava no psiquismo dos alquimistas visto que as transformações que eles produziam na matéria correspondiam a projeções psíquicas de seu inconsciente. Assim, cada uma das operações alquímicas traz um significado psicológico para quem está envolvido com determinado elemento. A partir da conscientização desse significado é possível ao indivíduo adquirir maior conhecimento a respeito do que vem vivendo internamente podendo, assim, se compreender melhor.
Como dito, a “solutio” é a operação alquímica relacionada à água, que é o elemento simbólico recorrente no filme.
Segundo Edinger, a experiência da solutio ‘soluciona’ problemas psicológicos mediante a transferência da questão para o domínio do sentimento. Em outras palavras, dá respostas a questões ao dissolver a obstrução da libido a respeito da qual a questão era sintoma, no caso a perda e o luto. Simbolicamente, o fenômeno da ‘solutio’ corresponde à dissolução através da fluidez das emoções dos aspectos estáticos da personalidade que resistem a mudanças.
Finalizando, o luto é um tempo duro que precisa lentamente se desmanchar.
É um gelo, um choro cristalizado que precisa derreter sob o calor do coração e escorrer como as lágrimas para que a vida possa voltar a fluir.
Olà! Sou psiquiatra e analista junguiana e tenho analisado psicologicamente alguns filmes...este é um trecho da análise deste filme:
"[...]" uma emoção pode chegar à consciência de forma abrupta e exagerada, assumindo o controle do ego do indivíduo, que se torna disfuncionalmente agressivo. O indivíduo perde a possibilidade de experimentar e agir de maneira assertiva, de modo a atingir seu objetivo. Na verdade, o tempo todo somos exigidos a buscar um equilíbrio entre nosso instinto e os valores que introjetamos através da cultura; entre nossa primitividade e civilidade. Segundo Jung, “o excesso de animalidade distorce o homem civilizado, mas o excesso de civilização deixa os animais doentes”. Ainda em suas palavras, “o processo da cultura consiste em dominar cada vez mais o animal que há no homem”. Para tal, precisamos admitir esse nosso lado animal, conhecer o que ele tem a nos dizer e, sem desrespeitar a moral vigente, encontrar nossa própria harmonia e nossa própria ética.[...]"
Obs. A análise completa é longa para postar aqui.. Quem tiver interesse em ler na íntegra, está no site psiquecinema ou pagina do face psiquecinema Abraço a todos!!
Sou psiquiatra e aqui está minha análise psicológica do filme para quem gostar
ATENÇÃO: A HISTÓRIA DO FILME PODE SER REVELADA NO POST. FICA A SUGESTÃO DE ASSISTÍ-LO PREVIAMENTE
SPOILER
O filme trata do cotidiano e de como as miudezas do dia a dia estão impregnadas de significado e poesia.
Há um arcabouço que se repete no decorrer de uma semana da vida de Paterson que identificamos logo no início do filme. Entretanto, se atentarmos para os eventos que recheiam esse arcabouço perceberemos nuances que dizem muito sobre sua vida.
Na verdade, a vida de todos nós é repleta de repetições e conexões sutis que não nos apercebemos, na ânsia de buscar o que ainda não alcançamos. A vida de Paterson vai nos mostrar a beleza sutil que existe naquilo que damos por trivial. Há muita riqueza no monótono e no pequeno, há muito colorido no preto e branco repetidamente apresentado por Laura no cotidiano do casal.
E há também muitas coincidências ao longo do filme, que não ocorrem à toa e sem sentido, mas estão ligadas pelo afeto. Cabe aqui apresentar um conceito de Jung que aparece no filme e também em nossas vidas, chamado sincronicidade.
Sincronicidade é aquela coincidência que subitamente acontece e nos deixa perplexos como, por exemplo, pensar em alguém distante que, de repente, nos telefona. Ficamos imediatamente impactados porque não se trata de algo qualquer mas de uma coincidência que nos toca, nos afeta e até nos assusta. Não explicamos, apenas testemunhamos. Geralmente uma ocorrência de curta duração, a sincronicidade funde o ambiente externo com nossa psique, possibilita que uma vivência interior fique espelhada no mundo e, como a luz intensa e breve de um relâmpago, nos faz vislumbrar a unidade e conexão entre todas as coisas. O importante a destacar é que não devemos desprezar tais acontecimentos porque desejam comunicar algo. Se pudermos refletir sobre o significado da sincronicidade no contexto de nossas vidas, possivelmente teremos acesso a conteúdos que nos eram inconscientes e que, depois de elaborados, poderão ampliar o que sabemos a respeito de nós mesmos.
Uma ocorrência sincrônica relevante do filme é o protagonista se chamar Paterson, o mesmo nome da cidade onde vive. Essa é uma coincidência significativa que pode nos fazer pensar no Paterson motorista de ônibus, público como a cidade, e outro particular e subjetivo, poeta nos momentos íntimos. Um circula e se expõe e o outro aquieta e se recolhe; um sustenta a vida prática e o outro sustenta a alma. Essa duplicidade quer se fazer revelada e continua se apresentando ao mundo e ao indivíduo através de outros eventos sincrônicos do filme como, por exemplo, os vários gêmeos que cruzam sua rotina.
A observação acima nos remete ao “motivo do duplo”, trabalhado por Jung em sua obra.
A dualidade, a cisão, a divergência, ou a antítese remetem, em termos de imaginário, ao elemento chamado “duplo”. Encontramos o simbolismo do duplo em diferentes áreas de estudo como, por exemplo, na literatura, na arte ou na mitologia. Ele nos causa uma atração interrogativa, tendo sido motivo de distintas construções imagéticas. Um exemplo onde pode ser visto é no mito de Narciso: na versão escrita por Pausânias. Narciso se apaixona pela irmã gêmea que morre, deixando-o consumido pelo desgosto. Um dia, enquanto passeava, vê seu reflexo na água do lago e imagina ser sua irmã. Lá permanece admirando-a até definhar e morrer, dando origem à flor narciso.
Um possível significado do duplo condiz com sua denominação: são dois seres ou duas imagens de si mesmo. Isto está representado no filme através da duplicidade presente na personalidade de Paterson, enfatizado, como já citado, pelos eventos sincrônicos do aparecimento, em diferente momentos, da imagem de dois seres, os gêmeos. O tema do duplo se torna evidente e relevante ao refletirmos a relação eu-outro como um diálogo interno, visando promover o autoconhecimento. O motivo do duplo pode ser compreendido como um elemento inconsciente que está tentando alcançar a consciência de forma a fazer parte da personalidade do indivíduo, podendo aparecer num sonho, fantasia ou em eventos sincrônicos. Carrega um questionamento que o indivíduo deveria fazer a si mesmo a respeito das possibilidades e facetas que o compõe. Laura pede a Paterson que deixe existir o artista que ele já é, mas ele resiste e mantém distante e secreta sua potencialidade poética.
Também observamos outras duplicidades no filme como o “preto e branco” escolhido por Laura como um padrão para estampar sua vida e desejos. Dentro desse padrão podemos enxergar ainda o tema do binário quando os desenhos feitos por Laura são muitas vezes, círculos ou linhas remetendo-nos ao par numérico 0 e 1. Por fim, dois poetas cruzam o caminho do protagonista e vêm “lembrá-lo” de seu dom artístico.
Enfim, as coincidências significativas que ocorrem à Paterson também podem ser entendidas como as rimas que permeiam a poesia de sua vida. Há em Paterson e em sua rotina uma simplicidade repleta de significado. O filme sugere para nossas vidas um olhar mais lento e atento que nos permita enxergar as sincronicidades repletas de mensagens e respostas que, muitas vezes, perseguimos velozmente sem obtê-las. Nos propõe um ritmo suave que nos torne capazes de perceber quanto conteúdo existe num dia-a-dia que poderia ser julgado, num olhar apressado, como vazio e sem alma
Definitivamente a poesia de Paterson não é épica, tampouco sua rotina que, no entanto, nos faz lembrar que todos trazemos um Paterson dentro de nós.
Obs Outras análise de filmes estão na página do face psiquecinema. Abraço a todos!
Sou psiquiatra e gosto muito de fazer análise de filmes do ponto de vista da psicologia e psiquiatria. Compartilho com vcs um de meus textos. Aí está! Abraço a todos
A série trata de questões relacionadas ao período da adolescência.
A adolescência é um fenômeno psicossocial que se inicia com a puberdade que é caracterizada, por sua vez, pelas mudanças físicas e biológicas que surgem nessa fase da vida. Há na adolescência, uma crise onde o jovem questiona sua maneira de estar no mundo, muitas vezes vivendo o conflito de desejar mas, ao mesmo tempo, temer romper as barreiras do lar e da segurança oferecida pelos pais. Há um ímpeto para desafiar mas há também a necessidade de se sentir parte de um grupo ou comunidade. Geralmente nessa etapa da vida inicia-se a vida sexual, carregada de conflitos, paixões, ciúmes, mudança de parceiros que surgem fazendo parte da experiência da vida amorosa.
A série tenta apontar as dificuldades, sentidas mais intensamente por alguns jovens, na aceitação por seus pares e o sofrimento vivido pela discriminação ou abuso de todas as ordens. Tenta também chamar a atenção para temas como machismo e suas dolorosas consequências. Tais questões não são novas e vêm sendo abordadas de inúmeras maneiras, com frequência cada vez maior. E devem permanecer, a meu ver, sendo discutidas e clareadas, responsabilizando-se os culpados e infligindo as punições cabíveis. Isso incentivará a busca por ajuda e trará a possibilidade de mudanças nesses ambientes hostis e geradores de patologias.
A série traz também uma questão bastante importante, a partir da qual é construída, que é o suicídio.
O suicídio obviamente também deve ser trazido às discussões públicas, familiares, escolares, aos filmes e à mídia em geral, devendo ser debatido abertamente. O tema necessita, no entanto, ser adequadamente tratado através de informações claras, objetivas e corretas. Há um alto risco para os jovens e também para a população em geral se for abordado superficialmente, de forma infantil, simplista ou romantizada.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio já é a segunda causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos no mundo, atrás somente de acidentes de trânsito. Tão ou mais importante do que isso, são os dados que indicam que 90% dos suicídios ocorrem em portadores de doenças psiquiátricas, mais especificamente, as depressões.
É preciso reconhecer que o suicídio é uma atitude extrema, causada por um transtorno grave psíquico e/ou emocional. O suicídio é o último dos sintomas de um quadro gravíssimo que abala todo o pensamento, assim como o derrame é o último sintoma de uma doença vascular não diagnosticada.
Todos nós devemos aprender a perceber sinais de risco de suicídio, estando alertas às mudanças de conduta de jovens adolescentes. Alguns desses sinais são: tendência a maior reclusão e isolamento, perda de prazer em atividades habituais, modificações na forma de encarar o mundo com visões fortemente negativas ou niilista, desânimo, agressividade ou impulsividade anormais, conversas sobre morte, automutilação, falta de sentido na vida e desesperança.
Ideias de tirar a própria vida e tentativas anteriores são importantes fatores de risco para o suicídio e merecem total atenção.
É absolutamente errada a ideia de que falar abertamente sobre suicídio aumenta o risco de sua ocorrência. Pelo contrário, o assunto deve ser abordado, questionado clara e diretamente, sendo imprescindível que se ofereça a devida ajuda ao indivíduo. Serviços urgentes de apoio por telefone, suporte de familiares e amigos, tratamento psicológico ou psiquiátrico são alguns desses caminhos de auxílio. Dessa forma, a prevenção da depressão e do suicídio em jovens definitivamente passará a ser encarada com a seriedade que lhe é devida.
Enfim, a mídia de maneira geral deve ser um caminho para o esclarecimento, reflexão, debate, discussão e fonte de conhecimento. Devemos apenas estar atentos à precisão e veracidade do conteúdo das informações e também ao contexto no qual são apresentadas.
Para quem gosta de análise psicológica de filmes, escrevo no site psiquecinema ou pagina do face psiquecinema
O filme é a apresentação artística do fato de todos nós sermos internamente povoados por outras formas de existir.
É relevante trazer a visão médica da psiquiatria sobre o transtorno dissociativo de identidade, antes conhecido por transtorno de múltiplas personalidades.
Inicialmente, o que é dissociação?
Todos nós já vivenciamos esse estado de forma leve quando sonhamos acordados ou nos perdemos no momento, enquanto fazemos alguma coisa. O aspecto dissociativo é visto como um mecanismo de enfrentamento – a pessoa literalmente dissocia-se de uma situação ou experiência que é muito violenta, traumática ou dolorosa para ser assimilada pela consciência.
A essência do transtorno dissociativo de identidade é uma dissociação grave com divisão da identidade, com fragmentação recorrente do funcionamento consciente e do senso de si mesmo.
O transtorno dissociativo de identidade está associado a experiências devastadoras, eventos traumáticos, maus tratos, e/ou abuso ocorrido na infância.
Sua característica definidora é a presença de dois ou mais estados de personalidade distintos ou uma experiência de possessão. Além disso deve haver lacunas recorrentes na recordação de eventos cotidianos, informações pessoais importantes e/ ou eventos traumáticos que são incompatíveis com o esquecimento comum. Para chamarmos de transtorno dissociativo de personalidade, os sintomas não podem ser atribuíveis aos efeitos fisiológicos de uma substância (p. ex., apagões ou comportamento caótico durante intoxicação alcóolica) ou a outra condição médica. A perturbação não pode ser parte normal de uma prática religiosa ou cultural amplamente aceita. Além disso, em crianças, os sintomas não são mais bem explicados por amigos imaginários ou outros jogos de fantasia.
Finalmente, os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo e prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Os alter egos ou identidades diferentes têm a sua própria idade, sexo ou raça. Cada um tem suas próprias posturas, gestos e maneira distinta de falar. Junto com a dissociação e múltiplas personalidades, pessoas com transtornos dissociativos podem experimentar uma série de outros problemas psiquiátricos, como depressão, ansiedade, tentativas de suicídio, abuso de álcool e drogas dentre outros.
As personalidades distintas podem servir de papéis para ajudar o indivíduo a lidar com dilemas da vida.
Passando à avaliação psicológica de Jung, percebemos que o filme se passa quase sempre numa luminosidade parcial. A luz clara da consciência vigil se distribui entre várias personalidades e está representada através de um tom mais escuro em grande parte das cenas, a fim de ilustrar esta proposta do filme.
Consciência e Ego
A consciência é definida por tudo aquilo que conhecemos.
O ego, o centro da consciência, é um filtro que seleciona e apresenta à nossa consciência um conteúdo de cada vez. O ego vai progressivamente se desenvolvendo através das inevitáveis experiências e confrontos com o mundo externo, compondo quem somos e nossa identidade. No filme, Kevin é a identidade egóica do protagonista.
Inconsciente e Complexos
Não somos, no entanto, exclusivamente ego e consciência. Nossa psique se compõe também de uma grande parcela inconsciente. Sabemos, além disso, que nossa consciência não vai ser apenas perturbada por estímulos do mundo externo mas também por colisões internas originadas desse nosso próprio inconsciente e dos complexos que o constituem.
Estes complexos são uma rede inconsciente de material associado entre si formado por lembranças, fantasias, imagens, pensamentos que, quando estimulada, pode ganhar força suficiente para gerar perturbação na consciência, muitas vezes irresistíveis, como se estivéssemos possuídos. Nessa situação, reagimos irracionalmente e depois de recobrarmos nosso estado anterior, geralmente lamentamos, nos arrependemos e pensamos melhor sobre o que fazer numa próxima oportunidade. O que faz um complexo ganhar “energia” pode ser algum tipo de situação atual que mobiliza momentos passados, traumas, associações dolorosas e estressantes que haviam sido enterradas no inconsciente. Quando nosso ego fica sujeito a tais descargas de energia, perde o controle da consciência e ficamos temporária e parcialmente dissociados. Entretanto, o ego forte retoma, em seguida, seu lugar central na consciência e não perdemos a continuidade de nossa personalidade. Há traumas e situações que geram dissociações tão intensas que podem tornar o ego mais vulnerável e com maior risco de perder sua força e autonomia.
Os complexos podem ser pensados como fragmentos de personalidade ou subpersonalidades. A personalidade de todo e qualquer adulto é vulnerável, em certa medida, à desintegração, visto ser construída de grandes ou pequenos fragmentos dotados de maior ou menor autonomia e que podem se “descolar”. No transtorno dissociativo de identidade, esses vários fragmentos de personalidade não são mantidos juntos por uma consciência unificadora. Possuem uma espécie de ego próprio, cada um deles operando de modo mais ou menos independente. Possuem identidade própria e até o seu próprio tipo de controle sobre as funções do corpo, a ponto de uma personalidade poder mostrar capacidades ou dificuldades físicas não apresentadas por outras.
Voltando ao filme, tudo isso está claramente representado nas várias personalidades que assumem o centro da consciência de Kevin, dependendo da exigência de cada situação. Há traumas do passado relacionados a possíveis maus tratos na infância que em alguns momentos são lembrados por ele. Fica evidente a força dos vários complexos que chegam ao status de personalidades e que se alternam “ganhando a luz” da consciência, termo usado pelo próprio protagonista. Cada uma delas possui um estilo, feições faciais, modo de falar e se comportar diferentes e característicos, o que evidencia a presença de uma consciência própria em cada uma dessas personalidades. Também descobrimos diferenças no funcionamento físico das diversas personalidades; por exemplo na necessidade que uma delas possui de tomar insulina para um possível quadro de diabetes. Finalmente, observamos que a memória apresenta lacunas na recordação de alguns eventos, evidentes ao longo do filme.
Outra personagem importante do filme, Casey, nos mostra um contraponto à Kevin no sentido em que ela não possui o transtorno dissociativo de personalidades mas vai nos apresentando, em diversas cenas, as recordações de eventos traumáticos. Tais situações foram provavelmente vividas com intenso grau de dissociação (protetora ao indivíduo), tendo sido reprimidas, permanecendo inconscientes a ela até então. No caso, eram abusos sexuais perpetrados por seu tio, já na sua infância. Em Casey não há uma permeabilidade do ego passível de ser tomado pelos complexos fragmentados inconscientes. Não chegam, assim, a adquirir a força de personalidades autônomas, a ponto de atingirem e assumirem o centro da personalidade, como ocorre com Kevin.
Finalizando, e como é mostrado no filme, o tratamento desse transtorno é difícil, de longo prazo e feito com psicoterapia. Há necessidade de um vínculo importante entre o indivíduo e o terapeuta, a fim de estabelecer forte confiança e profundo conhecimento da situação e do indivíduo. Os medicamentos são mais comumente utilizados para as possíveis e não raras doenças concomitantes.
Mais análises na página psiquecinema ou página do face Abraço a todos!
[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e gosto de analisar filmes. Para quem quiser, aí vai:
Este é um filme perturbador, sobre Kevin, alguém incapaz de sentir amor.
Gostaria de dar, inicialmente, a visão médica psiquiátrica sobre o chamado Transtorno de Conduta. Muitos dos comportamentos de Kevin estão presentes dentro desse diagnóstico.
O transtorno de conduta é uma espécie de personalidade antissocial na juventude. Esses jovens e crianças não se importam com os sentimentos dos outros nem apresentam sofrimento psíquico pela prática de atos moralmente reprováveis, perigosos e ilegais. Há ausência de remorso, falta de empatia, afeto superficial ou deficiente. Praticam atos como agressão a pessoas ou animais, destruição de propriedade, falsidade, furto e violações graves de regras.
Segundo Bordin e Offord, comportamentos antissociais são frequentemente observados no período da adolescência como sintomas isolados e transitórios. Porém, estes podem surgir precocemente na infância e persistir ao longo da vida, constituindo quadros psiquiátricos de difícil tratamento. Fatores individuais, familiares e sociais estão implicados no desenvolvimento e na persistência do comportamento antissocial, interagindo de forma complexa e ainda pouco esclarecida. Como o comportamento antissocial torna-se mais estável e menos modificável ao longo do tempo, crianças e adolescentes com transtorno da conduta precisam ser identificados o mais cedo possível para que tenham maior oportunidade de beneficiar-se de intervenções terapêuticas e ações preventivas. O tratamento mais efetivo envolve a combinação de diferentes condutas junto à criança/adolescente, à família e à escola. Quando não é possível o acesso a intervenções complementares, o profissional de saúde mental deve identificar a conduta terapêutica prioritária em cada caso específico.
Passando a uma leitura psicológica do filme, podemos iniciar tratando dos aspectos simbólicos de sua impactante abertura.
Uma multidão se aglomera e trava uma verdadeira “batalha de tomates” ficando, aos poucos, envolta num caldo vermelho, espesso e vibrante. Essa é uma tradição espanhola conhecida por Tomatina, prática que remonta a 1944 e se repete todos os anos na cidade de Buñol, atraindo milhares de visitantes. Diz-se que a “Tomatina” começou por ser um símbolo da oposição à ditadura de Franco.
Temos aqui um simbolismo que se mostrará importante ao longo de todo o filme que é a “batalha” do vermelho, cor do sangue e dos afetos, se opondo à tirania fria e assustadora de Kevin. Tirania essa que desconhece o vermelho do coração, símbolo da paixão, das emoções calorosas e do amor. A cena seguinte é a tinta vermelha agressivamente esparramada nas paredes externas da casa de Eva, novamente nos deixando supor a cor do amor do lado de fora de sua vida com o filho. Vale observar que muitas cenas do filme são permeadas pela cor vermelha, como por exemplo, as lembranças de paixão entre Eva e o marido, bem como as de destruição sanguíneas e dor.
A gestação não planejada
Uma mulher, no âmbito de sua consciência, pode não manifestar vontade em gestar, como é o caso de Eva. Entretanto, a poderosa e desconhecida esfera inconsciente dos desejos, que também está em jogo, pode fazer com que ela venha a engravidar, a despeito de seu discurso manifesto referir o contrário. Toda gravidez é vivida de maneira crítica e reflexiva, uma vez que tal etapa na vida da mulher desperta vivências extremamente primitivas, que até então dormitavam inconscientes. Pode-se pensar, assim, o quanto essa crise torna-se maximizada em uma gestação que irrompeu inesperadamente. Desolada, Eva carrega essa crise em seu ventre, sem refletir porquê e a que veio. No parto, a médica pede que ela “pare de resistir”, como se lutasse para impedir o nascimento da criança. Podemos levantar a questão: em algum nível de sua psique, Eva sabia o desafio que encontraria?
Quem é Kevin?
Voltando ao filme, Kevin grita enquanto é bebe e grita também em seu silêncio que recusa interagir com a mãe nos primeiros anos de vida. Segue se opondo, desafiando e destruindo a mãe, seus sonhos e a intimidade de sua vida. A cena em que Eva embeleza seu quarto forrando-o com mapas, como se procurasse um caminho a seguir, simboliza a tentativa de preservar sua dignidade e amor a si mesma. Kevin agressivamente espalha tinta vermelha por toda parte, sangrando a conexão que é incapaz de estabelecer com a mãe.
Com o pai, Kevin finge um relacionamento que não convence e que apenas o libera de maiores confrontos. Franklin tem, assim, a possibilidade de negar e se proteger mais facilmente da distância e do vazio que o filho impõe. Eva carrega solitariamente a amoralidade, a frieza destrutiva e o desamor que lhe é dirigido.
Kevin sufoca, constrange, maltrata. E mata.
O arco e flecha
Segundo Eliade, a flecha é um símbolo da libido, da energia psíquica disponível e projetada. É análoga ao raio solar, fálica e fecundante podendo referir-se à realizações afetivas. Eros, o deus do amor, usava suas flechas para que os homens se apaixonassem, e a emoção do sentir-se apaixonado de forma súbita, nos deixa com a impressão de que fomos flechados. Sem eros para se conectar ao mundo, Kevin parece tentar possuí-lo através da flecha. Assim que a descobre, num dos poucos momentos em que aceitara a aproximação da mãe, que lia para ele a história de Robin Hood, parece ter sido atingido e torna-se fascinado com essa possibilidade. Ganha o arco e flecha do pai e passa a utilizá-lo com destreza e habilidade, muito mais destrutivas do que do lúdicas. Há tensão, objetivo , alvo e destino mas claramente suas flechas não carregam amor.
O arco pode ser um símbolo da tensão causada pelos desejos humanos. É considerado ainda um símbolo do destino. O arco e flecha representam a caça, bem como a guerra.
O arco representa energia e disciplina, ao passo que a flecha representa o poder.
Enfim, sem amor, Kevin só conhece o poder.
Como forma de reflexão, finalizarei com as palavras de Jung, “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro”.
Obs. escrevi sobre outros filmes no site psiquecinema e página do face psiquecinema Abraço a todos!
[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e adoro analisar filmes. Se alguém se interessar por esse tipo de análise, aí vai:
Não há dúvida de que este filme denuncia os contrastes sociais e econômicos existentes no mundo contemporâneo, evidenciando a marginalização presente nesse contexto. É o que se passa com o casal de namorados, Sonia, de 18 anos que acabou de dar à luz um menino e Bruno, o pai, com 20 anos de idade que vive de pequenos roubos e golpes, cometidos por ele e seus comparsas adolescentes. Nessa análise, abordarei apenas os aspectos psicológicos das personagens.
Apesar do filme não trazer dados da vida pregressa dos dois jovens é evidente que o abandono é a ferida que sangra na alma desses personagens. Sustentam-se um ao outro através de um amor que se confunde com uma relação de sobrevivência. Bruno e Sonia ainda são crianças que correm, se provocam, caem, levantam, brincam e sorriem.
Segundo Jung, a criança é gerada no fundamento da natureza humana, ou melhor, da própria natureza viva. É uma personificação de forças vitais e de inteireza, representando o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo. É esse centro inteiro e pleno de potencialidade, essa criança viva que Bruno e Sonia carregam e que, apesar de ferida, permanece em busca de poder vir a ser em sua plenitude.
Percebemos, já no início do filme, que o recém-nascido dessa pueril união, Jimmy, constela ou ativa o arquétipo materno em Sonia, imprimindo uma nova dimensão à sua puerilidade. Ela o aceita amorosamente, protege-o, mais de uma vez preocupa-se em dar-lhe identidade registrando-o e, através da possibilidade de criá-lo, ganha a chance de resgatar sua criança interna abandonada. Sonia ainda é uma garota, brinca e corre como uma criança mas também é mãe, nitidamente protetora e calorosamente maternal. Percebemos ainda como Sonia tenta, em vão, contaminar o namorado com esse sentimento de conexão que sente pelo filho.
Mas isso não acontece com Bruno. Ele mantém um distanciamento frio e amedrontado, que soa mais como uma maneira de se proteger da dor de sua própria ferida de abandono, do que um comportamento perverso ou amoral para com o filho. O bebê é, ele próprio, a necessidade de proteção que o pai abandonado não tem para dar. Há uma defesa tão desesperada em Bruno que o impede de humanizar o filho, tratando-o como “algo” que pode ser vendido, substituído ou “feito de novo”.
Sabemos que estas experiências de abandono na primeira infância geram uma ferida infantil que interferem nas possibilidades de desenvolvimento e até no destino daquele ser. Jung nos diz: “A eterna criança no homem é uma experiência indescritível […]; um imponderável que determina o valor essencial de uma personalidade ou sua falta de valor. Conclui afirmando que a manifestação do arquétipo da criança ocorre quando há uma identificação do indivíduo com seu infantilismo pessoal e com a sua criança abandonada e incompreendida. A mãe de Bruno aparece em uma única cena e parece haver uma grande reticência em acolhê-lo. Não há segurança para gostar de si mesmo quando não se foi espelhado nos olhos maternos. O olhar da mãe é a primeira possibilidade de se ver refletido e ser aceito incondicionalmente como a pessoa que se é. Bruno não se vê, não acredita em seu valor como indivíduo e rouba do mundo tudo aquilo que lhe foi negado e nunca acreditou poder conquistar por si mesmo.
Delinquência e a privação emocional
Chamo de delinquência um padrão de conduta que se caracteriza pelo confronto e antagonismo frente às normas e valores sociais vigentes. Bruno exterioriza esse padrão de comportamento praticamente durante todo o filme. Vale notar que por meio de uma conduta delinquente, o indivíduo impele a sociedade a retroceder com ela à época em que se deu a privação emocional e a testemunhar e reconhecer suas grandes perdas. Na motivação para o furto que geralmente visa à posse de objetos, dinheiro e bens materiais, o que se tem é a procura obsessiva e incessante de “algo” que nunca se encontra e que é exatamente o olhar materno perdido. O furto expressa a privação de amor. No entanto, ao vender seu filho Jimmy, Bruno fere Sonia, passa a ser rejeitado por ela e se vê privado de sua única relação de afeto verdadeira. Aos poucos, conforme a película avança, percebemos que as defesas de Bruno tornam-se menos eficazes e o contato com sua própria dor vai ficando difícil de ser reprimidamente negada. Bruno parece mais frágil e vulnerável e,assim, mais sensível o que nos leva a pressupor que, em decorrência disso, acaba assumindo a autoria do furto cometido junto com o garoto, entregando-se à polícia. Bruno rende-se.
A cena final é a dor do arrependimento de quem finalmente se conecta com a própria solidão. Seu choro pede perdão à Sonia e o abraço é a própria confissão de quanto ainda precisam um do outro.
Obs Tenho análise de outros filmes no site psiquecinema ou página do facebookcom/psiquecinema . Abraço a todos!!.
[spoiler][/spoiler]Sou psiquiatra e adoro analisar filmes. Se alguém se interessar por esse tipo de análise, aí vai: O filme, na personagem do jovem Igor, nos mostra como cada indivíduo é único e surpreendente ao seguir o chamado da própria alma.
Segundo Jung, “como o corpo tem sua evolução, de cujas diferentes etapas ainda traz vestígios nítidos, assim também a psique”.
De modo simplificado, o desenvolvimento da psique, mais especificamente da consciência, ocorre da seguinte forma:
Quando a criança nasce (fase urobórica), está num estado difuso e indiferenciado com o meio ambiente e com a psique da mãe, de onde ocorrerá o surgimento de sua própria consciência, por volta dos 2 anos de idade e, a partir daí, o seu desenvolvimento. A fase seguinte é a matriarcal (relativa ao arquétipo materno - não necessária e diretamente dependente da mãe pessoal, mas da maternagem). Durante tal período, o desenvolvimento da consciência vai se dando através do carinho, amor, sustentação, acolhimento; enfim, do suprimento das necessidades básicas de suporte à vida física e psíquica. Na fase patriarcal que se segue, (relativa ao arquétipo paterno), a consciência caminha em direção à aquisição da socialização, conceitos morais, normas, leis, regras, hierarquização, disciplina, auto-controle e abstração. Em seguida, na fase da alteridade (referida aos arquétipos da anima e animus), o amadurecimento da consciência atinge a possibilidade de abranger o outro e passa a se definir através dessa dialética. Uma última etapa, dita cósmica, entende que a existência enquanto individualidade e o mundo externo, antes vistos em separado, estão envolvidos numa dimensão única.
Há poucas figuras femininas na película e nada sabemos a respeito da mãe de Igor, da presença de outra figura com papel de mãe que a tenha substituído ou da vivência matriarcal do garoto como um todo. O pai se relaciona com uma moça de nome Maria que não parece se apresentar como uma figura de mãe. No entanto é ela quem intervém numa situação importante de agressividade física do pai contra o ele. Igor é “salvo” por uma mulher.
Desde o início do filme, Igor surge imerso no mundo do pai e suas regras, valores, ordens e comandos. Com a obediência fria e distante de alguém que nunca se questionou sobre seus atos, segue o pai incondicionalmente. Num determinado momento, chega a ganhar dele um anel, como recompensa por tal fidelidade, símbolo do pacto de união entre eles.
No entanto, os valores e atitudes do pai, repetidos pelo filho, tirando proveito das dificuldades de outros seres humanos, são obviamente questionáveis. O filme contém uma importante crítica social e uma denúncia de desigualdade, exclusão e marginalização das pessoas, presentes no mundo contemporâneo.
Voltando à questão psicológica, que é o foco desse texto, acompanhamos a morte de Amidou, um desses imigrantes excluídos e explorados pelo pai do adolescente, ocorrida num acidente decorrente dessa condição precária de vida a que é submetido por Roger. Após Amidou pedir a Igor que cuide de sua esposa e filho, na iminência de sua morte, precipita-se no rapaz um sentimento empático que se coagula num novo valor, nascido em si mesmo e não imposto pelo pai. A cena impactante e que é um divisor de águas no filme, é aquela onde o pai se recusa a ajudar o filho a fazer um aperto circular com o cinto, ao redor da perna do homem que sangra. A iniciativa de socorrer o imigrante foi de Igor que parece tentar estreitar o círculo ou “anel” de união com seu pai, a fim de, com o mesmo gesto, inconscientemente selar o modo de vida e a concordância de sentimentos entre eles. Sem tal ajuda, no entanto, e escancarando o contraste entre suas decisões, o pai desata o laço, mata a inocência e dá espaço para o nascimento, em Igor, de uma nova moral e conduta.
Além disso, é possível que, através da promessa em cuidar e ajudar a mulher imigrante e seu bebê, tenha emergido no jovem o espelhamento do feminino que nutre e acolhe. Seria possível, desta forma, que estivesse havendo uma chance de Igor re(-)conhecer uma vivência materna que não sabemos como se deu em sua vida, mas que ele decide apoiar e tentar “salvar”. Como citado anteriormente, a psique evolui trazendo vestígios do que já foi vivido e Igor, obviamente, não foge à regra. Possivelmente há uma maternidade que necessita ser resgatada, elaborada e integrada à sua consciência e fazer parte de seu todo para acompanhá-lo no desenvolvimento da fase patriarcal em que vive.
Igor é um adolescente que se vê obrigado a fazer uma opção que, dentro do esperado para esse momento do desenvolvimento do indivíduo, pode exigir um distanciamento das figuras parentais em busca do próprio caminho e seus pressupostos. São comuns esses momentos de conflito, onde a escolha que um indivíduo faz para dar sentido à sua vida, pode permitir e facilitar sua individuação em direção a tornar-se pleno. Igor opta pelo rompimento com a verdade do pai em prol de sua própria ética. Deve assumir o preço das consequências inerentes ao caminho da maturidade que a clareza de sua nova consciência agora lhe permite enxergar.
A película traz também o questionamento e a reflexão sobre como as aparentes diferenças de cor, raça, cultura, religião e condição sócio-econômica existentes entre nós é ilusória e passível de ser desfeita e ultrapassada através da percepção que somos todos frutos de uma semelhante e inseparável humanidade, como Igor parece ter experimentado em seu íntimo.
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[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e fiz esta análise psicológica do filme, para quem gostar...
O filme todo é o caminho árduo de um relacionamento patológico onde vislumbramos picos e vales, voos de alegria que não se sustentam e descidas íngremes dolorosas.
A abertura do filme nos coloca num pico nevado junto com Tony prestes a se lançar de esquis num longo declive. Sua expressão parece carregar o ápice da angústia de quem busca coragem para se libertar e voar. Entretanto, a personagem não alça voo e se acidenta.
Na sequência, acompanhamos Tony contar o acidente à psicóloga da clínica de reabilitação onde permanecerá em tratamento. Há um tom de fatalidade na maneira como enxerga o ocorrido, próprio de quem desconhece os símbolos enviados pelo inconsciente: “Os esquis se cruzaram e eu saí voando, foi isso.” Tony não se dá conta do contexto ou da configuração de sua vida onde o acidente se insere.
Simbolicamente, num acidente, a pessoa não é apenas vítima mas também um autor inconsciente do ocorrido, cujas motivações precisam ser percebidas e clareadas. Um acidente questiona de forma súbita o modo como o indivíduo vem vivendo. Trata-se uma ruptura em sua vida e, como tal, precisa ser analisada. Geralmente escancara uma problemática de maneira exagerada, incisiva e extremamente dolorosa.
No diálogo com a psicóloga, e de maneira ricamente pertinente, a personagem é apresentada à simbólica da parte do corpo que foi lesionada, no caso, seu ligamento “cruzado” do joelho. Retomando tal simbologia, dizemos que a articulação do joelho não só nos permite caminhar como também recuar ou avançar. A articulação do joelho é considerada uma das mais complexas do organismo, assim como a decisão do caminho a ser tomado diante do “cruzamento” de um impasse. Além disso, o joelho deve equilibrar simultaneamente duas funções importantes. Ao mesmo tempo em que precisa ter estabilidade suficiente para suportar as demandas do peso do corpo, precisa possuir também um alto grau de flexibilidade e de liberdade de movimento para absorver e transmitir as forças que passam ele. Sendo assim, numa leitura simbólica, seu funcionamento adequado indica a possibilidade do indivíduo ser firme e livre simultaneamente. A lesão do joelho de Tony revela as fragilidades pelas quais vem passando, questionando sua sustentação frente à necessidade de avançar rumo à sua liberdade.
A partir daqui, aproveitarei um pequeno trecho do Mito de Narciso para ir adiante na análise do filme.
Segundo Mircea Eliade, as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função que é a de revelar as mais secretas modalidades do ser.
Se nos detivermos nas figuras mitológicas de Eco e Narciso presentes no mito de Narciso e, particularmente na forma como se dá a interação entre eles, podemos perceber essa mesma dinâmica ilustrada no filme e em relacionamentos abusivos, de dependência e alto grau de sofrimento, percebidos com frequência à nossa volta.
Não vou descrever o mito na íntegra, que pode facilmente ser encontrado e lido em outras fontes. No entanto gostaria de dizer, em linhas muito gerais, quem é Narciso, quem é Eco e relacionamento entre eles.
Narciso
Narciso é descrito no mito como aquele rapaz de extrema beleza que, caso se deparasse com sua própria imagem (como ocorreu quando se viu refletido numa fonte) se apaixonaria por ela e morreria.
Narciso representa as características de personalidade dos indivíduos auto-centrados, donos da ação, que são o foco das atenções e que inovam. Não há dificuldade em percebermos tais traços em Georgio, em cenas de egoísmo, independência, manipulação e sedução. Ele é um “Rei”. Além disso estess indivíduos sentem-se atraídos por pessoas que olham pouco para si mesmas e que renunciaram a uma parte do seu brilho.
Eco
Eco é uma ninfa das montanhas que é designada por Zeus (senhor do Olimpo) para distrair Hera (sua esposa) com sua tagarelice, enquanto se envolve com outras mulheres. Hera descobre que esta ninfa a ocupa com suas falas e histórias excessivas e a pune, condenando-a a reproduzir apenas as últimas palavras ditas pelo outro. Desta forma, Eco se torna dependente do que o outro diz e deixa de ter voz própria.
Como traços de personalidade vamos identificar no indivíduo ecoista uma falta de acesso ao diálogo e ao silêncio, só podendo ecoar o outro. Grudado nele, possui excessiva dependência de amor que é sempre bastante idealizado e é de onde tenta obter reconhecimento. A fala sem medida visa capturar o outro, numa tentativa de ser ouvida naquilo que não consegue dizer a si própria. Segundo Montellano coloca-se sempre à disposição do outro, não consegue expressar seus sentimentos, especialmente a raiva, e vive um grande sentimento de culpa. É muito crítica e exigente, mas se mostra tolerante e humilde. Tony é essa mulher que se valoriza pouco, é entregue, vulnerável, passiva e não possui a proteção necessária que lhe assegure espaço para construção da sua individualidade e do seu feminino (lembrando que no início do filme Tony acredita ter a “vagina larga”).
O relacionamento entre Narciso e Eco
Eco segue Narciso pelos bosques e se apaixona. Ao ser rejeitada por Narciso Eco envergonha-se, esconde-se, deixa de se alimentar e se retira para as montanhas, definhando até a morte. Narciso, por sua vez, apaixona-se por sua imagem, pensando que é outro e também num desespero crescente de tentar alcançar esta imagem chega à morte. No lugar de sua morte nasce narciso, a flor branca com o centro amarelo, que, como o próprio nome diz, vem de narkos, o que entorpece, e que pode ser visto como símbolo da paralisação do processo de desenvolvimento dos dois jovens.
Todos conhecemos relações onde um é o centro e o outro gira em torno deste centro, como um satélite em torno do planeta. O filme evidencia essa dinâmica, onde um só olha para o outro que só olha para si mesmo e tais olhares nunca se cruzam. Percebe-se a paralisação do desenvolvimento psicológico dos dois personagens, evidenciados pelos abusivos e dolorosos e infindáveis ciclos de aproximação e afastamento.
Para finalizar, podemos destacar alguns dos desenvolvimentos psíquicos possíveis e desejáveis à estas dinâmicas de personalidade:
Aos narcisistas, que amam sua imagem e são insensíveis ao outro, cabe a tarefa de buscar o seu eu mais profundo ocultado por dores e carências primitivas. Poderá, assim, reconhecer-se mais genuinamente, realizar sua essência de se amar e também poder amar o outro, deixando de ficar fechado em si mesmo.
Aos ecoistas, cabe abrir o canal da voz a fim de se expressar e passar a cuidar de si próprio, reconstruindo a própria estima e os seus limites. Cabe também ecoar suas qualidades, ressoar os espaços onde há vida a ser descoberta, buscando sempre a liberdade e o novo.
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[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e adoro fazer análise psicológica de filmes. Quem se interessar, segue o texto:
Se transformarmos o nome do filme numa questão: “Por que ninguém pode saber?” a resposta vai surgindo ao longo da história e diz respeito à uma relação de irmandade que luta para não ser desfeita. Este laço afetivo, amarrado por uma calada resiliência, conecta todo o filme e une os fios emaranhados de abandono e solidão da vida de seus personagens.
É gritante e escancarado o despreparo de Keiko em ser mãe. Apesar de oferecer carinho e ternura aos filhos quando está com eles, percebemos o quanto é essencial e primitiva sua própria necessidade por afeto. Tenta suprí-la através de um relacionamento duradouro mas seus envolvimentos não se sustentam e Keiko gera quatro filhos com diferentes homens. Sua carência é vital e egoísta. Busca amor para se constituir como pessoa, mas o faz se ausentando e privando os filhos da maternidade que não é capaz de exercer. É tão filha quanto eles e sua infantilidade assume traços de crueldade quando decide abandoná-los.
Pais e mães nem sempre são capazes de exercer papéis estruturantes. Muitos ainda sofrem com seus complexos maternos e paternos não elaborados que serão inconscientemente transferidos aos filhos. Keiko ainda busca uma proteção parental em seus relacionamentos que deveriam se de alteridade, o que priva seus filhos de terem pai, visto que seus romances fracassam, e mãe, uma vez que ainda não pôde deixar seu papel filial.
Enquanto a ausência de Keiko ainda é recente, as quatro crianças vão se mantendo física e emocionalmente nutridas pela expectativa de sua volta e pelo cumprimento de incumbências impostas ao filho mais velho de 12 anos. Akira exerce tarefas e papéis de mãe e pai, amadurecendo precocemente, perdendo a possibilidade da adolescência e não recebendo o amparo que lhe é direito. Um filho de quem são exigidas tais responsabilidades e que sofre demandas displicentemente abusivas pode sentir revolta e indignação, não necessariamente expressas verbalmente. Akira só manifesta seu desacordo com a atitude da mãe, numa ocasião, em que a chama de egoísta. De qualquer forma, seus tristes e longos silêncios denunciam seu mais profundo desamparo. Sabe-se que crianças abandonadas tem ou terão dificuldades nos relacionamentos sociais, maior risco de depressão e baixa autoestima.
Percebemos também em Akira, a constelação do arquétipo do herói à medida em que as dificuldades vão aumentando. O herói enquanto arquétipo se constela em nossas vidas especialmente em momentos tempestuosos e árduos. O termo constelação diz respeito à ativação de padrões de reação que, no caso do herói, se referem à capacidade de suportar adversidades, frustrações e tolerar as experiências de enfrentamento. O herói é a metáfora do ser resiliente, aquele capaz de adaptação ou evolução em momentos de dificuldade. Akira sustenta a dúvida do retorno da mãe, a frustração da sua demora e a angústia da certeza de seu abandono. Acolhe os irmãos, trata da rotina da casa, consegue alimentos e paga as contas. As adversidades precisam ser vencidas e um herói silencioso certamente compõe Akira na superação dos obstáculos que se sucedem.
Há, no entanto, algo de extrema importância que justifica o ocultamento da difícil situação pela qual passa o garoto e seus irmãos mais novos. Akira não quer correr o risco de viverem separados uns dos outros em troca de acolhimento. É essa fraternidade que justifica o enfrentamento das adversidades, conferindo-lhe sentido.
Enfim, estamos diante do arquétipo do irmão que, como todos, possui dois polos ou facetas: o polo positivo que, neste caso, é o da cooperatividade e o negativo ou da rivalidade. É através desse tipo de relação fraterna que se desenvolve a capacidade de estabelecer conexões simétricas ao longo da vida. O irmão é o outro destinado, não escolhido e permanente. Através dele experimentamos a intimidade e a possibilidade da construção de histórias comuns, horizontais, que guardam memórias e são testemunhas de passagens da vida. É com o irmão que dividimos nossos anos de formação.
O filme é a própria relação entre irmãos e o desejo de que esta não se dissolva em função da ausência da mãe. É evidente que os personagens do filme vivem a irmandade em termos de união, apoio e, inconscientemente, de sobrevivência. É a fraternidade como suas únicas experiências de relação, construção de intimidade e história de vida. A derradeira possibilidade de existência de memória e troca de afeto na vida dos personagens.
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O luto é um processo de cicatrização lento e doloroso. Há um imenso vazio, perdem-se raízes e o sentimento de separação parece sem fim.
Ann, a protagonista, vive o luto da perda do filho. O filme se passa numa ilha cujo isolamento físico diz respeito à mesma solidão psíquica que se passa com a mãe. Visualizamos, logo no início, Ann numa casa com espaços amplos que parece estagnada e sem vida. Não é possível olhar a si mesma nessa nova realidade de falta, de modo que os espelhos são cobertos, as portas e janelas são fechadas e a luz do sol só existe do lado de fora.
Neste lugar, duas esperas se sobrepõem. A primeira é a de uma mãe em luto pela perda do filho que espera conseguir viver, apesar de sua partida. A outra é a da namorada que vai até a casa da mãe do rapaz, sem saber que ele havia morrido, e espera por sua chegada. A espera pela partida da dor e a espera pela chegada da alegria são dois processos de ausência que vão se dando durante a convivência entre elas. Anna parece negar a perda do filho, tentando aumentar seu tempo com ele através da presença de sua namorada. Já Jeanne, inconscientemente parece querer prolongar o tempo em que acredita que o namorado retornará, também evitando a certeza da perda. É comum, num primeiro momento do luto, a defesa contra a dor ocorrer através da negação. Acaba sendo uma maneira de não entrar em contato com a realidade, de alguma forma ainda inaceitável. O tempo de duração desse período não é fixo, dependendo dos fatos e diferenças entre as pessoas.
Segundo Kubbler-Ross, podemos distinguir algumas fases distintas durante o processo de luto:
Negação
Momento em que parece impossível a perda e há uma incapacidade em acreditar. A dor é tão grande que é necessária uma fuga da realidade.
Raiva
Surge depois da negação. Há o pensamento de “ por que comigo?”. Surgem sentimentos de inveja e raiva e existe dificuldade em se acreditar em qualquer palavra de conforto que acaba soando como falsa.
Negociação
Surge quando o individuo começa a se aproximar da hipótese da perda e tenta negociar, na maioria das vezes com o divino e através de promessas ou sacrifícios, a aceitação do fato.
Depressão
Ocorre quando o individuo toma consciência de que a perda é inevitável e não há como escapar disso. Sente o vazio deixado pela pessoa, encarando que nunca mais irá vê-la e partirá com ela também, os sonhos e projetos traçados anteriormente.
Aceitação
É a ultima fase do luto. Irá se dar dependendo muito da capacidade da pessoa em mudar a perspectiva a respeito da realidade inevitável. O espaço vazio deixado pela perda é preenchido e a mesma é aceita sem desespero ou negação. Algumas pessoas levam décadas de vida e outras nunca conseguem aceitar com serenidade a perda. Isso ocorre principalmente no caso de perda de um filho.
Voltando ao filme, vale apontar que há uma correspondência de campo simbólico que se dá dentro e fora da psique. No mundo externo, esse encontro e espera ocorrem durante a comemoração da Páscoa, tempo de ressureição. Refletido no mundo interno vive-se o desejo do ressurgimento daquele que não está mais presente.
Durante esse período juntas, podemos nos perguntar se Ann está sendo egoísta ao mentir para Jeanne e “usá-la” para minimizar a falta que sente do filho, apesar de não parecer fazer isso intencionalmente. Logo de imediato tendemos a olhar os eventos da perspectiva de Ann, avaliando-os e julgando-os a partir daí. Podemos, no entanto, observá-los através da perspectiva de Jeanne que também decide e toma atitudes, mesmo que inconscientemente. Conforme aumenta o tempo que passam juntas, começamos a ficar intrigados com a atitude de Jeanne que parece “saber” que o namorado não retornará mais e vive esse período de contato com Anna evitando a verdade de sua morte, ganhando a chance de se preparar para tal descoberta. Na verdade, Ann ganha tempo para esquecer e Jeanne, para descobrir. Enquanto esperam, vivem juntas a negação necessária para elaborar a dor. Há uma complementariedade psicológica entre elas: a desesperada consciência da mãe fazendo um contraponto à esperançosa inconsciência da namorada. Entre o (des)espero e a espera(nça), a espera é o tempo do balanço, o meio do caminho entre a dor que parte e a dor que chega.
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Dualidade prisão-liberdade
O filme pode ser dividido em dois momentos: o primeiro se passa na claustrofobia do quarto onde permanecemos angustiados junto com Jack e sua mãe por cerca de 40 minutos. O segundo momento consiste no alívio da liberdade externa conquistada mas que, muito pertinente e bem retratada psicologicamente, se dá concomitante à uma sofrida busca da liberdade interna.
Imaginação e fantasia
Quando o mundo é um quarto, a fantasia é a única saída. É dessa forma que Joy cuida de Jack na condição fisicamente cruel e restrita que lhes é imposta. Há, em nossa visão ocidental unilateral, uma valorização do entendimento lógico e racional em detrimento do modo imaginativo e fantasioso de enxergar o mundo. Um exemplo é uma expressão algo pejorativa: “tudo isso é fruto da sua imaginação”, que desqualifica o que foi apreendido através dessa possibilidade. Segundo Jung nossa psique possui duas formas de funcionamento: o dirigido e o de fantasia. O tipo dirigido é a linguagem do intelecto, baseado nos conceitos e na lógica. O tipo fantasia, por sua vez, emprega imagens, é metafórico e simbólico e está mais relacionado às camadas profundas da nossa psique. Para Jung, não há motivo para a fantasia ameaçar nossa consciência e lógica; pelo contrário, há um beneficio se as duas perspectivas puderem coexistir. A mãe de Jack estimula e tenta, inclusive, usar a fantasia para complementar os conceitos lógicos que o garoto adquiriria se tivesse um contato habitual com o mundo. Isso, de certa forma, o distancia das privações a que está submetido. A imaginação é, principalmente para a criança, um espaço de liberdade e de movimento em direção ao possível, quer realizável ou não. Um outro ponto a ser notado é que o aspecto nutritivo e protetor do arquétipo materno constelado em Joy permite a repressão de sua angústia e a manutenção da coerência dessa escolha. Jack é quem dá sentido e permite a sobrevivência da mãe. Como disse Jung: “O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável”.
O dente e seu simbolismo
Pensemos a respeito da cena em que Jack recebe o dente perdido de sua mãe. O dente simboliza, dentre outras coisas, a possibilidade de ser agressivo, rasgar, cortar e consequentemente se defender. Desta forma, Joy entrega ao filho um elemento interno precioso que é sua agressividade, impedida de ser expressa naquele contexto, em prol da sobrevivência de ambos. Jack o carrega durante a imposta busca pela liberdade, dentro da própria boca, num símbolo de incorporar (fazer pertencer ao seu próprio corpo) a raiva da mãe. Outro ponto interessante é o momento e a situação em que o garoto decide revelar o dente. Mostra-o à policial delegando a ela, simbolicamente, tal agressividade. Permanece, no entanto, possuindo o dente da mãe junto a si possivelmente associando a ele a força e vida que ela lhe transmitiu.
O rapto de Coré no mito, sofrimento e transformação
Como atentou Mircea Eliade, as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Quero enfatizar que vou pinçar uma passagem bastante específica do mito grego de Coré-Perséfone a fim de refletir sobre a questão da inocência, rapto, descida à escuridão e transformação. A passagem do mito é:
Num certo dia de outono, Coré colhia inocentemente narcisos quando repentinamente é raptada e levada para as profundezas, onde irá casar-se com o grande deus Hades, o irmão de Zeus e senhor do reino dos mortos. Uma aura de mistério permeia a descida da jovem ao submundo e sabe-se apenas que, quando retorna, ela volta tão diferente que ganha outro nome: Perséfone.
Obviamente o filme retrata circunstâncias extremamente cruéis e obviamente não pretendo justificá-las de maneira alguma. Entretanto, a mitologia nos oferece símbolos que nos possibilitam refletir sobre diversas condições humanas. Na simbologia, o subterrâneo é o local das ricas jazidas, o lugar das metamorfoses, das passagens da morte à vida e das transformações. Coré carrega a pureza e a inocência que precisam ser modificadas dando lugar à maturidade, independência e autonomia.
Retornando ao filme, mais próximo do final, há uma discussão entre Joy e sua mãe onde a protagonista lamenta sua subordinação às regras da mãe e sua inocência em atender à solicitação do estranho que acaba sequestrando-a. Aqui lembramos a ingenuidade e falta de autonomia de Coré como tratamos anteriormente.
Obviamente Joy sai do quarto e retorna ao mundo amadurecida, transformada e lapidada numa mulher, pelo sofrimento vivido. Mas é bastante importante atentarmos para o fato de que apesar de Joy ter retomado sua liberdade externa, internamente isso ainda não ocorreu. A personagem se revolta, deprime e se recolhe tentando, com o suicídio, matar a pessoa em que se transformou. Há de ocorrer um luto, elaboração e integração do sofrimento, um renascimento, para que a liberdade interior ressurja no símbolo de Perséfone.
Para Jack, a liberdade se apresenta tão grande e repentina que também é difícil absorvê-la num golpe. O garoto se comporta de forma reticente e esquiva até conseguir deixar de ficar ofuscado pela luz da vida. Como no mito da Caverna de Platão, quando o que se vê não são mais os reflexos mas a luz em si, há que se dar o devido tempo para se habituar à essa nova verdade. Jack precisa, inclusive, revisitar o quarto e despedir-se num processo de luto, redimensionando o que foi vivido, agora no seu novo mundo de portas abertas.
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O filme trata da falta de sentido na vida de um professor de filosofia. Sem entusiasmo, deprimido, entregando-se aos excessos do álcool, não encontra vontade ou interesse no mundo de um modo geral.
Há um conceito na psicologia analítica que Jung chamou de energia psíquica. Trata-se um elemento próprio da psique, um tipo de “seiva vital”, que confere motivação e significado para a realização de um trabalho ou ideia. Na depressão, por exemplo, onde não se consegue fazer nada, não há energia psíquica disponível na consciência para ser convertida em desejo ou vontade para realizar uma atividade. Este é o caso do protagonista no início do filme.
O que teria ocorrido com essa energia?
Segundo Jung, a energia psíquica nunca se perde mas muda sua configuração. Grande parte dela, que deveria estar na consciência, fica presa no inconsciente. Há muitas situações que podem desencadear este aprisionamento de energia como, por exemplo, perdas, frustrações constantes, um ideal não realizado, dentre outras.
Abe Lucas, professor de filosofia, vive um momento de extrema falta de significado em sua vida. Questiona, inclusive, a filosofia como um todo: uma “masturbação mental”, em suas palavras. Aponta vários filósofos existencialistas em algumas passagens de suas obras onde declaram que a existência humana é feita de escolhas que irão compor seu sentido. Entretanto, Abe não sabe explicar o motivo de não conseguir fazer as escolhas que possam voltar a motivá-lo. Vive um grande sentimento de impotência cujas raízes inconscientes ele mesmo não questiona, de modo que a energia psíquica permanece retida. Na concepção da psicologia analítica, existindo a possibilidade de contato com o inconsciente através dos símbolos que surgem em sonhos e fantasias, estes poderiam ser explorados permitindo o entendimento, integração e ampliação da consciência. A energia psíquica voltaria, assim, a fluir entre o sistema psíquico formado pelo inconsciente e o consciente, retomando a saúde psíquica.
Quando não há uma dialética entre o consciente e o inconsciente, pode ocorrer da energia recolhida no inconsciente “ativar” conteúdos adormecidos (complexos autônomos). Estes são capazes agora, visto que passaram a ter um maior potencial energético, de irromper na consciência, sob a forma de novos projetos ou ideias que, no entanto, irão dominar o indivíduo. É o que ocorre com Abe que, após ouvir uma conversa sobre um juiz de índole duvidosa, se sente decidido a agir e matá-lo, o que o traz “de volta à vida”. Sem fazer qualquer tipo de reflexão sobre qual motivo simbólico estaria envolvido na recuperação de sua vontade de viver, torna-se destinado a colocar suas ideias em prática.
Novas ideias e vontades são um chamado que a vida faz à um indivíduo. Mas é importante perceber que tal chamado é um convite à reflexão dado que carrega símbolos tentando se fazer conhecidos ao indivíduo. Possivelmente há nesses símbolos algo que tenta harmonizar a consciência que, em todos nós, tende a se desenvolver numa única direção. Poderíamos levantar a hipótese que Abe sentia falta de um valor prático em sua vida ou de oferecer algo significativo de si ao mundo. Queria fazer diferença. Faltava-lhe perceber seu próprio valor e o quanto era genuína e relevante sua existência. Se isto fosse conscientizado e trabalhado, não estaria a mercê de algo novo tão intenso que dirigisse sua vida por completo.
Assim, podemos supor que o professor tenha sido tomado por um conteúdo inconsciente que ganhou energia suficiente para alcançar a consciência e, de forma autônoma, veio compensar o senso de incompetência, falta de valor e inutilidade que sentia até então. O personagem é dominado por elementos sombrios carregados de energia psíquica que, consequentemente lhe devolvem o desejo e o significado para suas ações e planos. Torna-se capaz, potente, vigoroso e pleno. Abe está sob a influência de um complexo sombriamente amoral, sendo incapaz de questioná-lo. Sem poder entender o símbolo de suas novas motivações, deixa-se atuar e ser dirigido por elas. Abe perde a crítica de suas decisões e, de modo ainda mais grave, o contato com as convenções e valores morais do mundo onde se insere.
Pelo caminho da inconsciência, Abe Lucas precisa da morte para dar sentido à sua vida, acreditando dignificar o mundo através de um assassinato. É interessante observar, de forma ampla e bastante ilustrativa no filme, como os mecanismos compensatórios entre o consciente e o inconsciente vão se dar através das polaridades, no caso, “vida-morte” e “moralmente evoluído- criminosamente amoral”.
Concluindo, como já nos disse Jung: “até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino."
Se tiver interesse em outras analises, estou no youtube, site psique cinema e página no face. Abraço a todos!!
[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e adoro analisar filmes.. Quem gostar desse tipo de texto, aí está:
Persona
Durante todo o filme acompanhamos o jeito de ser de Ove, revelado na forma como se relaciona com o mundo. É um senhor bastante rígido, metódico, frio, que não se incomoda em desagradar as pessoas que, segundo sua visão, fazem tudo errado. Essa é a imagem com a qual Ove se relaciona com os outros, com os valores coletivos e normas culturais. Na psicologia analítica, damos a isso o nome de Persona (sua “personalidade exterior”).
Há um outro tipo de relacionamento importante que diz respeito à maneira pela qual uma pessoa se relaciona com seu mundo interior (ou “personalidade interior”). É a forma como as pessoas tratam a si mesmas. Por exemplo, a disposição ou atitude que governa nossas relações com o mundo interior pode ser acolhedora e calorosa ou hostil e hipercrítica. Ainda falando sobre a “personalidade interior”, mais especificamente sobre seus conteúdos, Jung propõe que ambos os sexos tem componentes e qualidades masculinas e femininas presentes nessa “personalidade”. Anima (palavra que significa alma) foi o nome dado à “personalidade interior” do homem e Animus (cujo significado é espírito), à da mulher.
É importante destacar que os termos alma e espírito não têm conotação religiosa.
Não tratarei, neste post, da mulher e seu correspondente Animus e, sim, da Anima que é o conceito retratado no filme.
Anima
A Anima é a essência interior feminina e inconsciente da psique do homem que lhe confere flexibilidade, passividade, a possibilidade de ser sensível e acolhedor. É sempre importante que exista uma dialética entre a consciência do homem e tais conteúdos inconscientes, pois sabe-se que o consciente e o inconsciente “funcionam” de maneira compensatória. A existência de tal diálogo evita que, caso a personalidade exterior do homem se torne unilateralmente dura e racional, elementos inconscientes sejam ativados fazendo com que o homem fique à mercê de sua Anima (essência interior feminina). Esta passa a “dominar” sua consciência e o torna sensível, irritável, temperamental e vaidoso (uma caricatura do feminino que estava aprisionado e agora “toma conta” da consciência). Num grau ainda mais grave, quando o homem torna-se totalmente distante de sua Anima, que está extremamente suprimida, pode haver diminuição da vitalidade e flexibilidade e a “personalidade externa” pode chegar aos extremos da rigidez, dureza, estereotipia, unilateralidade fanática e tendenciosidade. Esse é o caso de Ove que não mantinha qualquer dialética com sua Anima e que, como veremos adiante, acaba projetando-a no mundo externo.
Persona e Anima
De forma simplificada e retomando o que foi dito acima, há na psique uma relação de compensação entre a Persona (consciente) e a Anima (inconsciente). De certo modo, uma “personalidade interna” (Anima) apresenta aquelas propriedades que faltam à “personalidade externa” (Persona). Assim, quanto mais viril é a Persona, mais suprimidos e inconscientes são os traços femininos, ou a Anima, para um homem. Esse é o caso do protagonista cuja expressão externa de sua pessoa é a do tirano cruel, insensível, obstinado, duro e inacessível, atormentado por pressentimentos sombrios. Assim, um homem muito masculino na Persona terá que ser igualmente feminino na Anima, possuidora de seus aspectos de receptividade, sensibilidade e capacidade de estabelecer relações. Como foi dito anteriormente, Ove não entra em contato com sua Anima, que permanece inconsciente, e que desta forma, estará projetada na mulher por quem se sente atraído. Geralmente isso se dá através de uma paixão por uma mulher que tenha características opostas e complementares ao seu jeito de estar no mundo e que retrate sua alma: no caso de Ove, uma mulher ousada, com espírito de aventura e que foge aos padrões convencionais. É essa a Persona da moça por quem Ove se apaixona, com quem se casa e que lhe confere um sentimento de completude. Entretanto, Ove continua não estabelecendo contato e diálogo com sua Anima que permanece sendo vivida através da projeção carregada por Sonja. Percebemos, assim, o porquê do protagonista, após a morte da esposa “perder” sua sensibilidade (que estava projetada na mulher e ele não tinha se apropriado) e viver como apresentado no início do filme: um senhor amargurado, rabugento e inflexível.
Com o desenrolar da história, vamos perceber um segundo momento na vida de Ove que passa, muito a contragosto, a se relacionar com outra figura feminina. Trata-se de Parvaneh, uma imigrante iraniana grávida, mãe de duas crianças, que se muda para o mesmo condomínio. É uma figura maternal, afetiva, que tolera as intransigências e a falta de sensibilidade de Ove, insistindo em se relacionar com ele (como se enxergasse a vida de sentimentos que ele mesmo não sabe que possui). Mesmo com resistência, o protagonista é colocado em contato com as filhas de Parvaneh, o que o obriga a se relacionar com o novo, repleto de potencial (símbolos da criança) e a compartilhar fantasias. Um dia, por exemplo, as garotas solicitam que Ove ”fale com a voz de Urso”, ao ler um livro infantil para elas; uma experiência rica e criativa que, aos poucos, vai permeando sua dureza. Vamos notando que o protagonista vai estabelecendo algumas trocas com Parvaneh, recebendo os doces que ela lhe oferece (adoçando-o) e concordando em ensiná-la a dirigir. Dessa forma, vai trazendo, apesar do medo e resistência, sua essência interior feminina para o mundo, agora através de Parvaneh. Note-se que isso novamente ocorre sem diálogo, conscientização e integração dos aspectos de sua Anima que, apesar de experimentados e trazidos para a vida, permaneceram inconscientes a Ove até a sua morte.
Enfim, generalizando o exposto acima, vemos que, com todos nós, a guerra que se trava com o outro exterior é a guerra que acontece no mundo interior. Dessa forma, é importante, para fins de desenvolvimento psicológico, que o indivíduo possa se engajar num processo dialético com seu ego, centro de sua consciência. Isso permite que se reconheçam as projeções e surja a possibilidade de expansão do grau de entendimento a respeito de si próprio.
Tenho outros filmes analisados no site psiquecinema e página do face. Abraço a todos!
[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e aqui vai uma análise psicológica do filme, para quem gostar desse tipo de texto...
Os filmes sobre alienígenas são projeções da psique humana a respeito daquilo que o homem busca, mesmo sem saber, para a sua completude. “A Chegada” gira em torno da necessidade humana fundamental de comunicação, entendimento e contato.
O mundo digital em que vivemos encurtou o tempo e alargou o espaço de nossas comunicações. Hoje podemos falar, ver ou ouvir quem está muito longe, de forma quase imediata. Vivemos on-line e, de fato, não temos dificuldade em nossa comunicação. Por que, então, o filme seria uma projeção da necessidade de contato, visto que interagir nunca esteve tão fácil e tão ao nosso alcance, como hoje? A resposta, a meu ver, diz respeito muito mais à qualidade do que à quantidade de nossas interações. Infelizmente trocamos muitos bites de informação sem alma. Teclamos o tempo todo, enviamos e recebemos dezenas ou centenas de mensagens e imagens, todos os dias, mas apenas algumas são, de fato, significativas. Poucas fazem vibrar o nosso íntimo e nos tocam verdadeiramente. Em outras palavras, não nos relacionamos com nossas fantasias, sonhos e mundo interno, desconhecendo a nós mesmos. Nem tão pouco interagimos de maneira significativa com os outros ou com aquilo que ultrapassa nossa humanidade, o que evidencia, muitas vezes, nossa carência de sentido na vida.
Vale lembrar que o inconsciente tem uma função compensatória em relação à atitude inevitavelmente unilateral de nossa consciência. Nosso mundo consciente, transbordando de contatos superficiais exclusivamente egóicos, parece vir desejando mais profundidade e pessoalidade em nossas trocas. O filme denuncia essa necessidade projetada na película, tanto no âmbito pessoal quanto no coletivo. No modo individual, simbolizada através do desejo da protagonista de se comunicar com a filha falecida e no coletivo, através da ânsia do mundo todo por conexão com o desconhecido alienígena.
Outro aspecto interessante no filme diz respeito à permutabilidade dos tempos passado e futuro. O tempo linear é questionado, visto que podemos entender a narrativa em ambos os sentidos. A história pode fluir e ser compreendida de antes para depois ou vice-versa (como o palíndromo Hannah, nome da filha de Banks). Essa é a imagem circular do tempo. O tempo representado pelo termo Kairós e entendido como um campo e não uma linha.
Kairós é uma palavra de origem grega, que significa "momento certo" ou "oportuno", relativo a uma antiga noção que os gregos tinham do tempo. Essa noção teria surgido a partir de um personagem da mitologia grega. Kairós era filho de Cronos, deus do tempo “cronológico” e das estações do ano e, ao contrário de seu pai, expressava uma ideia não-linear do tempo, impossível de se determinar ou medir. Kairós diz respeito ao momento apropriado único ou à ocasião ideal para a realização ou acontecimento de algo específico.
A película traz as imagens de circularidade como forma de comunicação, questionando nosso paradigma materialista de linearidade, causa-efeito e localidade/separação. Somos levados a refletir sobre os conceitos de simultaneidade, conexões não-locais e relatividade entre tempo e espaço, todos pertencentes a um novo paradigma, onde se insere a física quântica.
O filme também nos permite ponderar sobre a questão do contato entre o indivíduo e o universo, o conhecido e o desconhecido, o consciente e o inconsciente. Vemos uma simultaneidade entre o desenvolvimento da comunicação que a protagonista estabelece com os alienígenas e aquela que estabelece com suas imagens íntimas. Há um paralelismo no grau de conhecimento que vai se dando entre Banks e suas profundezas e entre ela e o universal.
Isso levanta a questão: estariam separados o “um” e o “todo”?
Finalizo com um pequeno conto indiano: “A mãe de Krishna o chama e o repreende por ter comido terra. Ele explica: - Mas não comi, pode ver minha boca. – Então, abra a boca, diz a mãe Yassoda ao Deus que havia assumido a forma de criança. E então ela viu em sua boca o universo inteiro, com os mais distantes pontos dos céus, os ventos, os relâmpagos e a esfera terrestre com suas montanhas e mares, e a lua e as estrelas e o próprio espaço e sua vila e ela própria.”
Outras análises tenho o site psiquecinema e página no face, Abraço a todos!!
Nomadland
3.9 896 Assista AgoraUm escrito poético que penso combinar com o filme:
“Não tema seus tempos de deserto a questionar suas forças, concentrar suas dores e, muitas vezes, esmorecer suas cores.
O deserto escancara sua fraqueza, dissolve seus limites e te põe nu. Até que se queimem, em calor escaldante, suas incoerências. E resfriem, em noites geladas, suas verdades mais ricas, até então, por você, ignoradas”.
Minhas poesias no instagram:
@eporfalarempoesias
Na Natureza Selvagem
4.3 4,5K Assista AgoraSou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho de minha análise sobre este filme: (lembrando que às vezes há spoiler)
..."Antes de tudo e, de forma inquestionável para todos nós, a natureza é mãe. Tanto é assim que reconhecemos com facilidade a expressão “mãe natureza”. E é ela a escolha que McCandless faz para si na intenção de se desligar da família e dos moldes sociais vigentes, num movimento de busca de sua própria identidade. No entanto, é interessante notar que o protagonista escolhe para esse fim, a natureza, importante símbolo materno. Poderíamos supor que um movimento, obviamente inconsciente, regressivo ou de retorno ao calor do ninho da infância, estaria inserido nessa escolha. Claramente notamos que McCandless passa por uma importante fase de transição e conflito"...
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema"
Espero que goste!
Abraço
Relatos Selvagens
4.4 2,9K Assista AgoraSou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho de minha análise sobre este filme: (lembrando que às vezes há spoiler)
..."Sabemos que a sociedade em geral desaprova a expressão de algumas emoções, como por exemplo, a raiva. Isso leva algumas pessoas a reprimirem e evitarem demonstrar tal emoção, muitas vezes passando a ter pouco acesso à ela e chegar ao extremo de negar sua existência e experiência. Tais indivíduos geralmente são passivos e às vezes excessivamente tolerantes. A repressão de uma emoção não a extingue e, nas palavras de Jung, “tudo que resiste, persiste”. Desta forma, a raiva se acumula no inconsciente e gera tensão, numa tentativa de poder se expressar. Torna-se grande o risco do indivíduo subitamente passar ao polo da agressividade e transformar em palavras ou atos, os elementos da sombra que estavam reprimidos.
Segundo Jung, “A sombra apresenta-se muitas vezes como um ato impulsivo ou inadvertido. Antes de se ter tempo para pensar, irrompe a observação maldosa, comete-se a má ação, a decisão errada é tomada, e confrontamo-nos com uma situação que não tencionávamos criar conscientemente...”
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema"
Espero que goste!
Abraço
Depois de Lúcia
3.8 1,1KSou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho de minha análise sobre este filme:
"...Nesse grande momento de dor, percebemos pai e filha tentando seguir com firmeza a rotina dos dias conseguindo, no entanto, apenas uma frágil estabilidade. Rasa e seca. Vivem este duro período de vazio de maneira emocionalmente árida, carecendo da flexibilidade úmida que as lágrimas, o escorrer das emoções ou o transbordar da dor poderiam lhes possibilitar..."
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes (lembrando que em alguns casos há spoiler) pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema"
Abraço
Amor
4.2 2,2K Assista AgoraSou psiquiatra e me aventuro a fazer análises psicológicas de filmes. Este é um trecho sobre este filme:
..."Claramente o envelhecimento é um processo de invasões e perdas até seu objetivo final, a morte. É o dissipar da última parcela de energia da vida que vai se tornando cada vez mais lenta e rarefeita e busca, como se soubesse o caminho, o alvo do repouso total"...
Se interessar, a análise completa desse e outros filmes (lembrando que há spoiler) pode ser encontrada na página do face chamada "psiquecinema"
Abraço
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraNa minha maneira de apreciar o cinema, achei este filme mais caricato do que simbólico, exagerado e cansativo em alguns momentos, tamanha necessidade de impactar quem assiste. O simbolismo da criação é a beleza maior da película, infelizmente explorada de forma desnecessariamente grotesca e desconfortável ao expectador. No meu entendimento, um filme não precisa ser aversivo para ser reflexivo.
El Camino de San Diego
3.7 5Acompanhamos a inocência do protagonista na realização daquilo que confere sentido à sua vida. Lembrando as palavras de Viktor Frankl: "Quem tem um 'porquê', enfrenta qualquer 'como'". Um filme onde testemunhamos a simplicidade em seu esplendor!!
Nostalgia da Luz
4.3 61O mesmo deserto que revela as estrelas, esconde as barbáries da ditadura de Pinochet. Este é um importante documento histórico que precisa chegar à luz de nossa consciência e permanecer em nossa memória como lembrança de que sempre precisamos evoluir como seres humanos.
Como Nossos Pais
3.8 444Pra pensar...
Recebemos de nossos pais aquilo que puderam nos dar. E nos frustramos porque, jovens, queremos mais e queremos tudo. Crescemos indignados jurando que a carência que carregamos não perpetuaremos. Seremos diferentes, seremos novos, seremos tudo. Seremos?
O filme nos faz pensar em quanto nos diferenciamos e em quanto ainda somos os mesmos e vivemos, como nossos pais... (Belchior)
Depois de Lúcia
3.8 1,1K[spoiler][/spoiler]
Leia após assistir!!
Sou psiquiatra e analista junguiana e fiz uma análise psicológico desse filme bastante impactante: (quem gostar tenho outras análises no site psiquecinema ou página do face)
Aí vai:
O filme nos faz sentir a dor de um luto e da violência moral, física e emocional causada pelo bullying. Além disso, nos faz ouvir também, os gritos de angústia presentes na maneira silenciosa de sofrer de Alejandra e Roberto .
O título “Depois de Lucia” nos localiza em que tempo se passa o filme, ou seja, na falta de Lucia, que acabara de falecer. E é essa ausência, presente em todo o filme, que preenche o abatimento contido dos personagens.
Bullying
O bullying escolar tem sido definido como a hostilidade intencional e frequente de um aluno mais velho ou mais forte, ou de um grupo de alunos, (como é o caso do filme) dirigida a outro, podendo gerar diversas consequências físicas, morais e emocionais para aquele que o sofre, desde uma angústia acentuada até o assassinato ou suicídio. A vítima do bullying se constitui num bode expiatório, que é um alvo ideal para o agressor. Quando o sofredor do bullying demonstra ansiedade, chora ou não se defende, o agressor pode se sentir superior e satisfazer impulsos de crueldade e agressividade, além de se sentir bem, mesmo quando são outros que atacam a vítima.
De maneira simplificada, segundo a psicologia de Jung, aquilo que não aceitamos em nossa personalidade, reprimimos e estes elementos constituirão nossa sombra. Esta nos é inconsciente e teremos a tendência de projetá-la em outro indivíduo. No bullying efetuado por um grupo, o aluno agredido está sendo alvo da projeção de elementos sombrios coletivos e não da sombra de apenas um indivíduo. Independente de quais elementos estejam sendo projetados na vítima, que podem ser, “o feio, o estranho, o diferente, o fraco, o burro, o incompetente”, isso ocorre para que o coletivo possa expiar esses elementos que, embora negados, lhes pertence.
Quando existe alguém que carregue estas projeções, a maioria pode se sentir bem em sua mediocridade e essa é uma das grandes crueldades do coletivo. Segundo Jung, no grupo a emoção é contagiosa e o anonimato libera instintos e forças primitivas. Visto que a consciência de um grupo é inferior à consciência individual, cria-se um tipo de alma animal coletiva.
A respeito da vítima, podemos supor que inconscientemente este indivíduo possui um alto grau de agressividade que não consegue expressar de forma adequada. Ao sacrificar a expressão deste sentimento, se torna o alvo da maldade projetada dos agressores que a transformam em atos cruéis e cuja execução fica facilitada pela passividade da vítima. Esta pessoa que sofre a violência precisará, assim, passar por um processo onde possa se tornar consciente de sua sombra, no caso de sua agressividade não aceita e reprimida, a fim de passar a externá-la para sua própria proteção e defesa.
Alejandra vive um momento bastante delicado e doloroso devido à morte da mãe, possivelmente carregando raiva pelo que a vida lhe impôs e eventualmente algum grau de culpa. Tudo isso vivido de forma contida, sem a troca de emoções com o pai e em silêncio. Em função da provável fragilidade em que se encontra e por estar vivenciando os fortes sentimentos de impotência que a morte causa, a garota pode ter se tornado vulnerável e indefesa frente ao mundo e sua maldade.
Luto
Pai e filha sofrem em silêncio. Na tentativa de evitar a expressão das emoções trazidas pela dor do luto, substituem tal vivência pelo empenho em se oferecerem cuidados recíprocos. Parecem, desta forma, querer se unir e somar forças evitando levar problemas ou tristezas um ao outro. Mas como vemos com o desenrolar da história, tentar poupar dificuldades acaba resultando em distanciamento. Ao negarem suas dores ou raivas decorrentes do luto, correm o risco de se tornarem passivos e vítimas indefesas de atos violentos como ocorre com Alejandra ou, de maneira compensatória, se tornarem ativos e explosivamente destrutivos, como no caso de Roberto.
Nesse grande momento de dor, percebemos pai e filha tentando seguir com firmeza a rotina dos dias conseguindo, no entanto, apenas uma frágil estabilidade. Rasa e seca. Vivem este duro período de perda de maneira emocionalmente árida, carecendo da flexibilidade úmida que as lágrimas, o escorrer das emoções ou o transbordar da dor poderiam lhes possibilitar. Este movimento e profundidade emocional que os personagens não são capazes de experimentar, o filme trará, como compensação e contraste, nas imagens da profundeza do oceano e suas ondas. O início da película mostra Alejandra próxima ao mar e também enfatiza seu gosto pela água nas cenas onde nada na piscina. Além disso, é pelo mar que ela encontra uma ‘solução’ e foge da maldade praticada por seus pares. E por último, também é o mar que acolhe a vingança de Roberto no final do filme. A água simboliza os sentimentos e as emoções em movimento que estão negadas e reprimidas, surgindo apenas do lado de fora da vida de pai e filha. A partir desse simbolismo, abordarei a operação alquímica denominada “solutio”.
A alquimia foi estudada e entendida por Jung como uma forma de compreender o que se passava no psiquismo dos alquimistas visto que as transformações que eles produziam na matéria correspondiam a projeções psíquicas de seu inconsciente. Assim, cada uma das operações alquímicas traz um significado psicológico para quem está envolvido com determinado elemento. A partir da conscientização desse significado é possível ao indivíduo adquirir maior conhecimento a respeito do que vem vivendo internamente podendo, assim, se compreender melhor.
Como dito, a “solutio” é a operação alquímica relacionada à água, que é o elemento simbólico recorrente no filme.
Segundo Edinger, a experiência da solutio ‘soluciona’ problemas psicológicos mediante a transferência da questão para o domínio do sentimento. Em outras palavras, dá respostas a questões ao dissolver a obstrução da libido a respeito da qual a questão era sintoma, no caso a perda e o luto. Simbolicamente, o fenômeno da ‘solutio’ corresponde à dissolução através da fluidez das emoções dos aspectos estáticos da personalidade que resistem a mudanças.
Finalizando, o luto é um tempo duro que precisa lentamente se desmanchar.
É um gelo, um choro cristalizado que precisa derreter sob o calor do coração e escorrer como as lágrimas para que a vida possa voltar a fluir.
Até a próxima!
Abraço a todos!!
Relatos Selvagens
4.4 2,9K Assista AgoraOlà!
Sou psiquiatra e analista junguiana e tenho analisado psicologicamente alguns filmes...este é um trecho da análise deste filme:
"[...]" uma emoção pode chegar à consciência de forma abrupta e exagerada, assumindo o controle do ego do indivíduo, que se torna disfuncionalmente agressivo. O indivíduo perde a possibilidade de experimentar e agir de maneira assertiva, de modo a atingir seu objetivo. Na verdade, o tempo todo somos exigidos a buscar um equilíbrio entre nosso instinto e os valores que introjetamos através da cultura; entre nossa primitividade e civilidade. Segundo Jung, “o excesso de animalidade distorce o homem civilizado, mas o excesso de civilização deixa os animais doentes”. Ainda em suas palavras, “o processo da cultura consiste em dominar cada vez mais o animal que há no homem”. Para tal, precisamos admitir esse nosso lado animal, conhecer o que ele tem a nos dizer e, sem desrespeitar a moral vigente, encontrar nossa própria harmonia e nossa própria ética.[...]"
Obs. A análise completa é longa para postar aqui..
Quem tiver interesse em ler na íntegra, está no site psiquecinema ou pagina do face psiquecinema
Abraço a todos!!
Paterson
3.9 353 Assista AgoraSou psiquiatra e aqui está minha análise psicológica do filme para quem gostar
ATENÇÃO: A HISTÓRIA DO FILME PODE SER REVELADA NO POST. FICA A SUGESTÃO DE ASSISTÍ-LO PREVIAMENTE
SPOILER
O filme trata do cotidiano e de como as miudezas do dia a dia estão impregnadas de significado e poesia.
Há um arcabouço que se repete no decorrer de uma semana da vida de Paterson que identificamos logo no início do filme. Entretanto, se atentarmos para os eventos que recheiam esse arcabouço perceberemos nuances que dizem muito sobre sua vida.
Na verdade, a vida de todos nós é repleta de repetições e conexões sutis que não nos apercebemos, na ânsia de buscar o que ainda não alcançamos. A vida de Paterson vai nos mostrar a beleza sutil que existe naquilo que damos por trivial. Há muita riqueza no monótono e no pequeno, há muito colorido no preto e branco repetidamente apresentado por Laura no cotidiano do casal.
E há também muitas coincidências ao longo do filme, que não ocorrem à toa e sem sentido, mas estão ligadas pelo afeto. Cabe aqui apresentar um conceito de Jung que aparece no filme e também em nossas vidas, chamado sincronicidade.
Sincronicidade é aquela coincidência que subitamente acontece e nos deixa perplexos como, por exemplo, pensar em alguém distante que, de repente, nos telefona. Ficamos imediatamente impactados porque não se trata de algo qualquer mas de uma coincidência que nos toca, nos afeta e até nos assusta. Não explicamos, apenas testemunhamos. Geralmente uma ocorrência de curta duração, a sincronicidade funde o ambiente externo com nossa psique, possibilita que uma vivência interior fique espelhada no mundo e, como a luz intensa e breve de um relâmpago, nos faz vislumbrar a unidade e conexão entre todas as coisas. O importante a destacar é que não devemos desprezar tais acontecimentos porque desejam comunicar algo. Se pudermos refletir sobre o significado da sincronicidade no contexto de nossas vidas, possivelmente teremos acesso a conteúdos que nos eram inconscientes e que, depois de elaborados, poderão ampliar o que sabemos a respeito de nós mesmos.
Uma ocorrência sincrônica relevante do filme é o protagonista se chamar Paterson, o mesmo nome da cidade onde vive. Essa é uma coincidência significativa que pode nos fazer pensar no Paterson motorista de ônibus, público como a cidade, e outro particular e subjetivo, poeta nos momentos íntimos. Um circula e se expõe e o outro aquieta e se recolhe; um sustenta a vida prática e o outro sustenta a alma. Essa duplicidade quer se fazer revelada e continua se apresentando ao mundo e ao indivíduo através de outros eventos sincrônicos do filme como, por exemplo, os vários gêmeos que cruzam sua rotina.
A observação acima nos remete ao “motivo do duplo”, trabalhado por Jung em sua obra.
A dualidade, a cisão, a divergência, ou a antítese remetem, em termos de imaginário, ao elemento chamado “duplo”. Encontramos o simbolismo do duplo em diferentes áreas de estudo como, por exemplo, na literatura, na arte ou na mitologia. Ele nos causa uma atração interrogativa, tendo sido motivo de distintas construções imagéticas. Um exemplo onde pode ser visto é no mito de Narciso: na versão escrita por Pausânias. Narciso se apaixona pela irmã gêmea que morre, deixando-o consumido pelo desgosto. Um dia, enquanto passeava, vê seu reflexo na água do lago e imagina ser sua irmã. Lá permanece admirando-a até definhar e morrer, dando origem à flor narciso.
Um possível significado do duplo condiz com sua denominação: são dois seres ou duas imagens de si mesmo. Isto está representado no filme através da duplicidade presente na personalidade de Paterson, enfatizado, como já citado, pelos eventos sincrônicos do aparecimento, em diferente momentos, da imagem de dois seres, os gêmeos. O tema do duplo se torna evidente e relevante ao refletirmos a relação eu-outro como um diálogo interno, visando promover o autoconhecimento. O motivo do duplo pode ser compreendido como um elemento inconsciente que está tentando alcançar a consciência de forma a fazer parte da personalidade do indivíduo, podendo aparecer num sonho, fantasia ou em eventos sincrônicos. Carrega um questionamento que o indivíduo deveria fazer a si mesmo a respeito das possibilidades e facetas que o compõe. Laura pede a Paterson que deixe existir o artista que ele já é, mas ele resiste e mantém distante e secreta sua potencialidade poética.
Também observamos outras duplicidades no filme como o “preto e branco” escolhido por Laura como um padrão para estampar sua vida e desejos. Dentro desse padrão podemos enxergar ainda o tema do binário quando os desenhos feitos por Laura são muitas vezes, círculos ou linhas remetendo-nos ao par numérico 0 e 1. Por fim, dois poetas cruzam o caminho do protagonista e vêm “lembrá-lo” de seu dom artístico.
Enfim, as coincidências significativas que ocorrem à Paterson também podem ser entendidas como as rimas que permeiam a poesia de sua vida. Há em Paterson e em sua rotina uma simplicidade repleta de significado. O filme sugere para nossas vidas um olhar mais lento e atento que nos permita enxergar as sincronicidades repletas de mensagens e respostas que, muitas vezes, perseguimos velozmente sem obtê-las. Nos propõe um ritmo suave que nos torne capazes de perceber quanto conteúdo existe num dia-a-dia que poderia ser julgado, num olhar apressado, como vazio e sem alma
Definitivamente a poesia de Paterson não é épica, tampouco sua rotina que, no entanto, nos faz lembrar que todos trazemos um Paterson dentro de nós.
Obs Outras análise de filmes estão na página do face psiquecinema. Abraço a todos!
13 Reasons Why (1ª Temporada)
3.8 1,5K Assista Agora[/spoiler]
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Sou psiquiatra e gosto muito de fazer análise de filmes do ponto de vista da psicologia e psiquiatria. Compartilho com vcs um de meus textos. Aí está! Abraço a todos
A série trata de questões relacionadas ao período da adolescência.
A adolescência é um fenômeno psicossocial que se inicia com a puberdade que é caracterizada, por sua vez, pelas mudanças físicas e biológicas que surgem nessa fase da vida. Há na adolescência, uma crise onde o jovem questiona sua maneira de estar no mundo, muitas vezes vivendo o conflito de desejar mas, ao mesmo tempo, temer romper as barreiras do lar e da segurança oferecida pelos pais. Há um ímpeto para desafiar mas há também a necessidade de se sentir parte de um grupo ou comunidade. Geralmente nessa etapa da vida inicia-se a vida sexual, carregada de conflitos, paixões, ciúmes, mudança de parceiros que surgem fazendo parte da experiência da vida amorosa.
A série tenta apontar as dificuldades, sentidas mais intensamente por alguns jovens, na aceitação por seus pares e o sofrimento vivido pela discriminação ou abuso de todas as ordens. Tenta também chamar a atenção para temas como machismo e suas dolorosas consequências. Tais questões não são novas e vêm sendo abordadas de inúmeras maneiras, com frequência cada vez maior. E devem permanecer, a meu ver, sendo discutidas e clareadas, responsabilizando-se os culpados e infligindo as punições cabíveis. Isso incentivará a busca por ajuda e trará a possibilidade de mudanças nesses ambientes hostis e geradores de patologias.
A série traz também uma questão bastante importante, a partir da qual é construída, que é o suicídio.
O suicídio obviamente também deve ser trazido às discussões públicas, familiares, escolares, aos filmes e à mídia em geral, devendo ser debatido abertamente. O tema necessita, no entanto, ser adequadamente tratado através de informações claras, objetivas e corretas. Há um alto risco para os jovens e também para a população em geral se for abordado superficialmente, de forma infantil, simplista ou romantizada.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio já é a segunda causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos no mundo, atrás somente de acidentes de trânsito. Tão ou mais importante do que isso, são os dados que indicam que 90% dos suicídios ocorrem em portadores de doenças psiquiátricas, mais especificamente, as depressões.
É preciso reconhecer que o suicídio é uma atitude extrema, causada por um transtorno grave psíquico e/ou emocional. O suicídio é o último dos sintomas de um quadro gravíssimo que abala todo o pensamento, assim como o derrame é o último sintoma de uma doença vascular não diagnosticada.
Todos nós devemos aprender a perceber sinais de risco de suicídio, estando alertas às mudanças de conduta de jovens adolescentes. Alguns desses sinais são: tendência a maior reclusão e isolamento, perda de prazer em atividades habituais, modificações na forma de encarar o mundo com visões fortemente negativas ou niilista, desânimo, agressividade ou impulsividade anormais, conversas sobre morte, automutilação, falta de sentido na vida e desesperança.
Ideias de tirar a própria vida e tentativas anteriores são importantes fatores de risco para o suicídio e merecem total atenção.
É absolutamente errada a ideia de que falar abertamente sobre suicídio aumenta o risco de sua ocorrência. Pelo contrário, o assunto deve ser abordado, questionado clara e diretamente, sendo imprescindível que se ofereça a devida ajuda ao indivíduo. Serviços urgentes de apoio por telefone, suporte de familiares e amigos, tratamento psicológico ou psiquiátrico são alguns desses caminhos de auxílio. Dessa forma, a prevenção da depressão e do suicídio em jovens definitivamente passará a ser encarada com a seriedade que lhe é devida.
Enfim, a mídia de maneira geral deve ser um caminho para o esclarecimento, reflexão, debate, discussão e fonte de conhecimento. Devemos apenas estar atentos à precisão e veracidade do conteúdo das informações e também ao contexto no qual são apresentadas.
Para quem gosta de análise psicológica de filmes, escrevo no site psiquecinema ou pagina do face psiquecinema
Fragmentado
3.9 3,0K Assista AgoraSou psiquiatra e gosto de fazer análise psicológica de filmes. Para quem gostar, aí está:
O filme é a apresentação artística do fato de todos nós sermos internamente povoados por outras formas de existir.
É relevante trazer a visão médica da psiquiatria sobre o transtorno dissociativo de identidade, antes conhecido por transtorno de múltiplas personalidades.
Inicialmente, o que é dissociação?
Todos nós já vivenciamos esse estado de forma leve quando sonhamos acordados ou nos perdemos no momento, enquanto fazemos alguma coisa. O aspecto dissociativo é visto como um mecanismo de enfrentamento – a pessoa literalmente dissocia-se de uma situação ou experiência que é muito violenta, traumática ou dolorosa para ser assimilada pela consciência.
A essência do transtorno dissociativo de identidade é uma dissociação grave com divisão da identidade, com fragmentação recorrente do funcionamento consciente e do senso de si mesmo.
O transtorno dissociativo de identidade está associado a experiências devastadoras, eventos traumáticos, maus tratos, e/ou abuso ocorrido na infância.
Sua característica definidora é a presença de dois ou mais estados de personalidade distintos ou uma experiência de possessão. Além disso deve haver lacunas recorrentes na recordação de eventos cotidianos, informações pessoais importantes e/ ou eventos traumáticos que são incompatíveis com o esquecimento comum. Para chamarmos de transtorno dissociativo de personalidade, os sintomas não podem ser atribuíveis aos efeitos fisiológicos de uma substância (p. ex., apagões ou comportamento caótico durante intoxicação alcóolica) ou a outra condição médica. A perturbação não pode ser parte normal de uma prática religiosa ou cultural amplamente aceita. Além disso, em crianças, os sintomas não são mais bem explicados por amigos imaginários ou outros jogos de fantasia.
Finalmente, os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo e prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Os alter egos ou identidades diferentes têm a sua própria idade, sexo ou raça. Cada um tem suas próprias posturas, gestos e maneira distinta de falar. Junto com a dissociação e múltiplas personalidades, pessoas com transtornos dissociativos podem experimentar uma série de outros problemas psiquiátricos, como depressão, ansiedade, tentativas de suicídio, abuso de álcool e drogas dentre outros.
As personalidades distintas podem servir de papéis para ajudar o indivíduo a lidar com dilemas da vida.
Passando à avaliação psicológica de Jung, percebemos que o filme se passa quase sempre numa luminosidade parcial. A luz clara da consciência vigil se distribui entre várias personalidades e está representada através de um tom mais escuro em grande parte das cenas, a fim de ilustrar esta proposta do filme.
Consciência e Ego
A consciência é definida por tudo aquilo que conhecemos.
O ego, o centro da consciência, é um filtro que seleciona e apresenta à nossa consciência um conteúdo de cada vez. O ego vai progressivamente se desenvolvendo através das inevitáveis experiências e confrontos com o mundo externo, compondo quem somos e nossa identidade. No filme, Kevin é a identidade egóica do protagonista.
Inconsciente e Complexos
Não somos, no entanto, exclusivamente ego e consciência. Nossa psique se compõe também de uma grande parcela inconsciente. Sabemos, além disso, que nossa consciência não vai ser apenas perturbada por estímulos do mundo externo mas também por colisões internas originadas desse nosso próprio inconsciente e dos complexos que o constituem.
Estes complexos são uma rede inconsciente de material associado entre si formado por lembranças, fantasias, imagens, pensamentos que, quando estimulada, pode ganhar força suficiente para gerar perturbação na consciência, muitas vezes irresistíveis, como se estivéssemos possuídos. Nessa situação, reagimos irracionalmente e depois de recobrarmos nosso estado anterior, geralmente lamentamos, nos arrependemos e pensamos melhor sobre o que fazer numa próxima oportunidade. O que faz um complexo ganhar “energia” pode ser algum tipo de situação atual que mobiliza momentos passados, traumas, associações dolorosas e estressantes que haviam sido enterradas no inconsciente. Quando nosso ego fica sujeito a tais descargas de energia, perde o controle da consciência e ficamos temporária e parcialmente dissociados. Entretanto, o ego forte retoma, em seguida, seu lugar central na consciência e não perdemos a continuidade de nossa personalidade. Há traumas e situações que geram dissociações tão intensas que podem tornar o ego mais vulnerável e com maior risco de perder sua força e autonomia.
Os complexos podem ser pensados como fragmentos de personalidade ou subpersonalidades. A personalidade de todo e qualquer adulto é vulnerável, em certa medida, à desintegração, visto ser construída de grandes ou pequenos fragmentos dotados de maior ou menor autonomia e que podem se “descolar”. No transtorno dissociativo de identidade, esses vários fragmentos de personalidade não são mantidos juntos por uma consciência unificadora. Possuem uma espécie de ego próprio, cada um deles operando de modo mais ou menos independente. Possuem identidade própria e até o seu próprio tipo de controle sobre as funções do corpo, a ponto de uma personalidade poder mostrar capacidades ou dificuldades físicas não apresentadas por outras.
Voltando ao filme, tudo isso está claramente representado nas várias personalidades que assumem o centro da consciência de Kevin, dependendo da exigência de cada situação. Há traumas do passado relacionados a possíveis maus tratos na infância que em alguns momentos são lembrados por ele. Fica evidente a força dos vários complexos que chegam ao status de personalidades e que se alternam “ganhando a luz” da consciência, termo usado pelo próprio protagonista. Cada uma delas possui um estilo, feições faciais, modo de falar e se comportar diferentes e característicos, o que evidencia a presença de uma consciência própria em cada uma dessas personalidades. Também descobrimos diferenças no funcionamento físico das diversas personalidades; por exemplo na necessidade que uma delas possui de tomar insulina para um possível quadro de diabetes. Finalmente, observamos que a memória apresenta lacunas na recordação de alguns eventos, evidentes ao longo do filme.
Outra personagem importante do filme, Casey, nos mostra um contraponto à Kevin no sentido em que ela não possui o transtorno dissociativo de personalidades mas vai nos apresentando, em diversas cenas, as recordações de eventos traumáticos. Tais situações foram provavelmente vividas com intenso grau de dissociação (protetora ao indivíduo), tendo sido reprimidas, permanecendo inconscientes a ela até então. No caso, eram abusos sexuais perpetrados por seu tio, já na sua infância. Em Casey não há uma permeabilidade do ego passível de ser tomado pelos complexos fragmentados inconscientes. Não chegam, assim, a adquirir a força de personalidades autônomas, a ponto de atingirem e assumirem o centro da personalidade, como ocorre com Kevin.
Finalizando, e como é mostrado no filme, o tratamento desse transtorno é difícil, de longo prazo e feito com psicoterapia. Há necessidade de um vínculo importante entre o indivíduo e o terapeuta, a fim de estabelecer forte confiança e profundo conhecimento da situação e do indivíduo. Os medicamentos são mais comumente utilizados para as possíveis e não raras doenças concomitantes.
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Abraço a todos!
Precisamos Falar Sobre o Kevin
4.1 4,2K Assista Agora[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e gosto de analisar filmes. Para quem quiser, aí vai:
Este é um filme perturbador, sobre Kevin, alguém incapaz de sentir amor.
Gostaria de dar, inicialmente, a visão médica psiquiátrica sobre o chamado Transtorno de Conduta. Muitos dos comportamentos de Kevin estão presentes dentro desse diagnóstico.
O transtorno de conduta é uma espécie de personalidade antissocial na juventude. Esses jovens e crianças não se importam com os sentimentos dos outros nem apresentam sofrimento psíquico pela prática de atos moralmente reprováveis, perigosos e ilegais. Há ausência de remorso, falta de empatia, afeto superficial ou deficiente. Praticam atos como agressão a pessoas ou animais, destruição de propriedade, falsidade, furto e violações graves de regras.
Segundo Bordin e Offord, comportamentos antissociais são frequentemente observados no período da adolescência como sintomas isolados e transitórios. Porém, estes podem surgir precocemente na infância e persistir ao longo da vida, constituindo quadros psiquiátricos de difícil tratamento. Fatores individuais, familiares e sociais estão implicados no desenvolvimento e na persistência do comportamento antissocial, interagindo de forma complexa e ainda pouco esclarecida. Como o comportamento antissocial torna-se mais estável e menos modificável ao longo do tempo, crianças e adolescentes com transtorno da conduta precisam ser identificados o mais cedo possível para que tenham maior oportunidade de beneficiar-se de intervenções terapêuticas e ações preventivas. O tratamento mais efetivo envolve a combinação de diferentes condutas junto à criança/adolescente, à família e à escola. Quando não é possível o acesso a intervenções complementares, o profissional de saúde mental deve identificar a conduta terapêutica prioritária em cada caso específico.
Passando a uma leitura psicológica do filme, podemos iniciar tratando dos aspectos simbólicos de sua impactante abertura.
Uma multidão se aglomera e trava uma verdadeira “batalha de tomates” ficando, aos poucos, envolta num caldo vermelho, espesso e vibrante. Essa é uma tradição espanhola conhecida por Tomatina, prática que remonta a 1944 e se repete todos os anos na cidade de Buñol, atraindo milhares de visitantes. Diz-se que a “Tomatina” começou por ser um símbolo da oposição à ditadura de Franco.
Temos aqui um simbolismo que se mostrará importante ao longo de todo o filme que é a “batalha” do vermelho, cor do sangue e dos afetos, se opondo à tirania fria e assustadora de Kevin. Tirania essa que desconhece o vermelho do coração, símbolo da paixão, das emoções calorosas e do amor. A cena seguinte é a tinta vermelha agressivamente esparramada nas paredes externas da casa de Eva, novamente nos deixando supor a cor do amor do lado de fora de sua vida com o filho. Vale observar que muitas cenas do filme são permeadas pela cor vermelha, como por exemplo, as lembranças de paixão entre Eva e o marido, bem como as de destruição sanguíneas e dor.
A gestação não planejada
Uma mulher, no âmbito de sua consciência, pode não manifestar vontade em gestar, como é o caso de Eva. Entretanto, a poderosa e desconhecida esfera inconsciente dos desejos, que também está em jogo, pode fazer com que ela venha a engravidar, a despeito de seu discurso manifesto referir o contrário. Toda gravidez é vivida de maneira crítica e reflexiva, uma vez que tal etapa na vida da mulher desperta vivências extremamente primitivas, que até então dormitavam inconscientes. Pode-se pensar, assim, o quanto essa crise torna-se maximizada em uma gestação que irrompeu inesperadamente. Desolada, Eva carrega essa crise em seu ventre, sem refletir porquê e a que veio. No parto, a médica pede que ela “pare de resistir”, como se lutasse para impedir o nascimento da criança. Podemos levantar a questão: em algum nível de sua psique, Eva sabia o desafio que encontraria?
Quem é Kevin?
Voltando ao filme, Kevin grita enquanto é bebe e grita também em seu silêncio que recusa interagir com a mãe nos primeiros anos de vida. Segue se opondo, desafiando e destruindo a mãe, seus sonhos e a intimidade de sua vida. A cena em que Eva embeleza seu quarto forrando-o com mapas, como se procurasse um caminho a seguir, simboliza a tentativa de preservar sua dignidade e amor a si mesma. Kevin agressivamente espalha tinta vermelha por toda parte, sangrando a conexão que é incapaz de estabelecer com a mãe.
Com o pai, Kevin finge um relacionamento que não convence e que apenas o libera de maiores confrontos. Franklin tem, assim, a possibilidade de negar e se proteger mais facilmente da distância e do vazio que o filho impõe. Eva carrega solitariamente a amoralidade, a frieza destrutiva e o desamor que lhe é dirigido.
Kevin sufoca, constrange, maltrata. E mata.
O arco e flecha
Segundo Eliade, a flecha é um símbolo da libido, da energia psíquica disponível e projetada. É análoga ao raio solar, fálica e fecundante podendo referir-se à realizações afetivas. Eros, o deus do amor, usava suas flechas para que os homens se apaixonassem, e a emoção do sentir-se apaixonado de forma súbita, nos deixa com a impressão de que fomos flechados. Sem eros para se conectar ao mundo, Kevin parece tentar possuí-lo através da flecha. Assim que a descobre, num dos poucos momentos em que aceitara a aproximação da mãe, que lia para ele a história de Robin Hood, parece ter sido atingido e torna-se fascinado com essa possibilidade. Ganha o arco e flecha do pai e passa a utilizá-lo com destreza e habilidade, muito mais destrutivas do que do lúdicas. Há tensão, objetivo , alvo e destino mas claramente suas flechas não carregam amor.
O arco pode ser um símbolo da tensão causada pelos desejos humanos. É considerado ainda um símbolo do destino. O arco e flecha representam a caça, bem como a guerra.
O arco representa energia e disciplina, ao passo que a flecha representa o poder.
Enfim, sem amor, Kevin só conhece o poder.
Como forma de reflexão, finalizarei com as palavras de Jung, “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro”.
Obs. escrevi sobre outros filmes no site psiquecinema e página do face psiquecinema
Abraço a todos!
A Criança
3.8 91 Assista Agora[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e adoro analisar filmes. Se alguém se interessar por esse tipo de análise, aí vai:
Não há dúvida de que este filme denuncia os contrastes sociais e econômicos existentes no mundo contemporâneo, evidenciando a marginalização presente nesse contexto. É o que se passa com o casal de namorados, Sonia, de 18 anos que acabou de dar à luz um menino e Bruno, o pai, com 20 anos de idade que vive de pequenos roubos e golpes, cometidos por ele e seus comparsas adolescentes. Nessa análise, abordarei apenas os aspectos psicológicos das personagens.
Apesar do filme não trazer dados da vida pregressa dos dois jovens é evidente que o abandono é a ferida que sangra na alma desses personagens. Sustentam-se um ao outro através de um amor que se confunde com uma relação de sobrevivência. Bruno e Sonia ainda são crianças que correm, se provocam, caem, levantam, brincam e sorriem.
Segundo Jung, a criança é gerada no fundamento da natureza humana, ou melhor, da própria natureza viva. É uma personificação de forças vitais e de inteireza, representando o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo. É esse centro inteiro e pleno de potencialidade, essa criança viva que Bruno e Sonia carregam e que, apesar de ferida, permanece em busca de poder vir a ser em sua plenitude.
Percebemos, já no início do filme, que o recém-nascido dessa pueril união, Jimmy, constela ou ativa o arquétipo materno em Sonia, imprimindo uma nova dimensão à sua puerilidade. Ela o aceita amorosamente, protege-o, mais de uma vez preocupa-se em dar-lhe identidade registrando-o e, através da possibilidade de criá-lo, ganha a chance de resgatar sua criança interna abandonada. Sonia ainda é uma garota, brinca e corre como uma criança mas também é mãe, nitidamente protetora e calorosamente maternal. Percebemos ainda como Sonia tenta, em vão, contaminar o namorado com esse sentimento de conexão que sente pelo filho.
Mas isso não acontece com Bruno. Ele mantém um distanciamento frio e amedrontado, que soa mais como uma maneira de se proteger da dor de sua própria ferida de abandono, do que um comportamento perverso ou amoral para com o filho. O bebê é, ele próprio, a necessidade de proteção que o pai abandonado não tem para dar. Há uma defesa tão desesperada em Bruno que o impede de humanizar o filho, tratando-o como “algo” que pode ser vendido, substituído ou “feito de novo”.
Sabemos que estas experiências de abandono na primeira infância geram uma ferida infantil que interferem nas possibilidades de desenvolvimento e até no destino daquele ser. Jung nos diz: “A eterna criança no homem é uma experiência indescritível […]; um imponderável que determina o valor essencial de uma personalidade ou sua falta de valor. Conclui afirmando que a manifestação do arquétipo da criança ocorre quando há uma identificação do indivíduo com seu infantilismo pessoal e com a sua criança abandonada e incompreendida. A mãe de Bruno aparece em uma única cena e parece haver uma grande reticência em acolhê-lo. Não há segurança para gostar de si mesmo quando não se foi espelhado nos olhos maternos. O olhar da mãe é a primeira possibilidade de se ver refletido e ser aceito incondicionalmente como a pessoa que se é. Bruno não se vê, não acredita em seu valor como indivíduo e rouba do mundo tudo aquilo que lhe foi negado e nunca acreditou poder conquistar por si mesmo.
Delinquência e a privação emocional
Chamo de delinquência um padrão de conduta que se caracteriza pelo confronto e antagonismo frente às normas e valores sociais vigentes. Bruno exterioriza esse padrão de comportamento praticamente durante todo o filme. Vale notar que por meio de uma conduta delinquente, o indivíduo impele a sociedade a retroceder com ela à época em que se deu a privação emocional e a testemunhar e reconhecer suas grandes perdas. Na motivação para o furto que geralmente visa à posse de objetos, dinheiro e bens materiais, o que se tem é a procura obsessiva e incessante de “algo” que nunca se encontra e que é exatamente o olhar materno perdido. O furto expressa a privação de amor. No entanto, ao vender seu filho Jimmy, Bruno fere Sonia, passa a ser rejeitado por ela e se vê privado de sua única relação de afeto verdadeira. Aos poucos, conforme a película avança, percebemos que as defesas de Bruno tornam-se menos eficazes e o contato com sua própria dor vai ficando difícil de ser reprimidamente negada. Bruno parece mais frágil e vulnerável e,assim, mais sensível o que nos leva a pressupor que, em decorrência disso, acaba assumindo a autoria do furto cometido junto com o garoto, entregando-se à polícia. Bruno rende-se.
A cena final é a dor do arrependimento de quem finalmente se conecta com a própria solidão. Seu choro pede perdão à Sonia e o abraço é a própria confissão de quanto ainda precisam um do outro.
Obs Tenho análise de outros filmes no site psiquecinema ou página do facebookcom/psiquecinema . Abraço a todos!!.
A Promessa
4.1 28[spoiler][/spoiler]Sou psiquiatra e adoro analisar filmes. Se alguém se interessar por esse tipo de análise, aí vai:
O filme, na personagem do jovem Igor, nos mostra como cada indivíduo é único e surpreendente ao seguir o chamado da própria alma.
Segundo Jung, “como o corpo tem sua evolução, de cujas diferentes etapas ainda traz vestígios nítidos, assim também a psique”.
De modo simplificado, o desenvolvimento da psique, mais especificamente da consciência, ocorre da seguinte forma:
Quando a criança nasce (fase urobórica), está num estado difuso e indiferenciado com o meio ambiente e com a psique da mãe, de onde ocorrerá o surgimento de sua própria consciência, por volta dos 2 anos de idade e, a partir daí, o seu desenvolvimento. A fase seguinte é a matriarcal (relativa ao arquétipo materno - não necessária e diretamente dependente da mãe pessoal, mas da maternagem). Durante tal período, o desenvolvimento da consciência vai se dando através do carinho, amor, sustentação, acolhimento; enfim, do suprimento das necessidades básicas de suporte à vida física e psíquica. Na fase patriarcal que se segue, (relativa ao arquétipo paterno), a consciência caminha em direção à aquisição da socialização, conceitos morais, normas, leis, regras, hierarquização, disciplina, auto-controle e abstração. Em seguida, na fase da alteridade (referida aos arquétipos da anima e animus), o amadurecimento da consciência atinge a possibilidade de abranger o outro e passa a se definir através dessa dialética. Uma última etapa, dita cósmica, entende que a existência enquanto individualidade e o mundo externo, antes vistos em separado, estão envolvidos numa dimensão única.
Há poucas figuras femininas na película e nada sabemos a respeito da mãe de Igor, da presença de outra figura com papel de mãe que a tenha substituído ou da vivência matriarcal do garoto como um todo. O pai se relaciona com uma moça de nome Maria que não parece se apresentar como uma figura de mãe. No entanto é ela quem intervém numa situação importante de agressividade física do pai contra o ele. Igor é “salvo” por uma mulher.
Desde o início do filme, Igor surge imerso no mundo do pai e suas regras, valores, ordens e comandos. Com a obediência fria e distante de alguém que nunca se questionou sobre seus atos, segue o pai incondicionalmente. Num determinado momento, chega a ganhar dele um anel, como recompensa por tal fidelidade, símbolo do pacto de união entre eles.
No entanto, os valores e atitudes do pai, repetidos pelo filho, tirando proveito das dificuldades de outros seres humanos, são obviamente questionáveis. O filme contém uma importante crítica social e uma denúncia de desigualdade, exclusão e marginalização das pessoas, presentes no mundo contemporâneo.
Voltando à questão psicológica, que é o foco desse texto, acompanhamos a morte de Amidou, um desses imigrantes excluídos e explorados pelo pai do adolescente, ocorrida num acidente decorrente dessa condição precária de vida a que é submetido por Roger. Após Amidou pedir a Igor que cuide de sua esposa e filho, na iminência de sua morte, precipita-se no rapaz um sentimento empático que se coagula num novo valor, nascido em si mesmo e não imposto pelo pai. A cena impactante e que é um divisor de águas no filme, é aquela onde o pai se recusa a ajudar o filho a fazer um aperto circular com o cinto, ao redor da perna do homem que sangra. A iniciativa de socorrer o imigrante foi de Igor que parece tentar estreitar o círculo ou “anel” de união com seu pai, a fim de, com o mesmo gesto, inconscientemente selar o modo de vida e a concordância de sentimentos entre eles. Sem tal ajuda, no entanto, e escancarando o contraste entre suas decisões, o pai desata o laço, mata a inocência e dá espaço para o nascimento, em Igor, de uma nova moral e conduta.
Além disso, é possível que, através da promessa em cuidar e ajudar a mulher imigrante e seu bebê, tenha emergido no jovem o espelhamento do feminino que nutre e acolhe. Seria possível, desta forma, que estivesse havendo uma chance de Igor re(-)conhecer uma vivência materna que não sabemos como se deu em sua vida, mas que ele decide apoiar e tentar “salvar”. Como citado anteriormente, a psique evolui trazendo vestígios do que já foi vivido e Igor, obviamente, não foge à regra. Possivelmente há uma maternidade que necessita ser resgatada, elaborada e integrada à sua consciência e fazer parte de seu todo para acompanhá-lo no desenvolvimento da fase patriarcal em que vive.
Igor é um adolescente que se vê obrigado a fazer uma opção que, dentro do esperado para esse momento do desenvolvimento do indivíduo, pode exigir um distanciamento das figuras parentais em busca do próprio caminho e seus pressupostos. São comuns esses momentos de conflito, onde a escolha que um indivíduo faz para dar sentido à sua vida, pode permitir e facilitar sua individuação em direção a tornar-se pleno. Igor opta pelo rompimento com a verdade do pai em prol de sua própria ética. Deve assumir o preço das consequências inerentes ao caminho da maturidade que a clareza de sua nova consciência agora lhe permite enxergar.
A película traz também o questionamento e a reflexão sobre como as aparentes diferenças de cor, raça, cultura, religião e condição sócio-econômica existentes entre nós é ilusória e passível de ser desfeita e ultrapassada através da percepção que somos todos frutos de uma semelhante e inseparável humanidade, como Igor parece ter experimentado em seu íntimo.
Obs Tenho análise de outros filmes no site psiquecinema ou página do facebookcom/psiquecinema . Abraço a todos!!.
Meu Rei
3.9 136[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e fiz esta análise psicológica do filme, para quem gostar...
O filme todo é o caminho árduo de um relacionamento patológico onde vislumbramos picos e vales, voos de alegria que não se sustentam e descidas íngremes dolorosas.
A abertura do filme nos coloca num pico nevado junto com Tony prestes a se lançar de esquis num longo declive. Sua expressão parece carregar o ápice da angústia de quem busca coragem para se libertar e voar. Entretanto, a personagem não alça voo e se acidenta.
Na sequência, acompanhamos Tony contar o acidente à psicóloga da clínica de reabilitação onde permanecerá em tratamento. Há um tom de fatalidade na maneira como enxerga o ocorrido, próprio de quem desconhece os símbolos enviados pelo inconsciente: “Os esquis se cruzaram e eu saí voando, foi isso.” Tony não se dá conta do contexto ou da configuração de sua vida onde o acidente se insere.
Simbolicamente, num acidente, a pessoa não é apenas vítima mas também um autor inconsciente do ocorrido, cujas motivações precisam ser percebidas e clareadas. Um acidente questiona de forma súbita o modo como o indivíduo vem vivendo. Trata-se uma ruptura em sua vida e, como tal, precisa ser analisada. Geralmente escancara uma problemática de maneira exagerada, incisiva e extremamente dolorosa.
No diálogo com a psicóloga, e de maneira ricamente pertinente, a personagem é apresentada à simbólica da parte do corpo que foi lesionada, no caso, seu ligamento “cruzado” do joelho. Retomando tal simbologia, dizemos que a articulação do joelho não só nos permite caminhar como também recuar ou avançar. A articulação do joelho é considerada uma das mais complexas do organismo, assim como a decisão do caminho a ser tomado diante do “cruzamento” de um impasse. Além disso, o joelho deve equilibrar simultaneamente duas funções importantes. Ao mesmo tempo em que precisa ter estabilidade suficiente para suportar as demandas do peso do corpo, precisa possuir também um alto grau de flexibilidade e de liberdade de movimento para absorver e transmitir as forças que passam ele. Sendo assim, numa leitura simbólica, seu funcionamento adequado indica a possibilidade do indivíduo ser firme e livre simultaneamente. A lesão do joelho de Tony revela as fragilidades pelas quais vem passando, questionando sua sustentação frente à necessidade de avançar rumo à sua liberdade.
A partir daqui, aproveitarei um pequeno trecho do Mito de Narciso para ir adiante na análise do filme.
Segundo Mircea Eliade, as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função que é a de revelar as mais secretas modalidades do ser.
Se nos detivermos nas figuras mitológicas de Eco e Narciso presentes no mito de Narciso e, particularmente na forma como se dá a interação entre eles, podemos perceber essa mesma dinâmica ilustrada no filme e em relacionamentos abusivos, de dependência e alto grau de sofrimento, percebidos com frequência à nossa volta.
Não vou descrever o mito na íntegra, que pode facilmente ser encontrado e lido em outras fontes. No entanto gostaria de dizer, em linhas muito gerais, quem é Narciso, quem é Eco e relacionamento entre eles.
Narciso
Narciso é descrito no mito como aquele rapaz de extrema beleza que, caso se deparasse com sua própria imagem (como ocorreu quando se viu refletido numa fonte) se apaixonaria por ela e morreria.
Narciso representa as características de personalidade dos indivíduos auto-centrados, donos da ação, que são o foco das atenções e que inovam. Não há dificuldade em percebermos tais traços em Georgio, em cenas de egoísmo, independência, manipulação e sedução. Ele é um “Rei”. Além disso estess indivíduos sentem-se atraídos por pessoas que olham pouco para si mesmas e que renunciaram a uma parte do seu brilho.
Eco
Eco é uma ninfa das montanhas que é designada por Zeus (senhor do Olimpo) para distrair Hera (sua esposa) com sua tagarelice, enquanto se envolve com outras mulheres. Hera descobre que esta ninfa a ocupa com suas falas e histórias excessivas e a pune, condenando-a a reproduzir apenas as últimas palavras ditas pelo outro. Desta forma, Eco se torna dependente do que o outro diz e deixa de ter voz própria.
Como traços de personalidade vamos identificar no indivíduo ecoista uma falta de acesso ao diálogo e ao silêncio, só podendo ecoar o outro. Grudado nele, possui excessiva dependência de amor que é sempre bastante idealizado e é de onde tenta obter reconhecimento. A fala sem medida visa capturar o outro, numa tentativa de ser ouvida naquilo que não consegue dizer a si própria. Segundo Montellano coloca-se sempre à disposição do outro, não consegue expressar seus sentimentos, especialmente a raiva, e vive um grande sentimento de culpa. É muito crítica e exigente, mas se mostra tolerante e humilde. Tony é essa mulher que se valoriza pouco, é entregue, vulnerável, passiva e não possui a proteção necessária que lhe assegure espaço para construção da sua individualidade e do seu feminino (lembrando que no início do filme Tony acredita ter a “vagina larga”).
O relacionamento entre Narciso e Eco
Eco segue Narciso pelos bosques e se apaixona. Ao ser rejeitada por Narciso Eco envergonha-se, esconde-se, deixa de se alimentar e se retira para as montanhas, definhando até a morte. Narciso, por sua vez, apaixona-se por sua imagem, pensando que é outro e também num desespero crescente de tentar alcançar esta imagem chega à morte. No lugar de sua morte nasce narciso, a flor branca com o centro amarelo, que, como o próprio nome diz, vem de narkos, o que entorpece, e que pode ser visto como símbolo da paralisação do processo de desenvolvimento dos dois jovens.
Todos conhecemos relações onde um é o centro e o outro gira em torno deste centro, como um satélite em torno do planeta. O filme evidencia essa dinâmica, onde um só olha para o outro que só olha para si mesmo e tais olhares nunca se cruzam. Percebe-se a paralisação do desenvolvimento psicológico dos dois personagens, evidenciados pelos abusivos e dolorosos e infindáveis ciclos de aproximação e afastamento.
Para finalizar, podemos destacar alguns dos desenvolvimentos psíquicos possíveis e desejáveis à estas dinâmicas de personalidade:
Aos narcisistas, que amam sua imagem e são insensíveis ao outro, cabe a tarefa de buscar o seu eu mais profundo ocultado por dores e carências primitivas. Poderá, assim, reconhecer-se mais genuinamente, realizar sua essência de se amar e também poder amar o outro, deixando de ficar fechado em si mesmo.
Aos ecoistas, cabe abrir o canal da voz a fim de se expressar e passar a cuidar de si próprio, reconstruindo a própria estima e os seus limites. Cabe também ecoar suas qualidades, ressoar os espaços onde há vida a ser descoberta, buscando sempre a liberdade e o novo.
Analisei mais filmes que estão no site psiquecinema ou página do face. Abraço a todos!!
Ninguém Pode Saber
4.3 228[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e adoro fazer análise psicológica de filmes. Quem se interessar, segue o texto:
Se transformarmos o nome do filme numa questão: “Por que ninguém pode saber?” a resposta vai surgindo ao longo da história e diz respeito à uma relação de irmandade que luta para não ser desfeita. Este laço afetivo, amarrado por uma calada resiliência, conecta todo o filme e une os fios emaranhados de abandono e solidão da vida de seus personagens.
É gritante e escancarado o despreparo de Keiko em ser mãe. Apesar de oferecer carinho e ternura aos filhos quando está com eles, percebemos o quanto é essencial e primitiva sua própria necessidade por afeto. Tenta suprí-la através de um relacionamento duradouro mas seus envolvimentos não se sustentam e Keiko gera quatro filhos com diferentes homens. Sua carência é vital e egoísta. Busca amor para se constituir como pessoa, mas o faz se ausentando e privando os filhos da maternidade que não é capaz de exercer. É tão filha quanto eles e sua infantilidade assume traços de crueldade quando decide abandoná-los.
Pais e mães nem sempre são capazes de exercer papéis estruturantes. Muitos ainda sofrem com seus complexos maternos e paternos não elaborados que serão inconscientemente transferidos aos filhos. Keiko ainda busca uma proteção parental em seus relacionamentos que deveriam se de alteridade, o que priva seus filhos de terem pai, visto que seus romances fracassam, e mãe, uma vez que ainda não pôde deixar seu papel filial.
Enquanto a ausência de Keiko ainda é recente, as quatro crianças vão se mantendo física e emocionalmente nutridas pela expectativa de sua volta e pelo cumprimento de incumbências impostas ao filho mais velho de 12 anos. Akira exerce tarefas e papéis de mãe e pai, amadurecendo precocemente, perdendo a possibilidade da adolescência e não recebendo o amparo que lhe é direito. Um filho de quem são exigidas tais responsabilidades e que sofre demandas displicentemente abusivas pode sentir revolta e indignação, não necessariamente expressas verbalmente. Akira só manifesta seu desacordo com a atitude da mãe, numa ocasião, em que a chama de egoísta. De qualquer forma, seus tristes e longos silêncios denunciam seu mais profundo desamparo. Sabe-se que crianças abandonadas tem ou terão dificuldades nos relacionamentos sociais, maior risco de depressão e baixa autoestima.
Percebemos também em Akira, a constelação do arquétipo do herói à medida em que as dificuldades vão aumentando. O herói enquanto arquétipo se constela em nossas vidas especialmente em momentos tempestuosos e árduos. O termo constelação diz respeito à ativação de padrões de reação que, no caso do herói, se referem à capacidade de suportar adversidades, frustrações e tolerar as experiências de enfrentamento. O herói é a metáfora do ser resiliente, aquele capaz de adaptação ou evolução em momentos de dificuldade. Akira sustenta a dúvida do retorno da mãe, a frustração da sua demora e a angústia da certeza de seu abandono. Acolhe os irmãos, trata da rotina da casa, consegue alimentos e paga as contas. As adversidades precisam ser vencidas e um herói silencioso certamente compõe Akira na superação dos obstáculos que se sucedem.
Há, no entanto, algo de extrema importância que justifica o ocultamento da difícil situação pela qual passa o garoto e seus irmãos mais novos. Akira não quer correr o risco de viverem separados uns dos outros em troca de acolhimento. É essa fraternidade que justifica o enfrentamento das adversidades, conferindo-lhe sentido.
Enfim, estamos diante do arquétipo do irmão que, como todos, possui dois polos ou facetas: o polo positivo que, neste caso, é o da cooperatividade e o negativo ou da rivalidade. É através desse tipo de relação fraterna que se desenvolve a capacidade de estabelecer conexões simétricas ao longo da vida. O irmão é o outro destinado, não escolhido e permanente. Através dele experimentamos a intimidade e a possibilidade da construção de histórias comuns, horizontais, que guardam memórias e são testemunhas de passagens da vida. É com o irmão que dividimos nossos anos de formação.
O filme é a própria relação entre irmãos e o desejo de que esta não se dissolva em função da ausência da mãe. É evidente que os personagens do filme vivem a irmandade em termos de união, apoio e, inconscientemente, de sobrevivência. É a fraternidade como suas únicas experiências de relação, construção de intimidade e história de vida. A derradeira possibilidade de existência de memória e troca de afeto na vida dos personagens.
Tenho outros filmes analisados no meu site psiquecinema e na página do face. Abraço a todos!
A Espera
3.7 59 Assista Agora[spoiler][/spoiler] Sou pasiquiatra e analista junguiana e adoro fazer análise de filmes. Quem se interessar, esse é o texto:
O luto é um processo de cicatrização lento e doloroso. Há um imenso vazio, perdem-se raízes e o sentimento de separação parece sem fim.
Ann, a protagonista, vive o luto da perda do filho. O filme se passa numa ilha cujo isolamento físico diz respeito à mesma solidão psíquica que se passa com a mãe. Visualizamos, logo no início, Ann numa casa com espaços amplos que parece estagnada e sem vida. Não é possível olhar a si mesma nessa nova realidade de falta, de modo que os espelhos são cobertos, as portas e janelas são fechadas e a luz do sol só existe do lado de fora.
Neste lugar, duas esperas se sobrepõem. A primeira é a de uma mãe em luto pela perda do filho que espera conseguir viver, apesar de sua partida. A outra é a da namorada que vai até a casa da mãe do rapaz, sem saber que ele havia morrido, e espera por sua chegada. A espera pela partida da dor e a espera pela chegada da alegria são dois processos de ausência que vão se dando durante a convivência entre elas. Anna parece negar a perda do filho, tentando aumentar seu tempo com ele através da presença de sua namorada. Já Jeanne, inconscientemente parece querer prolongar o tempo em que acredita que o namorado retornará, também evitando a certeza da perda. É comum, num primeiro momento do luto, a defesa contra a dor ocorrer através da negação. Acaba sendo uma maneira de não entrar em contato com a realidade, de alguma forma ainda inaceitável. O tempo de duração desse período não é fixo, dependendo dos fatos e diferenças entre as pessoas.
Segundo Kubbler-Ross, podemos distinguir algumas fases distintas durante o processo de luto:
Negação
Momento em que parece impossível a perda e há uma incapacidade em acreditar. A dor é tão grande que é necessária uma fuga da realidade.
Raiva
Surge depois da negação. Há o pensamento de “ por que comigo?”. Surgem sentimentos de inveja e raiva e existe dificuldade em se acreditar em qualquer palavra de conforto que acaba soando como falsa.
Negociação
Surge quando o individuo começa a se aproximar da hipótese da perda e tenta negociar, na maioria das vezes com o divino e através de promessas ou sacrifícios, a aceitação do fato.
Depressão
Ocorre quando o individuo toma consciência de que a perda é inevitável e não há como escapar disso. Sente o vazio deixado pela pessoa, encarando que nunca mais irá vê-la e partirá com ela também, os sonhos e projetos traçados anteriormente.
Aceitação
É a ultima fase do luto. Irá se dar dependendo muito da capacidade da pessoa em mudar a perspectiva a respeito da realidade inevitável. O espaço vazio deixado pela perda é preenchido e a mesma é aceita sem desespero ou negação. Algumas pessoas levam décadas de vida e outras nunca conseguem aceitar com serenidade a perda. Isso ocorre principalmente no caso de perda de um filho.
Voltando ao filme, vale apontar que há uma correspondência de campo simbólico que se dá dentro e fora da psique. No mundo externo, esse encontro e espera ocorrem durante a comemoração da Páscoa, tempo de ressureição. Refletido no mundo interno vive-se o desejo do ressurgimento daquele que não está mais presente.
Durante esse período juntas, podemos nos perguntar se Ann está sendo egoísta ao mentir para Jeanne e “usá-la” para minimizar a falta que sente do filho, apesar de não parecer fazer isso intencionalmente. Logo de imediato tendemos a olhar os eventos da perspectiva de Ann, avaliando-os e julgando-os a partir daí. Podemos, no entanto, observá-los através da perspectiva de Jeanne que também decide e toma atitudes, mesmo que inconscientemente. Conforme aumenta o tempo que passam juntas, começamos a ficar intrigados com a atitude de Jeanne que parece “saber” que o namorado não retornará mais e vive esse período de contato com Anna evitando a verdade de sua morte, ganhando a chance de se preparar para tal descoberta. Na verdade, Ann ganha tempo para esquecer e Jeanne, para descobrir. Enquanto esperam, vivem juntas a negação necessária para elaborar a dor. Há uma complementariedade psicológica entre elas: a desesperada consciência da mãe fazendo um contraponto à esperançosa inconsciência da namorada. Entre o (des)espero e a espera(nça), a espera é o tempo do balanço, o meio do caminho entre a dor que parte e a dor que chega.
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Abraço a todos!
O Quarto de Jack
4.4 3,3K Assista Agora[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e adoro analisar filmes. Se alguém se interessar por esse tipo de análise, aí vai:
Dualidade prisão-liberdade
O filme pode ser dividido em dois momentos: o primeiro se passa na claustrofobia do quarto onde permanecemos angustiados junto com Jack e sua mãe por cerca de 40 minutos. O segundo momento consiste no alívio da liberdade externa conquistada mas que, muito pertinente e bem retratada psicologicamente, se dá concomitante à uma sofrida busca da liberdade interna.
Imaginação e fantasia
Quando o mundo é um quarto, a fantasia é a única saída. É dessa forma que Joy cuida de Jack na condição fisicamente cruel e restrita que lhes é imposta. Há, em nossa visão ocidental unilateral, uma valorização do entendimento lógico e racional em detrimento do modo imaginativo e fantasioso de enxergar o mundo. Um exemplo é uma expressão algo pejorativa: “tudo isso é fruto da sua imaginação”, que desqualifica o que foi apreendido através dessa possibilidade. Segundo Jung nossa psique possui duas formas de funcionamento: o dirigido e o de fantasia. O tipo dirigido é a linguagem do intelecto, baseado nos conceitos e na lógica. O tipo fantasia, por sua vez, emprega imagens, é metafórico e simbólico e está mais relacionado às camadas profundas da nossa psique. Para Jung, não há motivo para a fantasia ameaçar nossa consciência e lógica; pelo contrário, há um beneficio se as duas perspectivas puderem coexistir. A mãe de Jack estimula e tenta, inclusive, usar a fantasia para complementar os conceitos lógicos que o garoto adquiriria se tivesse um contato habitual com o mundo. Isso, de certa forma, o distancia das privações a que está submetido. A imaginação é, principalmente para a criança, um espaço de liberdade e de movimento em direção ao possível, quer realizável ou não. Um outro ponto a ser notado é que o aspecto nutritivo e protetor do arquétipo materno constelado em Joy permite a repressão de sua angústia e a manutenção da coerência dessa escolha. Jack é quem dá sentido e permite a sobrevivência da mãe. Como disse Jung: “O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportável”.
O dente e seu simbolismo
Pensemos a respeito da cena em que Jack recebe o dente perdido de sua mãe. O dente simboliza, dentre outras coisas, a possibilidade de ser agressivo, rasgar, cortar e consequentemente se defender. Desta forma, Joy entrega ao filho um elemento interno precioso que é sua agressividade, impedida de ser expressa naquele contexto, em prol da sobrevivência de ambos. Jack o carrega durante a imposta busca pela liberdade, dentro da própria boca, num símbolo de incorporar (fazer pertencer ao seu próprio corpo) a raiva da mãe. Outro ponto interessante é o momento e a situação em que o garoto decide revelar o dente. Mostra-o à policial delegando a ela, simbolicamente, tal agressividade. Permanece, no entanto, possuindo o dente da mãe junto a si possivelmente associando a ele a força e vida que ela lhe transmitiu.
O rapto de Coré no mito, sofrimento e transformação
Como atentou Mircea Eliade, as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser. Quero enfatizar que vou pinçar uma passagem bastante específica do mito grego de Coré-Perséfone a fim de refletir sobre a questão da inocência, rapto, descida à escuridão e transformação. A passagem do mito é:
Num certo dia de outono, Coré colhia inocentemente narcisos quando repentinamente é raptada e levada para as profundezas, onde irá casar-se com o grande deus Hades, o irmão de Zeus e senhor do reino dos mortos. Uma aura de mistério permeia a descida da jovem ao submundo e sabe-se apenas que, quando retorna, ela volta tão diferente que ganha outro nome: Perséfone.
Obviamente o filme retrata circunstâncias extremamente cruéis e obviamente não pretendo justificá-las de maneira alguma. Entretanto, a mitologia nos oferece símbolos que nos possibilitam refletir sobre diversas condições humanas. Na simbologia, o subterrâneo é o local das ricas jazidas, o lugar das metamorfoses, das passagens da morte à vida e das transformações. Coré carrega a pureza e a inocência que precisam ser modificadas dando lugar à maturidade, independência e autonomia.
Retornando ao filme, mais próximo do final, há uma discussão entre Joy e sua mãe onde a protagonista lamenta sua subordinação às regras da mãe e sua inocência em atender à solicitação do estranho que acaba sequestrando-a. Aqui lembramos a ingenuidade e falta de autonomia de Coré como tratamos anteriormente.
Obviamente Joy sai do quarto e retorna ao mundo amadurecida, transformada e lapidada numa mulher, pelo sofrimento vivido. Mas é bastante importante atentarmos para o fato de que apesar de Joy ter retomado sua liberdade externa, internamente isso ainda não ocorreu. A personagem se revolta, deprime e se recolhe tentando, com o suicídio, matar a pessoa em que se transformou. Há de ocorrer um luto, elaboração e integração do sofrimento, um renascimento, para que a liberdade interior ressurja no símbolo de Perséfone.
Para Jack, a liberdade se apresenta tão grande e repentina que também é difícil absorvê-la num golpe. O garoto se comporta de forma reticente e esquiva até conseguir deixar de ficar ofuscado pela luz da vida. Como no mito da Caverna de Platão, quando o que se vê não são mais os reflexos mas a luz em si, há que se dar o devido tempo para se habituar à essa nova verdade. Jack precisa, inclusive, revisitar o quarto e despedir-se num processo de luto, redimensionando o que foi vivido, agora no seu novo mundo de portas abertas.
Obs Tenho análise de outros filmes no site psiquecinema ou página do face. Abraço a todos!!.
O Homem Irracional
3.5 555 Assista Agora[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista jungiana e adoro fazer análise de filmes.. Se gostar de texto desse tipo, aí vai:
O filme trata da falta de sentido na vida de um professor de filosofia. Sem entusiasmo, deprimido, entregando-se aos excessos do álcool, não encontra vontade ou interesse no mundo de um modo geral.
Há um conceito na psicologia analítica que Jung chamou de energia psíquica. Trata-se um elemento próprio da psique, um tipo de “seiva vital”, que confere motivação e significado para a realização de um trabalho ou ideia. Na depressão, por exemplo, onde não se consegue fazer nada, não há energia psíquica disponível na consciência para ser convertida em desejo ou vontade para realizar uma atividade. Este é o caso do protagonista no início do filme.
O que teria ocorrido com essa energia?
Segundo Jung, a energia psíquica nunca se perde mas muda sua configuração. Grande parte dela, que deveria estar na consciência, fica presa no inconsciente. Há muitas situações que podem desencadear este aprisionamento de energia como, por exemplo, perdas, frustrações constantes, um ideal não realizado, dentre outras.
Abe Lucas, professor de filosofia, vive um momento de extrema falta de significado em sua vida. Questiona, inclusive, a filosofia como um todo: uma “masturbação mental”, em suas palavras. Aponta vários filósofos existencialistas em algumas passagens de suas obras onde declaram que a existência humana é feita de escolhas que irão compor seu sentido. Entretanto, Abe não sabe explicar o motivo de não conseguir fazer as escolhas que possam voltar a motivá-lo. Vive um grande sentimento de impotência cujas raízes inconscientes ele mesmo não questiona, de modo que a energia psíquica permanece retida. Na concepção da psicologia analítica, existindo a possibilidade de contato com o inconsciente através dos símbolos que surgem em sonhos e fantasias, estes poderiam ser explorados permitindo o entendimento, integração e ampliação da consciência. A energia psíquica voltaria, assim, a fluir entre o sistema psíquico formado pelo inconsciente e o consciente, retomando a saúde psíquica.
Quando não há uma dialética entre o consciente e o inconsciente, pode ocorrer da energia recolhida no inconsciente “ativar” conteúdos adormecidos (complexos autônomos). Estes são capazes agora, visto que passaram a ter um maior potencial energético, de irromper na consciência, sob a forma de novos projetos ou ideias que, no entanto, irão dominar o indivíduo. É o que ocorre com Abe que, após ouvir uma conversa sobre um juiz de índole duvidosa, se sente decidido a agir e matá-lo, o que o traz “de volta à vida”. Sem fazer qualquer tipo de reflexão sobre qual motivo simbólico estaria envolvido na recuperação de sua vontade de viver, torna-se destinado a colocar suas ideias em prática.
Novas ideias e vontades são um chamado que a vida faz à um indivíduo. Mas é importante perceber que tal chamado é um convite à reflexão dado que carrega símbolos tentando se fazer conhecidos ao indivíduo. Possivelmente há nesses símbolos algo que tenta harmonizar a consciência que, em todos nós, tende a se desenvolver numa única direção. Poderíamos levantar a hipótese que Abe sentia falta de um valor prático em sua vida ou de oferecer algo significativo de si ao mundo. Queria fazer diferença. Faltava-lhe perceber seu próprio valor e o quanto era genuína e relevante sua existência. Se isto fosse conscientizado e trabalhado, não estaria a mercê de algo novo tão intenso que dirigisse sua vida por completo.
Assim, podemos supor que o professor tenha sido tomado por um conteúdo inconsciente que ganhou energia suficiente para alcançar a consciência e, de forma autônoma, veio compensar o senso de incompetência, falta de valor e inutilidade que sentia até então. O personagem é dominado por elementos sombrios carregados de energia psíquica que, consequentemente lhe devolvem o desejo e o significado para suas ações e planos. Torna-se capaz, potente, vigoroso e pleno. Abe está sob a influência de um complexo sombriamente amoral, sendo incapaz de questioná-lo. Sem poder entender o símbolo de suas novas motivações, deixa-se atuar e ser dirigido por elas. Abe perde a crítica de suas decisões e, de modo ainda mais grave, o contato com as convenções e valores morais do mundo onde se insere.
Pelo caminho da inconsciência, Abe Lucas precisa da morte para dar sentido à sua vida, acreditando dignificar o mundo através de um assassinato. É interessante observar, de forma ampla e bastante ilustrativa no filme, como os mecanismos compensatórios entre o consciente e o inconsciente vão se dar através das polaridades, no caso, “vida-morte” e “moralmente evoluído- criminosamente amoral”.
Concluindo, como já nos disse Jung: “até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino."
Se tiver interesse em outras analises, estou no youtube, site psique cinema e página no face. Abraço a todos!!
Um Homem Chamado Ove
4.2 383 Assista Agora[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e adoro analisar filmes.. Quem gostar desse tipo de texto, aí está:
Persona
Durante todo o filme acompanhamos o jeito de ser de Ove, revelado na forma como se relaciona com o mundo. É um senhor bastante rígido, metódico, frio, que não se incomoda em desagradar as pessoas que, segundo sua visão, fazem tudo errado. Essa é a imagem com a qual Ove se relaciona com os outros, com os valores coletivos e normas culturais. Na psicologia analítica, damos a isso o nome de Persona (sua “personalidade exterior”).
Há um outro tipo de relacionamento importante que diz respeito à maneira pela qual uma pessoa se relaciona com seu mundo interior (ou “personalidade interior”). É a forma como as pessoas tratam a si mesmas. Por exemplo, a disposição ou atitude que governa nossas relações com o mundo interior pode ser acolhedora e calorosa ou hostil e hipercrítica. Ainda falando sobre a “personalidade interior”, mais especificamente sobre seus conteúdos, Jung propõe que ambos os sexos tem componentes e qualidades masculinas e femininas presentes nessa “personalidade”. Anima (palavra que significa alma) foi o nome dado à “personalidade interior” do homem e Animus (cujo significado é espírito), à da mulher.
É importante destacar que os termos alma e espírito não têm conotação religiosa.
Não tratarei, neste post, da mulher e seu correspondente Animus e, sim, da Anima que é o conceito retratado no filme.
Anima
A Anima é a essência interior feminina e inconsciente da psique do homem que lhe confere flexibilidade, passividade, a possibilidade de ser sensível e acolhedor. É sempre importante que exista uma dialética entre a consciência do homem e tais conteúdos inconscientes, pois sabe-se que o consciente e o inconsciente “funcionam” de maneira compensatória. A existência de tal diálogo evita que, caso a personalidade exterior do homem se torne unilateralmente dura e racional, elementos inconscientes sejam ativados fazendo com que o homem fique à mercê de sua Anima (essência interior feminina). Esta passa a “dominar” sua consciência e o torna sensível, irritável, temperamental e vaidoso (uma caricatura do feminino que estava aprisionado e agora “toma conta” da consciência). Num grau ainda mais grave, quando o homem torna-se totalmente distante de sua Anima, que está extremamente suprimida, pode haver diminuição da vitalidade e flexibilidade e a “personalidade externa” pode chegar aos extremos da rigidez, dureza, estereotipia, unilateralidade fanática e tendenciosidade. Esse é o caso de Ove que não mantinha qualquer dialética com sua Anima e que, como veremos adiante, acaba projetando-a no mundo externo.
Persona e Anima
De forma simplificada e retomando o que foi dito acima, há na psique uma relação de compensação entre a Persona (consciente) e a Anima (inconsciente). De certo modo, uma “personalidade interna” (Anima) apresenta aquelas propriedades que faltam à “personalidade externa” (Persona). Assim, quanto mais viril é a Persona, mais suprimidos e inconscientes são os traços femininos, ou a Anima, para um homem. Esse é o caso do protagonista cuja expressão externa de sua pessoa é a do tirano cruel, insensível, obstinado, duro e inacessível, atormentado por pressentimentos sombrios. Assim, um homem muito masculino na Persona terá que ser igualmente feminino na Anima, possuidora de seus aspectos de receptividade, sensibilidade e capacidade de estabelecer relações. Como foi dito anteriormente, Ove não entra em contato com sua Anima, que permanece inconsciente, e que desta forma, estará projetada na mulher por quem se sente atraído. Geralmente isso se dá através de uma paixão por uma mulher que tenha características opostas e complementares ao seu jeito de estar no mundo e que retrate sua alma: no caso de Ove, uma mulher ousada, com espírito de aventura e que foge aos padrões convencionais. É essa a Persona da moça por quem Ove se apaixona, com quem se casa e que lhe confere um sentimento de completude. Entretanto, Ove continua não estabelecendo contato e diálogo com sua Anima que permanece sendo vivida através da projeção carregada por Sonja. Percebemos, assim, o porquê do protagonista, após a morte da esposa “perder” sua sensibilidade (que estava projetada na mulher e ele não tinha se apropriado) e viver como apresentado no início do filme: um senhor amargurado, rabugento e inflexível.
Com o desenrolar da história, vamos perceber um segundo momento na vida de Ove que passa, muito a contragosto, a se relacionar com outra figura feminina. Trata-se de Parvaneh, uma imigrante iraniana grávida, mãe de duas crianças, que se muda para o mesmo condomínio. É uma figura maternal, afetiva, que tolera as intransigências e a falta de sensibilidade de Ove, insistindo em se relacionar com ele (como se enxergasse a vida de sentimentos que ele mesmo não sabe que possui). Mesmo com resistência, o protagonista é colocado em contato com as filhas de Parvaneh, o que o obriga a se relacionar com o novo, repleto de potencial (símbolos da criança) e a compartilhar fantasias. Um dia, por exemplo, as garotas solicitam que Ove ”fale com a voz de Urso”, ao ler um livro infantil para elas; uma experiência rica e criativa que, aos poucos, vai permeando sua dureza. Vamos notando que o protagonista vai estabelecendo algumas trocas com Parvaneh, recebendo os doces que ela lhe oferece (adoçando-o) e concordando em ensiná-la a dirigir. Dessa forma, vai trazendo, apesar do medo e resistência, sua essência interior feminina para o mundo, agora através de Parvaneh. Note-se que isso novamente ocorre sem diálogo, conscientização e integração dos aspectos de sua Anima que, apesar de experimentados e trazidos para a vida, permaneceram inconscientes a Ove até a sua morte.
Enfim, generalizando o exposto acima, vemos que, com todos nós, a guerra que se trava com o outro exterior é a guerra que acontece no mundo interior. Dessa forma, é importante, para fins de desenvolvimento psicológico, que o indivíduo possa se engajar num processo dialético com seu ego, centro de sua consciência. Isso permite que se reconheçam as projeções e surja a possibilidade de expansão do grau de entendimento a respeito de si próprio.
Tenho outros filmes analisados no site psiquecinema e página do face. Abraço a todos!
A Chegada
4.2 3,4K Assista Agora[spoiler][/spoiler] Sou psiquiatra e analista junguiana e aqui vai uma análise psicológica do filme, para quem gostar desse tipo de texto...
Os filmes sobre alienígenas são projeções da psique humana a respeito daquilo que o homem busca, mesmo sem saber, para a sua completude. “A Chegada” gira em torno da necessidade humana fundamental de comunicação, entendimento e contato.
O mundo digital em que vivemos encurtou o tempo e alargou o espaço de nossas comunicações. Hoje podemos falar, ver ou ouvir quem está muito longe, de forma quase imediata. Vivemos on-line e, de fato, não temos dificuldade em nossa comunicação. Por que, então, o filme seria uma projeção da necessidade de contato, visto que interagir nunca esteve tão fácil e tão ao nosso alcance, como hoje? A resposta, a meu ver, diz respeito muito mais à qualidade do que à quantidade de nossas interações. Infelizmente trocamos muitos bites de informação sem alma. Teclamos o tempo todo, enviamos e recebemos dezenas ou centenas de mensagens e imagens, todos os dias, mas apenas algumas são, de fato, significativas. Poucas fazem vibrar o nosso íntimo e nos tocam verdadeiramente. Em outras palavras, não nos relacionamos com nossas fantasias, sonhos e mundo interno, desconhecendo a nós mesmos. Nem tão pouco interagimos de maneira significativa com os outros ou com aquilo que ultrapassa nossa humanidade, o que evidencia, muitas vezes, nossa carência de sentido na vida.
Vale lembrar que o inconsciente tem uma função compensatória em relação à atitude inevitavelmente unilateral de nossa consciência. Nosso mundo consciente, transbordando de contatos superficiais exclusivamente egóicos, parece vir desejando mais profundidade e pessoalidade em nossas trocas. O filme denuncia essa necessidade projetada na película, tanto no âmbito pessoal quanto no coletivo. No modo individual, simbolizada através do desejo da protagonista de se comunicar com a filha falecida e no coletivo, através da ânsia do mundo todo por conexão com o desconhecido alienígena.
Outro aspecto interessante no filme diz respeito à permutabilidade dos tempos passado e futuro. O tempo linear é questionado, visto que podemos entender a narrativa em ambos os sentidos. A história pode fluir e ser compreendida de antes para depois ou vice-versa (como o palíndromo Hannah, nome da filha de Banks). Essa é a imagem circular do tempo. O tempo representado pelo termo Kairós e entendido como um campo e não uma linha.
Kairós é uma palavra de origem grega, que significa "momento certo" ou "oportuno", relativo a uma antiga noção que os gregos tinham do tempo. Essa noção teria surgido a partir de um personagem da mitologia grega. Kairós era filho de Cronos, deus do tempo “cronológico” e das estações do ano e, ao contrário de seu pai, expressava uma ideia não-linear do tempo, impossível de se determinar ou medir. Kairós diz respeito ao momento apropriado único ou à ocasião ideal para a realização ou acontecimento de algo específico.
A película traz as imagens de circularidade como forma de comunicação, questionando nosso paradigma materialista de linearidade, causa-efeito e localidade/separação. Somos levados a refletir sobre os conceitos de simultaneidade, conexões não-locais e relatividade entre tempo e espaço, todos pertencentes a um novo paradigma, onde se insere a física quântica.
O filme também nos permite ponderar sobre a questão do contato entre o indivíduo e o universo, o conhecido e o desconhecido, o consciente e o inconsciente. Vemos uma simultaneidade entre o desenvolvimento da comunicação que a protagonista estabelece com os alienígenas e aquela que estabelece com suas imagens íntimas. Há um paralelismo no grau de conhecimento que vai se dando entre Banks e suas profundezas e entre ela e o universal.
Isso levanta a questão: estariam separados o “um” e o “todo”?
Finalizo com um pequeno conto indiano:
“A mãe de Krishna o chama e o repreende por ter comido terra.
Ele explica: - Mas não comi, pode ver minha boca. – Então, abra a boca, diz
a mãe Yassoda ao Deus que havia assumido a forma de criança. E então ela
viu em sua boca o universo inteiro, com os mais distantes pontos dos céus,
os ventos, os relâmpagos e a esfera terrestre com suas montanhas e mares,
e a lua e as estrelas e o próprio espaço e sua vila e ela própria.”
Outras análises tenho o site psiquecinema e página no face, Abraço a todos!!