Se filmes tivessem pedigree, Destacamento Blood teria o seu. Spike Lee é um cineasta que desde o final dos anos 80 construiu uma carreira independente com filmes ácidos e políticos, muitos à frente de seu tempo.
Tarefa árdua para Destacamento ser lançado após Infiltrado na Klan. Não só pela expectativa gerada, mas por ser um projeto ambicioso sob a tutela da Netflix. Além disso, levar quatro veteranos afro-americanos da Guerra do Vietnã (ou a Guerra Americana, como os locais a chamam) de volta ao país em busca dos restos mortais do líder de seu pelotão e de um tesouro escondido é ousado e mistura diversos gêneros. O tom cômico logo me trouxe à mente Clint Eastwood e seu Cowboys no Espaço (2000), no qual uma equipe de astronautas aposentados deve ir ao espaço por serem os únicos a conhecerem o sistema que opera um satélite russo com problemas.
Aqui, Spike Lee conta esse capítulo amargo da história norte-americana com seu viés político de sempre - até contido, apesar das fortes cenas iniciais. Como era de se esperar, ele destaca os nomes e fotos dos soldados negros esquecidos e soterrados, contextualiza os discursos de Martin Luther King Jr., critica a perspectiva que a Guerra do Vietnã tem nos EUA. Os "Bloods" reclamam de filmes mentirosos como Rambo e Braddock. No entanto, o Paul, de Delroy Lindo, é o único que parece convergir para o lado republicano da história. Sua volta ao país é traumática, o ódio e o ressentimento estão à flor da pele, sua missão no país vai além da busca por um tesouro, ao final, é um acerto de contas consigo mesmo e com seu passado. Inclusive, vale destacar a atuação de Lindo, uma das melhores do ano. Ele que sempre trabalhou muito bem com Lee (vide Crooklyn e Clockers) mais uma vez entrega uma atuação que não pode ser ignorada nas premiações do ano que vem.
Destacamento Blood, no original Da 5 Bloods, deveria dizer mais sobre os 5 amigos. Falta uma certa particularidade em alguns membros do grupo, somente Otis e Paul se destacam, os demais dividem muito tempo de tela com personagens secundários (para não dizer terciários) que pouco agregam à narrativa, a exemplo da francesa. Ao final, é um filme difícil de ser absorvido por completo em uma visitada só (as 2h30 nem me parecem demais), aqui já vou além e imagino como uma minissérie poderia ter dado conta de tantas camadas, personagens, histórias, traumas e anos e mais anos de preconceito, injustiças e conflitos raciais que não se resolvem e nem se explicam de uma hora pra outra. Spike Lee, a seu modo, escreve mais um importante capítulo, da história e de sua filmografia.
Creio que uma das melhores coisas que poderia ter acontecido à carreira de Hugh Jackman foi a aposentadoria de Wolverine no excelente Logan. Agora, o carismático ator pode se dedicar inteiramente a papéis mais dramáticos, coisa que antes, sinceramente, não me recordo de nenhum (O Rei do Show e Os Miseráveis exibem outro tipo de veia artística do ator), e não sei até que ponto essa sombra do Wolverine limitava suas escolhas e oportunidades.
Aqui em Má Educação, Jackman já acerta em cheio ao dar nuances a um charmoso e boa pinta Frank Tassone, superintendente de colégios de grande prestígio na escola onde trabalha. No entanto, um escândalo de corrupção (um dos maiores da história dos Estados Unidos) irá ruir toda a imagem que ele ajudara a construir.
Há uma certa burocracia no tema que o diretor Cory Finley dribla bem, ele que havia estreado no insosso Puro Sangue (Thoroughbreds), desta vez, deixa a apatia de lado e nos envolve no dia a dia daquela escola e de seus personagens, da estudante aspirante a jornalista Rachel (Geraldine Viswanathan), que investiga por conta própria os arquivos do colégio, à vice-diretora Pam (Allison Janney), braço-direito de Frank e pivô das falcatruas.
Sem enfeitar muito como fizera em seu trabalho anterior, Finley assume este projeto para a televisão com simplicidade, a força está tanto nos diálogos quanto na ágil montagem. Conforme a história progride, vamos nos indignando com os acontecimentos, torcemos para que a aluna vá ao porão e descubra algo novo, torcemos para que Pam seja desmascarada e torcemos para que o Frank Tassone de Hugh Jackman reapareça (ele sempre rouba a cena). Aliás, sua atuação é tão marcante que não seria exagero vê-lo indicado ao Oscar, ainda mais em uma temporada tão conturbada. Basta que a HBO faça a campanha certa.
Ao final, Má Educação é um filme denúncia acima da média justamente por não subestimar o espectador e por aprofundar seus personagens (note como conhecemos pelo menos um pouco do aspecto familiar de cada um, ao mesmo tempo que compreendemos seus dilemas, do pai desempregado de Rachel ao romance de Frank) quem dera se todos os filmes feitos para a TV fossem assim.
O cinema costuma retratar o luto de várias formas, é uma fase que todo ser humano acaba enfrentando em alguma altura da vida, e Vasil não lida bem com a morte da esposa. Já na primeira cena seu apego extremamente físico com a figura da mulher morta fica evidente: ele pede ao filho para que tire uma foto da mãe no caixão, "já temos muitas fotos dela em casa", diz o filho contrariado. É uma situação estranha, confesso que não sabia se ria ou se achava triste, aos poucos fica evidente que o cômico faz parte da encenação, tal qual o cinema sul-coreano costuma usar bastante, aqui menos espalhafatoso, mas ainda assim nos tirando algumas risadas. Esses risos, no entanto, não tiram a força da relação pai e filho e nem a tornam menos envolvente emocionalmente, a princípio, ambos são bastante distantes e, aos poucos, vão revelando as faíscas e os interesses de cada um: a sequência no hospício é de cortar o coração. O Pai é cinema de transição, a todo instante os personagens vem e vão (como uma metáfora à passagem pelo luto), enquanto o pai vaga cegamente em busca de contato com a esposa no além, o filho mantém sua postura racional, tanto para tentar manter o pai em terra firme quanto para poupar sua família.
Ora ora, temos algo bem empolgante aos fãs do terror de gênero aqui. Estranhos em Casa é um thriller francês de home invasion dirigido por Olivier Abbou que contém um forte discurso social e racial tal qual Corra!, ainda que careça da mesma elegância e sátira que o longa de Jordan Peele emanava tanto na direção quanto em seu texto. Aqui, Paul Diallo, junto de sua esposa e filho, retornam das férias e encontram sua casa dominada pela ex-babá e seu namorado. Irritados com a ineficácia da justiça em reaver sua propriedade, a família vai se deteriorando aos poucos.
Mesmo atirando pra vários lados nos pouco mais de 90 minutos, às vezes sem maiores explicações (como na sequência da boate, ainda que eu a adore) na maioria das vezes o tiro é certeiro. Abbou realiza um exercício de gênero sem medo de se assumir como tal, principalmente ao final, quando questionamos o "eventos baseado em uma história verdadeira", no entanto, a brutalidade e coragem com que aquelas cenas são captadas potencializam a violência e a intolerância de uma sociedade que não se conforma com o êxito do outro, seja por sua cor ou por julgar que suas conquistas não lhe convém.
Vale principalmente pela ação, bem violenta e filmada no capricho. No geral é um filme de ação de trama convencional à la Braddock, que felizmente conta com um dublê por detrás das câmeras, fazendo toda a diferença. Destaque para o plano-sequência de 15 minutos, uau.
PS: Vale sequência com a personagem da Golshifteh Farahani, hein?
Nos últimos anos, o cinema espanhol comercial tem se especializado em thrillers sofisticados, com trama envolvente e reviravoltas surpreendentes. Dos que chegaram à Netflix recentemente temos Um Contratempo e Durante a Tormenta como bons exemplos. Este A Casa, dirigido pelos irmãos Àlex e David Pastor, é mais uma grata surpresa que vem para rechear o catálogo da Netflix, servindo como bom aperitivo para esses dias de quarentena.
Menos perturbador e indigesto que o conterrâneo O Poço - outro longa espanhol que fez sucesso repentino na Netflix -, A Casa tem uma trama bem menos alegórica que se sustenta no exercício de gênero, algo quase hitchcockiano com elementos de Borgman, O Talentoso Ripley e até Parasita - guardadas as devidas proporções.
Na história, Javier Muñoz (Javier Gutiérrez, excelente), é um publicitário que já fez sucesso no ramo mas que atualmente está desempregado e passa por uma crise financeira. Obrigado a deixar o apartamento luxuoso em que vive junto da esposa e do filho e enfurecido após ser rejeitado em várias entrevistas de emprego, Javier se vê tomado por uma obsessão doentia pelo jovem casal que agora vive em seu antigo apartamento e que vive a vida perfeita que outrora lhe pertencia.
Se a princípio as atitudes de Javier são, ao menos, compreensíveis (ora, não deve ser fácil tomar vários "nãos" e se ver despencando de seu status da noite para o dia, por mais white people problems que isso possa parecer), a partir de certo instante, não há como defendê-lo mais, passamos então a acompanhar um protagonista sórdido, sem limites e capaz de tudo para recuperar aquilo que perdera.
Se por um lado o filme perde a força do discurso sobre status social, por outro lado, o stalker Javier é tão bem interpretado por Gutiérrez que passamos a temer por todos aqueles que cruzam seu caminho (bem, nem todos). Ao final, A Casa é apenas um thriller que entretém, a direção sempre precisa, com movimentos de câmera sutis, pode gerar momentos exageradamente confortáveis para o protagonista dar a volta por cima, pelo menos ele está em boas mãos.
É assustador como alguns momentos de O Poço refletem a nossa atual realidade. Na história, acompanhamos dois homens, um em meia idade e outro já mais velho, presos em um andar de uma prisão vertical infindável na qual os de cima comem melhor (são os primeiros a serem servidos de um banquete de sobremesas e pratos variados) e os de baixo vão comendo o que lhes resta. São dois por andar convivendo juntos por um mês, há algumas regrinhas que vamos conhecendo aos poucos, graças ao experiente Trimagasi (Zorion Eguileor) - que eu apelidei carinhosamente de Sr. Óbvio - alguém que já está na prisão há certo tempo e que conhece seus mecanismos. Digamos que ele já está calejado e, próximo de sair dali, já não pensa nos demais, apenas em si próprio e na sua sobrevivência.
Nesses tempos de quarentena e reclusão, como não se lembrar das pessoas indo aos supermercados comprando tudo o que conseguem enfiar em seus carrinhos? Acontece o mesmo aqui, os de cima comem o que podem, até explodir, pois não sabem onde irão acordar dali a um mês: em um andar mais baixo onde deverão se alimentar dos restos (se restarem) dos acima? Quem sabe.
Se sustentando muito mais por essa alegoria à nossa sociedade consumista e egoísta, O Poço se permite não dar respostas fáceis ao espectador, muita coisa fica em aberto: quem comanda o poço? Por que aquelas pessoas estão ali? Enfim, não conseguimos julgá-los pelo que fizeram antes, com isso, passamos a observá-los naquela situação extrema. As atitudes do próprio "herói" Goreng são questionáveis em alguns momentos, embora a violência seja a saída que ele encontra para abalar o sistema.
Com isso, surgem algumas possibilidades interessantes de se ler o filme. Goreng (Ivan Massagué) seria como o "messias", alguém a fim de quebrar o status quo daquele sistema que não liga para como os seus sobrevivem. Nesse cenário, seria o Sr. Óbvio uma ideia de Satanás? Afinal, ele está ali há muito mais tempo que Goreng e o atiça a todo instante.
Independente do que você entenda, O Poço é um filme instigante que vale por sua curta duração e por se permitir instigar nossa racionalidade. É o cinema espanhol se provando um dos mais originais do momento.
Um belo exemplar do neorrealismo italiano. Nem sei se Sophia Loren merecia mais o Oscar do que Natalie Wood (que concorreu por Splendor in the Grass), esta segunda vivendo uma personagem bem mais vulnerável aos acontecimentos que a cercam, enquanto a Cesira de Loren é inegavelmente forte e cheia de personalidade, seja nas atitudes que a colocam à frente de seu tempo (confrontando os soldados fascistas de Mussollini) e lutando para sobreviver e proteger a filha daquela sociedade machista que busca abrigo da guerra no interior.
Um belo filme que, pra completar, me remeteu a Stromboli, de Roberto Rossellini (não só pelas protagonistas fortes) mas também pela fotografia e belas paisagens daquela região montanhosa.
Martin Eden fala sobre pertencimento, sonhos, desejos, medos, política, literatura e amores. O personagem-título (Luca Marinelli) é um jovem marinheiro que conhece a bela, rica e estudada Elena Orsini (Jessica Cressy) e se apaixona à primeira vista. Ele deseja então se tornar escritor para impressionar a moça com poemas e poesias, mas seus estudos limitados o forçam a se tornar um autodidata que se vira como pode para conseguir dinheiro em trabalhos que pagam pouco enquanto mora de favor na casa da irmã e do cunhado opressivo.
O diretor Pietro Marcello (que Bong Joon-ho destacou como um daqueles para ficarmos de olho) filma o protagonista entre as ruínas charmosas de Nápoles como um andarilho sem destino, cego pela paixão daquela que julga ser o amor de sua vida, e como uma peça solta numa sociedade tão polarizada quanto a nossa de hoje: de um lado os socialistas e do outro os aristocratas. Martin flutua entre ambos como um individualista convicto.
Enquanto anseia por suas histórias publicadas e por seus dias com Elena, outras pessoas vão cruzando seu caminho, do socialista Russ Brissenden (Carlo Cecchi) à bela Margherita (Denise Sardisco). Martin vai adquirindo consciência política e social, sua escrita evolui, suas primeiras histórias são publicadas, mas tudo parece servir a um sistema, ao terceiro ato vemos seu colapso (a cena da apresentação de um livro é excelente e ali Marinelli justifica o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza, o qual concorrera com Joaquin Phoenix por Coringa) enquanto se vê cada vez mais peça de uma engrenagem que ele sempre criticou e desprezou.
Muito do que acontece aqui me remete ao A Melhor Juventude, de Marco Tullio Giordana, seja pelo cenário político conturbado ou pelas incertezas e inseguranças de jovens apaixonados numa Itália intensa belissimamente fotografada em lentes de 16mm e com uma montagem ousada que traz recortes documentais que dão ainda maior autonomia às elipses de tempo. Uma obra exemplar.
Baseado em livro homônimo da escritora Jennifer Niven, o longa dirigido por Brett Haley tem na figura de seus dois protagonistas o reflexo de uma geração que enfrenta uma realidade bem mais compreensível perante a família e a sociedade hoje em dia: a da depressão que assola os adolescentes.
A trama é bem batida: dois párias se aproximam e se apaixonam ao mesmo tempo que uma força invisível parece que os separa. Enfrentando a solidão e a melancolia de uma vida sem sentido (o eterno drama juvenil), eles partem numa espécie de aventura "bucket list". No entanto, falta desenvolvimento à dupla, sabemos que Theodore Finch (Justice Smith incrivelmente bem menos irritante do que em outros longas) é irresponsável e perigoso de tanto que isso é repetido durante o filme, enquanto Elle Fanning interpreta uma Violet Markey contida nas ações e diálogos, sempre cabisbaixa. O arco de ambos até tenta trazer coadjuvantes interessantes, seja na figura do pai de Violet, vivido por Luke Wilson, ou na figura da irmã de Theodore, vivida por Alexandra Shipp, mas ambos têm momentos breves demais e pouco servem de suporte aos protagonistas.
Ainda que não dê conta de se aprofundar em um tema tão delicado (parece que o personagem de Smith é sabotado e desperdiçado no terceiro ato apenas pelo fator emotivo no espectador), é graças ao carisma dos personagens e da bela fotografia que o longa nos leva a tais lugares incríveis junto de Violet e Theodore. Ao final a impressão é de que a mensagem é bonita e importante (façam terapia), mas poderia ter rendido mais.
Histórias sobre pessoas desaparecidas trazem consigo uma comoção e uma curiosidade mórbida no público: só hoje o filme é top 3 na Netflix Brasil. Lost Girls retrata o caso real de jovens desaparecidas em Long Island, nos Estados Unidos, no início dos anos 2010. A história se inicia com o desaparecimento de Shannan Gilbert após uma visita a um cliente. Inicia-se então a busca de sua mãe Mari (Amy Ryan ótima) pela solução do mistério do sumiço da filha e da descoberta dos corpos de 4 jovens mortas em uma área de um condomínio fechado.
Mesmo com a entrada do comissário Richard Dormer no caso (Gabriel Byrne tão apático quanto em Hereditário), as coisas não avançam. Com o descaso das autoridades locais - afinal, como diz um policial a certa altura "quem perde tanto tempo procurando uma prostituta desaparecida?" - Mari se une às demais famílias junto de suas outras duas filhas (interpretadas por Thomasin McKenzie e Oona Laurence, sem muito a destacar) atrás de justiça.
A impressão que fica é que a diretora e documentarista Liz Garbus desperdiçou uma ótima oportunidade de debruçar sobre um caso complexo como este e estudar as mais variadas possibilidades. Talvez tenha sido um desejo da diretora trabalhar com uma atriz de grande potencial como é Amy Ryan, mas conforme a história vai avançando é perceptível como o caso coleciona elementos e histórias tão instigantes quanto a de Mari Gilbert e não as desenvolve em seus breves 95 minutos. Inclusive, a própria relação de Mari com as filhas tem um final traumático que se limita a ser anunciado em uma única linha ao final do filme. O resultado é decepcionante.
Quantos filmes de mulheres astronautas você conhece ou já viu? De bate-pronto me vem à mente somente três: os dois primeiros Alien, com a Tenente Ripley interpretada por Sigourney Weaver, e Gravidade, com Sandra Bullock. Durante muito tempo fomos condicionados a ver filmes sobre astronautas isolados no espaço diante de inúmeros desafios que a ficção científica lhes impõe nos quais restava à mulher o papel daquela que ficava em casa à espera do companheiro ou do pai.
A diretora Alice Winocour lida com um viés delicadamente feminista desde o início de sua carreira: é dela o roteiro do excelente Cinco Graças (2015), uma das histórias femininas mais essenciais dos últimos anos, e neste A Jornada ela abandona o velho conceito do homem que vai ao espaço para nos mostrar a pré-jornada de Sarah Loreau (Eva Green), uma astronauta que enfrenta não só a dificuldade de ser a única mulher no programa da Agência Espacial Europeia, assim como os penosos dias de preparação para uma missão espacial (Proxima) que a deixará longe da filha de 7 anos durante um ano.
Green encarna Sarah com uma sutileza incrível, naquela que é sua melhor atuação da década, sem depender da sensualidade de seus papéis anteriores, aqui sua personagem se vê constantemente obrigada a testar seus limites físicos e psicológicos (para si e para os colegas machistas) em diversos tipos de testes que se mostram bastante fiéis ao que deve ser a rígida preparação de um astronauta, e é no choro contido durante uma sessão de fotos para a imprensa ou na pose mantida nos eventos de trabalho que ela prova sua força.
Enquanto as personagens de Weaver e Bullock foram ao espaço enfrentar aventuras, monstros e desafios, neste A Jornada a humanização proposta por Winocour é emocionante por tornar a experiência dramaticamente empática. O limiar entre viver o que sempre sonhara e abandonar (mesmo que por um ano) aquilo pelo que sempre vivera é dilacerante. Como tudo estará quando voltar? Um drama realista, tocante e triste que vai na contramão das aventuras espaciais que estamos tão acostumados a ver e também uma bela homenagem às diversas astronautas que enfrentaram esse desafio.
É difícil assistir a O Oficial e o Espião e não se pegar traçando paralelos entre a história de vida de Roman Polanski e a de Alfred Dreyfus. Estamos na Paris do final do século 19, quando o capitão Alfred Dreyfus (Louis Garrel), um dos poucos judeus do exército, é condenado injustamente por alta traição e sentenciado à prisão perpétua em uma ilha no exílio, na cena de abertura ele brada sua inocência após uma execução simbólica onde lhe são retiradas as fardas e honrarias. Georges Picquart (Jean Dujardin) assume o papel de chefe do setor de inteligência e descobre diversas incongruências no caso, crendo que Dreyfus fora condenado por ser judeu.
Neste cenário, seria fácil para Polanski desenvolver a trama com algumas características recorrentes em seu cinema, o isolamento social e as paranoias, vistos principalmente na Trilogia do Apartamento (O Bebê de Rosemary, Repulsa ao Sexo e O Inquilino), porém, aqui o diretor lida com este fato histórico de maneira bem mais espetaculosa, conversando com a atualidade da cultura do cancelamento, seja por um viés bem pessoal (ora, tal qual Dreyfus, ele é judeu, praticamente vive exilado e se diz inocente das acusações) ou pela visão externalizada do oficial Picquart (Dujardin), que é quem toma o papel de protagonista e passa a investigar a punição a Dreyfus de maneira incisiva e, aos poucos, vai descobrindo as particularidades do caso e toda a hipocrisia de um sistema manipulador que faz valer de suas patentes e autoridades para incriminar e excluir os menos favorecidos.
Com um design de produção excelente (creio que o melhor de um longa de Polanski desde O Pianista) e uma bela fotografia escura e densa, Polanski nos prova como o antissemitismo e a injustiça foram capazes de destruir a vida de um inocente que, mesmo livre posteriormente, ainda era insultado nas ruas. Seria prepotência e muito acinte de Polanski se ver na figura de Dreyfus, por isso, prefiro ficar com a versão de que esse seu longa é muito mais sobre as corrupções de um sistema que é capaz de tudo para manter sua aparência de infalível.
Não se engane pelo nome, esta co-produção entre Guatemala e França não tem nada a ver com aquele filme do universo Invocação do Mal, a não ser pelo terror que aqui, definitivamente, funciona.
Enrique é um general aposentado que supervisionou um genocídio na Guatemala há 30 anos. Ele é condenado por seus crimes e simula um ataque para que não vá para a prisão. Durante a noite, já em casa, Enrique começa a ouvir o lamento de La Llorona, atirando a esmo contra o fantasma que ele diz existir. A esposa e a filha do militar, então, acreditam que ele está começando a sofrer de demência.
O diretor Jayro Bustamante vai na contramão dos filmes de terror de gênero nos quais as pessoas atormentadas por espíritos malignos são as vítimas pelas quais devemos torcer. Aqui, Enrique e sua família vivem em uma fortaleza protegidos por seguranças - necessários após a sua não ida para a prisão - seus empregados são indígenas nativos do país - amedrontados pelo espírito da Llorona, que para eles é real - e a filha do casal é a única com discernimento sobre os feitos do pai, sendo repreendida pela mãe "não acredito que você virou comunista, desde quando você é esquerdista?".
Enclausurados e sem poder sair devido à multidão que protesta lá fora, familiares e empregados vivem um terror dentro do próprio lar, as alucinações de Enrique vão se tornando cada vez mais assustadoras e perigosas, enquanto vamos descobrindo a verdade por trás de seus ataques e visões.
Com uma ambientação claustrofóbica e fotografia soturna, Bustamante desliza pelos corredores e cômodos da casa com uma câmera vagarosa e silenciosa, vale destacar também o trabalho de som, os burburinhos das pessoas lá fora não deixam os moradores se esquecerem de que estão cercados e que não têm para onde fugir, enquanto os lamentos da Llorona aos ouvidos de Enrique são dignos de um som que não gostaríamos de ouvir de madrugada.
La Llorona poderia cair facilmente nos clichês do gênero, e os elementos do terror são aproveitados até com alguma moderação, mas é justamente pela importante temática política de pano de fundo que o filme se torna um horror com grande carga dramática e psicológica, não dependendo de bonecas ou entidades demoníacas para assustar, o passado condenável do patriarca é o suficiente para lançar o horror sobre aquela família.
O primeiro longa de Roman Polanski impressiona não só por seu vigor técnico (repare na profundidade de campo que o diretor utiliza com sabedoria, sempre enquadrando dois ou mais personagens na mesma cena), mas também pela força dos personagens, três pessoas isoladas em um barco no que deveria ser um simples passeio e que se transforma em uma disputa entre homens.
Daria um belo paralelo com O Farol, de Robert Eggers: a começar pela fotografia em preto e branco, e dá pra ir além, ambos são filmes de diretores em início de carreira que abordam o embate viril entre um jovem e outro homem mais experiente, com o mastro/o farol fálico ao centro e a mulher/a sereia como o objeto de desejo e cobiça.
Alguns dos elementos do cinema de Polanski já se faziam presentes aqui, seja na sensualidade tensa (Repulsa ao Sexo, A Pele de Vênus, Lua de Fel) ou no cenário único que serve como palco para uma disputa entre os personagens (Deus da Carnificina, O Inquilino). Polanski já ensaiava com maestria e mostrava ao mundo um pouco de sua genialidade por detrás das câmeras.
O que mais impressiona nos filmes dos irmãos Safdie é a naturalidade e a capacidade com as quais eles filmam o cotidiano e a batalha de suas personagens, geralmente párias da sociedade, e aqui os personagens não poderiam estar mais à margem se não na pele de junkies.
Contando sempre com atuações grandiosas (aqui a de Arielle Holmes), os diretores dominam os temas mais variados que se comprometem a contar, seja um roubo que gera consequências terríveis a dois irmãos em Bom Comportamento ou todo o trabalho minucioso de um viciado em jogos e expert na manipulação de pedras raras de Joias Brutas.
Aqui eles não decepcionam, filmando aquelas pessoas de perto de maneira claustrofóbica e de longe num exercício que logo remete ao título, num trabalho de lentes de quem sabe o que está fazendo e o que quer passar. Emana algo meio anos 70, meio nova Hollywood que o Scorsese fez muito no início de carreira. Os caras são muito bons nesse cinema urbano e frenético.
Apesar de alguns nomes da nova geração envolvidos aqui, como Kristen Stewart, Jack O'Connell (vejam Encarcerado com ele), Anthony Mackie (o Falcão dos filmes dos Vingadores), Zazie Beetz (a sortuda Domino de Deadpool 2) e Margaret Qualley (a hippie de Era Uma Vez em... Hollywood), falta a este Seberg Contra Todos uma jovialidade e rebeldia que a personagem título poderia - e deveria - transbordar em tela.
O diretor Benedict Andrews, do bom e delicado Una, vem do teatro e aqui ele rege a história no automático, o projeto assume um posto bem complacente com o FBI (na figura do personagem vivido por O'Connell), e essa postura soft também se reflete quando no dia-a-dia da atriz/musa da Nouvelle Vague, Jean Seberg, e sua parceria com os Panteras Negras. Ora, enquanto o movimento cinematográfico ia contra as normas e regras do cinema hollywoodiano, o grupo antirracista defendia a resistência armada contra a opressão dos negros nos Estados Unidos. Essa revolução parece inexistir em aqui.
Há em Seberg Contra Todos uma irritante necessidade de ser "acessível a todos os públicos", por um lado, isso fará com que muitos conheçam a história de Jean Seberg, interpretada muito bem por Stewart, mas Andrews é muito refém do roteiro e dos diálogos pessimamente escritos, com isso, a dramaturgia que Andrews poderia explorar em um filme com tantos rostos conhecidos some diante de uma estrutura televisiva e mecânica sem qualquer tipo de originalidade.
Não chega a ser odioso, pois, apesar do texto fraquíssimo com o qual nenhum ator se destaca (à exceção de Stewart, que tem bons momentos e parece bem à vontade no papel), não há momentos de vergonha alheia, mas falta vivacidade ao todo, finalizando como um filme raso ainda que assistível.
A uberização do trabalho é um dos maiores dilemas da nossa atualidade. A falsa liberdade financeira perseguida pelos empregados autônomos bate de frente com a escassez de benefícios e direitos que os empregadores não são incentivados a oferecer, sustentados pela nova ideia de capitalismo neoliberal.
O mundo está repleto de inúmeros casos como o da família Turner de Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You no original). Ken Loach mostra os efeitos da crise financeira que se iniciou em 2008 e que, cada vez mais, é uma realidade triste e dura da qual muitas famílias não conseguem escapar. A primeira cena é emblemática, o dono da franquia diz ao prestador de serviço autônomo (não dá pra chamá-los de contratante e contratado) até onde vão seus direitos, ou melhor, de quais formas ele será penalizado caso não cumpra uma série de requisitos. Ele é apenas um franqueado que será multado por sua ausência ou por qualquer entrega feita fora do prazo.
Ricky (Kris Hitchen estreando muito bem em longas), supostamente é dono de seu próprio negócio "quanto mais trabalhar, mais você ganha", são 14 horas por dia, durante 6 dias da semana. Ele é casado com Abbi que, assim como ele, não passa muito tempo em casa, ela (Debbie Honeywood) é uma cuidadora que visita enfermos, idosos e pessoas com dificuldade de locomoção, que se desdobra para ir e vir às casas num trabalho tão estafante quanto o do marido.
Enquanto isso, os filhos vão crescendo em um ambiente sem os pais, e por mais conservador que isso possa parecer, a fase que ambos ultrapassam se mostra crucial para que os pais zelem por eles, mas onde encontrar tempo? O título não é em vão e o resultado é uma das obras mais fortes do ano que se encerra de maneira sufocante e desesperadora. O que o futuro nos reserva?
Colocaria Peter Berg ao centro de uma escala na qual o ponto mais baixo estaria Michael Bay e sua mistura megalomaníaca entre humor e ação - que inclusive recentemente lançou o fraquíssimo Esquadrão 6 na mesma Netflix - e no ponto mais elevado estaria Clint Eastwood com seu cinema recente no qual ele tem explorado a figura do herói médio norte-americano, vide O Caso Richard Jewell (2019) e Sully: O Herói do Rio Hudson (2016), entre outros.
Tal qual Eastwood, Berg tem se especializado em narrativas onde figuras masculinas tentam superar um passado traumático e problemático para se tornarem heróis por um dia e encontrarem redenção, vide O Dia do Atentado e Horizonte Profundo - Desastre no Golfo, curiosamente ambos do mesmo ano (2016) e com Mark Wahlberg como protagonista. Neste Troco em Dobro (Spenser Confidential no original), mais uma vez, o diretor se une a seu ator-herói numa história com uma ação não tão inspirada, num roteiro típico do que Berg tem apresentado até então e boas pitadas de humor.
Spenser (Wahlberg) é um ex-policial, mais conhecido por arrumar problemas do que em resolvê-los, que acabara de sair da prisão e quer deixar seu passado para trás. Porém, com o assassinato de seu antigo chefe, com o qual ele não tinha um bom relacionamento, e de outro colega de Academia, ele acaba percebendo uma trama cheia de conspirações e passa a investigar o caso por conta própria com a ajuda de Hawk (Winston Duke), um grandalhão com quem ele divide o quarto na casa de seu antigo treinador de boxe (Alan Arkin).
Berg promove praticamente um noir às avessas. Há a figura da femme fatale, Cissy (Iliza Shlesinger), ex-namorada de Spenser que sempre surge desbocada em cena, e a investigação segue os passos de um filme policial no qual as pistas vão surgindo e revelações surpreendentes (ou não) vão sendo feitas. Claro, há convenções como algumas pistas que só Spenser encontra, afinal, há gente de patente alta envolvida que mais quer camuflar o caso do que, de fato, resolvê-lo, porém, nada disso tira a graça da história que, por se tratar de uma produção com a assinatura da Netflix, cumpre bem seu papel de entreter.
Troco em Dobro se sustenta tanto pelo protagonismo de Wahlberg e Duke, entrosados em cena, quanto pelos ótimos momentos cômicos de Shlesinger e Arkin. O resultado pode não ser muito inspirado, no entanto, após vários fracassos do serviço de streaming (Close, Operação Fronteira, Polar, o já citado Esquadrão 6, Bright e Shaft) se revela um acerto da Netflix para o gênero da ação com comédia.
A Guerra do Fogo é uma aula de História (com algumas liberdades poéticas, assim digamos, já que nos anos 80, época em que foi lançado, a convivência entre homo sapiens e homo erectus ainda era questionada). Jean-Jacques Annaud filma, a partir do ponto de vista de uma tribo de neandertais que viveu há cerca de 80 mil anos, a convivência destes com uma espécie feminina do homo sapiens, a partir desta interação, os neandertais, aos poucos, vão aprendendo a lidar com as próprias emoções, habilidades e instintos e a se socializar.
Quando o fogo da tribo se apaga, alguns neandertais são enviados para encontrá-lo na natureza, entre várias aventuras, como ataques contra tigres, a adoração aos animais e à natureza (na belíssima cena com os mamutes) e a guerra contra tribos canibais, os nossos "heróis" vão se humanizando e, sem perceber, se civilizando a partir de repetições e do uso da criatividade de sua espécie.
Logicamente, as melhores sequências estão nos acontecimentos que elucidam o estudo antropológico ao qual o longa se propõe, ou seja, nos pequenos aprendizados dos neandertais, desde a cena em que Amoukar (Ron Perlman, poisé, o Hellboy) come um pedaço de carne e, ao perceber que se trata de carne humana cospe fora, às risadas que a homo sapiens Ika "ensina" a eles, assim como a posição sexual menos animalesca e mais humanizada, finalizando com uma emblemática cena da continuidade da espécie.
Ao final, Fim de Festa funciona bem melhor se visto como uma crônica pelo viés de uma família de classe média no Recife. É o pós-Carnaval, a ressaca que acomete os mais jovens (militantes, gays, bis, hipsters) bate de frente com a figura do policial Breno, vivido com naturalidade pelo exímio Irandhir Santos.
Breno prefere a paz do interior à festividade que emana brasilidade e é retirado de seus dias de descanso para investigar um crime chocante: uma jovem francesa é assassinada de maneira brutal e a única testemunha é um usuário de crack em condição de rua.
Assim como fizera no excelente Tatuagem, Hilton Lacerda naturaliza os personagens e as situações. Ele faz uma espécie de panorama da atual situação do país, a ver pela sequência na praia onde as meninas estão com os seios à mostra e uma mulher brada "eu quero meu país de volta". A família da vítima francesa também serve para ilustrar essa extrema-direita que sofre da síndrome de vira-lata, na qual tudo que parece ser do Brasil é ruim e só o que é europeu é bom.
O roteiro do próprio Lacerda ainda faz alusões à situação da Argentina, um país tão ou mais ferrado quanto o nosso, mas evoluído em vários outros sentidos, como na permissão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nessa brincadeira, Lacerda parece não se decidir pela crítica social ou pelo exercício de gênero, o crime parece se resolver antes do combinado e deixa uma sensação de que poderia ter rendido mais. O relacionamento entre pai e filho também é levado de maneira superficial, e mesmo a bela cena final da conversa entre ambos ainda deixa uma ferida em aberto que o longa não dá conta.
De qualquer forma, é um filme que por mais que pareça "atirar pra todos os lados", na verdade nos chama a atenção para vários aspectos de nossa sociedade, ainda que não se aprofunde muito em nenhum deles.
Neste O Homem Invisível, o diretor Leigh Whannell (que iniciou sua carreira ao lado de James Wan roteirizando Jogos Mortais) reimagina a clássica história de H.G. Wells para os dias atuais. Diferentemente das versões anteriores, a homônima de 1933, dirigida por James Whale, que funciona hoje bem mais próxima ao cômico, e a versão de Paul Verhoeven (O Homem Sem Sombra, 2000) na qual a invisibilidade do cientista vivido por Kevin Bacon converge muito mais para uma perturbadora fetichização, aqui Whannell nos propõe um exercício de gênero bastante tenso onde o maior medo está na figura do ex abusivo da protagonista.
No longa, Cecilia Kess (Elisabeth Moss) está fugindo deste relacionamento com um gênio da ótica que, aparentemente, descobriu uma maneira de ficar invisível. O roteiro de Whannell é hábil em criar situações nas quais questionamos se Cecilia está com a razão ou se ela está delirando, principalmente nos minutos iniciais. No entanto, seu interesse maior está em se assumir logo como um thriller psicológico. Sua câmera desliza suavemente pelos cenários buscando a profundidade de corredores escuros servindo como gatilho para causar tensão ao espectador. Prepare-se para os sustos. Aliado a isso, Moss está incrível como a vítima de gaslighting, se firmando como uma das atrizes mais versáteis da atualidade.
E é justamente ao apostar em suas habilidades cênicas (ela praticamente leva o filme sozinha por mais da metade) que Whannell assume o terror de gênero a partir de certo ponto, dali em diante, o longa usa e abusa de reviravoltas e situações intensas, se permitindo utilizar alguns movimentos de câmera que parecem ter sido inspirados em seu longa antecessor, o ótimo Upgrade. Ao final, O Homem Invisível pode não reinventar o gênero (e nem quer), mas assusta, incomoda e atualiza um clássico como poucos remakes têm feito - lembram de A Múmia com Tom Cruise? Melhor não. Se quisermos que a Universal aposte em um universo compartilhado entre seus monstros, este é o melhor exemplo a ser seguido.
A primeira parte onde conhecemos o dia-a-dia da família pequenina é encantador, creio que dava pra explorar mais os desafios deles em sobreviver dependendo tanto dos adultos, já na metade o longa perde força, mas permanece simpático até o fim.
Terrence Malick estreou nos cinemas nos anos 70 (com Terra de Ninguém, em 73), auge da Nova Hollywood, e embora não tenha entrado pra história como um dos grandes nomes do movimento, já que posteriormente dirigiu apenas Cinzas no Paraíso (1978) e entrou em um hiato de 20 anos, pode-se dizer que ele é um dos poucos diretores daquela época que continua exercendo seu estilo, o qual ele foi moldando nas três fases de seu cinema: a 1ª com Terra de Ninguém e Cinzas no Paraíso. A 2ª com Além da Linha Vermelha, O Novo Mundo e A Árvore da Vida e a 3ª com Amor Pleno, Cavaleiro de Copas e De Canção em Canção.
Em Uma Vida Oculta, Malick parece iniciar uma espécie de 4ª fase. Fica perceptível desde o início que seu novo longa se desprende da temática "white people problems" de seus trabalhos mais recentes e nos leva de volta aos mesmos efeitos de sua 2ª fase, na qual seus filmes proporcionavam ao espectador tanto um esmero visual quanto um estudo aprofundado da alma de seus personagens com toques divinos e contemplativos.
Assim como fazia Costa-Gavras, Malick traz um tema político como motor de sua narrativa: a ameaça fascista. É Malick ligado nos temas relevantes do novo século. Acompanhamos a história real de Franz Jägerstätter (August Diehl) preso durante a invasão nazista na Áustria por se negar a fazer o juramento de lealdade a Adolf Hitler por valores morais e éticos. Em paralelo a seus dias de martírio na prisão, acompanhamos o dia-a-dia de sua esposa e as duas filhas sobrevivendo entre a hostilidade dos vizinhos e dos próprios parentes.
Para alguns, pode ser Malick fazendo o de sempre (e não deixa de ser). No entanto, o diretor exerce sua assinatura como há muito não fazia. O fascínio divino e a poesia visual estão ali a todo momento, sem roubar o protagonismo de suas personagens. Malick mostra ao mundo o que é preciso para que o bem vença o mal. Qual a importância dessas vidas ocultas. Terminei a sessão em pratos e até agora estou digerindo a pancada que foi ver este filme (comparo com a de Até Logo, Meu Filho que vi ano passado na Mostra de SP). Uma obra grandiosa para ser revisitada de tempos em tempos.
Destacamento Blood
3.8 448 Assista AgoraSe filmes tivessem pedigree, Destacamento Blood teria o seu. Spike Lee é um cineasta que desde o final dos anos 80 construiu uma carreira independente com filmes ácidos e políticos, muitos à frente de seu tempo.
Tarefa árdua para Destacamento ser lançado após Infiltrado na Klan. Não só pela expectativa gerada, mas por ser um projeto ambicioso sob a tutela da Netflix. Além disso, levar quatro veteranos afro-americanos da Guerra do Vietnã (ou a Guerra Americana, como os locais a chamam) de volta ao país em busca dos restos mortais do líder de seu pelotão e de um tesouro escondido é ousado e mistura diversos gêneros. O tom cômico logo me trouxe à mente Clint Eastwood e seu Cowboys no Espaço (2000), no qual uma equipe de astronautas aposentados deve ir ao espaço por serem os únicos a conhecerem o sistema que opera um satélite russo com problemas.
Aqui, Spike Lee conta esse capítulo amargo da história norte-americana com seu viés político de sempre - até contido, apesar das fortes cenas iniciais. Como era de se esperar, ele destaca os nomes e fotos dos soldados negros esquecidos e soterrados, contextualiza os discursos de Martin Luther King Jr., critica a perspectiva que a Guerra do Vietnã tem nos EUA. Os "Bloods" reclamam de filmes mentirosos como Rambo e Braddock. No entanto, o Paul, de Delroy Lindo, é o único que parece convergir para o lado republicano da história. Sua volta ao país é traumática, o ódio e o ressentimento estão à flor da pele, sua missão no país vai além da busca por um tesouro, ao final, é um acerto de contas consigo mesmo e com seu passado. Inclusive, vale destacar a atuação de Lindo, uma das melhores do ano. Ele que sempre trabalhou muito bem com Lee (vide Crooklyn e Clockers) mais uma vez entrega uma atuação que não pode ser ignorada nas premiações do ano que vem.
Destacamento Blood, no original Da 5 Bloods, deveria dizer mais sobre os 5 amigos. Falta uma certa particularidade em alguns membros do grupo, somente Otis e Paul se destacam, os demais dividem muito tempo de tela com personagens secundários (para não dizer terciários) que pouco agregam à narrativa, a exemplo da francesa. Ao final, é um filme difícil de ser absorvido por completo em uma visitada só (as 2h30 nem me parecem demais), aqui já vou além e imagino como uma minissérie poderia ter dado conta de tantas camadas, personagens, histórias, traumas e anos e mais anos de preconceito, injustiças e conflitos raciais que não se resolvem e nem se explicam de uma hora pra outra. Spike Lee, a seu modo, escreve mais um importante capítulo, da história e de sua filmografia.
Má Educação
3.6 106 Assista AgoraCreio que uma das melhores coisas que poderia ter acontecido à carreira de Hugh Jackman foi a aposentadoria de Wolverine no excelente Logan. Agora, o carismático ator pode se dedicar inteiramente a papéis mais dramáticos, coisa que antes, sinceramente, não me recordo de nenhum (O Rei do Show e Os Miseráveis exibem outro tipo de veia artística do ator), e não sei até que ponto essa sombra do Wolverine limitava suas escolhas e oportunidades.
Aqui em Má Educação, Jackman já acerta em cheio ao dar nuances a um charmoso e boa pinta Frank Tassone, superintendente de colégios de grande prestígio na escola onde trabalha. No entanto, um escândalo de corrupção (um dos maiores da história dos Estados Unidos) irá ruir toda a imagem que ele ajudara a construir.
Há uma certa burocracia no tema que o diretor Cory Finley dribla bem, ele que havia estreado no insosso Puro Sangue (Thoroughbreds), desta vez, deixa a apatia de lado e nos envolve no dia a dia daquela escola e de seus personagens, da estudante aspirante a jornalista Rachel (Geraldine Viswanathan), que investiga por conta própria os arquivos do colégio, à vice-diretora Pam (Allison Janney), braço-direito de Frank e pivô das falcatruas.
Sem enfeitar muito como fizera em seu trabalho anterior, Finley assume este projeto para a televisão com simplicidade, a força está tanto nos diálogos quanto na ágil montagem. Conforme a história progride, vamos nos indignando com os acontecimentos, torcemos para que a aluna vá ao porão e descubra algo novo, torcemos para que Pam seja desmascarada e torcemos para que o Frank Tassone de Hugh Jackman reapareça (ele sempre rouba a cena). Aliás, sua atuação é tão marcante que não seria exagero vê-lo indicado ao Oscar, ainda mais em uma temporada tão conturbada. Basta que a HBO faça a campanha certa.
Ao final, Má Educação é um filme denúncia acima da média justamente por não subestimar o espectador e por aprofundar seus personagens (note como conhecemos pelo menos um pouco do aspecto familiar de cada um, ao mesmo tempo que compreendemos seus dilemas, do pai desempregado de Rachel ao romance de Frank) quem dera se todos os filmes feitos para a TV fossem assim.
O Pai
3.2 9O cinema costuma retratar o luto de várias formas, é uma fase que todo ser humano acaba enfrentando em alguma altura da vida, e Vasil não lida bem com a morte da esposa. Já na primeira cena seu apego extremamente físico com a figura da mulher morta fica evidente: ele pede ao filho para que tire uma foto da mãe no caixão, "já temos muitas fotos dela em casa", diz o filho contrariado. É uma situação estranha, confesso que não sabia se ria ou se achava triste, aos poucos fica evidente que o cômico faz parte da encenação, tal qual o cinema sul-coreano costuma usar bastante, aqui menos espalhafatoso, mas ainda assim nos tirando algumas risadas.
Esses risos, no entanto, não tiram a força da relação pai e filho e nem a tornam menos envolvente emocionalmente, a princípio, ambos são bastante distantes e, aos poucos, vão revelando as faíscas e os interesses de cada um: a sequência no hospício é de cortar o coração.
O Pai é cinema de transição, a todo instante os personagens vem e vão (como uma metáfora à passagem pelo luto), enquanto o pai vaga cegamente em busca de contato com a esposa no além, o filho mantém sua postura racional, tanto para tentar manter o pai em terra firme quanto para poupar sua família.
Estranhos em Casa
2.7 202 Assista AgoraOra ora, temos algo bem empolgante aos fãs do terror de gênero aqui. Estranhos em Casa é um thriller francês de home invasion dirigido por Olivier Abbou que contém um forte discurso social e racial tal qual Corra!, ainda que careça da mesma elegância e sátira que o longa de Jordan Peele emanava tanto na direção quanto em seu texto. Aqui, Paul Diallo, junto de sua esposa e filho, retornam das férias e encontram sua casa dominada pela ex-babá e seu namorado. Irritados com a ineficácia da justiça em reaver sua propriedade, a família vai se deteriorando aos poucos.
Mesmo atirando pra vários lados nos pouco mais de 90 minutos, às vezes sem maiores explicações (como na sequência da boate, ainda que eu a adore) na maioria das vezes o tiro é certeiro. Abbou realiza um exercício de gênero sem medo de se assumir como tal, principalmente ao final, quando questionamos o "eventos baseado em uma história verdadeira", no entanto, a brutalidade e coragem com que aquelas cenas são captadas potencializam a violência e a intolerância de uma sociedade que não se conforma com o êxito do outro, seja por sua cor ou por julgar que suas conquistas não lhe convém.
Resgate
3.5 803Vale principalmente pela ação, bem violenta e filmada no capricho. No geral é um filme de ação de trama convencional à la Braddock, que felizmente conta com um dublê por detrás das câmeras, fazendo toda a diferença. Destaque para o plano-sequência de 15 minutos, uau.
PS: Vale sequência com a personagem da Golshifteh Farahani, hein?
A Casa
3.1 593 Assista AgoraNos últimos anos, o cinema espanhol comercial tem se especializado em thrillers sofisticados, com trama envolvente e reviravoltas surpreendentes. Dos que chegaram à Netflix recentemente temos Um Contratempo e Durante a Tormenta como bons exemplos. Este A Casa, dirigido pelos irmãos Àlex e David Pastor, é mais uma grata surpresa que vem para rechear o catálogo da Netflix, servindo como bom aperitivo para esses dias de quarentena.
Menos perturbador e indigesto que o conterrâneo O Poço - outro longa espanhol que fez sucesso repentino na Netflix -, A Casa tem uma trama bem menos alegórica que se sustenta no exercício de gênero, algo quase hitchcockiano com elementos de Borgman, O Talentoso Ripley e até Parasita - guardadas as devidas proporções.
Na história, Javier Muñoz (Javier Gutiérrez, excelente), é um publicitário que já fez sucesso no ramo mas que atualmente está desempregado e passa por uma crise financeira. Obrigado a deixar o apartamento luxuoso em que vive junto da esposa e do filho e enfurecido após ser rejeitado em várias entrevistas de emprego, Javier se vê tomado por uma obsessão doentia pelo jovem casal que agora vive em seu antigo apartamento e que vive a vida perfeita que outrora lhe pertencia.
Se a princípio as atitudes de Javier são, ao menos, compreensíveis (ora, não deve ser fácil tomar vários "nãos" e se ver despencando de seu status da noite para o dia, por mais white people problems que isso possa parecer), a partir de certo instante, não há como defendê-lo mais, passamos então a acompanhar um protagonista sórdido, sem limites e capaz de tudo para recuperar aquilo que perdera.
Se por um lado o filme perde a força do discurso sobre status social, por outro lado, o stalker Javier é tão bem interpretado por Gutiérrez que passamos a temer por todos aqueles que cruzam seu caminho (bem, nem todos). Ao final, A Casa é apenas um thriller que entretém, a direção sempre precisa, com movimentos de câmera sutis, pode gerar momentos exageradamente confortáveis para o protagonista dar a volta por cima, pelo menos ele está em boas mãos.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraÉ assustador como alguns momentos de O Poço refletem a nossa atual realidade. Na história, acompanhamos dois homens, um em meia idade e outro já mais velho, presos em um andar de uma prisão vertical infindável na qual os de cima comem melhor (são os primeiros a serem servidos de um banquete de sobremesas e pratos variados) e os de baixo vão comendo o que lhes resta. São dois por andar convivendo juntos por um mês, há algumas regrinhas que vamos conhecendo aos poucos, graças ao experiente Trimagasi (Zorion Eguileor) - que eu apelidei carinhosamente de Sr. Óbvio - alguém que já está na prisão há certo tempo e que conhece seus mecanismos. Digamos que ele já está calejado e, próximo de sair dali, já não pensa nos demais, apenas em si próprio e na sua sobrevivência.
Nesses tempos de quarentena e reclusão, como não se lembrar das pessoas indo aos supermercados comprando tudo o que conseguem enfiar em seus carrinhos? Acontece o mesmo aqui, os de cima comem o que podem, até explodir, pois não sabem onde irão acordar dali a um mês: em um andar mais baixo onde deverão se alimentar dos restos (se restarem) dos acima? Quem sabe.
Se sustentando muito mais por essa alegoria à nossa sociedade consumista e egoísta, O Poço se permite não dar respostas fáceis ao espectador, muita coisa fica em aberto: quem comanda o poço? Por que aquelas pessoas estão ali? Enfim, não conseguimos julgá-los pelo que fizeram antes, com isso, passamos a observá-los naquela situação extrema. As atitudes do próprio "herói" Goreng são questionáveis em alguns momentos, embora a violência seja a saída que ele encontra para abalar o sistema.
Com isso, surgem algumas possibilidades interessantes de se ler o filme. Goreng (Ivan Massagué) seria como o "messias", alguém a fim de quebrar o status quo daquele sistema que não liga para como os seus sobrevivem. Nesse cenário, seria o Sr. Óbvio uma ideia de Satanás? Afinal, ele está ali há muito mais tempo que Goreng e o atiça a todo instante.
Independente do que você entenda, O Poço é um filme instigante que vale por sua curta duração e por se permitir instigar nossa racionalidade. É o cinema espanhol se provando um dos mais originais do momento.
Duas Mulheres
4.3 69 Assista AgoraUm belo exemplar do neorrealismo italiano. Nem sei se Sophia Loren merecia mais o Oscar do que Natalie Wood (que concorreu por Splendor in the Grass), esta segunda vivendo uma personagem bem mais vulnerável aos acontecimentos que a cercam, enquanto a Cesira de Loren é inegavelmente forte e cheia de personalidade, seja nas atitudes que a colocam à frente de seu tempo (confrontando os soldados fascistas de Mussollini) e lutando para sobreviver e proteger a filha daquela sociedade machista que busca abrigo da guerra no interior.
Um belo filme que, pra completar, me remeteu a Stromboli, de Roberto Rossellini (não só pelas protagonistas fortes) mas também pela fotografia e belas paisagens daquela região montanhosa.
Martin Eden
3.7 23Martin Eden fala sobre pertencimento, sonhos, desejos, medos, política, literatura e amores. O personagem-título (Luca Marinelli) é um jovem marinheiro que conhece a bela, rica e estudada Elena Orsini (Jessica Cressy) e se apaixona à primeira vista. Ele deseja então se tornar escritor para impressionar a moça com poemas e poesias, mas seus estudos limitados o forçam a se tornar um autodidata que se vira como pode para conseguir dinheiro em trabalhos que pagam pouco enquanto mora de favor na casa da irmã e do cunhado opressivo.
O diretor Pietro Marcello (que Bong Joon-ho destacou como um daqueles para ficarmos de olho) filma o protagonista entre as ruínas charmosas de Nápoles como um andarilho sem destino, cego pela paixão daquela que julga ser o amor de sua vida, e como uma peça solta numa sociedade tão polarizada quanto a nossa de hoje: de um lado os socialistas e do outro os aristocratas. Martin flutua entre ambos como um individualista convicto.
Enquanto anseia por suas histórias publicadas e por seus dias com Elena, outras pessoas vão cruzando seu caminho, do socialista Russ Brissenden (Carlo Cecchi) à bela Margherita (Denise Sardisco). Martin vai adquirindo consciência política e social, sua escrita evolui, suas primeiras histórias são publicadas, mas tudo parece servir a um sistema, ao terceiro ato vemos seu colapso (a cena da apresentação de um livro é excelente e ali Marinelli justifica o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza, o qual concorrera com Joaquin Phoenix por Coringa) enquanto se vê cada vez mais peça de uma engrenagem que ele sempre criticou e desprezou.
Muito do que acontece aqui me remete ao A Melhor Juventude, de Marco Tullio Giordana, seja pelo cenário político conturbado ou pelas incertezas e inseguranças de jovens apaixonados numa Itália intensa belissimamente fotografada em lentes de 16mm e com uma montagem ousada que traz recortes documentais que dão ainda maior autonomia às elipses de tempo. Uma obra exemplar.
Por Lugares Incríveis
3.2 630 Assista AgoraBaseado em livro homônimo da escritora Jennifer Niven, o longa dirigido por Brett Haley tem na figura de seus dois protagonistas o reflexo de uma geração que enfrenta uma realidade bem mais compreensível perante a família e a sociedade hoje em dia: a da depressão que assola os adolescentes.
A trama é bem batida: dois párias se aproximam e se apaixonam ao mesmo tempo que uma força invisível parece que os separa. Enfrentando a solidão e a melancolia de uma vida sem sentido (o eterno drama juvenil), eles partem numa espécie de aventura "bucket list". No entanto, falta desenvolvimento à dupla, sabemos que Theodore Finch (Justice Smith incrivelmente bem menos irritante do que em outros longas) é irresponsável e perigoso de tanto que isso é repetido durante o filme, enquanto Elle Fanning interpreta uma Violet Markey contida nas ações e diálogos, sempre cabisbaixa. O arco de ambos até tenta trazer coadjuvantes interessantes, seja na figura do pai de Violet, vivido por Luke Wilson, ou na figura da irmã de Theodore, vivida por Alexandra Shipp, mas ambos têm momentos breves demais e pouco servem de suporte aos protagonistas.
Ainda que não dê conta de se aprofundar em um tema tão delicado (parece que o personagem de Smith é sabotado e desperdiçado no terceiro ato apenas pelo fator emotivo no espectador), é graças ao carisma dos personagens e da bela fotografia que o longa nos leva a tais lugares incríveis junto de Violet e Theodore. Ao final a impressão é de que a mensagem é bonita e importante (façam terapia), mas poderia ter rendido mais.
Lost Girls: Os Crimes de Long Island
3.2 153 Assista AgoraHistórias sobre pessoas desaparecidas trazem consigo uma comoção e uma curiosidade mórbida no público: só hoje o filme é top 3 na Netflix Brasil. Lost Girls retrata o caso real de jovens desaparecidas em Long Island, nos Estados Unidos, no início dos anos 2010. A história se inicia com o desaparecimento de Shannan Gilbert após uma visita a um cliente. Inicia-se então a busca de sua mãe Mari (Amy Ryan ótima) pela solução do mistério do sumiço da filha e da descoberta dos corpos de 4 jovens mortas em uma área de um condomínio fechado.
Mesmo com a entrada do comissário Richard Dormer no caso (Gabriel Byrne tão apático quanto em Hereditário), as coisas não avançam. Com o descaso das autoridades locais - afinal, como diz um policial a certa altura "quem perde tanto tempo procurando uma prostituta desaparecida?" - Mari se une às demais famílias junto de suas outras duas filhas (interpretadas por Thomasin McKenzie e Oona Laurence, sem muito a destacar) atrás de justiça.
A impressão que fica é que a diretora e documentarista Liz Garbus desperdiçou uma ótima oportunidade de debruçar sobre um caso complexo como este e estudar as mais variadas possibilidades. Talvez tenha sido um desejo da diretora trabalhar com uma atriz de grande potencial como é Amy Ryan, mas conforme a história vai avançando é perceptível como o caso coleciona elementos e histórias tão instigantes quanto a de Mari Gilbert e não as desenvolve em seus breves 95 minutos. Inclusive, a própria relação de Mari com as filhas tem um final traumático que se limita a ser anunciado em uma única linha ao final do filme. O resultado é decepcionante.
A Jornada
3.4 51 Assista AgoraQuantos filmes de mulheres astronautas você conhece ou já viu? De bate-pronto me vem à mente somente três: os dois primeiros Alien, com a Tenente Ripley interpretada por Sigourney Weaver, e Gravidade, com Sandra Bullock. Durante muito tempo fomos condicionados a ver filmes sobre astronautas isolados no espaço diante de inúmeros desafios que a ficção científica lhes impõe nos quais restava à mulher o papel daquela que ficava em casa à espera do companheiro ou do pai.
A diretora Alice Winocour lida com um viés delicadamente feminista desde o início de sua carreira: é dela o roteiro do excelente Cinco Graças (2015), uma das histórias femininas mais essenciais dos últimos anos, e neste A Jornada ela abandona o velho conceito do homem que vai ao espaço para nos mostrar a pré-jornada de Sarah Loreau (Eva Green), uma astronauta que enfrenta não só a dificuldade de ser a única mulher no programa da Agência Espacial Europeia, assim como os penosos dias de preparação para uma missão espacial (Proxima) que a deixará longe da filha de 7 anos durante um ano.
Green encarna Sarah com uma sutileza incrível, naquela que é sua melhor atuação da década, sem depender da sensualidade de seus papéis anteriores, aqui sua personagem se vê constantemente obrigada a testar seus limites físicos e psicológicos (para si e para os colegas machistas) em diversos tipos de testes que se mostram bastante fiéis ao que deve ser a rígida preparação de um astronauta, e é no choro contido durante uma sessão de fotos para a imprensa ou na pose mantida nos eventos de trabalho que ela prova sua força.
Enquanto as personagens de Weaver e Bullock foram ao espaço enfrentar aventuras, monstros e desafios, neste A Jornada a humanização proposta por Winocour é emocionante por tornar a experiência dramaticamente empática. O limiar entre viver o que sempre sonhara e abandonar (mesmo que por um ano) aquilo pelo que sempre vivera é dilacerante. Como tudo estará quando voltar? Um drama realista, tocante e triste que vai na contramão das aventuras espaciais que estamos tão acostumados a ver e também uma bela homenagem às diversas astronautas que enfrentaram esse desafio.
O Oficial e o Espião
3.7 70 Assista AgoraÉ difícil assistir a O Oficial e o Espião e não se pegar traçando paralelos entre a história de vida de Roman Polanski e a de Alfred Dreyfus. Estamos na Paris do final do século 19, quando o capitão Alfred Dreyfus (Louis Garrel), um dos poucos judeus do exército, é condenado injustamente por alta traição e sentenciado à prisão perpétua em uma ilha no exílio, na cena de abertura ele brada sua inocência após uma execução simbólica onde lhe são retiradas as fardas e honrarias. Georges Picquart (Jean Dujardin) assume o papel de chefe do setor de inteligência e descobre diversas incongruências no caso, crendo que Dreyfus fora condenado por ser judeu.
Neste cenário, seria fácil para Polanski desenvolver a trama com algumas características recorrentes em seu cinema, o isolamento social e as paranoias, vistos principalmente na Trilogia do Apartamento (O Bebê de Rosemary, Repulsa ao Sexo e O Inquilino), porém, aqui o diretor lida com este fato histórico de maneira bem mais espetaculosa, conversando com a atualidade da cultura do cancelamento, seja por um viés bem pessoal (ora, tal qual Dreyfus, ele é judeu, praticamente vive exilado e se diz inocente das acusações) ou pela visão externalizada do oficial Picquart (Dujardin), que é quem toma o papel de protagonista e passa a investigar a punição a Dreyfus de maneira incisiva e, aos poucos, vai descobrindo as particularidades do caso e toda a hipocrisia de um sistema manipulador que faz valer de suas patentes e autoridades para incriminar e excluir os menos favorecidos.
Com um design de produção excelente (creio que o melhor de um longa de Polanski desde O Pianista) e uma bela fotografia escura e densa, Polanski nos prova como o antissemitismo e a injustiça foram capazes de destruir a vida de um inocente que, mesmo livre posteriormente, ainda era insultado nas ruas. Seria prepotência e muito acinte de Polanski se ver na figura de Dreyfus, por isso, prefiro ficar com a versão de que esse seu longa é muito mais sobre as corrupções de um sistema que é capaz de tudo para manter sua aparência de infalível.
A Chorona
3.4 90 Assista AgoraNão se engane pelo nome, esta co-produção entre Guatemala e França não tem nada a ver com aquele filme do universo Invocação do Mal, a não ser pelo terror que aqui, definitivamente, funciona.
Enrique é um general aposentado que supervisionou um genocídio na Guatemala há 30 anos. Ele é condenado por seus crimes e simula um ataque para que não vá para a prisão. Durante a noite, já em casa, Enrique começa a ouvir o lamento de La Llorona, atirando a esmo contra o fantasma que ele diz existir. A esposa e a filha do militar, então, acreditam que ele está começando a sofrer de demência.
O diretor Jayro Bustamante vai na contramão dos filmes de terror de gênero nos quais as pessoas atormentadas por espíritos malignos são as vítimas pelas quais devemos torcer. Aqui, Enrique e sua família vivem em uma fortaleza protegidos por seguranças - necessários após a sua não ida para a prisão - seus empregados são indígenas nativos do país - amedrontados pelo espírito da Llorona, que para eles é real - e a filha do casal é a única com discernimento sobre os feitos do pai, sendo repreendida pela mãe "não acredito que você virou comunista, desde quando você é esquerdista?".
Enclausurados e sem poder sair devido à multidão que protesta lá fora, familiares e empregados vivem um terror dentro do próprio lar, as alucinações de Enrique vão se tornando cada vez mais assustadoras e perigosas, enquanto vamos descobrindo a verdade por trás de seus ataques e visões.
Com uma ambientação claustrofóbica e fotografia soturna, Bustamante desliza pelos corredores e cômodos da casa com uma câmera vagarosa e silenciosa, vale destacar também o trabalho de som, os burburinhos das pessoas lá fora não deixam os moradores se esquecerem de que estão cercados e que não têm para onde fugir, enquanto os lamentos da Llorona aos ouvidos de Enrique são dignos de um som que não gostaríamos de ouvir de madrugada.
La Llorona poderia cair facilmente nos clichês do gênero, e os elementos do terror são aproveitados até com alguma moderação, mas é justamente pela importante temática política de pano de fundo que o filme se torna um horror com grande carga dramática e psicológica, não dependendo de bonecas ou entidades demoníacas para assustar, o passado condenável do patriarca é o suficiente para lançar o horror sobre aquela família.
A Faca na Água
3.8 69 Assista AgoraO primeiro longa de Roman Polanski impressiona não só por seu vigor técnico (repare na profundidade de campo que o diretor utiliza com sabedoria, sempre enquadrando dois ou mais personagens na mesma cena), mas também pela força dos personagens, três pessoas isoladas em um barco no que deveria ser um simples passeio e que se transforma em uma disputa entre homens.
Daria um belo paralelo com O Farol, de Robert Eggers: a começar pela fotografia em preto e branco, e dá pra ir além, ambos são filmes de diretores em início de carreira que abordam o embate viril entre um jovem e outro homem mais experiente, com o mastro/o farol fálico ao centro e a mulher/a sereia como o objeto de desejo e cobiça.
Alguns dos elementos do cinema de Polanski já se faziam presentes aqui, seja na sensualidade tensa (Repulsa ao Sexo, A Pele de Vênus, Lua de Fel) ou no cenário único que serve como palco para uma disputa entre os personagens (Deus da Carnificina, O Inquilino). Polanski já ensaiava com maestria e mostrava ao mundo um pouco de sua genialidade por detrás das câmeras.
Amor, Drogas e Nova York
3.3 51 Assista AgoraO que mais impressiona nos filmes dos irmãos Safdie é a naturalidade e a capacidade com as quais eles filmam o cotidiano e a batalha de suas personagens, geralmente párias da sociedade, e aqui os personagens não poderiam estar mais à margem se não na pele de junkies.
Contando sempre com atuações grandiosas (aqui a de Arielle Holmes), os diretores dominam os temas mais variados que se comprometem a contar, seja um roubo que gera consequências terríveis a dois irmãos em Bom Comportamento ou todo o trabalho minucioso de um viciado em jogos e expert na manipulação de pedras raras de Joias Brutas.
Aqui eles não decepcionam, filmando aquelas pessoas de perto de maneira claustrofóbica e de longe num exercício que logo remete ao título, num trabalho de lentes de quem sabe o que está fazendo e o que quer passar. Emana algo meio anos 70, meio nova Hollywood que o Scorsese fez muito no início de carreira. Os caras são muito bons nesse cinema urbano e frenético.
Seberg Contra Todos
3.1 69 Assista AgoraApesar de alguns nomes da nova geração envolvidos aqui, como Kristen Stewart, Jack O'Connell (vejam Encarcerado com ele), Anthony Mackie (o Falcão dos filmes dos Vingadores), Zazie Beetz (a sortuda Domino de Deadpool 2) e Margaret Qualley (a hippie de Era Uma Vez em... Hollywood), falta a este Seberg Contra Todos uma jovialidade e rebeldia que a personagem título poderia - e deveria - transbordar em tela.
O diretor Benedict Andrews, do bom e delicado Una, vem do teatro e aqui ele rege a história no automático, o projeto assume um posto bem complacente com o FBI (na figura do personagem vivido por O'Connell), e essa postura soft também se reflete quando no dia-a-dia da atriz/musa da Nouvelle Vague, Jean Seberg, e sua parceria com os Panteras Negras. Ora, enquanto o movimento cinematográfico ia contra as normas e regras do cinema hollywoodiano, o grupo antirracista defendia a resistência armada contra a opressão dos negros nos Estados Unidos. Essa revolução parece inexistir em aqui.
Há em Seberg Contra Todos uma irritante necessidade de ser "acessível a todos os públicos", por um lado, isso fará com que muitos conheçam a história de Jean Seberg, interpretada muito bem por Stewart, mas Andrews é muito refém do roteiro e dos diálogos pessimamente escritos, com isso, a dramaturgia que Andrews poderia explorar em um filme com tantos rostos conhecidos some diante de uma estrutura televisiva e mecânica sem qualquer tipo de originalidade.
Não chega a ser odioso, pois, apesar do texto fraquíssimo com o qual nenhum ator se destaca (à exceção de Stewart, que tem bons momentos e parece bem à vontade no papel), não há momentos de vergonha alheia, mas falta vivacidade ao todo, finalizando como um filme raso ainda que assistível.
Você Não Estava Aqui
4.1 243 Assista AgoraA uberização do trabalho é um dos maiores dilemas da nossa atualidade. A falsa liberdade financeira perseguida pelos empregados autônomos bate de frente com a escassez de benefícios e direitos que os empregadores não são incentivados a oferecer, sustentados pela nova ideia de capitalismo neoliberal.
O mundo está repleto de inúmeros casos como o da família Turner de Você Não Estava Aqui (Sorry We Missed You no original). Ken Loach mostra os efeitos da crise financeira que se iniciou em 2008 e que, cada vez mais, é uma realidade triste e dura da qual muitas famílias não conseguem escapar. A primeira cena é emblemática, o dono da franquia diz ao prestador de serviço autônomo (não dá pra chamá-los de contratante e contratado) até onde vão seus direitos, ou melhor, de quais formas ele será penalizado caso não cumpra uma série de requisitos. Ele é apenas um franqueado que será multado por sua ausência ou por qualquer entrega feita fora do prazo.
Ricky (Kris Hitchen estreando muito bem em longas), supostamente é dono de seu próprio negócio "quanto mais trabalhar, mais você ganha", são 14 horas por dia, durante 6 dias da semana. Ele é casado com Abbi que, assim como ele, não passa muito tempo em casa, ela (Debbie Honeywood) é uma cuidadora que visita enfermos, idosos e pessoas com dificuldade de locomoção, que se desdobra para ir e vir às casas num trabalho tão estafante quanto o do marido.
Enquanto isso, os filhos vão crescendo em um ambiente sem os pais, e por mais conservador que isso possa parecer, a fase que ambos ultrapassam se mostra crucial para que os pais zelem por eles, mas onde encontrar tempo? O título não é em vão e o resultado é uma das obras mais fortes do ano que se encerra de maneira sufocante e desesperadora. O que o futuro nos reserva?
Troco em Dobro
3.1 192 Assista AgoraColocaria Peter Berg ao centro de uma escala na qual o ponto mais baixo estaria Michael Bay e sua mistura megalomaníaca entre humor e ação - que inclusive recentemente lançou o fraquíssimo Esquadrão 6 na mesma Netflix - e no ponto mais elevado estaria Clint Eastwood com seu cinema recente no qual ele tem explorado a figura do herói médio norte-americano, vide O Caso Richard Jewell (2019) e Sully: O Herói do Rio Hudson (2016), entre outros.
Tal qual Eastwood, Berg tem se especializado em narrativas onde figuras masculinas tentam superar um passado traumático e problemático para se tornarem heróis por um dia e encontrarem redenção, vide O Dia do Atentado e Horizonte Profundo - Desastre no Golfo, curiosamente ambos do mesmo ano (2016) e com Mark Wahlberg como protagonista. Neste Troco em Dobro (Spenser Confidential no original), mais uma vez, o diretor se une a seu ator-herói numa história com uma ação não tão inspirada, num roteiro típico do que Berg tem apresentado até então e boas pitadas de humor.
Spenser (Wahlberg) é um ex-policial, mais conhecido por arrumar problemas do que em resolvê-los, que acabara de sair da prisão e quer deixar seu passado para trás. Porém, com o assassinato de seu antigo chefe, com o qual ele não tinha um bom relacionamento, e de outro colega de Academia, ele acaba percebendo uma trama cheia de conspirações e passa a investigar o caso por conta própria com a ajuda de Hawk (Winston Duke), um grandalhão com quem ele divide o quarto na casa de seu antigo treinador de boxe (Alan Arkin).
Berg promove praticamente um noir às avessas. Há a figura da femme fatale, Cissy (Iliza Shlesinger), ex-namorada de Spenser que sempre surge desbocada em cena, e a investigação segue os passos de um filme policial no qual as pistas vão surgindo e revelações surpreendentes (ou não) vão sendo feitas. Claro, há convenções como algumas pistas que só Spenser encontra, afinal, há gente de patente alta envolvida que mais quer camuflar o caso do que, de fato, resolvê-lo, porém, nada disso tira a graça da história que, por se tratar de uma produção com a assinatura da Netflix, cumpre bem seu papel de entreter.
Troco em Dobro se sustenta tanto pelo protagonismo de Wahlberg e Duke, entrosados em cena, quanto pelos ótimos momentos cômicos de Shlesinger e Arkin. O resultado pode não ser muito inspirado, no entanto, após vários fracassos do serviço de streaming (Close, Operação Fronteira, Polar, o já citado Esquadrão 6, Bright e Shaft) se revela um acerto da Netflix para o gênero da ação com comédia.
A Guerra do Fogo
3.6 352A Guerra do Fogo é uma aula de História (com algumas liberdades poéticas, assim digamos, já que nos anos 80, época em que foi lançado, a convivência entre homo sapiens e homo erectus ainda era questionada). Jean-Jacques Annaud filma, a partir do ponto de vista de uma tribo de neandertais que viveu há cerca de 80 mil anos, a convivência destes com uma espécie feminina do homo sapiens, a partir desta interação, os neandertais, aos poucos, vão aprendendo a lidar com as próprias emoções, habilidades e instintos e a se socializar.
Quando o fogo da tribo se apaga, alguns neandertais são enviados para encontrá-lo na natureza, entre várias aventuras, como ataques contra tigres, a adoração aos animais e à natureza (na belíssima cena com os mamutes) e a guerra contra tribos canibais, os nossos "heróis" vão se humanizando e, sem perceber, se civilizando a partir de repetições e do uso da criatividade de sua espécie.
Logicamente, as melhores sequências estão nos acontecimentos que elucidam o estudo antropológico ao qual o longa se propõe, ou seja, nos pequenos aprendizados dos neandertais, desde a cena em que Amoukar (Ron Perlman, poisé, o Hellboy) come um pedaço de carne e, ao perceber que se trata de carne humana cospe fora, às risadas que a homo sapiens Ika "ensina" a eles, assim como a posição sexual menos animalesca e mais humanizada, finalizando com uma emblemática cena da continuidade da espécie.
Fim de Festa
3.2 54Ao final, Fim de Festa funciona bem melhor se visto como uma crônica pelo viés de uma família de classe média no Recife. É o pós-Carnaval, a ressaca que acomete os mais jovens (militantes, gays, bis, hipsters) bate de frente com a figura do policial Breno, vivido com naturalidade pelo exímio Irandhir Santos.
Breno prefere a paz do interior à festividade que emana brasilidade e é retirado de seus dias de descanso para investigar um crime chocante: uma jovem francesa é assassinada de maneira brutal e a única testemunha é um usuário de crack em condição de rua.
Assim como fizera no excelente Tatuagem, Hilton Lacerda naturaliza os personagens e as situações. Ele faz uma espécie de panorama da atual situação do país, a ver pela sequência na praia onde as meninas estão com os seios à mostra e uma mulher brada "eu quero meu país de volta". A família da vítima francesa também serve para ilustrar essa extrema-direita que sofre da síndrome de vira-lata, na qual tudo que parece ser do Brasil é ruim e só o que é europeu é bom.
O roteiro do próprio Lacerda ainda faz alusões à situação da Argentina, um país tão ou mais ferrado quanto o nosso, mas evoluído em vários outros sentidos, como na permissão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nessa brincadeira, Lacerda parece não se decidir pela crítica social ou pelo exercício de gênero, o crime parece se resolver antes do combinado e deixa uma sensação de que poderia ter rendido mais. O relacionamento entre pai e filho também é levado de maneira superficial, e mesmo a bela cena final da conversa entre ambos ainda deixa uma ferida em aberto que o longa não dá conta.
De qualquer forma, é um filme que por mais que pareça "atirar pra todos os lados", na verdade nos chama a atenção para vários aspectos de nossa sociedade, ainda que não se aprofunde muito em nenhum deles.
O Homem Invisível
3.8 2,0K Assista AgoraNeste O Homem Invisível, o diretor Leigh Whannell (que iniciou sua carreira ao lado de James Wan roteirizando Jogos Mortais) reimagina a clássica história de H.G. Wells para os dias atuais. Diferentemente das versões anteriores, a homônima de 1933, dirigida por James Whale, que funciona hoje bem mais próxima ao cômico, e a versão de Paul Verhoeven (O Homem Sem Sombra, 2000) na qual a invisibilidade do cientista vivido por Kevin Bacon converge muito mais para uma perturbadora fetichização, aqui Whannell nos propõe um exercício de gênero bastante tenso onde o maior medo está na figura do ex abusivo da protagonista.
No longa, Cecilia Kess (Elisabeth Moss) está fugindo deste relacionamento com um gênio da ótica que, aparentemente, descobriu uma maneira de ficar invisível. O roteiro de Whannell é hábil em criar situações nas quais questionamos se Cecilia está com a razão ou se ela está delirando, principalmente nos minutos iniciais. No entanto, seu interesse maior está em se assumir logo como um thriller psicológico. Sua câmera desliza suavemente pelos cenários buscando a profundidade de corredores escuros servindo como gatilho para causar tensão ao espectador. Prepare-se para os sustos. Aliado a isso, Moss está incrível como a vítima de gaslighting, se firmando como uma das atrizes mais versáteis da atualidade.
E é justamente ao apostar em suas habilidades cênicas (ela praticamente leva o filme sozinha por mais da metade) que Whannell assume o terror de gênero a partir de certo ponto, dali em diante, o longa usa e abusa de reviravoltas e situações intensas, se permitindo utilizar alguns movimentos de câmera que parecem ter sido inspirados em seu longa antecessor, o ótimo Upgrade. Ao final, O Homem Invisível pode não reinventar o gênero (e nem quer), mas assusta, incomoda e atualiza um clássico como poucos remakes têm feito - lembram de A Múmia com Tom Cruise? Melhor não. Se quisermos que a Universal aposte em um universo compartilhado entre seus monstros, este é o melhor exemplo a ser seguido.
O Mundo dos Pequeninos
4.2 653 Assista AgoraA primeira parte onde conhecemos o dia-a-dia da família pequenina é encantador, creio que dava pra explorar mais os desafios deles em sobreviver dependendo tanto dos adultos, já na metade o longa perde força, mas permanece simpático até o fim.
Uma Vida Oculta
3.9 154Terrence Malick estreou nos cinemas nos anos 70 (com Terra de Ninguém, em 73), auge da Nova Hollywood, e embora não tenha entrado pra história como um dos grandes nomes do movimento, já que posteriormente dirigiu apenas Cinzas no Paraíso (1978) e entrou em um hiato de 20 anos, pode-se dizer que ele é um dos poucos diretores daquela época que continua exercendo seu estilo, o qual ele foi moldando nas três fases de seu cinema: a 1ª com Terra de Ninguém e Cinzas no Paraíso. A 2ª com Além da Linha Vermelha, O Novo Mundo e A Árvore da Vida e a 3ª com Amor Pleno, Cavaleiro de Copas e De Canção em Canção.
Em Uma Vida Oculta, Malick parece iniciar uma espécie de 4ª fase. Fica perceptível desde o início que seu novo longa se desprende da temática "white people problems" de seus trabalhos mais recentes e nos leva de volta aos mesmos efeitos de sua 2ª fase, na qual seus filmes proporcionavam ao espectador tanto um esmero visual quanto um estudo aprofundado da alma de seus personagens com toques divinos e contemplativos.
Assim como fazia Costa-Gavras, Malick traz um tema político como motor de sua narrativa: a ameaça fascista. É Malick ligado nos temas relevantes do novo século. Acompanhamos a história real de Franz Jägerstätter (August Diehl) preso durante a invasão nazista na Áustria por se negar a fazer o juramento de lealdade a Adolf Hitler por valores morais e éticos. Em paralelo a seus dias de martírio na prisão, acompanhamos o dia-a-dia de sua esposa e as duas filhas sobrevivendo entre a hostilidade dos vizinhos e dos próprios parentes.
Para alguns, pode ser Malick fazendo o de sempre (e não deixa de ser). No entanto, o diretor exerce sua assinatura como há muito não fazia. O fascínio divino e a poesia visual estão ali a todo momento, sem roubar o protagonismo de suas personagens. Malick mostra ao mundo o que é preciso para que o bem vença o mal. Qual a importância dessas vidas ocultas. Terminei a sessão em pratos e até agora estou digerindo a pancada que foi ver este filme (comparo com a de Até Logo, Meu Filho que vi ano passado na Mostra de SP). Uma obra grandiosa para ser revisitada de tempos em tempos.