"A Baleia" tem, em seu centro, uma atuação muito sincera e comovente de Brander Fraser como um professor de literatura recluso e morbidamente obeso. Só o fato de um ator outrora galã e protagonista de filmes nostálgicos estilo "sessão da tarde" de repente surgir com uma aparência tão melancólica, corpulenta e fatigante já é o suficiente para despertar em nós certo incômodo e tristeza. O personagem de Charlie opera de maneira interessante - sua visão de mundo é otimista e tolerante para todo o universo (até mesmo em relação à filha rebelde e perversa interpretada por Sadie Sink), menos para si próprio - Charlie se maltrata, se pune de culpa e se enche de comida como um coveiro atola uma cova de terra. O longa traça um paralelo entre o protagonista e a estória de Moby Dick e, no caso, Charlie é simultaneamente o capitão e a baleia, assombrado pela própria imagem mórbida e sempre a um passo de aniquilá-la de vez, de dar fim ao seu sofrimento, de se libertar do peso do seu corpo e do seu mundo - este restrito a um pequeno apartamento-câmara-masmorra.
Brander Fraser é o ator perfeito para o papel: ele confere a Charlie uma inocência e um desamparo genuínos, seus rompantes de emoção surgem de maneira muito espontânea, sem afetações desnecessárias (mesmo se o roteiro não enfatizasse como Charlie é um sujeito delicado e doce, o próprio semblante de Fraser, com seus grandes olhos melífluos e carentes já dariam conta do recado). Infelizmente, o mesmo não pode ser dito a respeito da condução do diretor Darren Aronofsky. Apesar de sua estética exagerada e opressiva de "Grand-Guignol" ter funcionado de maneira brilhante em filmes como "Cisne Negro" (2010) e "Pi" (1998), aqui seus exageros quase matam seu filme. Aronofsky parece não compreender o minimalismo do roteiro de "A Baleia" e que as angústias do personagem de Charlie são suficientes para embalar a narrativa e comover o espectador; o diretor insiste em uma trilha sonora melodramática e ostensiva que abafa as cenas e quase ofusca as interpretações brilhantes do elenco. Em outros momentos, Aronofsky filma suas cenas como se ainda estivesse flertando com o gênero horror como o fez de maneira genial em "Cisne Negro", mas aqui tal abordagem soa descomedida, como uma má compreensão do pathos do protagonista.
Há momentos brilhantes em "A Baleia" - os diálogos entre a personagem de Hong Chau (melhor amiga de Charlie) e o protagonista são dotados de um espontaneidade cativante e tocante; aliás, a atriz merece o Oscar de coadjuvante deste ano, sua interpretação consegue amalgamar de maneira magistral um ressentimento engasgado, uma revolta com as condições duras inerentes à própria vida e um afeto de mãe, ao mesmo tempo, duro e caloroso. É uma personagem complexa que vai revelando diversas nuances a cada cena em que aparece. A relação de Charlie com seus alunos virtuais (o personagem jamais liga sua câmera do laptop com medo da reação que sua imagem provocaria) é explorada de maneira muito interessante, culminando em uma excelente cena em que Charlie subverte seus métodos de ensino e rasga o véu de decoro do universo acadêmico ao expor aquilo que realmente sente e guarda no peito.
O longa é baseado em uma peça de teatro e em certos momentos sentimos uma certa artificialidade nos diálogos e na forma como alguns entreveros dramáticos são solucionados. Isso é notável principalmente na cena em que a ex-esposa de Charlie faz uma visita a ele e os dois finalmente discutem o que acontecera durante todos os dolorosos anos em que se distanciaram, é uma cena que soa um tanto apressada e inverossímil - a conversa surge demasiado elaborada e lúcida para pessoas que há tanto tempo guardam sentimentos contritos e conflitantes e é dotada de reações emotivas um pouco fora do eixo; é uma cena com cara de ensaio de teatro e passa a impressão de que se faz necessária apenas para satisfazer maquinações do roteiro e dar seguimento à redenção de Charlie, mas não soa leal aos personagens que, naquele momento, já conhecemos bem.
O filme pesa a mão em alguns momentos em relação à monstruosidade da personagem de Sadie Sink, é um recurso que quer realçar a benevolência de Charlie, mas que funcionaria melhor com um pouco mais de sutileza. No entanto, essa relação dual central do filme funciona bem em outros instantes e são justamente as cenas em que a filha não é tão má assim e Charlie não é tão bonzinho assim que dão vida ao filme e conferem a ele um peso dramático consistente. Infelizmente, a cena clímax que deveria ser um soco no estômago, acaba se tornando algo "over" e pretensiosamente transcendental - não precisava; quando Aronofsky exagera na estética a sensação que temos é que o diretor perde a confiança em seu material e nas performances de seus atores quando, na verdade, essas são as maiores forças de seu projeto; bastava que ele saísse do caminho do próprio filme (maneirasse nos cacoetes e no vício de criar estrondo de fora para dentro) e permitisse que seus atores e o drama que entoam tivessem mais espaço livre para brilhar.
Quando somos apresentados à personagem central de "Tár", logo no início do longa, sentimos por ela grande fascínio - ela é uma maestrina importante, talentosa, culta, hermética, emproada e de grande dignidade. Ela possui a personalidade que é atribuída estereotipadamente aos gênios - circunspecta, severamente obcecada pelo seu nicho artístico, levemente autística em seu mundo particular e prolixa em seus devaneios intelectualóides. Seu semblant é de grande valor para a comunidade artística que a vê como alguém muito especial, que se destaca do ser-humano mundano, alguém dotado de uma compreensão anormal da fruição artística e do virtuosismo. Ela parece habitar um plano mais sublime, uma redoma de bom gosto em que o sofrimento é válido apenas em prol da beleza e da perfeição estética. Aos poucos, o brilhante "Tár" de Todd Fields vai desconstruindo esse ideal, desmantelando esse ego magnífico. Sob os escombros de uma Deusa arruinada, surge um personagem muito real e fascinante.
O filme lembra o excelente "A Primavera de Uma Solteirona" de 1969 estrelando Maggie Smith. Tár, assim como a idiossincrática e magnética professora Jean Brodie, mas de maneira menos maníaca e espirituosa, mantém com todos ao seu redor (em especial seus interesses amorosos) uma relação delicada de mestre e servo, ela goza em saber que a colocam em um pedestal e goza também em rapidamente substituir seus pequenos brinquedos adoradores por outros mais novos e desafiadores. Descrevendo o filme assim parece que ele exibe Tar como um monstro narcisista, mas não é bem assim - sua paixão visceral pelo ofício da música a enaltece e assim o faz também o amor que sente pela filha adotada (ela chega ao ponto de ameaçar uma das coleguinhas da filha caso ela volte a praticar bullying com a garota). O longa não a crucifica pelo seu sintoma de cunho quase perverso, pelo contrário, ele a humaniza ao mostrá-la tão susceptível às paixões e ao núcleo devastador das neuroses como qualquer outra pessoa. A primeira mácula na esplendorosa armadura da artista surge na forma de uma ex-aluna (e ex-amante) que a ameaça constantemente através de e-mails agressivos e potencialmente perigosos, a ex-aluna - uma rejeitada devastada - ameaça arruinar a vida de Tár que assume em relação a ela uma postura de fantasma, de alguém que nunca teve nada a ver com isso. Se a princípio tal postura soa de uma frieza cruel logo compreendemos que quando Tár rejeita a ex-aluna mentecapta ela está, na verdade, rejeitando a si mesma, desviando o olhar da sua própria loucura e devastação, tão bem disfarçadas e controladas sob o véu de sua altivez. Entendemos isso no momento em que Tar se apaixona por uma nova estudante que, inesperadamente, inverte a dinâmica de seus jogos sexuais - de repente, ela não é mais o objeto admirado que subjuga o outro, mas aquela que, de pernas frementes de adolescente, anseia migalhas de amor daquela que ama.
Tár explora essa dinâmica psicológica de maneira muito bem feita. A rigidez, a ordem e a compostura que caracterizam o universo da música clássica - e que de certa forma também o fazem a personagem principal - contrastam de maneira potente com o que há de mais caótico e hórrido em Tár e em todos nós: a pulsão sexual e o desamparo que nos constitui no nível mais basal. O filme vai mostrando - através da deterioração subjetiva da personagem - que Tár não é apenas uma maestrina brilhante e sublime, mas é também todas as "loucas" frágeis e carentes que rejeitou. É revelado, gradualmente, o núcleo frágil da personagem à revelia de todas suas camadas de decoro (o vocabulário pomposo e o cálculo de seus gestos vão perdendo a eficácia), até que a personagem, feito pipoca, vira ao avesso e expõe suas entranhas amorfas.
O filme se dispõe de aspectos visuais e narrativos muito interessantes para dar forma ao que se passa na subjetividade da personagem. Em determinado momento, por exemplo, ela procura afoita pela moça por quem se apaixona (mas que a rejeita) pelas ruas da cidade e acaba adentrando em uma espécie de túnel subterrâneo, um local ameaçador, estranho e caliginoso que causa a ela grande desconforto - ao tentar escapar ela tropeça em uma escada e machuca as costas e o rosto. A inversão de papéis que Tár estabelece ao se relacionar com a jovem é também um cenário inédito a ela - ali, não é mais ela quem dita as regras; perdida em seu próprio desejo ela adentra um território novo, obscuro, de grande angústia e fragilidade e que revela a ela algo horrível sobre si. O rosto esfolado é pouco comparado aos danos que a relação masoquista estabelecida com a jovem anuncia ao seu ego. De repente, ela não é mais condutora.
O filme alinha seu aspecto dramático com nuances muito interessantes de humor. Há uma cena, por exemplo, em que Tár visita um spa nas Filipinas e é instruída pela recepcionista para que selecione sua massagista a gosto; por detrás de uma vitrine de vidro se encontram dezenas de massagistas enumeradas, organizadas meticulosamente à maneira de uma orquestra, de cabeças baixas, submissas, aguardando o comando. Tal cena, uma espécie de quadro paródico e grotesco do modo de se relacionar da protagonista, causa nela uma grande repulsa de si - ela chega a vomitar na calçada tamanha a rejeição ao que a constitui tão intimamente - a urgência de reger, controlar, subjugar.
Todd Field dirige o filme de maneira contida, mantendo seus planos estáticos e contemplativos e permitindo que o drama deflagre a partir dos diálogos e das atuações; é uma direção sensível e minimalista que busca captar a essência da cena sem jamais cair no melodrama. Cate Blanchett merece todos os prêmios do ano, sua atuação é intensa, mas jamais passa do ponto, a atriz explode nas horas certas e mantém sempre presente no semblante o sinal das maquinações internas da personagem, das angústias sobre as quais pouco pode se dizer, mas que se fazem indisputáveis em sua expressão de górgona auto-petrificante.
O longa se conclui com uma cena fantástica (que não irei revelar), mas que de maneira sardônica coloca a personagem em uma situação tão humilhante, inesperada e longe do ideal que tinha de si que sentimos uma mistura de comoção e alívio. Digo alívio, pois de certa forma o destino de Tár é o de todos nós, o de nos flagrarmos, mais cedo ou mais tarde, em parcial ou total desacerto com aquilo que narcisisticamente almejávamos em onipotência. Compreendemos que até aquela mulher aparentemente absoluta das primeiras cenas não é tão absoluta assim e tem de se refazer por onde é possível. Tár desmistifica não só o ego ideal, mas também - de maneira tragicômica - a noção de que a arte salva, de que ela é totalmente capaz de sublimar nossos impulsos menos nobres. A arte talvez salve um instante, mas depois dele é, de novo, cada um por si.
"Aftersun" acompanha as memórias de uma jovem adulta refletindo sobre as férias que passara com o pai há 20 anos em um resort. O longa possui o arcabouço de um bom filme, mas não atinge a gravidade que pretende. A estética de Charlotte Wells impressiona - a diretora consegue conferir uma intimidade impressionante a seu filme, seja através do foco no barulho da respiração dos personagens ou nos planos fechados que colocam sempre a expressividade destes e seus sentimentos em primazia. Os atores principais, Paul Mescal e Frankie Corio, são de uma naturalidade formidável, acreditamos facilmente que estamos testemunhando duas pessoas reais interagindo.
O que impede "Aftersun" de ser um filme realmente potente, no entanto, é seu roteiro um tanto pusilânime. Se em um primeiro momento fiquei tocado pela naturalidade que o filme consegue atingir ao explorar a relação pai e filha sob um viés nostálgico, comecei a sentir falta - a partir da metade do filme - de algo um pouco mais substancioso. Senti que, apesar das cenas convincentes, algo da relação dos dois não estava sendo mostrado ou perscrutado, que as férias dos dois estavam perfeitas demais. O filme aponta - pelo tom misterioso e dúbio que estabelece - que haverá uma subversão ou um rompimento da relação pai e filha, mas ele não a aprofunda. O minimalismo do filme, em vez de fomentar sua força dramática, a restringe. Apesar de possuir o tom contemplativo e poético de obras-primas como "Poesia" (2010) de Lee Chang-Dong e "A Filha Perdida" (2021) de Maggie Gyllenhaal, "Aftersun" não engrena no subtexto da angustia como estes o fazem, é como se o filme estivesse sempre aquém da verdadeira camada dramática que o tornaria pungente. Talvez seja exigir demais que todo filme centrado na subjetividade de uma personagem e na arqueologia de seu passado íntimo possua a densidade de uma Elena Ferrante, mas "Aftersun" frustra em especial, pois possui elementos bons demais (atuação, estética, temática) para ficar à deriva como fica.
Há cenas muito boas que consistem de filmagens da pequena Sophie feitas por uma câmera digital, são cenas inocentes em que ela faz palhaçadas para a câmera e filma o pai em momentos aleatórios e descontraídos, aliás, o filme se inicia com uma cena deste tipo e traz de maneira muito espontânea a sensação de intimidade e naturalidade entre os dois, no entanto, me decepcionei ao constatar que as cenas "reais" do filme, isto é, aquelas filmadas pela diretora, não são tão diferentes daquelas filmadas pela pequena Sophie, isto é, elas não aprofundam como deveriam a relação dos dois e nem lançam insights que rompem com as encenações pueris da garota, são prolongamentos do olhar infantil, fiquei desejando que houvesse uma cisão mais marcante entre estes dois pontos de vista.
O filme mostra em flashes a vida adulta da personagem principal e como as reminiscências do pai trazem um sentimento de vazio e angustia, no entanto, o que testemunhamos da relação entre pai e filha parece não ser suficiente para explicar ou sustentar o sentimento atual da jovem. A ideia central do filme parece ser examinar a perda do pai idílico, falar da ressignificação de uma infância a partir de um olhar adulto menos inocente, do desvelar daquilo que até então ficou subentendido e marcado apelas pela angustia, no entanto, são raras as vezes que o filme de fato mergulha nesse sentimento durante as cenas do passado; a atmosfera plangente que marca a vida atual da filha carecia de mais contexto e ressonância com as cenas infantis. O filme às vezes sugere que o personagem do pai sofre de vícios e de uma angustia com a efemeridade da juventude e com o peso da responsabilidade paterna (há uma excelente cena em que o pai chora nu em soluços sentado à beira da cama), mas o longa falha em levar esta tensão interna do pai para o relacionamento pai e filha; não é que o filme precisava de mais solavancos dramáticos (seu clima realista, contido e casual é seu grande louro), mas seu não-dito carecia de mais carga implícita, falta tempestade sob o véu da placidez.
Fui assistir a "Barbarian" sem saber nada sobre o filme e durante seu primeiro ato fiquei positivamente surpreso com a tensão que o longa consegue criar a partir de elementos simples. A narrativa gira em torno de dois personagens que se encontram por acaso ao constatarem que alugaram a mesma casa em um bairro mambembe durante uma noite chuvosa (devido a um erro de administração dos sites de hospedagem). O filme cria paupável tensão ao não deixar claro se um dos personagens representa ou não perigo ao outro. Eles são os jovens Tess e Keith, interpretados de maneira muito natural por Georgina Campbell e Bill Skarsgaard; os dois combinam de pernoitar juntos para que, logo na manhã seguinte, possam resolver o impasse com os proprietários. A partir daí, pequenos eventos intrigantes sucedem e passamos a temer pelos personagens sem saber exatamente de onde o perigo iminente virá. O diretor Zach Cregger é bem sucedido em criar uma atmosfera claustrofóbica e ameaçadora, sua câmera se move lentamente e explora os cenários com uma cautela de quem antecipa o pior; a casa tomada por sombras vai se tornando gradativamente um lugar angustiante e sinistro, revelando-se mais inconvencional a cada cena.
Até aí o filme é excelente; de repente, logo após uma cena inesperada de extrema violência, toda a narrativa se interrompe e o longa praticamente começa novamente; não darei spoilers, apenas direi que, ainda que o filme não afunde totalmente e continue intrigante, ele gradativamente vai se tornando mais inverossímil. Se seu primeiro terço é aterrorizante, mas calcado em um nível de realismo que nos faz crer que tudo aquilo de fato poderia estar ocorrendo, o longa desgringola em seu segundo e terceiro ato e desemboca em um lugar mais grotesco e exagerado do que o começo sugeriria possível, isto é, ele rompe com o próprio tom de veracidade que estabelecera tão efetivamente a princípio. Creio que algumas pessoas iram gostar do rumo absurdo que o filme toma, mas particularmente fiquei decepcionado ao ver um filme contido, mas tenso e curioso, optar por uma saída convencional e até tosca do gênero de horror.
Há equívocos que vão se somando a partir do segundo ato. Os personagens cada vez mais agem de formas absurdas, tomando decisões que uma pessoa sã jamais tomaria apenas para que possam correr mais riscos novamente. É um dispositivo típico de filmes de terror mais charlatões que pensei que, aqui, talvez não ocorressem devido ao elegante minimalismo que seus 40 minutos iniciais nos oferecem. "Barbarian" começa com a finesse sombria de um Hitchock e termina mais próximo de algo que Peter Jackson ou Sam Reimi dirigiriam no começo de suas carreiras, isto pode parecer um elogio, mas há uma distância enorme entre esses universos que o filme não consegue concatenar; fica a sensação de que o longa desperdiça toda a tensão acumulada de seu começo para, no final das contas, ser apenas mais um "freakshow".
Após o mediano "A Casa do Demônio" de 2009 e o fraco e apelativo "X" lançado este ano, Ti West finalmente acerta a mão em "Pearl". Se em "A Casa do Demônio" West era bem sucedido em criar uma atmosfera de mistério e perigo com bastante habilidade e paciência o diretor fracassava no terceiro ato quando a ação se desenrola tão precipitadamente em contraste com a languidez dos dois primeiros atos que o filme parecia descompassado, sem equilíbrio. Já em "X", seu pior filme, West quase que depende inteiramente no aspecto grotesco de mortes explicitamente violentas, mas estas surgem tão gratuitamente e sem envolvimento emocional que o filme não possui ressonância, é simplesmente uma grande apelação sensorial sem eixo. Portanto, foi uma bela surpresa constatar que, em "Pearl", West não comete nenhum dos equívocos destes dois filmes anteriores, pelo contrário, ele constrói com proeza uma estória singular bem amarrada e fascinante, um estudo de personagem que sabe a hora certa de aguardar, de crescer e de soltar os cachorros.
"Pearl" é bem sucedido, primeiramente, no aspecto emocional. Ao tornar a personagem central o foco da narrativa desde os primeiros instantes, passamos a ver o mundo pelo seu olhar e a dividir suas frustrações e esperanças. Nos comovemos com sua realidade claustrofóbica e sem afeto (seu pai é um doente-vegetativo e sua mãe uma mulher extremamente augusta e perversa). No entanto, Ti West faz de Pearl mais que uma vítima ou antagonista, ele a constrói como uma pessoa mentalmente perturbada, sem lugar no mundo e que concilia uma inocência infantil com um outro lado estarrecedoramente violento e delirante. A performance de Mia Goth é uma das melhores atuações do ano; a atriz carrega o filme inteiro nas costas e injeta a dose certeira de "pathos" e humor na personagem. O longa brinca com a estética pueril e melodramática dos cinema americano dos anos 50 de maneira inspirada, desde os créditos entoados por uma trilha suntuosa com letreiros kitsch até as expressões de sorriso forçado que Pearl tenta manter em seu semblante à revelia da loucura que o trinca e ameaça devastar tudo e todos.
West segura seus impulsos mais sádicos e infantis neste longa: as mortes são chocantes, mas elas surgem dentro de um contexto, ao contrário do que ocorria em "X", aqui a violência possui um vínculo emocional e surge como consequência última da repressão, da mágoa, do ódio contido e insuportável - não é mero recurso estético de um diretor que quer chocar, mas rompantes lacerantes de uma alma consternada. West também se mostra muito mais inspirado ao filmar as cenas de violência, em vez de simplesmente nos mostrar vísceras, cortes e mutilações feito um cineasta-açougueiro, aqui ele encontra maneiras criativas e tensas de exibir as chacinas, confeccionando aquele "sweet spot" entre insinuação e violência explícita. Em determinado momento, por exemplo, Pearl persegue uma de suas vítimas com um machado, a cena é filmada em um plano-sequência que nos coloca de frente para a vítima; enquanto ela corre para se salvar (sem olhar para trás), ao contrário dela, sabemos a que distância Pearl e seu machado se encontram e antecipamos o ato violento aflitos pelo fato da vítima estar às cegas. West cria algumas analogias simples, mas certeiras: em uma cena, por exemplo, logo no começo do longa, há um porco assado que a mãe de Pearl rejeita de presente e que passa a apodrecer no jardim da casa na mesma medida em que a mente de Pearl se deteriora - quando sua loucura está prestes a atingir seu ápice vislumbramos o porco assado carcomido, cheio de vermes.
Talvez o único equívoco estético de Ti West em "Pearl" seja incluir - lá pelo fim do terceiro ato - uma montagem de cenas muito explícitas que parecem simplesmente querer satisfazer uma audiência mais carniceira, mas que são desnecessárias à narrativa, pois surgem sem muito propósito a não ser enojar. O grande êxito do diretor neste longa, no entanto, é saber conciliar momentos muito intimistas e elegantes (destaque para o monólogo dilacerante da protagonista no terceiro ato em que a câmera não sai de seu rosto por volta de 10 minutos) com outros muito dinâmicos e espetacularmente sinistros sem que o eixo emocional do filme se perca. A psique doente de Pearl é o ponto nevrálgico do começo ao fim e seus horrores internos ancoram o filme para que, mesmo quando o sangue jorre, ele não pareça mero artificio apelativo, mas matéria-prima de uma alma trágica fulminante.
Fui assistir a "Terrifier 2" sem saber nada a respeito (não vi o primeiro filme) além do fato de que é uma produção que aposta na violência descomunal e explícitamente e possui um antagonista de aspecto horrendo. Infelizmente, o pouco no filme que funciona é graças apenas a esses dois aspectos já que o resto é absolutamente deplorável.
Fui surpreendido logo no começo pela qualidade baixíssima das atuações; com exceção talvez da moça antipática de tranças coloridas, nenhum dos personagens convence (a mãe dos protagonistas, em especial, performa de maneira absurdamente amadora e artificial). Digo que fui surpreendido pelas más atuações, pois trata-se de um filme com efeitos especiais muito convincentes, portanto, algo do orçamento deveria ter sido salvo para contratar atores profissionais. Outro aspecto que me surpreendeu é que apesar das cenas de violência serem convincentes no aspecto visual - as vísceras e dilaceramentos remetem aos melhores trabalhos de Tom Savini - elas provocam riso junto ao nojo; não sei se é intencional ou não, mas tais cenas são tão mal atuadas (os personagens nunca parecem de fato estar sentindo dor ou acometidos de um pânico gutural) que não provocam o horror que supostamente deviam causar considerando a violência extrema que possuem. Em certo instante, por exemplo, uma garota tem seu corpo severamente multilado (incluindo pele e olho arrancados), mas sua expressão é de quem apenas tomou um remédio para dor de cabeça.
O filme tem uma longa duração (mais de duas horas), mas é tão vápido e apressado que passa rápido, a sensação de assisti-lo é a de folhear uma revista cheia de gravuras sádicas. As cenas emendam uma na outra sem muita ceremônia, a direção de Damien Leone é sem graça, sem beleza e sem atmosfera, as cenas acontecem sem muita antecipação ou tensão. O filme me perdeu logo no começo quando há um diálogo entre a protagonista e a mãe: a edição alterna os planos entre as duas de maneira tão óbvia e amadora que senti estar vendo um vídeo amador de atuação do youtube - quando a mãe começa a falar o plano permanece nela até que ela termine sua frase, assim que é a vez da filha falar o plano muda para seu rosto até que ela conclua a frase e assim segue a cena alternando entre as duas de maneira absolutamente mecânica. Até diretores de horror capengas e de baixíssimo orçamento como Andy Milligan e Herschell Gordon Lewis sabiam encenar um diálogo com mais graça e criatividade. Outro problema: talvez por uma questão de orçamento nunca conseguimos entender bem onde cada cenário está situado e a dimensão destes - vemos praticamente apenas o interior das casas e, no segundo ato, o interior de uma casa de horror de um parque de diversão abandonado. A fotografia é deplorável, os tons de azul e laranja somados ao baixo contraste deixam o filme com aspecto morno, de filtro de instagram, isto é, nada cinemático e atmosférico. O fundo dos cenários e os personagens parecem ocupar o mesmo plano, é uma fotografia sem profundidade, sem dimensão - achatada.
O roteiro do longa é uma bagunça; nunca fica claro se o filme quer apresentar o antagonista como um serial killer atormentado por delírios ou como uma figura mítica com poderes sobrenaturais; há uma falta de clareza a respeito do que é real ou não dentro de seu próprio universo - fica confuso se o que vemos na tela os personagens do filme também podem ver; cada personagem parece ter uma visão diferente da realidade e, para piorar, o filme ainda acrescenta elementos de fantasia em sua narrativa absolutamente desconexos e tolos. Além do caos no roteiro, há cenas absolutamente inverossímeis - em determinado momento, por exemplo, o palhaço horripilante aparece na casa de uma jovem pedindo doces de halloween e, apesar de sua aparência que obviamente extrapola o aceitável de uma fantasia de halloween, ela não se mostra abalada ou ameaçada, mas fleumaticamente cínica e alheia. Como um filme de terror espera que nós, espectadores, nos abalemos com ele se seus próprios personagens não parecem ligar muito pros horrores que os acometem? Aliás, ainda que visualmente o palhaço antagonista seja medonho com seus dentes expostos de escorbuto e seus olhos escancarados, ele aparece com tanta frequência, de maneira tão insípida e dotado de cacoetes tão manjados e tolos que depois de 15 minutos ele já não causa medo, nos acostumamos com sua presença e passamos a achá-lo até tosco, como qualquer outro palhaço.
"Don't Worry Darling" bebe na fonte de filmes que abordam a paranóia e o horror sob o verniz do "american way of life" como "The Stepford Wives" de 1975 e "The Truman Show" de 1998. A trama gira em torno de uma jovem interpretada por Florence Pugh, moradora de uma comunidade isolada aparentemente situada no começo dos anos 60 em que a vida fantasiosa das brincadeiras de casinha ganha vida e de fato funciona, isto é, até que ela começa a testemunhar uma série de acontecimentos bizarros que a levam a questionar seu lugar ali e o caráter das pessoas que tudo ali controlam sob sigilo. É um filme dirigido com muita competência por Olivia Wilde - as cenas de tensão angustiam e são embaladas por uma trilha sonora cacofônica em stacatto interessante. O longa é bem sucedido em nos envolver na narrativa da personagem principal, em grande parte graças à atuação emotiva de Florence Pugh, a atriz - sempre muito expressiva - consegue criar um cerne de autenticidade em sua personagem à despeito das falhas do roteiro que às vezes a impele a ações e diálogos pouco críveis (em determinado ela faz uma extensa caminhada no deserto para investigar um acontecimento estranho em vez de chamar a polícia ou mesmo voltar para casa e pedir ajuda e em outro profere palavras de amor a um personagem em um momento onde isso seria absolutamente incabível).
O filme segue razoavelmente bem até sua reta final (há uma ótima cena de perseguição no último ato que nos deixa ansiosos e nos faz torcer vigorosamente pela protagonista), no entanto, quando a última cena se encerra fica a sensação de que nada foi explicado muito bem, de que os roteiristas não souberam muito bem o que fazer com tudo aquilo que foi desenvolvido até então. Fica a sensação de que, enquanto espectadores, participamos de uma brincadeira interessante e até assustadora, mas que, no final das contas, não tem muita lógica. Em vez de sentir um arrebato pelas angústias vivenciadas pela personagem, comecei a retomar cenas na cabeça procurando entender o porquê disso ou aquilo ter acontecido ou como tal acontecimento x se relaciona a y até que, constatando que os realizadores do filme provavelmente não sabiam mesmo o que faziam, desisti. O longa carecia desesperadamente de um roteiro mais amarrado, mais claro, mais firme em suas intenções e na forma como dá sentido a seu universo particular.
A atuação de Harry Styles não é memorável, mas também não é ruim. Há uma cena de discussão entre Pugh e Styles em que o último nitidamente não acompanha o pique da primeira e em que a reação atônita da atriz ao encerrar a cena exigia que ele entregasse muito mais visceralidade e energia para que fosse justificada - fica um descompasso. No entanto há de se dizer que Styles tem muito pouco com o que trabalhar já que seu personagem (por uma questão principalmente de roteiro) é fleumático e distante durante praticamente todo o longa.
"Don't Worry Darling", apesar de todos seus defeitos, funciona esteticamente, a decupagem de Olivia Wilde é inventiva, seus planos se movimentam de maneiras inesperadas, o uso de trilhos para que a câmera se movimente rapidamente e nos desloque de uma aparente tranquilidade é interessante, por exemplo. As cenas de alucinação da protagonista são criativas (uma envolvendo uma parede constritora é memorável) e conseguem criar incômodo e o climax envolvendo carros no deserto e muita correria é bem montado. Infelizmente, o longa se encerra com tantas pontas soltas e elementos mal explicados que seu efeito estético não é o suficiente para fazer o espectador não se importar com os desfalques de lógica; quem sabe se o filme houvesse optado por explorar um universo menos metafísico e complexo e mais calcado no real - nas relações entre os personagens e os desdobramentos destas - ele tornaria mais fácil para si mesmo se explicar e se concluir de maneira satisfatória.
"Fall" é mais um filme que coloca seus personagens em uma situação aterradora e minimalista (desta vez explorando não nosso medo primal de lugares fechados ou criaturas selvagens, mas o medo de altura). A premissa é simples: duas garotas presas em uma enorme torre de rádio de 2000 metros. O longa funciona muito bem em diversos momentos, explorando de maneira hábil a tensão das personagens ao se deparar com uma situação mortífera praticamente irresoluta. Scott Mann abusa dos planos panorâmicos, mas nos mantém também próximos da experiência das protagonistas; assim como em "Oxygen" de 2021 o filme é bem sucedido em nos transmitir uma sensação física de desespero e aflição - é difícil não franzir o sobrolho ou contrair os lábios durante algumas cenas do segundo ato. O roteiro é bastante criativo na maneira como inventa novas situações de pânico em um cenário restrito - o que não poderia piorar piora e, com algumas exceções mais ao final do longa, as situações são razoavelmente convincentes.
Infelizmente, apesar de competente em diversas passagens, o filme possui alguns equívocos que o impedem de se concluir de maneira satisfatória. Apesar da premissa simples e eficaz, o filme perde a confiança no seu próprio apelo em diversos instantes: equivocadamente, ele insiste em prolongar o dramalhão dos personagens (o que apenas desvia foco da parte mais interessante - o perigo real que enfrentam) e, pior, insere sequências alucinátorias e reviravoltas absurdas que mais provocam um riso desdenhoso do que genuína surpresa. Aliás, tais recursos parecem acometer quase todos os filmes deste tipo ("47 Meters Down" de 2012, por exemplo, sofria do mesmo problema). "Fall" seria muito mais eficaz caso houvesse tido a coragem de cortar por inteiro as cenas de discussão entre as amigas envolvendo dramas do passado e descartado todas as reviravoltas do terceiro ato - aliás, as frases pseudo-filosóficas e a trilha sonora etérea que permeiam as últimas cenas são nauseantes.
O mais frustrante em "Fall" é que o filme é bem dirigido em sua maior parte e, salvo alguns cenários digitais demasiado artificiais, nos convence destramente de que aquelas pessoas de fato poderiam estar vivendo tal pesadelo. Questiono frustrado, no entanto, que equívoco é esse por parte dos diretores de filmes de sobrevivência de achar que o espectador demanda dramalhão e reviravolta em filmes deste tipo? O apelo do terror de sobrevivência está justamente na potência avassaladora de uma situação real, de um perigo concreto que, se bem explorado esteticamente, não exige mais nada para fiquemos envolvidos e perplexos. Basta que os personagens sejam críveis e ajam naturalmente que automaticamente já nos identificaremos com eles - o dramalhão, a intriga e as "enganadinhas" (os irritantes "plot twists") são absolutamente dispensáveis e apenas desrespeitam nossa inteligência.
"Nope" é uma grande decepção. Nunca acheis os filmes de Jordan Peele perfeitos, apesar de seu tino para executar sequências tensas e um olhar estético refinado ao montar seus planos, o diretor tem mania de complicar demais suas tramas, arranjando explicações e ramificações absolutamente desnecessárias, como foi o caso em "Us", um filme cuja primeira metade divertida e tensa desanda logo em seguida e desemboca em uma conclusão absurda e forçada. "Nope" não sofre do mesmo male, pelo contrário, é um filme que encontra seu tom no ato final, mas que até chegar lá se equivoca ao insistir em uma atmosfera esparsa, sem foco e nos amarra à companhia de personagens pseudo-engraçados que nunca convencem ou nos despertam comoção.
A premissa do longa é interessante e se passa em um cenário curioso (um rancho de uma família negra cujo ofício desde os primórdios de Hollywood é treinar cavalos usados em filmes). O foco da família são dois irmãos interpretados por Daniel Kaluuya e Keke Palmer, James e Jill. Os dois começam a notar estranhos acontecimentos em seu rancho, algo ameaçador que aparentemente vem das nuvens está causando mortes e fenômenos bizarros (inclusive seu pai falecera nestas circustâncias). Os dois se empenham, então, em capturar em vídeo tal mistério. A ideia é divertida, mas Peele parece incapaz de dar forma a seu filme, há tantas divagações no percurso dos dois irmãos que a tensão almejada (que até surge em certas cenas) fica diluída. Temos uma subtrama de um ator mirim "has-been" que gere um parque temático mambembe nas proximidades do rancho dos irmãos cujo passado é marcado por um chimpanzé que, em surto, foi responsável por uma chacina durante a gravação de um popular seriado que o ator protagonizava nos anos 90. As cenas envolvendo esta subtrama são bem feitas - talvez até melhores que as contempladas na trama principal - e casam bem humor e horror, mas falham em conversar com o resto do filme e acabam o atrapalhando. Fiquei desejando que Peele tivesse se restringido em simplesmente criar uma homenagem moderna aos filmes B de criaturas dos anos 50, como o faz de maneira brilhante "Tremors" de 1990 - um filme despretensioso, ágil, com ótimos designs de criaturas e personagens simpáticos e mundanos.
Um problema grave de "Nope" é que os protagonistas são chatos. James permanece lacônico e fleumático durante toda a projeção. Talvez a ideia de Peele era fazer dele o tipo caladão e comum, isto é, fugir do estereótipo de herói, mas o diretor esqueceu de desenvolver minimamente o personagem ou de conferir a ele certo charme para que nos importemos com seu destino. James mal esboça qualquer reação de medo ou espanto, algo essencial em um filme que apresenta como cerne a fragilidade do ser-humano frente a natureza e sua ameaçadora imprevisiblidade. Keke Palmer tem bons momentos no clímax do filme, mas sua personagem também é bastante irritante, seu tom de piadista irreverente e estrídula satura cedo e a relação entre ela e o irmão jamais soa verdadeira e natural. O roteiro de Peele parece preocupado em criar diálogos irônicos e debochados em todas as cenas, mas são diálogos sem naturalidade (o próprio uso da expressão "nope" que dá título ao filme é usada de maneira insossa), nunca sentimos que as pessoas estão conversando normalmente a partir de uma subjetividade singular, elas parecem sempre estar meramente reproduzindo o humor do diretor (que diga-se de passagem é bastante fraco) - todos os personagens são uma só pessoa, Jordan Peele. Há uma cena terrível em que um repórter do TMZ (uma espécie de central decadente dos paparazzi sensacionalistas) sofre um acidente e tudo o que diz é: "Tirou minha foto? Cadê meu celular? Filma meu acidente!". Fica claro que Peele quer fazer uma crítica à falta de escrúpulos da mídia, mas ele o faz de maneira tão simplória e tão óbvia que sentimos mais vergonha do diretor que do alvo de sua crítica.
No terceiro ato o filme melhora. Temos uma cena de perseguição muito bem filmada e um desfecho criativo, que utiliza bem os cenários e retoma elementos que foram apresentados mais cedo no filme de maneira criativa. No entanto, o filme possui erros tão graves que já é tarde demais; há fallhas em aspectos essenciais, o design do antagonista, por exemplo, é fraco, lembra bibêlôs de carnaval e é cartunesco demais para ser ameaçador. Talvez o maior inimigo do filme seja, no entanto, seu ritmo, o crescendo da tensão é tão frequentemente interrompido e os personagens estão tão ocupados sendo engraçadinhos que a trama principal - que envolve a ameaça misteriosa e seus desdobramentos - fica em segundo plano. Hitchock fez "The Birds" em 1963 - um filme que também explora o horror da natureza e do desconhecido - recorrendo a efeitos especiais ridículos, mas a maneira focada como conduz sua narrativa, sua sensiblidade para criar antecipação e tensão através do silêncio e do implícito, a elegância de seus planos e sua edição meticulosa que faz cada plano parecer uma facada ainda impressionam e são uma aula para qualquer diretor que se arvora a fazer suspense. "Nope" fica de recuperação.
"Jurassic Dominion" aposta em uma promissa de muito apelo: reunir os protagonistas do filme original e exibir dezenas de espécies de dinossauros nas mais variadas situações (sem os desnecessários híbridos dessa vez). Se a ideia é boa, o filme decepciona na execução e no roteiro, que recicla mais do que homenageia e pior, dilui aspectos marcantes do primeiro filme ao tentar condensar uma miríade de tramas, personagens e dinossauros em 2 horas e 20 de duração. É o dobro de conteúdo com a metade da eficácia do clássico de 1993.
O filme gira em torno de uma mutação de gafanhotos resultante da irresponsabilidade e ganância da companhia Biosyn que agora cria seus dinossauros em uma espécie de santuário tecnológico. A companhia almeja controlar o mundo através do poder genético e para isso precisa raptar Maisie, a garotinha-clone do filme anterior, para dar seguimento às suas pesquisas. Tal cenário leva os protagonistas tanto da trilogia original quanto da mais recente em uma aventura de resgate e investigação.
O maior defeito do longa é a direção mambembe de Colin Trevorrow. No primeiro "Jurassic World" o diretor já me incomodava com sua direção um tanto sem "peso" - as cenas aconteciam de maneira muito leviana, sem implicação emocional e com excesso de computação gráfica cartunesca e artificial; o diretor nunca conseguia conferir o tom adequado às cenas de perigo que nunca de fato transmitiam a sensação de perigo. Isto infelizmente se repete em Dominion. Ao passo que é interessante e emocionante ver o trio original de volta, há algo na maneira como interagem que soa artificial e demasiado ligeiro. Em certo momento, por exemplo, em que os personagens se envolvem em uma investigação perigosa (eles correm o risco iminente de morte) a maneira como interagem continua leve, como se estivessem passeando no shopping. Creio que este problema não é tanto culpa dos atores, mas da abordagem inconsequente e infantil de Trevorrow e do roteiro flutuante e raso escrito pelo diretor em parceria com Emily Carmichael. É uma pena ver Dr. Alan Grant, o personagem sistemático, estoico e tenso do primeiro filme reduzido a uma série de falas rápidas e desanimadas que parecem não exprimir nada além de uma repetição diluída do que caracterizava seu personagem no primeiro filme. Ele ainda demonstra ciúmes por Ellie, hesita em deixar a segurança das escavações para se arriscar no mundo "real" e de tempo em tempo exprime uma de suas falas marcantes do primeiro filme, no entanto, estes retornos são meros apelos à nostalgia, eles não funcionam descontextualizados e apenas aborrecem o espectador, pois no máximo nos lembram de como o filme original é muito mais articulado e bem escrito.
Dr. Ian Malcom e Dra. Ellie Satler também não são explorados de maneira muito interessante. O primeiro surpreendentemente aparece por pouco tempo e suas falas são muito menos criativas e interessantes do que foram nos dois primeiros filmes dirigidos por Spielberg - seu discurso sobre os perigos da ciência em uma palestra, por exemplo, é extremamente lugar-comum e não chega perto de evocar o fascínio que sua postura mordente e debochada outrora provocava. O personagem acaba se revelando mais cansado e ausente do que blasé e provocador. Dra. Ellie Satler está estranhamente mais aérea, apesar de ser ela quem impulsiona a trama científica envolvendo o trio; não há em seus gritos histriônicos o pânico que transmitiam no filme original, mas apenas uma leve afetação desinteressada (aliás, fiquei insatisfeito ao constatar que sua melhor cena no trailer - aquele em que grita enquanto escorrega em direção a boca de um dinossauro - não está presente na versão final do filme). A sensanção é de que em Dominion não é permitido pelo roteiro e pela direção que os personagens de fato mergulhem em suas características marcantes, que se apossem de quem são; o filme não arrisca se tornar denso, sério e perigoso, ele está sempre inserindo uma piadinha insossa aqui e ali em momentos inadequados e fragmentando o tom de suas cenas de maneira que a intenção da mesma se perde - não sabemos se é uma cena tensa, descontraída, cômica, importante ou perfunctória. Na trilogia original o humor era incorporado de maneira orgânica, se nos era permitido rir em determinada situação, era um riso de nervoso (a sequência dos dinossauros na cozinha é um exemplo marcante disto - por um momento pensamos que o raptor vai atacar a garota, no entanto, ele avança é no seu reflexo no fogão - a engenhosidade da cena causa aflição e riso).
Em relação aos personagens novos, surpreendentemente, a Claire de Bryce Dallas Howard é a personagem mais convincente do filme, pois parece ser a única que de fato leva a sério seu destino e as situações de perigo em que se encontra. Ela sustenta uma tensão ausente em quase todos os outros personagens. A Maisie de Isabella Sermon é mais interessante que as crianças enfadonhas do primeiro Jurassic World e protagoniza uma das poucas cenas do terceiro ato do longa em que o perigo parece real. DeWanda Wise possui presença e um charme petulante, mas sua personagem não tem muito tempo de mostrar quem é aglutinada a tantos outros elementos.
Senti falta de pelo menos uma breve aparição das crianças do filme original - são tantos personagens desnecessários que achei curioso privilegiá-los e ignorar o quão interessante seria ver os netos de Hammond adultos e descobrir o rumo que tomaram.
Os dinossauros novos possuem designs ameaçadores e protagonizam cenas até divertidas. Não são todas que funcionam: a perseguição em Malta - tão enfatizada no trailer - é decepcionante, pois Trevorrow a filma e a edita de maneira ansiosa; nunca conseguimos localizar exatamente onde os personagens estão em relação aos predadores. De um plano para o outro, a configuração e a distância entre os heróis e os "monstros" parecem mudar de repente, não há continuidade clara e, portanto, não há tensão; o diretor aposta em planos frenéticos (em determinado momento a câmera faz um giro rápido em seu eixo enquanto mostra Claire, um atrociraptor e um vilão em um quarto pequeno e nos desorienta), pouco estéticos (um em especial me incomodou: a câmera movimenta velozmente para acompanhar os personagens em movimento e o foco fica na rua de cimento enquanto nos cantos surgem os pés do dinossauro e no outro a roda da moto) e demasiado fechados (uma cena à céu aberto, que deveria ser arrebatadora, fica enclausurada e confusa). Nestes momentos sentimos falta da precisão de Spielberg que nunca nos deixava desorientados espacialmente - esquecíamos que o filme estava sendo dirigido, usufruíamos de sua técnica sem percebê-la.
"Dominion" poucas vezes aposta na sensação de terror e de impotência dos heróis perante os predadores como o primeiro o fazia em suas melhores cenas.
A que mais gostei talvez seja a que envolve os dimetrodons em uma caverna, a cena - apesar de muito escura - é uma das poucas que constrói uma tensão gradativa e mostra os dinossauros de maneira ameaçadora e surpreendente. O ataque dos dilofossauros a personagem Claire também é interessante e bem construída, apesar de se concluir de maneira pouco inspirada e até ridícula.
Outros momentos como os que envolvem o dinossauro com penas Pyroraptor e o gigante voador Quetzalcuatlus são interessantes, mas extremamente breves e mal aproveitados. Trevorrow tem a chance nestas duas cenas de nos dar alguns bons sustos, mas no momento em que deveria nos surpreender ele opta por planos que matam a tensão - seja a do Pyroraptor saindo do lago em câmera lenta (o que nos dá tempo não só de não nos assustarmos, mas para perceber a artificialidade da criatura) ou do Quetzalcoatlus vindo de longe atacar o avião (de maneira que prevemos o momento em que os personagens serão atingidos - ao contrário deles, não somos surpreendidos e assim nos distanciamos de sua experiência).
Os efeitos especiais são irregulares; apesar da maior quantidade de animatrônicos, eles são menos convincentes que os da trilogia original (são duros e às vezes possuem um brilho plástico) e são usados com pouca frequência. As imagens de computação gráfica oscilam em qualidade: o Therizinossauro, por exemplo, possui um design exótico e ameaçador fascinante e se movimenta de maneira fluída e convincente (com exceção do momento em que empurra um cervo com suas garras de maneira quase paródica), já os raptores (tanto o Atrociraptor quanto o Velociraptor) às vezes surgem duros e opacos, se movimentando como se seus corpos estivessem fragmentados e desarticulados. Os melhores "takes" infelizmente estão todos nos trailers (com a excessão das cenas envolvendo os dimetrodons).
O Giganotossauro, que poderia ter se tornado o destaque do longa, surge de maneira pouco cerimoniosa; Trevorrow comete o grave erro de apresentá-lo sem mistério - vemos o animal cedo na trama dormindo na floresta e logo em seguida perambulando casualmente em busca de comida. Quando ele finalmente se faz importante na trama, já não possui o mesmo impacto - este era um bom momento para Trevorrow imitar o filme original e fazer com o Giganotossauro o que Spielberg fez com o Tiranossauro: introduzi-lo indiretamente (off-screen) através de diálogos temerosos e de uma cabra fremente, para depois revelá-lo em toda sua glória fulminante no ataque aos carros.
Algo que prejudica todos os filmes da trilogia "Jurassic World" é a crença de que o público só responde a determinada fórmula.
Dominion repete o clímax risível de Jurassic World cometendo os mesmos erros - transformando os dinossauros em mocinhos e vilões e apostando em imagens pouco atraentes e até ridículas (muito escuras e com efeitos de computação duvidosos) para gerar um espetáculo inverossímil mais adequado a um videogame.
Enquanto os filmes da saga insistirem em superar o anterior na quantidade de informação e de espetáculo e em repetir exatamente os mesmos desfechos ela está fadada à exaustão. É preciso entender que o filme de Spielberg funcionou tão bem não porque seguia uma agenda específica, mas porque equilibrava o humano e o fantástico sem que o último engolisse o primeiro e porque apostava em um ritmo que paulatinamente atingia seus divertidos clímaxes. Sem a antecipação, o espetáculo se torna vazio e até cansativo. Essa lição a nova saga nunca aprendeu.
Robert Eggers é um diretor frustrante. Se por um lado seus filmes armam situações psicológicas potencialmente interessantes (seja a simbiose fatal entre dois homens em "O Farol" ou a saga Hamletiana de amor e ódio contemplada em "O Homem do Norte") seus desfechos são aniquilações de ambiguidade e parecem privilegiar o choque superficial a uma possível conclusão poética.
"O Homem do Norte" é um filme envolvente durante seus dois primeiros terços. A estética ominosa de Eggers é impressionante - ele aposta em uma fotografia sombria, mas nítida, em que a noite parece iluminada e caliginosa ao mesmo tempo. O impulso inicial do protagonista em vingar a morte do pai e salvar a mãe é promissor e acompanhamos de maneria tensa sua saga violenta e macabra. No entanto, chega um ponto no filme que Eggers parece querer subverter sua narrativa clássica (e até então eficaz) ao virar completamente ao avesso uma das personagens cruciais; no entanto, em vez de complexificá-la ou nos surpreender emocionalmente, tal reviravolta soa apelativa e inverosímil, isto é, não faz nenhum favor a narrativa, apenas a empobrece; Eggers "joga" uma personagem até então fleumática, mas benevolente, para um outro extremo caricato. A cena muda o filme de rumo, mas é incapaz de conferir qualquer tensão moral ou de sentimento ao longa tamanha sua artificialidade. É como se a gravidade que até então sustentava o enredo fosse jogada fora a favor do mero choque, o filme perde o chão e se suaviza emocionalmente apesar de todos os fatos horríveis que dali deflagram.
Em "O Farol", Eggers também demonstrou uma certa inadequação no momentum de suas cenas impactantes. O diretor é ótimo em nos afligir com imagens grotescas (estas surgem de supetão e de fato aterrorizam e enojam), mas se ele é bem-sucedido esteticamente, o desenrolar psicológico de seus personagens é sempre "off", desconectado. Já me incomodava em "O Farol" como a trama Polanskiesca falhava em encontrar o momento certo para "apertar o parafuso" da relação doentia entre seus protagonistas; o diretor ou inseria cenas surrealistas e carregadas de simbologia cedo demais na trama, ou falhava em explorar a subjetividade de seus personagens de forma orgânica e crível, apostando sempre na tragédia enquanto desfecho mórbido, mas superficial. O mesmo ocorre em "O Homem do Norte": a partir de certo momento do filme não parece mais que o que está em jogo são os conflitos internos do protagonista, mas os acasos bizarros ditados pelo roteiro desvairado. O filme é de fora pra dentro; Eggers é um deus irresponsável sujigando seus personagens para que ajam e interajam segundo seu capricho, mas não se importando com a dinâmica psicológica entre eles. Talvez este seja o buraco de seus filmes; eles invocam um mundo meândrico, angustiante e fatalista, mas fazem de seus personagens meros joguetes da perversão do diretor. Não sentimos que seus heróis e vilões tem muito a dizer sobre si e sobre os outros: são ocos e cumprem sua senda por inércia; apesar de extremos na violência, não despertam fascínio.
Eggers parece sempre querer que a angustia de seu filme venha de alguma certeza - seja da descoberta de uma traição ou da ira diante um terrível homicídio - mas nunca do que está latente; o diretor faz questão de levantar todas as pedras e mostrar exatamente o que há debaixo delas. Não há tino para as ambiguidades, o diretor esquarteja cabeças e mutila corpos, mas não tolera a alfição do não-saber ou de deixar um personagem à mercê de suas próprias inconsistências. O mistério que suas paisagens tortuosas evocam com tanta eficácia não está presente em seus personagens lisos.
O extenso elenco possui grandes nomes. Alexander Skarsgard e Ethan Hawke trazem uma intensidade exaustiva a seus papéis e o resto dos atores não tem chance de fazer muita coisa; Bjork possui uma caracterização curiosa, mas sua cena é extremamente breve. Nicole Kidman - geralmente uma boa atriz - está supreendentemente mal colocada em sua personagem (sua "grande cena" é tão cacofônica, mal escrita, mal dirigida e mal atuada que até nos tira do filme por uns instantes).
"O Homem do Norte" termina e não fica muito coisa além de uma admiração desinteressada pela opulência visual; testemunhamos uma série interminável de infortúnios abismais, mas não ficamos com os personagens e seus conflitos nos assombrando a cabeça, estes evanescem rápido e de maneira indolor.
"Mass" acompanha o encontro de dois casais que resolvem se encontrar a fim de (pelo menos em teoria) expor seus sentimentos e conversar a respeito de uma terrível tragédia envolvendo seus filhos. Eles não sabem bem como fazê-lo e trazem como certeza apenas a terrível angústia que os atormenta.
Fran Kranz, responsável pelo roteiro e pela direção, encontra maneiras interessantes de abordar a angustia latente dos personagens. Se no começo ela surge disfarçada na educação exagerada e tensa exibida pelos casais, mais tarde se transforma em prantos viscerais e confissões catárticas. O filme demora um pouco para revelar o que realmente acontecera entre os filhos dos casais, deixando-nos situados apenas pela angustia que permeia o encontro. Descobrimos mais tarde que um dos filhos cometera um atentado em sua escola, matando várias crianças incluindo o filho pequeno do outro casal.
"Mass" é um título minimalista, mas abrangente. Mass pode ser "missa"; além do fato de estarem realizando seu encontro em uma igreja, os personagens passam por uma espécie de exorcismo no qual o ódio e a revolta tentam encontrar salvação na palavra e por pouco não culminam em mais revolta e mais ódio (o encontro é tenso, pois pode tanto caminhar para uma direção terapêutica ou para um rompante de ira). Mass também alude a "mass murder" (assassinato em massa), mas em uma conotação mais interessante também pode significar "massa" - a matéria sólida indefinida que engasga os pais, pesados de uma perda irreparável e inefável, soterrados no cimento do luto.
Os quatro atores entregam atuações tão convincentes que o filme se torna quase um relato vivo - nos tornamos voyeurs de seres humanos reais que buscam aflitos uns nos outros alguma palavra reveladora de conforto ou mesmo alguma vala para despejar o insuportável que os assolam. Em determinado momento, o casal cujo filho foi vítima do assassinato (Gail e Jay) parece desejar que o outro casal (Linda e Richard) odeie o filho assassino pelo crime que cometeu, mas não porque querem que o casal se responsabilize pelo ato cometido, mas porque sadicamente esperam que Linda e Richard caluniem e desacreditem no próprio filho à revelia dos sentimentos de amor que, apesar de tudo, ainda permanecem. "Se nós sofremos, vocês devem sofrer mais", parecem ruminar em segredo. Filho é nervo exposto, é prolongamento inseparável do narcisismo dos pais, é para além da razão e da moral. Vemos em ambos os casais a incapacidade de abrir mão da fantasia de que um filho não morre e de que um filho não mata, de aceitar que faz parte da vida perder aquilo que não há cabimento perder; seja um ideal ou a própria vida.
O filme se encerra com Gail e Jay (pais do garoto assassinado) escutando o coro que ensaia no andar de cima da igreja. Jay é arrebatado pela beleza das vozes infantis e celestiais e se tal arroubo pode ser justificado por uma esperança sobrenatural de algum dia reencontrar o filho, é também possível que tenha ocorrido ao personagem uma percepção súbita de que, mesmo quando a massa da dor - escudo incomplacente - torna a vida soturna e abafada, a beleza ainda encontra furos para se fazer presente,
O design de arte e a animação em "Encanto" são impecáveis. Os cenários apresentam dimensão e profundidade e os personagens impressionam pela quantidade de sutilezas que são capazes de expressar com seus movimentos de face. No entanto, o filme é mais uma mensagem do que uma experiência.
A narrativa envolve uma família cuja matriarca (a avó) fora misteriosamente presenteada com uma magia quando perdera seu marido em uma invasão de colonizadores em sua antiga terra. A magia, contida em uma vela que nunca se apaga, erigiu uma bela casa-viva onde desde então habita em paz com sua família. Cada membro desta família é presenteada em sua infância com um dom (como falar com os animais ou ser dotado de uma força excepcional), menos a protagonista Mirabel que vive angustiada se sentindo desvalorizada pela avó e incapaz de ajudar a comunidade como os outros fazem.
Tudo em encanto é uma metáfora sobre como abrimos mãos de nossos próprios desejos para pertencer, agradar e manter tudo como está, ainda que tudo não esteja tão bem assim. A avó obsessivamente tenta manter a família organizada e o encanto vivo, mas quando o seu jeito habitual de gerir as coisas de repente começa a mostrar fissuras (assim como a casa) ela não sabe mais como agir e passa a negar a realidade, temendo perder tudo o que conquistou, mas também incapaz de traçar um novo caminho que exija abrir mão do controle e da superexigente perfeição que impinge em si e na família. O "encanto" do filme surge como metáfora do potente amor da avó, um amor que outrora salvara a família, mas que agora é demasiado inflexível e dominador, impossibilitando que a família permaneça unida e viva pelo afeto. Mirabel, a "desprovida de poder", decide ajudar a família e tenta descobrir de onde vem a falência do robusto sistema familiar que até então jamais vacilara. Por não possuir um grande poder milagroso como os outros e sempre ter tido de lidar com uma falta estrutural, ela acaba sendo mais capaz de suportar o desmoronar da "perfeição" e de buscar uma solução. Mirabel, ao contrário da avó conservadora e gravemente neurótica, consegue bancar a insatisfação e a angustia que precedem o traçar de um novo caminho, de uma nova configuração, algo crucial para que a família saia de sua crise.
"Encanto" cria um cenário mítico interessante e é criativa a maneira como aborda as relações familiares como um delicado sistema em que os vilões não são seres específicos, mas a rigidez e super exigência dos indivíduos que acabam matando a vivacidade e a força das relações. Tais conceitos - demasiado abstratos para um filme infantil - ganham forma na magia da cidade encantada e nos dons que cada membro da família possui. No entanto, apesar de toda essa superelaboração, "Encanto" sofre de alguns defeitos que inibem sua potência. O filme possui personagens demais e muitos deles acabam passando em branco (não chegam nem a se tornar caricatos, apenas ficam mal desenvolvidos). O mais grave defeito, no entanto, é que o longa possui uma pressa maníaca para resolver seus dilemas e seus conflitos psicológicos, ele jamais se dá tempo suficiente para que as resoluções soem críveis. Por exemplo: Mirabel vai confrontar - contra sua vontade - sua irmã vaidosa e antipática esperando que ambas se reconciliem para um bem maior; a irmã se mostra petulante e não é receptiva. No entanto, em questões de segundos um número musical irrompe e graças a uma artimanha do roteiro - a irmã de repente descobre que sabe fazer mais do que criar flores, ela também gera cactus e troncos desformes - as duas se reconciliam e seu arco dramático é encerrado com prontidão e perfeição. A irmã descobre - em um passe de mágica - que não precisa ser tão perfeita assim.
É como se "Encanto" não compactuasse com a própria mensagem. O longa não se permite encarar por muito tempo qualquer tragédia ou desavença entres seus personagens - todas as fissuras são tamponadas e reformadas em tempo recorde. Mesmo o grande conflito do filme envolvendo a avó e Mirabel de repente é contornado através de uma breve conversa na qual todos, de repente, se tornam compreensivos e maduros. Anos de terapia são condensados em calculados ensejos. E, diante dessa pressa, o filme acaba não nos permitindo de fato compreender e sentir as dores que atravessam aquela família. O imperativo de resolução que comanda o filme acaba enfraquecendo a beleza de seus personagens, reduzindo sua complexidade humana. É imprescindível encarar a dor um tempo antes que ela se transforme em algo mais encantador.
"The Lost Daughter" é um filme sensível e pungente sobre uma mulher de meia idade chamada Leda que, ao visitar uma região litorânea na Grécia, é inesperadamente tocada em um ponto visceral ao notar uma jovem mãe (Nina) com sua filha pequena na praia. A mãe parece bruta, impaciente e despreparada e a filha é petulante e demanda sem trégua. Tal visão evoca em Leda uma miríade de sentimentos e memórias. Freud já dizia: "o ser humano sofre de reminiscências". Leda não é assombrada pelo seu passado, ela é seu próprio passado e este se repete diversas vezes durante o longa enquanto a personagem interage com a estranha (mas familiar) família com a qual divide a estada no litoral. A potência do filme está no fato de que a protagonista não é uma figura nem necessariamente simpática nem monstruosa, ela nos captura pela indefinição. Há ambiguidade em todos seus gestos - se ela é cruel, logo em seguida há culpa, e isto a dignifica. Somos capazes de repudiá-la e compreendê-la simultaneamente, pois damos notícia de nós mesmos a cada manobra sua; há um horror em perceber que o mais horrível do horror é humano.
Desde as cenas iniciais de Leda flutuando absorta no mar há um clima de introspecção e densidade no filme de estreia de Maggie Gyllenhaal. A câmera da diretora é intimista e desinibida, transportando-nos de maneira sensorial (e não intelectual) ao universo de Leda. É admirável como o filme consegue nos dizer muito sem artificialidades de roteiro, de exposições desnecessárias ou diálogos fabricados, mas através de semblantes que parecem denunciar pensamentos secretos e de palavras mal ditas e mal compreendidas. É um filme despreocupado em fornecer respostas ou transmitir mensagens perfunctórias ou moralistas, mas que mergulha corajoso no mistério do feminino e da maternidade. Esta função tão idealizada é explorada no longa em sua face mais áspera e é desconstruída e desvelada, "desnaturalizada", como diz a protagonista em determinado momento. Ser mãe é inventar, não assumir.
Leda diz que o que mais gosta em suas filhas não é aquilo que elas possuem de parecido com ela, mas aquilo que elas possuem de mais íntimo e secreto, pois sabe que isso elas não podem atribuir a culpa a ela. A culpa de Leda é a culpa de quem não consegue ser uma só: ela ama as filhas, mas também as odeia, ela quer estar perto delas, mas também se sente sufocada pelo papel materno (tanto que de tempo em tempo, na sua história, ela o rasga e rompe com ele, indo em busca de aventuras e de sua própria identidade). Leda se cobra ser mãe, mas tudo o que consegue é estar mãe de vez em quando.
O título "a filha perdida" assume significados diversos no decorrer do longa. Há, é claro, as perdas reais: a garotinha se perde da mãe na praia e em seguida perde sua filha-boneca, mas a filha perdida é também a própria Leda, devastada pela relação difícil que teve com a própria mãe, uma mãe que não fora capaz de dar a ela um lastro afetivo, deixando-a sem referência feminina. As filhas perdidas também são as filhas imaginárias que Leda perdera ao lidar com suas filhas "reais" que, por serem sujeitos por si mesmos desejantes e diferentes do que ela imaginara, furam sua fantasia. A boneca de Leda, pela qual era tão apegada e que acaba sendo "arruinada" por uma de suas filhas, é um símbolo potente no filme - é a infância idealizada de Leda que não cessa de ressurgir (tanto em si própria quanto projetada em suas filhas), é o apego ao estático, à criança-objeto que comporta nossos desejos, reflete límpido o nosso narcisismo e ao contrário de uma criança real, não o desafia nem o contesta. Quando Leda resolve roubar a boneca da menina da praia, idêntica a sua própria, Leda quer resgatar algo de si que se perdera para sempre em um objeto capaz de sustentar suas expectativas, que diz "sim, eu sou o que você quer" o tempo inteiro, uma insígnia da completude. É interessante que mesmo tal objeto parece incapaz de ser aquilo que Leda espera dele - em determinada cena a boneca, suja de lama do mar, regurgita uma repugnante minhoca; Leda é pega de surpresa e fica enojada. Até a boneca é suja por dentro. Até um ser rasteiro e ínfimo aniquila o decalque.
Leda frequentemente se depara com a realidade obstruindo e invadindo seus ideais. Sejam as vistosas frutas da cesta que ao serem viradas revelam a face apodrecida ou a cigarra que invade sua cama e a desperta de um sono prazeroso com seu rangido infernal e aspecto grotesco, há sempre algo de sombrio e desagradável desassossegando seu idílio. Por mais que a personagem busque se distrair e driblar suas mazelas internas, há algo que sempre aponta para o seu incômodo, para seu ponto nevrálgico. Leda é uma antena de neurose e nada escapa a sua sensibilidade. A pinha que cai da árvore e marca suas costas é tão talhante quanto as memórias desavisadas que despencam de seu inconsciente. O que ela não sabe que sabe, mas está sempre ali, insistindo para se fazer ouvido, de repente aparece esquematizado em outra família, onde fica mais fácil para Leda se reconhecer e se situar. Não é um fascínio qualquer aquele que nutre pela jovem, desagradável e volúvel Nina e sua filhinha problemática - na segurança do outro lado do espelho ela faz suportável saber de si.
Há uma situação recorrente durante o longa em que Leda descasca uma laranja de maneira que a casca não se rompe e que, quando toda recortada, se assemelha a uma cobrinha - suas filhas, fascinadas, assistem a mãe descascar a laranja e vibram com a cobrinha de casca. Tal gesto ganha, no decorrer do filme, uma outra conotação. A casca de laranja que não pode se interromper parece dizer da própria expectativa de Leda de um amor ininterrupto, que não pode se partir, que não pode vacilar e talvez, justamente por que há essa exigente expectativa, também não pode ser suportado. É um filme sem final feliz, mas que se conclui também com algum alívio - prostrada na beira da praia após vivenciar uma situação terrivelmente angustiante e desmaiar na areia, ela ri e descasca mais uma vez uma laranja, dessa vez de maneira muito menos tensa, inclusive gargalhando enquanto conversa com as filhas preocupadas no telefone. A tragédia oscila entre a comédia e Leda consegue rir de si. O passado não cessa de retornar feito as ondas que a atingiram no rosto (e a acordaram assustada) e que agora molham gentilmente seus pés. Talvez, para Leda e todos nós, seja tudo uma questão de posição.
A adaptação da obra de Henry James feita por Jane Campion em seu filme "Portrait of a Lady" é um dos dramas psicológicos mais ricos e potentes dos últimos 30 anos, portanto, esperava que algo da intensidade deste se repetiria na nova obra da diretora: "Ataque dos Cães". Infelizmente, o filme, apesar de cultivar certa intensidade graças ao apuro estético de Campion, falha em encontrar em seus personagens rasos e na obviedade de suas relações uma ressonância de fato visceral.
O filme acerta ao criar nas paisagens desérticas e montanhosas pelas quais os personagens caminham desolados um espaço angustiante no qual se revelam, feito as sombras nas montanhas, seus desejos e formas mais obscuras. Se Jane Campion acerta na estética, no entanto, seu filme não funciona devido a um equívoco: a diretora pensa que está fazendo um filme muito mais sutil do que realmente está. Campion basicamente coloca dois personagens opostos interagindo e, a partir de um certo momento, revela algo secreto e estrutural destes que muda a engrenagem da narrativa, mas não necessariamente a complexifica - é com se o rio mudasse de direção, mas não se aprofundasse.
Tanto o pusilânime e sensível Peter interpretado por Kodi Smit-McPhee quanto o tacanho neandertal Phill interpretado por Benedict Cumberbatch soam demasiado caricatos para suportar o clima dúbio que Campion impõe em sua narrativa. O desenvolvimento de tais personagens seguem uma lógica calcada na noção de que subverter estereótipos é suficiente para torná-los verossímeis e complexos. Quando notamos o caminho que o filme irá seguir ele deixa de surpreender e deixa de expandir a relação entre seus personagens que parecem fadados a cumprir um desfecho de rotina, servil à temática que Jane Campion drena até o talo sem desabrochá-la - o semblante masculino e feminino enquanto fachada da verdadeira face do desejo.
As atuações são, em sua maior parte, eficientes; Benedict Cumberbatch confere admirável intensidade ao agressivo (mas frágil) cowboy e o torna até digno de simpatia (há algo de infantil em seu pathos que comove apesar de todas as atrocidades que comete); o ectomórfico e pálido Kodi Smit-McPhee confere a Peter um ar de mistério interessante, ainda que nunca de fato acessemos sua essência. Kirsten Dunst tenta compensar a personagem prosaica imbuindo-a de uma emotividade exagerada que vai além do que a cena pede, seus lampejos de lágrimas e semblantes consternados são tempestades em copos rasos.
"Ataque dos Cães" não é mais denso que um melodrama de Douglas Sirk, mas assume um prumo "Antonioni-esco" que soa equivocado, indigno da obviedade do roteiro pedestre. Jane Campion erigiu um longa demasiado calculado, sem espaço para o equívoco - os personagens, ainda que opostos, se encaixam e se refletem com perfeição. Sobra, no final das contas, não o vazio fecundo de Antonioni, mas uma falta de vazio, um filme que já disse tudo sobre si mesmo.
"Hidalgo" possui um ar retrô atraente que remete aos filmes de aventura de Douglas Fairbanks e Errol Flynn, mas com o refinamento técnico e tom artimanhoso da trilogia Indiana Jones. Viggo Mortensen encarna o herói titular de maneira carismática e modesta, transmitindo pathos e nos convencendo que o personagem impecavelmente ético, bonito e destemido de fato pode existir.
Joe Johnston é um diretor muito competente e, seguindo os passos de Steven Spielberg, é particularmente eficiente ao conduzir cenas de ação - seu trabalho em filmes como "Jumanji" (1995) e "Jurassic Park III" (2001) é esteticamente empolgante e memorável; em suas obras que pendem mais para o dramático ele tende a esbarrar no hiper-sentimental e em um filme como "Hildalgo", que se encontra no limiar da ação e do drama, ele atinge resultados irregulares.
O que impede "Hidalgo" de ser um filme excepcionalmente divertido e tocante é que o longa divaga demais enquanto liga uma cena a outra. Com 40 minutos a menos e focando mais na relação do protagonista com seu cavalo (que é justamente seu ponto forte) o filme poderia até ter se tornado um clássico do faroeste-aventura, já que possui elementos sólidos para atingir seu objetivo (um bom diretor, um bom ator principal e qualidade técnica). O roteiro estofado falha em firmar o filme em seu ponto visceral (a amizade entre Frank e o cavalo Hidalgo) e, portanto, apesar de um belíssimo e emocionante desfecho envolvendo uma enorme manada de cavalos e boas cenas de ação que evocam Indiana Jones, o filme se perde nos tediosos intervalos entre tais cenas, nos quais diálogos pouco inspirados e extensas caminhadas no deserto derrubam qualquer momentum.
Com exceção do sheik Riyadh (interpretado com panache por Omar Sharif) e que diverte com sua conduta assertiva, mas moralmente ambivalente, o resto dos personagens não acrescentam muito a trama e nem são oferecidos destinos interessantes.
Há um divertido e emocionante filme de 90 minutos em "Hidalgo", mas Joe Johnston parece não ter tido a coragem de deixar que a simples e eficaz relação entre o protagonista e seu cavalo assumisse as rédeas.
Há dois momentos brilhantes em "The Eyes of Tammy Faye": o primeiro ocorre quando Tammy , em seu programa de TV, conversa emocionada com um homem gay portador de HIV e demonstra sua compaixão à revelia do próprio público religioso e conservador que, em sua grande parte, jamais a apoiaria em tal gesto. O outro envolve toda a última porção do filme, quando nos deparamos com uma Tammy Faye matrona nos anos 90, besuntada de maquiagem, modelada feito um artefato kistch e esbanjando um carisma trágico enquanto tenta refazer sua vida profissional abalada pelas polêmicas que enfrentara na década anterior. A performance de Jessica Chastain, em especial nestes momentos citados, é arrebatadora e culmina em uma sequência musical tocante que evoca uma catarse triunfal ausente no resto do longa; é uma pena que apenas no último terço do filme a personagem de Tammy encontre o pathos necessário para que o filme nos capture em um nível visceral. Fiquei desejando que o longa houvesse começado ali onde termina, na sopa já quente e densa, em vez de que tentasse explorar (infrutiferamente) o passo a passo de cada ingrediente formador de Tammy Faye.
O longa mantém, durante sua maior parte, um tom inconsequente e jocoso e se aventura em uma narrativa pouco interessante enquanto acompanhamos a trajetória amorosa e profissional de Tammy - desde sua infância conservadora até sua ascensão na TV ao lado do marido e, também pastor, Jim Bakker. Durante sua maior parte o filme falha em entrar em compasso com a energia maníaca que fez de Tammy Faye uma figura tão memorável, além disso, há poucas tentativas de explorar seu lado cômico e absurdo; o filmes não oferece à personagem situações corriqueiras, apenas grandes viradas e acontecimentos. Em vez de explorar as questões burocráticas ao redor da protagonista (seus affairs, sua trajetória em shows de TV, seus encontros artimanhosos com homens de negócios), o filme se sairia melhor explorando o próprio absurdo da persona de Faye, afinal, uma mulher religiosa que se assemelha em energia e visual a uma drag queen - uma figura herética para o meio religioso - é por definição fascinante.
O humor natural de Tammy Faye emana de sua grande histeria, seus símbolos de hiper-feminilidade (muita maquiagem, muita roupa, muita jóia) são, na verdade, agressivamente masculino, isto é, ela é um sujeito extramamente ativo cujas insígnias exacerbadas de feminilidade a corporificam feito uma guerreira de armadura - talvez daí venha sua grande afinidade com o universo gay e vice-versa, desta amalgama paradoxal do feminino e do masculino, de uma aparente passividade ao marido, a Deus e a igreja, mas que só existe enquanto Faye comanda, incita e se faz absolutamente presente. Infelizmente, tudo isso que é fascinante sobre Faye é sufocado por tentativas formulaicas da produção de conferir ao filme um corpo tradicional de biografia.
Jessica Chastain raramente se assemelha fisicamente a Tammy apesar de todo o trabalho de maquiagem e prostéticos (seu porte é demasiado esguio e portento para se assemelhar ao corpo chato e de cacoetes ansiosos da verdadeira Faye), no entanto, ela procura dar uma profundidade e uma dignidade à personagem que transcende a mera caricatura e, concomitantemente (e mais importante), não sacrifica seu lado pilhérico infame que é, sem dúvidas, o que a torna tão singular e amável. Infelizmente, o filme ao seu redor aborda Tammy de maneira equivocada, quase matemática de tão rígida - indo de A a B nos desdobramentos factuais e não dando chances para que a verdadeira estrela - a personalidade extravagante de Tammy - ocupe o palco central. Bastava deixar que Tammy falasse, chorasse, cantasse e falasse.
Um dos filmes piores filmes que já vi. Um simulacro cacofônico e desagradável incapaz de ensejar sequer um sentimento genuíno.
Adam Driver está extremamente antipático no papel principal e Marion Cotillard surge apática e opaca. Até mesmo a metáfora central do filme, a do filho-objeto sujeito às insanidades narcísicas dos pais, é má explorada por Leos Carax que insiste em um tom cínico e anódino do começo ao fim. É um filme que parece regozijar em idiossincrasias que, no final das contas, não significam nada. Ser estranho para ser estranho não faz de um filme ressonante. "The Rocky Horror Picture Show" (1975) e "Harold and Maude" (1971), por exemplo, são filmes que foram percebidos como bizarros na época de lançamento, mas que se tornaram clássicos duradouros APESAR de sua estranheza, porque mais no fundo (em um nível inconsciente) algo foi capaz de tocar diversas gerações de fãs. "Annette" não possui essa qualidade, é apenas um exercício excêntrico, desalmado e perfunctório.
É difícil falar se o fato de "Annette" ser um musical o torna menos ou mais cansativo, já que o vácuo do longa é estrutural e não de gênero. Algumas das músicas da produção possuem melodias bonitas, mas jamais funcionam para incrementar a narrativa ou revelar algo sobre seus personagens. São letras tão repetitivas e banais que fazem Michel Legrand parecer Chico Buarque.
"Annette" preguiçosamente esboça o sentimento e a tragédia, mas é engolido pelos excessos e ineptidões de Leos Carax que, durante intermináveis 2 horas e 20 minutos, afoga seu filme em um estilismo plástico e indigesto.
"House of Gucci" é um filme que triunfa em muitos aspectos, mas que devido a algumas inconsistências pontuais não consegue se tornar um filme excelente. É interessante como o veterano Ridley Scott o dirige hesitante em torná-lo um espetáculo, conferindo um ar de filme europeu de arte em certos momentos (as cenas se arrastam despreocupadas e nem sempre deixam clara suas intenções) e em outros apostando em um humor canastrão e afetado que esbarra no estilo de Paul Verhoeven e Pedro Almodovar. Esta indecisão na maneira de como abordar o filme é curiosa, pois não é necessariamente ruim - o longa consegue ser ao mesmo tempo engraçado e verossímil. No entanto, se o filme não é uma palhaçada, ele também não atinge a densidade necessária para se tornar solene ou profundo.
O elenco é sem dúvidas o ponto forte do longa; o destaque vai para Al Pacino como Aldo, um dos donos do império Gucci. Ele é o único ator do elenco que consegue equilibrar com perfeição as faces cômicas e trágicas do filme com absoluta naturalidade. Ao mesmo tempo que rimos de seus trejeitos e canastrices, também conseguimos nos sensibilizar com suas frustrações; ainda que seu personagem não seja ético, ele é carismático e convincente nas mãos do ator e, isso, faz toda a diferença.
A performance de Lady GaGa é surpreendente e muito superior a sua atuação no superestimado "A Star is Born". A atriz esbanja muito mais presença e energia em "House of Gucci". Não é uma atuação perfeita e chega a ser um pouco inconsistente: às vezes suas falas soam um pouco artificiais (como se ela ainda estivesse ensaiando) e sua mania de atuar com os dentes em cenas mais exigentes - com uma voracidade quase canina - anula uma possível ambiguidade da personagem (que poderia ser evocada no caso de uma abordagem mais nuançada). Em outros momentos, no entanto, Lady GaGa brilha, em especial no começo do filme quando sua mistura de ingenuidade e ousadia formam um traço interessante, imprevisível e charmoso e, é claro, no terceiro ato, quando o roteiro permite a atriz invocar o lado sinistro e insuflado de ira que a conduz Patrizia ao fatídico assassinato.
Jeremy Irons, apesar do papel pequeno, comanda a atenção em todas suas cenas como o austero, vaidoso e oblíquo Rodolfo Gucci. Jared Leto talvez seja o único integrante fraco do elenco, conferindo ao filho parvo de Aldo cacoetes e inflexões vocais dignas de um animador de festa infantil fazendo uma caricatura de Super Mario Bros. É um performance afetada de pura vaidade que parece o tempo inteiro dizer: "veja como sou absurdamente engraçado". É um personagem que fica solto na trama, incapaz de conversar com os demais e que se encontra milhas distante de qualquer verossimilhança com um ser humano. Em suas cenas com a personagem Patrizzia, por exemplo, parece que estamos assistindo uma edição artimanhosa de dois personagens de filmes diferentes.
"House of Gucci" é longo demais e apesar de apenas se tornar realmente tedioso perto de sua conclusão (quando o foco deixa de estar nos personagens e se concentra mais no destino burocrático da empresa Gucci), muitas cenas poderiam ter sido cortadas ou reduzidas. Há um momento, por exemplo, em que Patrizia vai até a amante de seu marido e diz a ela indiretamente, mas sem nenhuma sutileza, que sabe que os dois estão tendo um caso e que ela não vai aceitar que isto aconteça; é uma cena absolutamente desnecessária que apenas "chove no molhado" já que, imediatamente antes, há uma troca de olhares entre as duas que diz muito mais dos sentimentos de Patrizia e de sua ira de ciúmes do que tal conversa sinóptica. E isto se repete em outras ocasiões do filme: há demasiadas cenas que não acrescentam nada e cujo conteúdo expositivo poderia ter sido expressado de maneira mais eficaz através de recursos mais sugestivos e tensos - olhares, omissões, deslizes, gestos e etc.
Em alguns momentos o roteiro é tão óbvio em suas intenções que o longa perde força, especialmente no terceiro ato quando somos levados a crer que o casamento de Patrizia e Maurizio está se desintegrando. Em vez da crise marital que enfim leva Patrizia a assassinar o marido ser desenvolvida paulatinamente e de maneira tensa, ela surge de supetão e artificialmente, quase como uma obrigatoriedade do roteiro para que seu desfecho faça sentido; inclusive as cenas que servem para mostrar a tal "crise" são tão dolorosamente óbvias que é possível escutar o lápis preguiçoso do roteirista roçando desinteressadamente o papel.
"House of Gucci", apesar de todos esses defeitos, é um filme envolvente que, quando ameaça desinflar e morrer na praia, injeta alguma cena espirituosa ou nos brinda com o vigor de seus bons atores. Há algo na dinâmica da família Gucci e sua cacofonia de prestígio, ambição, inveja, amor e neurose que cativa. Ridley Scott confere um clima interessante à narrativa que não vai agradar a todos, mas que achei bem-vinda; ele concatena a personalidade estridente e aleivosa da telenovela com a ambiguidade moral do cinema europeu, isto é, os personagens espalhafatosos não seguem códigos morais, mas nem por isso são punidos ou celebrados; eles lidam com as consequências de seus atos como qualquer ser-humano, às vezes obnubilados, incapazes de discernir o ódio do amor, a ira da paixão. E aí reside o fascínio que causa o império Gucci (e qualquer família problemática digna de filme) - nos laços estreitos que enfeitam, abraçam, sufocam e até matam, mas que raramente, de fato, se desfazem.
É admirável a energia que Halle Berry investe em seu primeiro projeto como diretora. Longe de parecer ter seus 55 anos, a atriz é competente tanto como diretora como protagonista - ela encarna os dois papéis com profunda naturalidade. Nunca percebemos que o filme está sendo "dirigido", um ótimo sinal para saber se um filme, de fato, é ou não bem dirigido. Berry usa seu estilo estético para servir à estória e não o contrário.
"Bruised" não é um filme ruim. O começo é cativante e o estilo cinéma vérité que Berry emprega traz uma protagonista sofrida e quase antipática em um mundo absolutamente desolador. É um longa sofrido, repleto de personagens agressivos, mal amados e sem salvação. A protagonista é pobre e masoquista, sua mãe não passa de uma piriguete idosa que jamais ligou para a filha, seu namorado é um "white trash" abrutalhado e incompetente, sua carreira está em frangalhos e para piorar ela descobre que o filho que há tempos abandonara está de volta em sua vida após a morte do seu ex-namorado, pai do garoto. Há uma sobrecarga de drama no filme que diminui seu impacto. São muitos assuntos diferentes que parecem se aglutinar em sufoco em vez de conferir pathos à jornada de superação da lutadora.
Sheila Atim encarna uma inesperada parceira da protagonista que a ergue de sua lama e provê um porto seguro, é uma atriz e personagem interessante - paradoxalmente sensível e estóica, mas no momento em que esta passa a se envolver romanticamente com Justice o filme mais uma vez faz um desvio pouco interessante que apenas compromete seu ritmo e acrescenta mais um "conflito" desnecessário, mais uma situação a ser resolvida; o aparente alívio que Justice encontrara na parceira, agora já é mais um nó que caleja em um filme que ameaça se tornar uma grande e pesada rede de nós.
O filme termina muito bem ao culminar no retorno aos ringues da protagonista. O combate em si é muito bem orquestrado por Berry e é um dos poucos momentos no filme em que de fato investi na estória de maneira visceral. O grande defeito do longa está em achar que uma longa duração e uma cornucópia de diferentes conflitos e personagens problemáticos confere a ele uma densidade maior. Pelo contrário, elecertamente seria mais potente caso Berry houvesse enxugado o segundo ato e evitado cenas que acabam desviando o filme do seu ponto visceral - a ira ambivalente de Justice, que ora se direciona ao triunfo da luta enquanto espaço de catarse e amor e oras se volta para seu próprio nocaute pelo álcool e pela depressão.
"Bruised" traça caminhos demasiado familiares de maneira que, durante a projeção, é inevitável pensar em dezenas de filmes similares e mais eficientes que abordam a mesma temática como "The Wrestler" (2008), "Rocky" (1976) e "Million Dollar Baby"(2004). Não há nada idiossincrático ou cativante o suficiente no longa para que ignoremos o lugar comum que ele tão frequentemente ocupa. Nada tira o mérito de Berry como diretora e atriz, mas torço para que seu próximo projeto seja mais singular e possa dar formas mais interessante a seus talentos.
"Spencer" faz um recorte preciso e precioso de uma princesa Diana que não precisa ser boa ou má e cuja narrativa não exalta o drama ou a intriga, mas deflagra um conflito interno, de pulsão de vida e de morte e que titubeia a cada cena enquanto a personagem almeja alguma catarse, através do amor (pelos filhos ou pela criada por quem se afeiçoa) ou pela dor (seja da compulsão alimentar ou do ódio pelos monarcas que ameaça explodir em ímpeto violento).
Tudo aquilo que já sabemos sobre a princesa (através de inúmeras reportagens, filmes e documentários) não é explicado ou declarado, mas surge ominoso através de olhares e atravessado nos diálogos. Quando, por exemplo, Diana vê Camilla na igreja, basta seu semblante cínico e pernicioso direcionado à protagonista para que de repente o filme evoque toda a conturbada relação do triângulo amoroso e o sofrimento que este impinge. O mesmo vale para a frieza de górgona exibida pela rainha, um figura inacessível que surge sempre ameaçadora, esfíngica e áspera.
O corpo quebrado e hesitante de Kristen Stewart reflete com perfeição o desconforto da própria Diana e é impressionante, desde as cenas iniciais, a maneira como a atriz assume o visual e os trejeitos do personagem com excelência. Diana surge imbuída de um sofrimento que ao mesmo tempo que a constitui e a diferencia dos seres impávidos da realeza, também denuncia sua covardia moral de viver aquilo que realmente deseja - uma vida mais amorosa e espontânea.
A abordagem intimista do filme revela o malabarismo que Diana faz com suas urgências mais íntimas; a personagem vaga pelos salões indecisa, ponderando se vai ou não ao jantar real, isto é, se cumpre ou não aquilo que os outros demandam dela, outros que pouco importam quem sejam, mas que dentro dela assumem o caráter do Dever, da Lei, do Carrasco. Sensivelmente batizado de "Spencer", o filme é sobre a Diana que ousa desafiar a sentença que ela própria impõe sobre si mesma, a sentença de sofrer para agradar, para pertencer e para, consequentemente, sumir. Se seu conflito inicial é ou desparecer no papel de princesa (engolida pelos ditames monárquicos, feitos somente de "passado", como ela mesma diz) ou desaparecer com o próprio corpo (na mutilação, na bulimia, no suicídio), mais tarde seu destino vai ganhando outras cores, tons de vida e de desejo.
Identificada aos belos faisões que são assassinados para jantares finos e que são criados somente para esse fim, ela reinventa seu desígnio. O interessante do filme é que ele não erotiza o sofrimento de Diana, não se trata de uma elegia ao seu status de mártir, e isto fica claro na maneira como o filme trabalha o personagem Major Gregory. O austero "vigia" da corte a presenteia com um livro sobre Ana Bolena (a rainha degolada por desafiar o sistema) e Diana cai em sua armadilha em um primeiro momento, temendo que sua rebeldia a leve ao mesmo destino da rainha; no entanto, o filme encerra com Diana devolvendo a ele o livro, isto é, devolvendo o lugar que ele a colocou e que ela aceitou, mas que agora soa demasiado estreito e fúnebre.
"Você precisa ser chocada", diz a amiga criada a Diana em determinado momento. Talvez o choque - o susto - que Diana leva ao constatar que se perdeu pelas estradas outrora familiares no começo do filme seja o mesmo que a impulsiona a, enfim, traçar um novo rumo em sua vida; é quando ela estranha não reconhecer seu próprio passado que suas certezas se abalam e uma faísca de coragem se anuncia, coragem de querer saber de si. A luta interna de Diana comove, pois é uma versão fabulosa (no sentido de fábula mesmo, como o próprio filme se identifica) do sofrimento neurótico que gira em torno não de "ser ou não ser", mas de "ser do outro ou ser outro", de se acomodar no sofrimento confortável e sólido como as paredes do castelo ou de se aventurar nas estradas incertas do desejo, onde, como diz Clarice Lispector, se perder também é caminho.
"Finch" não hesita em traçar caminhos demasiado familiares. Em diversos momentos surge a sensação de que o filme está repetindo - à maneira do robô Jeff emulando seu criador - outros filmes de ficção/drama como "A Estrada" (2009) e "Corrida Silenciosa" (1972). No entanto, o longa nos conquista graças à atuação carismática de Tom Hanks, cuja simples presença já confere algo de familiar e afetivo à narrativa.
O robô Jeff - inventado pelo protagonista Finch e catalisador do arco dramático - às vezes se torna mais irritante do que carismático. Seu caráter infantilóide que se resume em ser impulsivamente curioso e em não compreender o abstrato da linguagem acaba denunciando uma puerilidade dos próprios roteiristas. O cachorrinho, por sua vez, é naturalmente adorável; se o robô Jeff e a maneira como surge e se desenvolve soa inverossímil, a relação de Finch com o animal desde o primeiro momento possui apelo e acaba segurando a força emotiva que o filme tão veemente procura.
É interessante que o longa opte por explorar o aspecto dramático da relação entre seus personagens em vez de apostar em cenas de ação carregadas de efeitos especiais como o fazem frequentemente os filmes atuais de ficção. O perigo que rodeia os protagonistas é palpável e há cenas de tensão, mas estas são misteriosas ou de fato ameaçadoras, jamais surgindo para infundir "adrenalina" ou deflagrar set-pieces elaborados.
Tenho um fraco por filmes situados em cenários pós-apocalípticos e apesar de "Finch" não ser necessariamente o mais criativo, ousado ou memorável, ele segue bem o manual e - titubeando entre o deprimente e o sentimental - acaba encontrando seu rumo, tornando seus personagens e suas jornadas dignas de afeição.
Tracy Letts escreveu dois excelentes roteiros nos últimos 20 anos - "Possuídos" de 2006 e "Killer Joe" de 2011. São obras que mergulham no mais sombrio do humano e conciliam uma abordagem grotesca e perversa com algo de genuíno e tocante. Seu último trabalho, "A Mulher na Janela", é um filme que retoma elementos de clássicos da paranoia como "Janela Indiscreta" (1954), "Copycat" (1995) e "O Inquilino" (1976), mas que ao contrário dos trabalhos anteriores de Letts, falha em erigir um protagonista cativante, um desenrolar tenso ou mesmo personagens secundários interessantes.
Se em "Possuídos" a folie à deux de um jovem casal nos deixa gradativamente sem ar e em "Killer Joe" ficamos fascinados em repugnância com os atos vis de uma família "caipira" disfuncional, "A Mulher na Janela" nos deixa indiferente em relação ao drama pessoal da protagonista Anna (Amy Adams), uma mulher de meia idade agorafóbica que presencia um assassinato no apartamento vizinho e tem sua sanidade questionada por si mesma e pelos que a cercam. Adams convém as emoções necessárias, mas por algum motivo sua personagem transmite uma amargura que causa antipatia e mesmo quando suas tragédias pessoais são reveladas, jamais nos importamos com seu destino. Ela sempre soa mais letárgica e indigesta do que absorta e vulnerável.
Joe Wright dirige o filme com um virtuosismo exagerado que vai contra o próprio teor sórdido da estória. A fotografia e a direção de arte são quase bonitas demais, evocando um caráter cênico distante da crueza urbana fétida e desamparada que o filme exige. É um tipo de filme que não comporta a elegância que Wright almeja e quanto mais nos aproximamos do clímax violento e absurdo (e é quando o filme finalmente parece ceder ao seu desvario latente) mais fica claro que uma abordagem crua e perversa seria mais adequada desde o início. É um projeto que não precisava fingir ter classe ou profundidade, já que seus melhores momentos são justamente aqueles que apostam no perigo real e próximo, na sordidez da vida urbana e das figuras ominosas que ali pululam.
Joe Wright se equivoca ao começar seu filme já fremente e aflito. Um bom suspense precisa da calmaria antes do pânico, caso contrário ele vira uma música de uma nota só. Não há espaço para que a paranoia da protagonista evolua; Anna já está em crise na primeira tomada. Wright jamais encontra o ritmo de seu filme e sua edição rápida e espalhafatosa corta a tensão em vez de fomentá-la. No entanto, há uma ou outra cena esteticamente inspirada: em uma delas, Anna finalmente consegue deixar sua casa e atravessa a rua encolhida debaixo de sua sombrinha - desatenta e apavorada, evitando olhar a seu redor; a câmera se posiciona de maneira que, assim como a protagonista, não enxerguemos nada além da parte inferior da sombrinha; enquanto isso, vemos as luzes dos carros piscarem por detrás do tecido e ouvimos os barulhos estridentes da rua sugerindo perigo iminente.
O filme emprega uma série de "falsos culpados" e de fato surpreende em sua grande revelação, no entanto, os personagens secundários (apesar de interpretados por excelentes atores como Julianne Moore, Jennifer Jason Leigh e Gary Oldman) não têm tempo suficiente de deixar sua marca - Leigh, em especial, uma atriz capaz de demonstrar grande intensidade, é completamente desperdiçada em um papel breve e anêmico. O longa, equivocadamente, nunca estreita os laços entre seus personagens, ele não cultiva as tensões psicológicas (apenas as sugere) e foca toda sua energia no drama interno de Anna que não é interessante o suficiente. Quando as revelações surgem, elas não possuem impacto emocional, pois não foram elaboradas e preparadas o bastante.
Apesar de divertir periodicamente (em particular em seu clímax "grand guignol"), "A Mulher na Janela" termina sem deixar qualquer ressonância e não traz nenhum olhar particularmente interessante, tenso ou subversivo ao gênero suspense e empalidece frente às diversas obras cinematográficos nas quais se inspira.
Por mais herético que isto possa soar, prefiro os "giallos" americanos aos europeus. "Sensations" é um "giallo" americano meio fora de época que combina o cinema thriller-erótico popular dos anos 90 com elementos sobrenaturais e nonsênsicos dos giallos italianos dos anos 70. A maioria destes últimos irritam pela terrível dublagem dessincronizada e pela narrativa excessivamente desvairada que deixa buracos demais pelo caminho. "Sensations" se salva destes enganos: o longa é tecnicamente bem feito e pragmático; a trama é sempre clara e por mais absurda que a estória seja, ela faz sentido dentro da lógica que o filme estabelece.
Kari Wuhrer, uma atriz belíssima que atuou praticamente apenas em filmes B, confere a protagonista Lila uma mistura de sensualidade vulgar e ingenuidade adolescente que a torna crível e suscetível aos perigos que o longa a sujeita. Lila é um estudante de artes dotada de uma hipersensibilidade que a permite ver cenas do passado simplesmente ao tocar em objetos. O professor canastrão interpretado por Eric Roberts aborda a moça para que ela investigue a morte de sua ex-namorada tocando em objetos que pertenciam a ela. A partir daí, Lila começa a se envolver com o professor ainda que este se revele cada vez mais dúbio e perigoso. É um filme erótico em que praticamente todos os personagens parecem atores pornôs fazendo bico em outros empregos, no entanto, o filme concilia bem os aspectos eróticos com o suspense. À maneria dos giallos, surgem uma série de "possíveis culpados" que de fato nos deixam curiosos e adivinhando.
O diretor - Brian Grant - não deixa a bola cair, o filme engata logo no começo um bom ritmo e o mantém. Apesar de psicologicamente não possuir muitas nuances (a fixação erótica de Lila pelo professor e vice versa não possui muitos desdobramentos, eles são basicamente locomotivas no cio), o longa mantém um nível satisfatório de tensão durante toda sua projeção. Não é uma tensão asfixiante, mas uma atmosfera sórdida e sinuosa que cativa. Pode não ser o thriller mais memorável da década, mas é uma anomalia interessante que merece ser mais conhecida. O desfecho de "Sensations" é surpreendente e remete aos filmes de Dario Argento; apesar de não possuir a estética singular e atraente das obras do diretor, possui a vantagem de contar com uma direção focada, um roteiro meticuloso e razoavelmente crível e boas atuações lúbricas.
A Baleia
4.0 1,0K Assista Agora"A Baleia" tem, em seu centro, uma atuação muito sincera e comovente de Brander Fraser como um professor de literatura recluso e morbidamente obeso. Só o fato de um ator outrora galã e protagonista de filmes nostálgicos estilo "sessão da tarde" de repente surgir com uma aparência tão melancólica, corpulenta e fatigante já é o suficiente para despertar em nós certo incômodo e tristeza. O personagem de Charlie opera de maneira interessante - sua visão de mundo é otimista e tolerante para todo o universo (até mesmo em relação à filha rebelde e perversa interpretada por Sadie Sink), menos para si próprio - Charlie se maltrata, se pune de culpa e se enche de comida como um coveiro atola uma cova de terra. O longa traça um paralelo entre o protagonista e a estória de Moby Dick e, no caso, Charlie é simultaneamente o capitão e a baleia, assombrado pela própria imagem mórbida e sempre a um passo de aniquilá-la de vez, de dar fim ao seu sofrimento, de se libertar do peso do seu corpo e do seu mundo - este restrito a um pequeno apartamento-câmara-masmorra.
Brander Fraser é o ator perfeito para o papel: ele confere a Charlie uma inocência e um desamparo genuínos, seus rompantes de emoção surgem de maneira muito espontânea, sem afetações desnecessárias (mesmo se o roteiro não enfatizasse como Charlie é um sujeito delicado e doce, o próprio semblante de Fraser, com seus grandes olhos melífluos e carentes já dariam conta do recado). Infelizmente, o mesmo não pode ser dito a respeito da condução do diretor Darren Aronofsky. Apesar de sua estética exagerada e opressiva de "Grand-Guignol" ter funcionado de maneira brilhante em filmes como "Cisne Negro" (2010) e "Pi" (1998), aqui seus exageros quase matam seu filme. Aronofsky parece não compreender o minimalismo do roteiro de "A Baleia" e que as angústias do personagem de Charlie são suficientes para embalar a narrativa e comover o espectador; o diretor insiste em uma trilha sonora melodramática e ostensiva que abafa as cenas e quase ofusca as interpretações brilhantes do elenco. Em outros momentos, Aronofsky filma suas cenas como se ainda estivesse flertando com o gênero horror como o fez de maneira genial em "Cisne Negro", mas aqui tal abordagem soa descomedida, como uma má compreensão do pathos do protagonista.
Há momentos brilhantes em "A Baleia" - os diálogos entre a personagem de Hong Chau (melhor amiga de Charlie) e o protagonista são dotados de um espontaneidade cativante e tocante; aliás, a atriz merece o Oscar de coadjuvante deste ano, sua interpretação consegue amalgamar de maneira magistral um ressentimento engasgado, uma revolta com as condições duras inerentes à própria vida e um afeto de mãe, ao mesmo tempo, duro e caloroso. É uma personagem complexa que vai revelando diversas nuances a cada cena em que aparece. A relação de Charlie com seus alunos virtuais (o personagem jamais liga sua câmera do laptop com medo da reação que sua imagem provocaria) é explorada de maneira muito interessante, culminando em uma excelente cena em que Charlie subverte seus métodos de ensino e rasga o véu de decoro do universo acadêmico ao expor aquilo que realmente sente e guarda no peito.
O longa é baseado em uma peça de teatro e em certos momentos sentimos uma certa artificialidade nos diálogos e na forma como alguns entreveros dramáticos são solucionados. Isso é notável principalmente na cena em que a ex-esposa de Charlie faz uma visita a ele e os dois finalmente discutem o que acontecera durante todos os dolorosos anos em que se distanciaram, é uma cena que soa um tanto apressada e inverossímil - a conversa surge demasiado elaborada e lúcida para pessoas que há tanto tempo guardam sentimentos contritos e conflitantes e é dotada de reações emotivas um pouco fora do eixo; é uma cena com cara de ensaio de teatro e passa a impressão de que se faz necessária apenas para satisfazer maquinações do roteiro e dar seguimento à redenção de Charlie, mas não soa leal aos personagens que, naquele momento, já conhecemos bem.
O filme pesa a mão em alguns momentos em relação à monstruosidade da personagem de Sadie Sink, é um recurso que quer realçar a benevolência de Charlie, mas que funcionaria melhor com um pouco mais de sutileza. No entanto, essa relação dual central do filme funciona bem em outros instantes e são justamente as cenas em que a filha não é tão má assim e Charlie não é tão bonzinho assim que dão vida ao filme e conferem a ele um peso dramático consistente. Infelizmente, a cena clímax que deveria ser um soco no estômago, acaba se tornando algo "over" e pretensiosamente transcendental - não precisava; quando Aronofsky exagera na estética a sensação que temos é que o diretor perde a confiança em seu material e nas performances de seus atores quando, na verdade, essas são as maiores forças de seu projeto; bastava que ele saísse do caminho do próprio filme (maneirasse nos cacoetes e no vício de criar estrondo de fora para dentro) e permitisse que seus atores e o drama que entoam tivessem mais espaço livre para brilhar.
Tár
3.8 393 Assista AgoraQuando somos apresentados à personagem central de "Tár", logo no início do longa, sentimos por ela grande fascínio - ela é uma maestrina importante, talentosa, culta, hermética, emproada e de grande dignidade. Ela possui a personalidade que é atribuída estereotipadamente aos gênios - circunspecta, severamente obcecada pelo seu nicho artístico, levemente autística em seu mundo particular e prolixa em seus devaneios intelectualóides. Seu semblant é de grande valor para a comunidade artística que a vê como alguém muito especial, que se destaca do ser-humano mundano, alguém dotado de uma compreensão anormal da fruição artística e do virtuosismo. Ela parece habitar um plano mais sublime, uma redoma de bom gosto em que o sofrimento é válido apenas em prol da beleza e da perfeição estética. Aos poucos, o brilhante "Tár" de Todd Fields vai desconstruindo esse ideal, desmantelando esse ego magnífico. Sob os escombros de uma Deusa arruinada, surge um personagem muito real e fascinante.
O filme lembra o excelente "A Primavera de Uma Solteirona" de 1969 estrelando Maggie Smith. Tár, assim como a idiossincrática e magnética professora Jean Brodie, mas de maneira menos maníaca e espirituosa, mantém com todos ao seu redor (em especial seus interesses amorosos) uma relação delicada de mestre e servo, ela goza em saber que a colocam em um pedestal e goza também em rapidamente substituir seus pequenos brinquedos adoradores por outros mais novos e desafiadores. Descrevendo o filme assim parece que ele exibe Tar como um monstro narcisista, mas não é bem assim - sua paixão visceral pelo ofício da música a enaltece e assim o faz também o amor que sente pela filha adotada (ela chega ao ponto de ameaçar uma das coleguinhas da filha caso ela volte a praticar bullying com a garota). O longa não a crucifica pelo seu sintoma de cunho quase perverso, pelo contrário, ele a humaniza ao mostrá-la tão susceptível às paixões e ao núcleo devastador das neuroses como qualquer outra pessoa. A primeira mácula na esplendorosa armadura da artista surge na forma de uma ex-aluna (e ex-amante) que a ameaça constantemente através de e-mails agressivos e potencialmente perigosos, a ex-aluna - uma rejeitada devastada - ameaça arruinar a vida de Tár que assume em relação a ela uma postura de fantasma, de alguém que nunca teve nada a ver com isso. Se a princípio tal postura soa de uma frieza cruel logo compreendemos que quando Tár rejeita a ex-aluna mentecapta ela está, na verdade, rejeitando a si mesma, desviando o olhar da sua própria loucura e devastação, tão bem disfarçadas e controladas sob o véu de sua altivez. Entendemos isso no momento em que Tar se apaixona por uma nova estudante que, inesperadamente, inverte a dinâmica de seus jogos sexuais - de repente, ela não é mais o objeto admirado que subjuga o outro, mas aquela que, de pernas frementes de adolescente, anseia migalhas de amor daquela que ama.
Tár explora essa dinâmica psicológica de maneira muito bem feita. A rigidez, a ordem e a compostura que caracterizam o universo da música clássica - e que de certa forma também o fazem a personagem principal - contrastam de maneira potente com o que há de mais caótico e hórrido em Tár e em todos nós: a pulsão sexual e o desamparo que nos constitui no nível mais basal. O filme vai mostrando - através da deterioração subjetiva da personagem - que Tár não é apenas uma maestrina brilhante e sublime, mas é também todas as "loucas" frágeis e carentes que rejeitou. É revelado, gradualmente, o núcleo frágil da personagem à revelia de todas suas camadas de decoro (o vocabulário pomposo e o cálculo de seus gestos vão perdendo a eficácia), até que a personagem, feito pipoca, vira ao avesso e expõe suas entranhas amorfas.
O filme se dispõe de aspectos visuais e narrativos muito interessantes para dar forma ao que se passa na subjetividade da personagem. Em determinado momento, por exemplo, ela procura afoita pela moça por quem se apaixona (mas que a rejeita) pelas ruas da cidade e acaba adentrando em uma espécie de túnel subterrâneo, um local ameaçador, estranho e caliginoso que causa a ela grande desconforto - ao tentar escapar ela tropeça em uma escada e machuca as costas e o rosto. A inversão de papéis que Tár estabelece ao se relacionar com a jovem é também um cenário inédito a ela - ali, não é mais ela quem dita as regras; perdida em seu próprio desejo ela adentra um território novo, obscuro, de grande angústia e fragilidade e que revela a ela algo horrível sobre si. O rosto esfolado é pouco comparado aos danos que a relação masoquista estabelecida com a jovem anuncia ao seu ego. De repente, ela não é mais condutora.
O filme alinha seu aspecto dramático com nuances muito interessantes de humor. Há uma cena, por exemplo, em que Tár visita um spa nas Filipinas e é instruída pela recepcionista para que selecione sua massagista a gosto; por detrás de uma vitrine de vidro se encontram dezenas de massagistas enumeradas, organizadas meticulosamente à maneira de uma orquestra, de cabeças baixas, submissas, aguardando o comando. Tal cena, uma espécie de quadro paródico e grotesco do modo de se relacionar da protagonista, causa nela uma grande repulsa de si - ela chega a vomitar na calçada tamanha a rejeição ao que a constitui tão intimamente - a urgência de reger, controlar, subjugar.
Todd Field dirige o filme de maneira contida, mantendo seus planos estáticos e contemplativos e permitindo que o drama deflagre a partir dos diálogos e das atuações; é uma direção sensível e minimalista que busca captar a essência da cena sem jamais cair no melodrama. Cate Blanchett merece todos os prêmios do ano, sua atuação é intensa, mas jamais passa do ponto, a atriz explode nas horas certas e mantém sempre presente no semblante o sinal das maquinações internas da personagem, das angústias sobre as quais pouco pode se dizer, mas que se fazem indisputáveis em sua expressão de górgona auto-petrificante.
O longa se conclui com uma cena fantástica (que não irei revelar), mas que de maneira sardônica coloca a personagem em uma situação tão humilhante, inesperada e longe do ideal que tinha de si que sentimos uma mistura de comoção e alívio. Digo alívio, pois de certa forma o destino de Tár é o de todos nós, o de nos flagrarmos, mais cedo ou mais tarde, em parcial ou total desacerto com aquilo que narcisisticamente almejávamos em onipotência. Compreendemos que até aquela mulher aparentemente absoluta das primeiras cenas não é tão absoluta assim e tem de se refazer por onde é possível. Tár desmistifica não só o ego ideal, mas também - de maneira tragicômica - a noção de que a arte salva, de que ela é totalmente capaz de sublimar nossos impulsos menos nobres. A arte talvez salve um instante, mas depois dele é, de novo, cada um por si.
Aftersun
4.1 701"Aftersun" acompanha as memórias de uma jovem adulta refletindo sobre as férias que passara com o pai há 20 anos em um resort. O longa possui o arcabouço de um bom filme, mas não atinge a gravidade que pretende. A estética de Charlotte Wells impressiona - a diretora consegue conferir uma intimidade impressionante a seu filme, seja através do foco no barulho da respiração dos personagens ou nos planos fechados que colocam sempre a expressividade destes e seus sentimentos em primazia. Os atores principais, Paul Mescal e Frankie Corio, são de uma naturalidade formidável, acreditamos facilmente que estamos testemunhando duas pessoas reais interagindo.
O que impede "Aftersun" de ser um filme realmente potente, no entanto, é seu roteiro um tanto pusilânime. Se em um primeiro momento fiquei tocado pela naturalidade que o filme consegue atingir ao explorar a relação pai e filha sob um viés nostálgico, comecei a sentir falta - a partir da metade do filme - de algo um pouco mais substancioso. Senti que, apesar das cenas convincentes, algo da relação dos dois não estava sendo mostrado ou perscrutado, que as férias dos dois estavam perfeitas demais. O filme aponta - pelo tom misterioso e dúbio que estabelece - que haverá uma subversão ou um rompimento da relação pai e filha, mas ele não a aprofunda. O minimalismo do filme, em vez de fomentar sua força dramática, a restringe. Apesar de possuir o tom contemplativo e poético de obras-primas como "Poesia" (2010) de Lee Chang-Dong e "A Filha Perdida" (2021) de Maggie Gyllenhaal, "Aftersun" não engrena no subtexto da angustia como estes o fazem, é como se o filme estivesse sempre aquém da verdadeira camada dramática que o tornaria pungente. Talvez seja exigir demais que todo filme centrado na subjetividade de uma personagem e na arqueologia de seu passado íntimo possua a densidade de uma Elena Ferrante, mas "Aftersun" frustra em especial, pois possui elementos bons demais (atuação, estética, temática) para ficar à deriva como fica.
Há cenas muito boas que consistem de filmagens da pequena Sophie feitas por uma câmera digital, são cenas inocentes em que ela faz palhaçadas para a câmera e filma o pai em momentos aleatórios e descontraídos, aliás, o filme se inicia com uma cena deste tipo e traz de maneira muito espontânea a sensação de intimidade e naturalidade entre os dois, no entanto, me decepcionei ao constatar que as cenas "reais" do filme, isto é, aquelas filmadas pela diretora, não são tão diferentes daquelas filmadas pela pequena Sophie, isto é, elas não aprofundam como deveriam a relação dos dois e nem lançam insights que rompem com as encenações pueris da garota, são prolongamentos do olhar infantil, fiquei desejando que houvesse uma cisão mais marcante entre estes dois pontos de vista.
O filme mostra em flashes a vida adulta da personagem principal e como as reminiscências do pai trazem um sentimento de vazio e angustia, no entanto, o que testemunhamos da relação entre pai e filha parece não ser suficiente para explicar ou sustentar o sentimento atual da jovem. A ideia central do filme parece ser examinar a perda do pai idílico, falar da ressignificação de uma infância a partir de um olhar adulto menos inocente, do desvelar daquilo que até então ficou subentendido e marcado apelas pela angustia, no entanto, são raras as vezes que o filme de fato mergulha nesse sentimento durante as cenas do passado; a atmosfera plangente que marca a vida atual da filha carecia de mais contexto e ressonância com as cenas infantis. O filme às vezes sugere que o personagem do pai sofre de vícios e de uma angustia com a efemeridade da juventude e com o peso da responsabilidade paterna (há uma excelente cena em que o pai chora nu em soluços sentado à beira da cama), mas o longa falha em levar esta tensão interna do pai para o relacionamento pai e filha; não é que o filme precisava de mais solavancos dramáticos (seu clima realista, contido e casual é seu grande louro), mas seu não-dito carecia de mais carga implícita, falta tempestade sob o véu da placidez.
Noites Brutais
3.4 1,0K Assista AgoraFui assistir a "Barbarian" sem saber nada sobre o filme e durante seu primeiro ato fiquei positivamente surpreso com a tensão que o longa consegue criar a partir de elementos simples. A narrativa gira em torno de dois personagens que se encontram por acaso ao constatarem que alugaram a mesma casa em um bairro mambembe durante uma noite chuvosa (devido a um erro de administração dos sites de hospedagem). O filme cria paupável tensão ao não deixar claro se um dos personagens representa ou não perigo ao outro. Eles são os jovens Tess e Keith, interpretados de maneira muito natural por Georgina Campbell e Bill Skarsgaard; os dois combinam de pernoitar juntos para que, logo na manhã seguinte, possam resolver o impasse com os proprietários. A partir daí, pequenos eventos intrigantes sucedem e passamos a temer pelos personagens sem saber exatamente de onde o perigo iminente virá. O diretor Zach Cregger é bem sucedido em criar uma atmosfera claustrofóbica e ameaçadora, sua câmera se move lentamente e explora os cenários com uma cautela de quem antecipa o pior; a casa tomada por sombras vai se tornando gradativamente um lugar angustiante e sinistro, revelando-se mais inconvencional a cada cena.
Até aí o filme é excelente; de repente, logo após uma cena inesperada de extrema violência, toda a narrativa se interrompe e o longa praticamente começa novamente; não darei spoilers, apenas direi que, ainda que o filme não afunde totalmente e continue intrigante, ele gradativamente vai se tornando mais inverossímil. Se seu primeiro terço é aterrorizante, mas calcado em um nível de realismo que nos faz crer que tudo aquilo de fato poderia estar ocorrendo, o longa desgringola em seu segundo e terceiro ato e desemboca em um lugar mais grotesco e exagerado do que o começo sugeriria possível, isto é, ele rompe com o próprio tom de veracidade que estabelecera tão efetivamente a princípio. Creio que algumas pessoas iram gostar do rumo absurdo que o filme toma, mas particularmente fiquei decepcionado ao ver um filme contido, mas tenso e curioso, optar por uma saída convencional e até tosca do gênero de horror.
Há equívocos que vão se somando a partir do segundo ato. Os personagens cada vez mais agem de formas absurdas, tomando decisões que uma pessoa sã jamais tomaria apenas para que possam correr mais riscos novamente. É um dispositivo típico de filmes de terror mais charlatões que pensei que, aqui, talvez não ocorressem devido ao elegante minimalismo que seus 40 minutos iniciais nos oferecem. "Barbarian" começa com a finesse sombria de um Hitchock e termina mais próximo de algo que Peter Jackson ou Sam Reimi dirigiriam no começo de suas carreiras, isto pode parecer um elogio, mas há uma distância enorme entre esses universos que o filme não consegue concatenar; fica a sensação de que o longa desperdiça toda a tensão acumulada de seu começo para, no final das contas, ser apenas mais um "freakshow".
Pearl
3.9 987Após o mediano "A Casa do Demônio" de 2009 e o fraco e apelativo "X" lançado este ano, Ti West finalmente acerta a mão em "Pearl". Se em "A Casa do Demônio" West era bem sucedido em criar uma atmosfera de mistério e perigo com bastante habilidade e paciência o diretor fracassava no terceiro ato quando a ação se desenrola tão precipitadamente em contraste com a languidez dos dois primeiros atos que o filme parecia descompassado, sem equilíbrio. Já em "X", seu pior filme, West quase que depende inteiramente no aspecto grotesco de mortes explicitamente violentas, mas estas surgem tão gratuitamente e sem envolvimento emocional que o filme não possui ressonância, é simplesmente uma grande apelação sensorial sem eixo. Portanto, foi uma bela surpresa constatar que, em "Pearl", West não comete nenhum dos equívocos destes dois filmes anteriores, pelo contrário, ele constrói com proeza uma estória singular bem amarrada e fascinante, um estudo de personagem que sabe a hora certa de aguardar, de crescer e de soltar os cachorros.
"Pearl" é bem sucedido, primeiramente, no aspecto emocional. Ao tornar a personagem central o foco da narrativa desde os primeiros instantes, passamos a ver o mundo pelo seu olhar e a dividir suas frustrações e esperanças. Nos comovemos com sua realidade claustrofóbica e sem afeto (seu pai é um doente-vegetativo e sua mãe uma mulher extremamente augusta e perversa). No entanto, Ti West faz de Pearl mais que uma vítima ou antagonista, ele a constrói como uma pessoa mentalmente perturbada, sem lugar no mundo e que concilia uma inocência infantil com um outro lado estarrecedoramente violento e delirante. A performance de Mia Goth é uma das melhores atuações do ano; a atriz carrega o filme inteiro nas costas e injeta a dose certeira de "pathos" e humor na personagem. O longa brinca com a estética pueril e melodramática dos cinema americano dos anos 50 de maneira inspirada, desde os créditos entoados por uma trilha suntuosa com letreiros kitsch até as expressões de sorriso forçado que Pearl tenta manter em seu semblante à revelia da loucura que o trinca e ameaça devastar tudo e todos.
West segura seus impulsos mais sádicos e infantis neste longa: as mortes são chocantes, mas elas surgem dentro de um contexto, ao contrário do que ocorria em "X", aqui a violência possui um vínculo emocional e surge como consequência última da repressão, da mágoa, do ódio contido e insuportável - não é mero recurso estético de um diretor que quer chocar, mas rompantes lacerantes de uma alma consternada. West também se mostra muito mais inspirado ao filmar as cenas de violência, em vez de simplesmente nos mostrar vísceras, cortes e mutilações feito um cineasta-açougueiro, aqui ele encontra maneiras criativas e tensas de exibir as chacinas, confeccionando aquele "sweet spot" entre insinuação e violência explícita. Em determinado momento, por exemplo, Pearl persegue uma de suas vítimas com um machado, a cena é filmada em um plano-sequência que nos coloca de frente para a vítima; enquanto ela corre para se salvar (sem olhar para trás), ao contrário dela, sabemos a que distância Pearl e seu machado se encontram e antecipamos o ato violento aflitos pelo fato da vítima estar às cegas. West cria algumas analogias simples, mas certeiras: em uma cena, por exemplo, logo no começo do longa, há um porco assado que a mãe de Pearl rejeita de presente e que passa a apodrecer no jardim da casa na mesma medida em que a mente de Pearl se deteriora - quando sua loucura está prestes a atingir seu ápice vislumbramos o porco assado carcomido, cheio de vermes.
Talvez o único equívoco estético de Ti West em "Pearl" seja incluir - lá pelo fim do terceiro ato - uma montagem de cenas muito explícitas que parecem simplesmente querer satisfazer uma audiência mais carniceira, mas que são desnecessárias à narrativa, pois surgem sem muito propósito a não ser enojar. O grande êxito do diretor neste longa, no entanto, é saber conciliar momentos muito intimistas e elegantes (destaque para o monólogo dilacerante da protagonista no terceiro ato em que a câmera não sai de seu rosto por volta de 10 minutos) com outros muito dinâmicos e espetacularmente sinistros sem que o eixo emocional do filme se perca. A psique doente de Pearl é o ponto nevrálgico do começo ao fim e seus horrores internos ancoram o filme para que, mesmo quando o sangue jorre, ele não pareça mero artificio apelativo, mas matéria-prima de uma alma trágica fulminante.
Aterrorizante 2
2.9 420 Assista AgoraFui assistir a "Terrifier 2" sem saber nada a respeito (não vi o primeiro filme) além do fato de que é uma produção que aposta na violência descomunal e explícitamente e possui um antagonista de aspecto horrendo. Infelizmente, o pouco no filme que funciona é graças apenas a esses dois aspectos já que o resto é absolutamente deplorável.
Fui surpreendido logo no começo pela qualidade baixíssima das atuações; com exceção talvez da moça antipática de tranças coloridas, nenhum dos personagens convence (a mãe dos protagonistas, em especial, performa de maneira absurdamente amadora e artificial). Digo que fui surpreendido pelas más atuações, pois trata-se de um filme com efeitos especiais muito convincentes, portanto, algo do orçamento deveria ter sido salvo para contratar atores profissionais. Outro aspecto que me surpreendeu é que apesar das cenas de violência serem convincentes no aspecto visual - as vísceras e dilaceramentos remetem aos melhores trabalhos de Tom Savini - elas provocam riso junto ao nojo; não sei se é intencional ou não, mas tais cenas são tão mal atuadas (os personagens nunca parecem de fato estar sentindo dor ou acometidos de um pânico gutural) que não provocam o horror que supostamente deviam causar considerando a violência extrema que possuem. Em certo instante, por exemplo, uma garota tem seu corpo severamente multilado (incluindo pele e olho arrancados), mas sua expressão é de quem apenas tomou um remédio para dor de cabeça.
O filme tem uma longa duração (mais de duas horas), mas é tão vápido e apressado que passa rápido, a sensação de assisti-lo é a de folhear uma revista cheia de gravuras sádicas. As cenas emendam uma na outra sem muita ceremônia, a direção de Damien Leone é sem graça, sem beleza e sem atmosfera, as cenas acontecem sem muita antecipação ou tensão. O filme me perdeu logo no começo quando há um diálogo entre a protagonista e a mãe: a edição alterna os planos entre as duas de maneira tão óbvia e amadora que senti estar vendo um vídeo amador de atuação do youtube - quando a mãe começa a falar o plano permanece nela até que ela termine sua frase, assim que é a vez da filha falar o plano muda para seu rosto até que ela conclua a frase e assim segue a cena alternando entre as duas de maneira absolutamente mecânica. Até diretores de horror capengas e de baixíssimo orçamento como Andy Milligan e Herschell Gordon Lewis sabiam encenar um diálogo com mais graça e criatividade. Outro problema: talvez por uma questão de orçamento nunca conseguimos entender bem onde cada cenário está situado e a dimensão destes - vemos praticamente apenas o interior das casas e, no segundo ato, o interior de uma casa de horror de um parque de diversão abandonado. A fotografia é deplorável, os tons de azul e laranja somados ao baixo contraste deixam o filme com aspecto morno, de filtro de instagram, isto é, nada cinemático e atmosférico. O fundo dos cenários e os personagens parecem ocupar o mesmo plano, é uma fotografia sem profundidade, sem dimensão - achatada.
O roteiro do longa é uma bagunça; nunca fica claro se o filme quer apresentar o antagonista como um serial killer atormentado por delírios ou como uma figura mítica com poderes sobrenaturais; há uma falta de clareza a respeito do que é real ou não dentro de seu próprio universo - fica confuso se o que vemos na tela os personagens do filme também podem ver; cada personagem parece ter uma visão diferente da realidade e, para piorar, o filme ainda acrescenta elementos de fantasia em sua narrativa absolutamente desconexos e tolos. Além do caos no roteiro, há cenas absolutamente inverossímeis - em determinado momento, por exemplo, o palhaço horripilante aparece na casa de uma jovem pedindo doces de halloween e, apesar de sua aparência que obviamente extrapola o aceitável de uma fantasia de halloween, ela não se mostra abalada ou ameaçada, mas fleumaticamente cínica e alheia. Como um filme de terror espera que nós, espectadores, nos abalemos com ele se seus próprios personagens não parecem ligar muito pros horrores que os acometem? Aliás, ainda que visualmente o palhaço antagonista seja medonho com seus dentes expostos de escorbuto e seus olhos escancarados, ele aparece com tanta frequência, de maneira tão insípida e dotado de cacoetes tão manjados e tolos que depois de 15 minutos ele já não causa medo, nos acostumamos com sua presença e passamos a achá-lo até tosco, como qualquer outro palhaço.
Não Se Preocupe, Querida
3.3 554 Assista Agora"Don't Worry Darling" bebe na fonte de filmes que abordam a paranóia e o horror sob o verniz do "american way of life" como "The Stepford Wives" de 1975 e "The Truman Show" de 1998. A trama gira em torno de uma jovem interpretada por Florence Pugh, moradora de uma comunidade isolada aparentemente situada no começo dos anos 60 em que a vida fantasiosa das brincadeiras de casinha ganha vida e de fato funciona, isto é, até que ela começa a testemunhar uma série de acontecimentos bizarros que a levam a questionar seu lugar ali e o caráter das pessoas que tudo ali controlam sob sigilo. É um filme dirigido com muita competência por Olivia Wilde - as cenas de tensão angustiam e são embaladas por uma trilha sonora cacofônica em stacatto interessante. O longa é bem sucedido em nos envolver na narrativa da personagem principal, em grande parte graças à atuação emotiva de Florence Pugh, a atriz - sempre muito expressiva - consegue criar um cerne de autenticidade em sua personagem à despeito das falhas do roteiro que às vezes a impele a ações e diálogos pouco críveis (em determinado ela faz uma extensa caminhada no deserto para investigar um acontecimento estranho em vez de chamar a polícia ou mesmo voltar para casa e pedir ajuda e em outro profere palavras de amor a um personagem em um momento onde isso seria absolutamente incabível).
O filme segue razoavelmente bem até sua reta final (há uma ótima cena de perseguição no último ato que nos deixa ansiosos e nos faz torcer vigorosamente pela protagonista), no entanto, quando a última cena se encerra fica a sensação de que nada foi explicado muito bem, de que os roteiristas não souberam muito bem o que fazer com tudo aquilo que foi desenvolvido até então. Fica a sensação de que, enquanto espectadores, participamos de uma brincadeira interessante e até assustadora, mas que, no final das contas, não tem muita lógica. Em vez de sentir um arrebato pelas angústias vivenciadas pela personagem, comecei a retomar cenas na cabeça procurando entender o porquê disso ou aquilo ter acontecido ou como tal acontecimento x se relaciona a y até que, constatando que os realizadores do filme provavelmente não sabiam mesmo o que faziam, desisti. O longa carecia desesperadamente de um roteiro mais amarrado, mais claro, mais firme em suas intenções e na forma como dá sentido a seu universo particular.
A atuação de Harry Styles não é memorável, mas também não é ruim. Há uma cena de discussão entre Pugh e Styles em que o último nitidamente não acompanha o pique da primeira e em que a reação atônita da atriz ao encerrar a cena exigia que ele entregasse muito mais visceralidade e energia para que fosse justificada - fica um descompasso. No entanto há de se dizer que Styles tem muito pouco com o que trabalhar já que seu personagem (por uma questão principalmente de roteiro) é fleumático e distante durante praticamente todo o longa.
"Don't Worry Darling", apesar de todos seus defeitos, funciona esteticamente, a decupagem de Olivia Wilde é inventiva, seus planos se movimentam de maneiras inesperadas, o uso de trilhos para que a câmera se movimente rapidamente e nos desloque de uma aparente tranquilidade é interessante, por exemplo. As cenas de alucinação da protagonista são criativas (uma envolvendo uma parede constritora é memorável) e conseguem criar incômodo e o climax envolvendo carros no deserto e muita correria é bem montado. Infelizmente, o longa se encerra com tantas pontas soltas e elementos mal explicados que seu efeito estético não é o suficiente para fazer o espectador não se importar com os desfalques de lógica; quem sabe se o filme houvesse optado por explorar um universo menos metafísico e complexo e mais calcado no real - nas relações entre os personagens e os desdobramentos destas - ele tornaria mais fácil para si mesmo se explicar e se concluir de maneira satisfatória.
A Queda
3.2 739 Assista Agora"Fall" é mais um filme que coloca seus personagens em uma situação aterradora e minimalista (desta vez explorando não nosso medo primal de lugares fechados ou criaturas selvagens, mas o medo de altura). A premissa é simples: duas garotas presas em uma enorme torre de rádio de 2000 metros. O longa funciona muito bem em diversos momentos, explorando de maneira hábil a tensão das personagens ao se deparar com uma situação mortífera praticamente irresoluta. Scott Mann abusa dos planos panorâmicos, mas nos mantém também próximos da experiência das protagonistas; assim como em "Oxygen" de 2021 o filme é bem sucedido em nos transmitir uma sensação física de desespero e aflição - é difícil não franzir o sobrolho ou contrair os lábios durante algumas cenas do segundo ato. O roteiro é bastante criativo na maneira como inventa novas situações de pânico em um cenário restrito - o que não poderia piorar piora e, com algumas exceções mais ao final do longa, as situações são razoavelmente convincentes.
Infelizmente, apesar de competente em diversas passagens, o filme possui alguns equívocos que o impedem de se concluir de maneira satisfatória. Apesar da premissa simples e eficaz, o filme perde a confiança no seu próprio apelo em diversos instantes: equivocadamente, ele insiste em prolongar o dramalhão dos personagens (o que apenas desvia foco da parte mais interessante - o perigo real que enfrentam) e, pior, insere sequências alucinátorias e reviravoltas absurdas que mais provocam um riso desdenhoso do que genuína surpresa. Aliás, tais recursos parecem acometer quase todos os filmes deste tipo ("47 Meters Down" de 2012, por exemplo, sofria do mesmo problema). "Fall" seria muito mais eficaz caso houvesse tido a coragem de cortar por inteiro as cenas de discussão entre as amigas envolvendo dramas do passado e descartado todas as reviravoltas do terceiro ato - aliás, as frases pseudo-filosóficas e a trilha sonora etérea que permeiam as últimas cenas são nauseantes.
O mais frustrante em "Fall" é que o filme é bem dirigido em sua maior parte e, salvo alguns cenários digitais demasiado artificiais, nos convence destramente de que aquelas pessoas de fato poderiam estar vivendo tal pesadelo. Questiono frustrado, no entanto, que equívoco é esse por parte dos diretores de filmes de sobrevivência de achar que o espectador demanda dramalhão e reviravolta em filmes deste tipo? O apelo do terror de sobrevivência está justamente na potência avassaladora de uma situação real, de um perigo concreto que, se bem explorado esteticamente, não exige mais nada para fiquemos envolvidos e perplexos. Basta que os personagens sejam críveis e ajam naturalmente que automaticamente já nos identificaremos com eles - o dramalhão, a intriga e as "enganadinhas" (os irritantes "plot twists") são absolutamente dispensáveis e apenas desrespeitam nossa inteligência.
Não! Não Olhe!
3.5 1,3K Assista Agora"Nope" é uma grande decepção. Nunca acheis os filmes de Jordan Peele perfeitos, apesar de seu tino para executar sequências tensas e um olhar estético refinado ao montar seus planos, o diretor tem mania de complicar demais suas tramas, arranjando explicações e ramificações absolutamente desnecessárias, como foi o caso em "Us", um filme cuja primeira metade divertida e tensa desanda logo em seguida e desemboca em uma conclusão absurda e forçada. "Nope" não sofre do mesmo male, pelo contrário, é um filme que encontra seu tom no ato final, mas que até chegar lá se equivoca ao insistir em uma atmosfera esparsa, sem foco e nos amarra à companhia de personagens pseudo-engraçados que nunca convencem ou nos despertam comoção.
A premissa do longa é interessante e se passa em um cenário curioso (um rancho de uma família negra cujo ofício desde os primórdios de Hollywood é treinar cavalos usados em filmes). O foco da família são dois irmãos interpretados por Daniel Kaluuya e Keke Palmer, James e Jill. Os dois começam a notar estranhos acontecimentos em seu rancho, algo ameaçador que aparentemente vem das nuvens está causando mortes e fenômenos bizarros (inclusive seu pai falecera nestas circustâncias). Os dois se empenham, então, em capturar em vídeo tal mistério. A ideia é divertida, mas Peele parece incapaz de dar forma a seu filme, há tantas divagações no percurso dos dois irmãos que a tensão almejada (que até surge em certas cenas) fica diluída. Temos uma subtrama de um ator mirim "has-been" que gere um parque temático mambembe nas proximidades do rancho dos irmãos cujo passado é marcado por um chimpanzé que, em surto, foi responsável por uma chacina durante a gravação de um popular seriado que o ator protagonizava nos anos 90. As cenas envolvendo esta subtrama são bem feitas - talvez até melhores que as contempladas na trama principal - e casam bem humor e horror, mas falham em conversar com o resto do filme e acabam o atrapalhando. Fiquei desejando que Peele tivesse se restringido em simplesmente criar uma homenagem moderna aos filmes B de criaturas dos anos 50, como o faz de maneira brilhante "Tremors" de 1990 - um filme despretensioso, ágil, com ótimos designs de criaturas e personagens simpáticos e mundanos.
Um problema grave de "Nope" é que os protagonistas são chatos. James permanece lacônico e fleumático durante toda a projeção. Talvez a ideia de Peele era fazer dele o tipo caladão e comum, isto é, fugir do estereótipo de herói, mas o diretor esqueceu de desenvolver minimamente o personagem ou de conferir a ele certo charme para que nos importemos com seu destino. James mal esboça qualquer reação de medo ou espanto, algo essencial em um filme que apresenta como cerne a fragilidade do ser-humano frente a natureza e sua ameaçadora imprevisiblidade. Keke Palmer tem bons momentos no clímax do filme, mas sua personagem também é bastante irritante, seu tom de piadista irreverente e estrídula satura cedo e a relação entre ela e o irmão jamais soa verdadeira e natural. O roteiro de Peele parece preocupado em criar diálogos irônicos e debochados em todas as cenas, mas são diálogos sem naturalidade (o próprio uso da expressão "nope" que dá título ao filme é usada de maneira insossa), nunca sentimos que as pessoas estão conversando normalmente a partir de uma subjetividade singular, elas parecem sempre estar meramente reproduzindo o humor do diretor (que diga-se de passagem é bastante fraco) - todos os personagens são uma só pessoa, Jordan Peele. Há uma cena terrível em que um repórter do TMZ (uma espécie de central decadente dos paparazzi sensacionalistas) sofre um acidente e tudo o que diz é: "Tirou minha foto? Cadê meu celular? Filma meu acidente!". Fica claro que Peele quer fazer uma crítica à falta de escrúpulos da mídia, mas ele o faz de maneira tão simplória e tão óbvia que sentimos mais vergonha do diretor que do alvo de sua crítica.
No terceiro ato o filme melhora. Temos uma cena de perseguição muito bem filmada e um desfecho criativo, que utiliza bem os cenários e retoma elementos que foram apresentados mais cedo no filme de maneira criativa. No entanto, o filme possui erros tão graves que já é tarde demais; há fallhas em aspectos essenciais, o design do antagonista, por exemplo, é fraco, lembra bibêlôs de carnaval e é cartunesco demais para ser ameaçador. Talvez o maior inimigo do filme seja, no entanto, seu ritmo, o crescendo da tensão é tão frequentemente interrompido e os personagens estão tão ocupados sendo engraçadinhos que a trama principal - que envolve a ameaça misteriosa e seus desdobramentos - fica em segundo plano. Hitchock fez "The Birds" em 1963 - um filme que também explora o horror da natureza e do desconhecido - recorrendo a efeitos especiais ridículos, mas a maneira focada como conduz sua narrativa, sua sensiblidade para criar antecipação e tensão através do silêncio e do implícito, a elegância de seus planos e sua edição meticulosa que faz cada plano parecer uma facada ainda impressionam e são uma aula para qualquer diretor que se arvora a fazer suspense. "Nope" fica de recuperação.
Jurassic World: Domínio
2.8 548 Assista Agora"Jurassic Dominion" aposta em uma promissa de muito apelo: reunir os protagonistas do filme original e exibir dezenas de espécies de dinossauros nas mais variadas situações (sem os desnecessários híbridos dessa vez). Se a ideia é boa, o filme decepciona na execução e no roteiro, que recicla mais do que homenageia e pior, dilui aspectos marcantes do primeiro filme ao tentar condensar uma miríade de tramas, personagens e dinossauros em 2 horas e 20 de duração. É o dobro de conteúdo com a metade da eficácia do clássico de 1993.
O filme gira em torno de uma mutação de gafanhotos resultante da irresponsabilidade e ganância da companhia Biosyn que agora cria seus dinossauros em uma espécie de santuário tecnológico. A companhia almeja controlar o mundo através do poder genético e para isso precisa raptar Maisie, a garotinha-clone do filme anterior, para dar seguimento às suas pesquisas. Tal cenário leva os protagonistas tanto da trilogia original quanto da mais recente em uma aventura de resgate e investigação.
O maior defeito do longa é a direção mambembe de Colin Trevorrow. No primeiro "Jurassic World" o diretor já me incomodava com sua direção um tanto sem "peso" - as cenas aconteciam de maneira muito leviana, sem implicação emocional e com excesso de computação gráfica cartunesca e artificial; o diretor nunca conseguia conferir o tom adequado às cenas de perigo que nunca de fato transmitiam a sensação de perigo. Isto infelizmente se repete em Dominion. Ao passo que é interessante e emocionante ver o trio original de volta, há algo na maneira como interagem que soa artificial e demasiado ligeiro. Em certo momento, por exemplo, em que os personagens se envolvem em uma investigação perigosa (eles correm o risco iminente de morte) a maneira como interagem continua leve, como se estivessem passeando no shopping. Creio que este problema não é tanto culpa dos atores, mas da abordagem inconsequente e infantil de Trevorrow e do roteiro flutuante e raso escrito pelo diretor em parceria com Emily Carmichael. É uma pena ver Dr. Alan Grant, o personagem sistemático, estoico e tenso do primeiro filme reduzido a uma série de falas rápidas e desanimadas que parecem não exprimir nada além de uma repetição diluída do que caracterizava seu personagem no primeiro filme. Ele ainda demonstra ciúmes por Ellie, hesita em deixar a segurança das escavações para se arriscar no mundo "real" e de tempo em tempo exprime uma de suas falas marcantes do primeiro filme, no entanto, estes retornos são meros apelos à nostalgia, eles não funcionam descontextualizados e apenas aborrecem o espectador, pois no máximo nos lembram de como o filme original é muito mais articulado e bem escrito.
Dr. Ian Malcom e Dra. Ellie Satler também não são explorados de maneira muito interessante. O primeiro surpreendentemente aparece por pouco tempo e suas falas são muito menos criativas e interessantes do que foram nos dois primeiros filmes dirigidos por Spielberg - seu discurso sobre os perigos da ciência em uma palestra, por exemplo, é extremamente lugar-comum e não chega perto de evocar o fascínio que sua postura mordente e debochada outrora provocava. O personagem acaba se revelando mais cansado e ausente do que blasé e provocador. Dra. Ellie Satler está estranhamente mais aérea, apesar de ser ela quem impulsiona a trama científica envolvendo o trio; não há em seus gritos histriônicos o pânico que transmitiam no filme original, mas apenas uma leve afetação desinteressada (aliás, fiquei insatisfeito ao constatar que sua melhor cena no trailer - aquele em que grita enquanto escorrega em direção a boca de um dinossauro - não está presente na versão final do filme). A sensanção é de que em Dominion não é permitido pelo roteiro e pela direção que os personagens de fato mergulhem em suas características marcantes, que se apossem de quem são; o filme não arrisca se tornar denso, sério e perigoso, ele está sempre inserindo uma piadinha insossa aqui e ali em momentos inadequados e fragmentando o tom de suas cenas de maneira que a intenção da mesma se perde - não sabemos se é uma cena tensa, descontraída, cômica, importante ou perfunctória. Na trilogia original o humor era incorporado de maneira orgânica, se nos era permitido rir em determinada situação, era um riso de nervoso (a sequência dos dinossauros na cozinha é um exemplo marcante disto - por um momento pensamos que o raptor vai atacar a garota, no entanto, ele avança é no seu reflexo no fogão - a engenhosidade da cena causa aflição e riso).
Em relação aos personagens novos, surpreendentemente, a Claire de Bryce Dallas Howard é a personagem mais convincente do filme, pois parece ser a única que de fato leva a sério seu destino e as situações de perigo em que se encontra. Ela sustenta uma tensão ausente em quase todos os outros personagens. A Maisie de Isabella Sermon é mais interessante que as crianças enfadonhas do primeiro Jurassic World e protagoniza uma das poucas cenas do terceiro ato do longa em que o perigo parece real. DeWanda Wise possui presença e um charme petulante, mas sua personagem não tem muito tempo de mostrar quem é aglutinada a tantos outros elementos.
Senti falta de pelo menos uma breve aparição das crianças do filme original - são tantos personagens desnecessários que achei curioso privilegiá-los e ignorar o quão interessante seria ver os netos de Hammond adultos e descobrir o rumo que tomaram.
Os dinossauros novos possuem designs ameaçadores e protagonizam cenas até divertidas. Não são todas que funcionam: a perseguição em Malta - tão enfatizada no trailer - é decepcionante, pois Trevorrow a filma e a edita de maneira ansiosa; nunca conseguimos localizar exatamente onde os personagens estão em relação aos predadores. De um plano para o outro, a configuração e a distância entre os heróis e os "monstros" parecem mudar de repente, não há continuidade clara e, portanto, não há tensão; o diretor aposta em planos frenéticos (em determinado momento a câmera faz um giro rápido em seu eixo enquanto mostra Claire, um atrociraptor e um vilão em um quarto pequeno e nos desorienta), pouco estéticos (um em especial me incomodou: a câmera movimenta velozmente para acompanhar os personagens em movimento e o foco fica na rua de cimento enquanto nos cantos surgem os pés do dinossauro e no outro a roda da moto) e demasiado fechados (uma cena à céu aberto, que deveria ser arrebatadora, fica enclausurada e confusa). Nestes momentos sentimos falta da precisão de Spielberg que nunca nos deixava desorientados espacialmente - esquecíamos que o filme estava sendo dirigido, usufruíamos de sua técnica sem percebê-la.
"Dominion" poucas vezes aposta na sensação de terror e de impotência dos heróis perante os predadores como o primeiro o fazia em suas melhores cenas.
A que mais gostei talvez seja a que envolve os dimetrodons em uma caverna, a cena - apesar de muito escura - é uma das poucas que constrói uma tensão gradativa e mostra os dinossauros de maneira ameaçadora e surpreendente. O ataque dos dilofossauros a personagem Claire também é interessante e bem construída, apesar de se concluir de maneira pouco inspirada e até ridícula.
Os efeitos especiais são irregulares; apesar da maior quantidade de animatrônicos, eles são menos convincentes que os da trilogia original (são duros e às vezes possuem um brilho plástico) e são usados com pouca frequência. As imagens de computação gráfica oscilam em qualidade: o Therizinossauro, por exemplo, possui um design exótico e ameaçador fascinante e se movimenta de maneira fluída e convincente (com exceção do momento em que empurra um cervo com suas garras de maneira quase paródica), já os raptores (tanto o Atrociraptor quanto o Velociraptor) às vezes surgem duros e opacos, se movimentando como se seus corpos estivessem fragmentados e desarticulados. Os melhores "takes" infelizmente estão todos nos trailers (com a excessão das cenas envolvendo os dimetrodons).
O Giganotossauro, que poderia ter se tornado o destaque do longa, surge de maneira pouco cerimoniosa; Trevorrow comete o grave erro de apresentá-lo sem mistério - vemos o animal cedo na trama dormindo na floresta e logo em seguida perambulando casualmente em busca de comida. Quando ele finalmente se faz importante na trama, já não possui o mesmo impacto - este era um bom momento para Trevorrow imitar o filme original e fazer com o Giganotossauro o que Spielberg fez com o Tiranossauro: introduzi-lo indiretamente (off-screen) através de diálogos temerosos e de uma cabra fremente, para depois revelá-lo em toda sua glória fulminante no ataque aos carros.
Algo que prejudica todos os filmes da trilogia "Jurassic World" é a crença de que o público só responde a determinada fórmula.
Dominion repete o clímax risível de Jurassic World cometendo os mesmos erros - transformando os dinossauros em mocinhos e vilões e apostando em imagens pouco atraentes e até ridículas (muito escuras e com efeitos de computação duvidosos) para gerar um espetáculo inverossímil mais adequado a um videogame.
O Homem do Norte
3.7 937 Assista AgoraRobert Eggers é um diretor frustrante. Se por um lado seus filmes armam situações psicológicas potencialmente interessantes (seja a simbiose fatal entre dois homens em "O Farol" ou a saga Hamletiana de amor e ódio contemplada em "O Homem do Norte") seus desfechos são aniquilações de ambiguidade e parecem privilegiar o choque superficial a uma possível conclusão poética.
"O Homem do Norte" é um filme envolvente durante seus dois primeiros terços. A estética ominosa de Eggers é impressionante - ele aposta em uma fotografia sombria, mas nítida, em que a noite parece iluminada e caliginosa ao mesmo tempo. O impulso inicial do protagonista em vingar a morte do pai e salvar a mãe é promissor e acompanhamos de maneria tensa sua saga violenta e macabra. No entanto, chega um ponto no filme que Eggers parece querer subverter sua narrativa clássica (e até então eficaz) ao virar completamente ao avesso uma das personagens cruciais; no entanto, em vez de complexificá-la ou nos surpreender emocionalmente, tal reviravolta soa apelativa e inverosímil, isto é, não faz nenhum favor a narrativa, apenas a empobrece; Eggers "joga" uma personagem até então fleumática, mas benevolente, para um outro extremo caricato. A cena muda o filme de rumo, mas é incapaz de conferir qualquer tensão moral ou de sentimento ao longa tamanha sua artificialidade. É como se a gravidade que até então sustentava o enredo fosse jogada fora a favor do mero choque, o filme perde o chão e se suaviza emocionalmente apesar de todos os fatos horríveis que dali deflagram.
Em "O Farol", Eggers também demonstrou uma certa inadequação no momentum de suas cenas impactantes. O diretor é ótimo em nos afligir com imagens grotescas (estas surgem de supetão e de fato aterrorizam e enojam), mas se ele é bem-sucedido esteticamente, o desenrolar psicológico de seus personagens é sempre "off", desconectado. Já me incomodava em "O Farol" como a trama Polanskiesca falhava em encontrar o momento certo para "apertar o parafuso" da relação doentia entre seus protagonistas; o diretor ou inseria cenas surrealistas e carregadas de simbologia cedo demais na trama, ou falhava em explorar a subjetividade de seus personagens de forma orgânica e crível, apostando sempre na tragédia enquanto desfecho mórbido, mas superficial. O mesmo ocorre em "O Homem do Norte": a partir de certo momento do filme não parece mais que o que está em jogo são os conflitos internos do protagonista, mas os acasos bizarros ditados pelo roteiro desvairado. O filme é de fora pra dentro; Eggers é um deus irresponsável sujigando seus personagens para que ajam e interajam segundo seu capricho, mas não se importando com a dinâmica psicológica entre eles. Talvez este seja o buraco de seus filmes; eles invocam um mundo meândrico, angustiante e fatalista, mas fazem de seus personagens meros joguetes da perversão do diretor. Não sentimos que seus heróis e vilões tem muito a dizer sobre si e sobre os outros: são ocos e cumprem sua senda por inércia; apesar de extremos na violência, não despertam fascínio.
Eggers parece sempre querer que a angustia de seu filme venha de alguma certeza - seja da descoberta de uma traição ou da ira diante um terrível homicídio - mas nunca do que está latente; o diretor faz questão de levantar todas as pedras e mostrar exatamente o que há debaixo delas. Não há tino para as ambiguidades, o diretor esquarteja cabeças e mutila corpos, mas não tolera a alfição do não-saber ou de deixar um personagem à mercê de suas próprias inconsistências. O mistério que suas paisagens tortuosas evocam com tanta eficácia não está presente em seus personagens lisos.
O extenso elenco possui grandes nomes. Alexander Skarsgard e Ethan Hawke trazem uma intensidade exaustiva a seus papéis e o resto dos atores não tem chance de fazer muita coisa; Bjork possui uma caracterização curiosa, mas sua cena é extremamente breve. Nicole Kidman - geralmente uma boa atriz - está supreendentemente mal colocada em sua personagem (sua "grande cena" é tão cacofônica, mal escrita, mal dirigida e mal atuada que até nos tira do filme por uns instantes).
"O Homem do Norte" termina e não fica muito coisa além de uma admiração desinteressada pela opulência visual; testemunhamos uma série interminável de infortúnios abismais, mas não ficamos com os personagens e seus conflitos nos assombrando a cabeça, estes evanescem rápido e de maneira indolor.
Mass
4.0 70 Assista Agora"Mass" acompanha o encontro de dois casais que resolvem se encontrar a fim de (pelo menos em teoria) expor seus sentimentos e conversar a respeito de uma terrível tragédia envolvendo seus filhos. Eles não sabem bem como fazê-lo e trazem como certeza apenas a terrível angústia que os atormenta.
Fran Kranz, responsável pelo roteiro e pela direção, encontra maneiras interessantes de abordar a angustia latente dos personagens. Se no começo ela surge disfarçada na educação exagerada e tensa exibida pelos casais, mais tarde se transforma em prantos viscerais e confissões catárticas. O filme demora um pouco para revelar o que realmente acontecera entre os filhos dos casais, deixando-nos situados apenas pela angustia que permeia o encontro. Descobrimos mais tarde que um dos filhos cometera um atentado em sua escola, matando várias crianças incluindo o filho pequeno do outro casal.
"Mass" é um título minimalista, mas abrangente. Mass pode ser "missa"; além do fato de estarem realizando seu encontro em uma igreja, os personagens passam por uma espécie de exorcismo no qual o ódio e a revolta tentam encontrar salvação na palavra e por pouco não culminam em mais revolta e mais ódio (o encontro é tenso, pois pode tanto caminhar para uma direção terapêutica ou para um rompante de ira). Mass também alude a "mass murder" (assassinato em massa), mas em uma conotação mais interessante também pode significar "massa" - a matéria sólida indefinida que engasga os pais, pesados de uma perda irreparável e inefável, soterrados no cimento do luto.
Os quatro atores entregam atuações tão convincentes que o filme se torna quase um relato vivo - nos tornamos voyeurs de seres humanos reais que buscam aflitos uns nos outros alguma palavra reveladora de conforto ou mesmo alguma vala para despejar o insuportável que os assolam. Em determinado momento, o casal cujo filho foi vítima do assassinato (Gail e Jay) parece desejar que o outro casal (Linda e Richard) odeie o filho assassino pelo crime que cometeu, mas não porque querem que o casal se responsabilize pelo ato cometido, mas porque sadicamente esperam que Linda e Richard caluniem e desacreditem no próprio filho à revelia dos sentimentos de amor que, apesar de tudo, ainda permanecem. "Se nós sofremos, vocês devem sofrer mais", parecem ruminar em segredo. Filho é nervo exposto, é prolongamento inseparável do narcisismo dos pais, é para além da razão e da moral. Vemos em ambos os casais a incapacidade de abrir mão da fantasia de que um filho não morre e de que um filho não mata, de aceitar que faz parte da vida perder aquilo que não há cabimento perder; seja um ideal ou a própria vida.
O filme se encerra com Gail e Jay (pais do garoto assassinado) escutando o coro que ensaia no andar de cima da igreja. Jay é arrebatado pela beleza das vozes infantis e celestiais e se tal arroubo pode ser justificado por uma esperança sobrenatural de algum dia reencontrar o filho, é também possível que tenha ocorrido ao personagem uma percepção súbita de que, mesmo quando a massa da dor - escudo incomplacente - torna a vida soturna e abafada, a beleza ainda encontra furos para se fazer presente,
Encanto
3.8 804O design de arte e a animação em "Encanto" são impecáveis. Os cenários apresentam dimensão e profundidade e os personagens impressionam pela quantidade de sutilezas que são capazes de expressar com seus movimentos de face. No entanto, o filme é mais uma mensagem do que uma experiência.
A narrativa envolve uma família cuja matriarca (a avó) fora misteriosamente presenteada com uma magia quando perdera seu marido em uma invasão de colonizadores em sua antiga terra. A magia, contida em uma vela que nunca se apaga, erigiu uma bela casa-viva onde desde então habita em paz com sua família. Cada membro desta família é presenteada em sua infância com um dom (como falar com os animais ou ser dotado de uma força excepcional), menos a protagonista Mirabel que vive angustiada se sentindo desvalorizada pela avó e incapaz de ajudar a comunidade como os outros fazem.
Tudo em encanto é uma metáfora sobre como abrimos mãos de nossos próprios desejos para pertencer, agradar e manter tudo como está, ainda que tudo não esteja tão bem assim. A avó obsessivamente tenta manter a família organizada e o encanto vivo, mas quando o seu jeito habitual de gerir as coisas de repente começa a mostrar fissuras (assim como a casa) ela não sabe mais como agir e passa a negar a realidade, temendo perder tudo o que conquistou, mas também incapaz de traçar um novo caminho que exija abrir mão do controle e da superexigente perfeição que impinge em si e na família. O "encanto" do filme surge como metáfora do potente amor da avó, um amor que outrora salvara a família, mas que agora é demasiado inflexível e dominador, impossibilitando que a família permaneça unida e viva pelo afeto. Mirabel, a "desprovida de poder", decide ajudar a família e tenta descobrir de onde vem a falência do robusto sistema familiar que até então jamais vacilara. Por não possuir um grande poder milagroso como os outros e sempre ter tido de lidar com uma falta estrutural, ela acaba sendo mais capaz de suportar o desmoronar da "perfeição" e de buscar uma solução. Mirabel, ao contrário da avó conservadora e gravemente neurótica, consegue bancar a insatisfação e a angustia que precedem o traçar de um novo caminho, de uma nova configuração, algo crucial para que a família saia de sua crise.
"Encanto" cria um cenário mítico interessante e é criativa a maneira como aborda as relações familiares como um delicado sistema em que os vilões não são seres específicos, mas a rigidez e super exigência dos indivíduos que acabam matando a vivacidade e a força das relações. Tais conceitos - demasiado abstratos para um filme infantil - ganham forma na magia da cidade encantada e nos dons que cada membro da família possui. No entanto, apesar de toda essa superelaboração, "Encanto" sofre de alguns defeitos que inibem sua potência. O filme possui personagens demais e muitos deles acabam passando em branco (não chegam nem a se tornar caricatos, apenas ficam mal desenvolvidos). O mais grave defeito, no entanto, é que o longa possui uma pressa maníaca para resolver seus dilemas e seus conflitos psicológicos, ele jamais se dá tempo suficiente para que as resoluções soem críveis. Por exemplo: Mirabel vai confrontar - contra sua vontade - sua irmã vaidosa e antipática esperando que ambas se reconciliem para um bem maior; a irmã se mostra petulante e não é receptiva. No entanto, em questões de segundos um número musical irrompe e graças a uma artimanha do roteiro - a irmã de repente descobre que sabe fazer mais do que criar flores, ela também gera cactus e troncos desformes - as duas se reconciliam e seu arco dramático é encerrado com prontidão e perfeição. A irmã descobre - em um passe de mágica - que não precisa ser tão perfeita assim.
É como se "Encanto" não compactuasse com a própria mensagem. O longa não se permite encarar por muito tempo qualquer tragédia ou desavença entres seus personagens - todas as fissuras são tamponadas e reformadas em tempo recorde. Mesmo o grande conflito do filme envolvendo a avó e Mirabel de repente é contornado através de uma breve conversa na qual todos, de repente, se tornam compreensivos e maduros. Anos de terapia são condensados em calculados ensejos. E, diante dessa pressa, o filme acaba não nos permitindo de fato compreender e sentir as dores que atravessam aquela família. O imperativo de resolução que comanda o filme acaba enfraquecendo a beleza de seus personagens, reduzindo sua complexidade humana. É imprescindível encarar a dor um tempo antes que ela se transforme em algo mais encantador.
A Filha Perdida
3.6 573"The Lost Daughter" é um filme sensível e pungente sobre uma mulher de meia idade chamada Leda que, ao visitar uma região litorânea na Grécia, é inesperadamente tocada em um ponto visceral ao notar uma jovem mãe (Nina) com sua filha pequena na praia. A mãe parece bruta, impaciente e despreparada e a filha é petulante e demanda sem trégua. Tal visão evoca em Leda uma miríade de sentimentos e memórias. Freud já dizia: "o ser humano sofre de reminiscências". Leda não é assombrada pelo seu passado, ela é seu próprio passado e este se repete diversas vezes durante o longa enquanto a personagem interage com a estranha (mas familiar) família com a qual divide a estada no litoral. A potência do filme está no fato de que a protagonista não é uma figura nem necessariamente simpática nem monstruosa, ela nos captura pela indefinição. Há ambiguidade em todos seus gestos - se ela é cruel, logo em seguida há culpa, e isto a dignifica. Somos capazes de repudiá-la e compreendê-la simultaneamente, pois damos notícia de nós mesmos a cada manobra sua; há um horror em perceber que o mais horrível do horror é humano.
Desde as cenas iniciais de Leda flutuando absorta no mar há um clima de introspecção e densidade no filme de estreia de Maggie Gyllenhaal. A câmera da diretora é intimista e desinibida, transportando-nos de maneira sensorial (e não intelectual) ao universo de Leda. É admirável como o filme consegue nos dizer muito sem artificialidades de roteiro, de exposições desnecessárias ou diálogos fabricados, mas através de semblantes que parecem denunciar pensamentos secretos e de palavras mal ditas e mal compreendidas. É um filme despreocupado em fornecer respostas ou transmitir mensagens perfunctórias ou moralistas, mas que mergulha corajoso no mistério do feminino e da maternidade. Esta função tão idealizada é explorada no longa em sua face mais áspera e é desconstruída e desvelada, "desnaturalizada", como diz a protagonista em determinado momento. Ser mãe é inventar, não assumir.
Leda diz que o que mais gosta em suas filhas não é aquilo que elas possuem de parecido com ela, mas aquilo que elas possuem de mais íntimo e secreto, pois sabe que isso elas não podem atribuir a culpa a ela. A culpa de Leda é a culpa de quem não consegue ser uma só: ela ama as filhas, mas também as odeia, ela quer estar perto delas, mas também se sente sufocada pelo papel materno (tanto que de tempo em tempo, na sua história, ela o rasga e rompe com ele, indo em busca de aventuras e de sua própria identidade). Leda se cobra ser mãe, mas tudo o que consegue é estar mãe de vez em quando.
O título "a filha perdida" assume significados diversos no decorrer do longa. Há, é claro, as perdas reais: a garotinha se perde da mãe na praia e em seguida perde sua filha-boneca, mas a filha perdida é também a própria Leda, devastada pela relação difícil que teve com a própria mãe, uma mãe que não fora capaz de dar a ela um lastro afetivo, deixando-a sem referência feminina. As filhas perdidas também são as filhas imaginárias que Leda perdera ao lidar com suas filhas "reais" que, por serem sujeitos por si mesmos desejantes e diferentes do que ela imaginara, furam sua fantasia. A boneca de Leda, pela qual era tão apegada e que acaba sendo "arruinada" por uma de suas filhas, é um símbolo potente no filme - é a infância idealizada de Leda que não cessa de ressurgir (tanto em si própria quanto projetada em suas filhas), é o apego ao estático, à criança-objeto que comporta nossos desejos, reflete límpido o nosso narcisismo e ao contrário de uma criança real, não o desafia nem o contesta. Quando Leda resolve roubar a boneca da menina da praia, idêntica a sua própria, Leda quer resgatar algo de si que se perdera para sempre em um objeto capaz de sustentar suas expectativas, que diz "sim, eu sou o que você quer" o tempo inteiro, uma insígnia da completude. É interessante que mesmo tal objeto parece incapaz de ser aquilo que Leda espera dele - em determinada cena a boneca, suja de lama do mar, regurgita uma repugnante minhoca; Leda é pega de surpresa e fica enojada. Até a boneca é suja por dentro. Até um ser rasteiro e ínfimo aniquila o decalque.
Leda frequentemente se depara com a realidade obstruindo e invadindo seus ideais. Sejam as vistosas frutas da cesta que ao serem viradas revelam a face apodrecida ou a cigarra que invade sua cama e a desperta de um sono prazeroso com seu rangido infernal e aspecto grotesco, há sempre algo de sombrio e desagradável desassossegando seu idílio. Por mais que a personagem busque se distrair e driblar suas mazelas internas, há algo que sempre aponta para o seu incômodo, para seu ponto nevrálgico. Leda é uma antena de neurose e nada escapa a sua sensibilidade. A pinha que cai da árvore e marca suas costas é tão talhante quanto as memórias desavisadas que despencam de seu inconsciente. O que ela não sabe que sabe, mas está sempre ali, insistindo para se fazer ouvido, de repente aparece esquematizado em outra família, onde fica mais fácil para Leda se reconhecer e se situar. Não é um fascínio qualquer aquele que nutre pela jovem, desagradável e volúvel Nina e sua filhinha problemática - na segurança do outro lado do espelho ela faz suportável saber de si.
Há uma situação recorrente durante o longa em que Leda descasca uma laranja de maneira que a casca não se rompe e que, quando toda recortada, se assemelha a uma cobrinha - suas filhas, fascinadas, assistem a mãe descascar a laranja e vibram com a cobrinha de casca. Tal gesto ganha, no decorrer do filme, uma outra conotação. A casca de laranja que não pode se interromper parece dizer da própria expectativa de Leda de um amor ininterrupto, que não pode se partir, que não pode vacilar e talvez, justamente por que há essa exigente expectativa, também não pode ser suportado. É um filme sem final feliz, mas que se conclui também com algum alívio - prostrada na beira da praia após vivenciar uma situação terrivelmente angustiante e desmaiar na areia, ela ri e descasca mais uma vez uma laranja, dessa vez de maneira muito menos tensa, inclusive gargalhando enquanto conversa com as filhas preocupadas no telefone. A tragédia oscila entre a comédia e Leda consegue rir de si. O passado não cessa de retornar feito as ondas que a atingiram no rosto (e a acordaram assustada) e que agora molham gentilmente seus pés. Talvez, para Leda e todos nós, seja tudo uma questão de posição.
Ataque dos Cães
3.7 932A adaptação da obra de Henry James feita por Jane Campion em seu filme "Portrait of a Lady" é um dos dramas psicológicos mais ricos e potentes dos últimos 30 anos, portanto, esperava que algo da intensidade deste se repetiria na nova obra da diretora: "Ataque dos Cães". Infelizmente, o filme, apesar de cultivar certa intensidade graças ao apuro estético de Campion, falha em encontrar em seus personagens rasos e na obviedade de suas relações uma ressonância de fato visceral.
O filme acerta ao criar nas paisagens desérticas e montanhosas pelas quais os personagens caminham desolados um espaço angustiante no qual se revelam, feito as sombras nas montanhas, seus desejos e formas mais obscuras. Se Jane Campion acerta na estética, no entanto, seu filme não funciona devido a um equívoco: a diretora pensa que está fazendo um filme muito mais sutil do que realmente está. Campion basicamente coloca dois personagens opostos interagindo e, a partir de um certo momento, revela algo secreto e estrutural destes que muda a engrenagem da narrativa, mas não necessariamente a complexifica - é com se o rio mudasse de direção, mas não se aprofundasse.
Tanto o pusilânime e sensível Peter interpretado por Kodi Smit-McPhee quanto o tacanho neandertal Phill interpretado por Benedict Cumberbatch soam demasiado caricatos para suportar o clima dúbio que Campion impõe em sua narrativa. O desenvolvimento de tais personagens seguem uma lógica calcada na noção de que subverter estereótipos é suficiente para torná-los verossímeis e complexos. Quando notamos o caminho que o filme irá seguir ele deixa de surpreender e deixa de expandir a relação entre seus personagens que parecem fadados a cumprir um desfecho de rotina, servil à temática que Jane Campion drena até o talo sem desabrochá-la - o semblante masculino e feminino enquanto fachada da verdadeira face do desejo.
As atuações são, em sua maior parte, eficientes; Benedict Cumberbatch confere admirável intensidade ao agressivo (mas frágil) cowboy e o torna até digno de simpatia (há algo de infantil em seu pathos que comove apesar de todas as atrocidades que comete); o ectomórfico e pálido Kodi Smit-McPhee confere a Peter um ar de mistério interessante, ainda que nunca de fato acessemos sua essência. Kirsten Dunst tenta compensar a personagem prosaica imbuindo-a de uma emotividade exagerada que vai além do que a cena pede, seus lampejos de lágrimas e semblantes consternados são tempestades em copos rasos.
"Ataque dos Cães" não é mais denso que um melodrama de Douglas Sirk, mas assume um prumo "Antonioni-esco" que soa equivocado, indigno da obviedade do roteiro pedestre. Jane Campion erigiu um longa demasiado calculado, sem espaço para o equívoco - os personagens, ainda que opostos, se encaixam e se refletem com perfeição. Sobra, no final das contas, não o vazio fecundo de Antonioni, mas uma falta de vazio, um filme que já disse tudo sobre si mesmo.
Mar de Fogo
3.6 163 Assista Agora"Hidalgo" possui um ar retrô atraente que remete aos filmes de aventura de Douglas Fairbanks e Errol Flynn, mas com o refinamento técnico e tom artimanhoso da trilogia Indiana Jones. Viggo Mortensen encarna o herói titular de maneira carismática e modesta, transmitindo pathos e nos convencendo que o personagem impecavelmente ético, bonito e destemido de fato pode existir.
Joe Johnston é um diretor muito competente e, seguindo os passos de Steven Spielberg, é particularmente eficiente ao conduzir cenas de ação - seu trabalho em filmes como "Jumanji" (1995) e "Jurassic Park III" (2001) é esteticamente empolgante e memorável; em suas obras que pendem mais para o dramático ele tende a esbarrar no hiper-sentimental e em um filme como "Hildalgo", que se encontra no limiar da ação e do drama, ele atinge resultados irregulares.
O que impede "Hidalgo" de ser um filme excepcionalmente divertido e tocante é que o longa divaga demais enquanto liga uma cena a outra. Com 40 minutos a menos e focando mais na relação do protagonista com seu cavalo (que é justamente seu ponto forte) o filme poderia até ter se tornado um clássico do faroeste-aventura, já que possui elementos sólidos para atingir seu objetivo (um bom diretor, um bom ator principal e qualidade técnica). O roteiro estofado falha em firmar o filme em seu ponto visceral (a amizade entre Frank e o cavalo Hidalgo) e, portanto, apesar de um belíssimo e emocionante desfecho envolvendo uma enorme manada de cavalos e boas cenas de ação que evocam Indiana Jones, o filme se perde nos tediosos intervalos entre tais cenas, nos quais diálogos pouco inspirados e extensas caminhadas no deserto derrubam qualquer momentum.
Com exceção do sheik Riyadh (interpretado com panache por Omar Sharif) e que diverte com sua conduta assertiva, mas moralmente ambivalente, o resto dos personagens não acrescentam muito a trama e nem são oferecidos destinos interessantes.
Há um divertido e emocionante filme de 90 minutos em "Hidalgo", mas Joe Johnston parece não ter tido a coragem de deixar que a simples e eficaz relação entre o protagonista e seu cavalo assumisse as rédeas.
Os Olhos de Tammy Faye
3.3 177 Assista AgoraHá dois momentos brilhantes em "The Eyes of Tammy Faye": o primeiro ocorre quando Tammy , em seu programa de TV, conversa emocionada com um homem gay portador de HIV e demonstra sua compaixão à revelia do próprio público religioso e conservador que, em sua grande parte, jamais a apoiaria em tal gesto. O outro envolve toda a última porção do filme, quando nos deparamos com uma Tammy Faye matrona nos anos 90, besuntada de maquiagem, modelada feito um artefato kistch e esbanjando um carisma trágico enquanto tenta refazer sua vida profissional abalada pelas polêmicas que enfrentara na década anterior. A performance de Jessica Chastain, em especial nestes momentos citados, é arrebatadora e culmina em uma sequência musical tocante que evoca uma catarse triunfal ausente no resto do longa; é uma pena que apenas no último terço do filme a personagem de Tammy encontre o pathos necessário para que o filme nos capture em um nível visceral. Fiquei desejando que o longa houvesse começado ali onde termina, na sopa já quente e densa, em vez de que tentasse explorar (infrutiferamente) o passo a passo de cada ingrediente formador de Tammy Faye.
O longa mantém, durante sua maior parte, um tom inconsequente e jocoso e se aventura em uma narrativa pouco interessante enquanto acompanhamos a trajetória amorosa e profissional de Tammy - desde sua infância conservadora até sua ascensão na TV ao lado do marido e, também pastor, Jim Bakker. Durante sua maior parte o filme falha em entrar em compasso com a energia maníaca que fez de Tammy Faye uma figura tão memorável, além disso, há poucas tentativas de explorar seu lado cômico e absurdo; o filmes não oferece à personagem situações corriqueiras, apenas grandes viradas e acontecimentos. Em vez de explorar as questões burocráticas ao redor da protagonista (seus affairs, sua trajetória em shows de TV, seus encontros artimanhosos com homens de negócios), o filme se sairia melhor explorando o próprio absurdo da persona de Faye, afinal, uma mulher religiosa que se assemelha em energia e visual a uma drag queen - uma figura herética para o meio religioso - é por definição fascinante.
O humor natural de Tammy Faye emana de sua grande histeria, seus símbolos de hiper-feminilidade (muita maquiagem, muita roupa, muita jóia) são, na verdade, agressivamente masculino, isto é, ela é um sujeito extramamente ativo cujas insígnias exacerbadas de feminilidade a corporificam feito uma guerreira de armadura - talvez daí venha sua grande afinidade com o universo gay e vice-versa, desta amalgama paradoxal do feminino e do masculino, de uma aparente passividade ao marido, a Deus e a igreja, mas que só existe enquanto Faye comanda, incita e se faz absolutamente presente. Infelizmente, tudo isso que é fascinante sobre Faye é sufocado por tentativas formulaicas da produção de conferir ao filme um corpo tradicional de biografia.
Jessica Chastain raramente se assemelha fisicamente a Tammy apesar de todo o trabalho de maquiagem e prostéticos (seu porte é demasiado esguio e portento para se assemelhar ao corpo chato e de cacoetes ansiosos da verdadeira Faye), no entanto, ela procura dar uma profundidade e uma dignidade à personagem que transcende a mera caricatura e, concomitantemente (e mais importante), não sacrifica seu lado pilhérico infame que é, sem dúvidas, o que a torna tão singular e amável. Infelizmente, o filme ao seu redor aborda Tammy de maneira equivocada, quase matemática de tão rígida - indo de A a B nos desdobramentos factuais e não dando chances para que a verdadeira estrela - a personalidade extravagante de Tammy - ocupe o palco central. Bastava deixar que Tammy falasse, chorasse, cantasse e falasse.
Annette
3.5 118 Assista AgoraUm dos filmes piores filmes que já vi. Um simulacro cacofônico e desagradável incapaz de ensejar sequer um sentimento genuíno.
Adam Driver está extremamente antipático no papel principal e Marion Cotillard surge apática e opaca. Até mesmo a metáfora central do filme, a do filho-objeto sujeito às insanidades narcísicas dos pais, é má explorada por Leos Carax que insiste em um tom cínico e anódino do começo ao fim. É um filme que parece regozijar em idiossincrasias que, no final das contas, não significam nada. Ser estranho para ser estranho não faz de um filme ressonante. "The Rocky Horror Picture Show" (1975) e "Harold and Maude" (1971), por exemplo, são filmes que foram percebidos como bizarros na época de lançamento, mas que se tornaram clássicos duradouros APESAR de sua estranheza, porque mais no fundo (em um nível inconsciente) algo foi capaz de tocar diversas gerações de fãs. "Annette" não possui essa qualidade, é apenas um exercício excêntrico, desalmado e perfunctório.
É difícil falar se o fato de "Annette" ser um musical o torna menos ou mais cansativo, já que o vácuo do longa é estrutural e não de gênero. Algumas das músicas da produção possuem melodias bonitas, mas jamais funcionam para incrementar a narrativa ou revelar algo sobre seus personagens. São letras tão repetitivas e banais que fazem Michel Legrand parecer Chico Buarque.
"Annette" preguiçosamente esboça o sentimento e a tragédia, mas é engolido pelos excessos e ineptidões de Leos Carax que, durante intermináveis 2 horas e 20 minutos, afoga seu filme em um estilismo plástico e indigesto.
Casa Gucci
3.2 706 Assista Agora"House of Gucci" é um filme que triunfa em muitos aspectos, mas que devido a algumas inconsistências pontuais não consegue se tornar um filme excelente. É interessante como o veterano Ridley Scott o dirige hesitante em torná-lo um espetáculo, conferindo um ar de filme europeu de arte em certos momentos (as cenas se arrastam despreocupadas e nem sempre deixam clara suas intenções) e em outros apostando em um humor canastrão e afetado que esbarra no estilo de Paul Verhoeven e Pedro Almodovar. Esta indecisão na maneira de como abordar o filme é curiosa, pois não é necessariamente ruim - o longa consegue ser ao mesmo tempo engraçado e verossímil. No entanto, se o filme não é uma palhaçada, ele também não atinge a densidade necessária para se tornar solene ou profundo.
O elenco é sem dúvidas o ponto forte do longa; o destaque vai para Al Pacino como Aldo, um dos donos do império Gucci. Ele é o único ator do elenco que consegue equilibrar com perfeição as faces cômicas e trágicas do filme com absoluta naturalidade. Ao mesmo tempo que rimos de seus trejeitos e canastrices, também conseguimos nos sensibilizar com suas frustrações; ainda que seu personagem não seja ético, ele é carismático e convincente nas mãos do ator e, isso, faz toda a diferença.
A performance de Lady GaGa é surpreendente e muito superior a sua atuação no superestimado "A Star is Born". A atriz esbanja muito mais presença e energia em "House of Gucci". Não é uma atuação perfeita e chega a ser um pouco inconsistente: às vezes suas falas soam um pouco artificiais (como se ela ainda estivesse ensaiando) e sua mania de atuar com os dentes em cenas mais exigentes - com uma voracidade quase canina - anula uma possível ambiguidade da personagem (que poderia ser evocada no caso de uma abordagem mais nuançada). Em outros momentos, no entanto, Lady GaGa brilha, em especial no começo do filme quando sua mistura de ingenuidade e ousadia formam um traço interessante, imprevisível e charmoso e, é claro, no terceiro ato, quando o roteiro permite a atriz invocar o lado sinistro e insuflado de ira que a conduz Patrizia ao fatídico assassinato.
Jeremy Irons, apesar do papel pequeno, comanda a atenção em todas suas cenas como o austero, vaidoso e oblíquo Rodolfo Gucci. Jared Leto talvez seja o único integrante fraco do elenco, conferindo ao filho parvo de Aldo cacoetes e inflexões vocais dignas de um animador de festa infantil fazendo uma caricatura de Super Mario Bros. É um performance afetada de pura vaidade que parece o tempo inteiro dizer: "veja como sou absurdamente engraçado". É um personagem que fica solto na trama, incapaz de conversar com os demais e que se encontra milhas distante de qualquer verossimilhança com um ser humano. Em suas cenas com a personagem Patrizzia, por exemplo, parece que estamos assistindo uma edição artimanhosa de dois personagens de filmes diferentes.
"House of Gucci" é longo demais e apesar de apenas se tornar realmente tedioso perto de sua conclusão (quando o foco deixa de estar nos personagens e se concentra mais no destino burocrático da empresa Gucci), muitas cenas poderiam ter sido cortadas ou reduzidas. Há um momento, por exemplo, em que Patrizia vai até a amante de seu marido e diz a ela indiretamente, mas sem nenhuma sutileza, que sabe que os dois estão tendo um caso e que ela não vai aceitar que isto aconteça; é uma cena absolutamente desnecessária que apenas "chove no molhado" já que, imediatamente antes, há uma troca de olhares entre as duas que diz muito mais dos sentimentos de Patrizia e de sua ira de ciúmes do que tal conversa sinóptica. E isto se repete em outras ocasiões do filme: há demasiadas cenas que não acrescentam nada e cujo conteúdo expositivo poderia ter sido expressado de maneira mais eficaz através de recursos mais sugestivos e tensos - olhares, omissões, deslizes, gestos e etc.
Em alguns momentos o roteiro é tão óbvio em suas intenções que o longa perde força, especialmente no terceiro ato quando somos levados a crer que o casamento de Patrizia e Maurizio está se desintegrando. Em vez da crise marital que enfim leva Patrizia a assassinar o marido ser desenvolvida paulatinamente e de maneira tensa, ela surge de supetão e artificialmente, quase como uma obrigatoriedade do roteiro para que seu desfecho faça sentido; inclusive as cenas que servem para mostrar a tal "crise" são tão dolorosamente óbvias que é possível escutar o lápis preguiçoso do roteirista roçando desinteressadamente o papel.
"House of Gucci", apesar de todos esses defeitos, é um filme envolvente que, quando ameaça desinflar e morrer na praia, injeta alguma cena espirituosa ou nos brinda com o vigor de seus bons atores. Há algo na dinâmica da família Gucci e sua cacofonia de prestígio, ambição, inveja, amor e neurose que cativa. Ridley Scott confere um clima interessante à narrativa que não vai agradar a todos, mas que achei bem-vinda; ele concatena a personalidade estridente e aleivosa da telenovela com a ambiguidade moral do cinema europeu, isto é, os personagens espalhafatosos não seguem códigos morais, mas nem por isso são punidos ou celebrados; eles lidam com as consequências de seus atos como qualquer ser-humano, às vezes obnubilados, incapazes de discernir o ódio do amor, a ira da paixão. E aí reside o fascínio que causa o império Gucci (e qualquer família problemática digna de filme) - nos laços estreitos que enfeitam, abraçam, sufocam e até matam, mas que raramente, de fato, se desfazem.
Ferida
3.3 61 Assista AgoraÉ admirável a energia que Halle Berry investe em seu primeiro projeto como diretora. Longe de parecer ter seus 55 anos, a atriz é competente tanto como diretora como protagonista - ela encarna os dois papéis com profunda naturalidade. Nunca percebemos que o filme está sendo "dirigido", um ótimo sinal para saber se um filme, de fato, é ou não bem dirigido. Berry usa seu estilo estético para servir à estória e não o contrário.
"Bruised" não é um filme ruim. O começo é cativante e o estilo cinéma vérité que Berry emprega traz uma protagonista sofrida e quase antipática em um mundo absolutamente desolador. É um longa sofrido, repleto de personagens agressivos, mal amados e sem salvação. A protagonista é pobre e masoquista, sua mãe não passa de uma piriguete idosa que jamais ligou para a filha, seu namorado é um "white trash" abrutalhado e incompetente, sua carreira está em frangalhos e para piorar ela descobre que o filho que há tempos abandonara está de volta em sua vida após a morte do seu ex-namorado, pai do garoto. Há uma sobrecarga de drama no filme que diminui seu impacto. São muitos assuntos diferentes que parecem se aglutinar em sufoco em vez de conferir pathos à jornada de superação da lutadora.
Sheila Atim encarna uma inesperada parceira da protagonista que a ergue de sua lama e provê um porto seguro, é uma atriz e personagem interessante - paradoxalmente sensível e estóica, mas no momento em que esta passa a se envolver romanticamente com Justice o filme mais uma vez faz um desvio pouco interessante que apenas compromete seu ritmo e acrescenta mais um "conflito" desnecessário, mais uma situação a ser resolvida; o aparente alívio que Justice encontrara na parceira, agora já é mais um nó que caleja em um filme que ameaça se tornar uma grande e pesada rede de nós.
O filme termina muito bem ao culminar no retorno aos ringues da protagonista. O combate em si é muito bem orquestrado por Berry e é um dos poucos momentos no filme em que de fato investi na estória de maneira visceral. O grande defeito do longa está em achar que uma longa duração e uma cornucópia de diferentes conflitos e personagens problemáticos confere a ele uma densidade maior. Pelo contrário, elecertamente seria mais potente caso Berry houvesse enxugado o segundo ato e evitado cenas que acabam desviando o filme do seu ponto visceral - a ira ambivalente de Justice, que ora se direciona ao triunfo da luta enquanto espaço de catarse e amor e oras se volta para seu próprio nocaute pelo álcool e pela depressão.
"Bruised" traça caminhos demasiado familiares de maneira que, durante a projeção, é inevitável pensar em dezenas de filmes similares e mais eficientes que abordam a mesma temática como "The Wrestler" (2008), "Rocky" (1976) e "Million Dollar Baby"(2004). Não há nada idiossincrático ou cativante o suficiente no longa para que ignoremos o lugar comum que ele tão frequentemente ocupa. Nada tira o mérito de Berry como diretora e atriz, mas torço para que seu próximo projeto seja mais singular e possa dar formas mais interessante a seus talentos.
Spencer
3.7 569 Assista Agora"Spencer" faz um recorte preciso e precioso de uma princesa Diana que não precisa ser boa ou má e cuja narrativa não exalta o drama ou a intriga, mas deflagra um conflito interno, de pulsão de vida e de morte e que titubeia a cada cena enquanto a personagem almeja alguma catarse, através do amor (pelos filhos ou pela criada por quem se afeiçoa) ou pela dor (seja da compulsão alimentar ou do ódio pelos monarcas que ameaça explodir em ímpeto violento).
Tudo aquilo que já sabemos sobre a princesa (através de inúmeras reportagens, filmes e documentários) não é explicado ou declarado, mas surge ominoso através de olhares e atravessado nos diálogos. Quando, por exemplo, Diana vê Camilla na igreja, basta seu semblante cínico e pernicioso direcionado à protagonista para que de repente o filme evoque toda a conturbada relação do triângulo amoroso e o sofrimento que este impinge. O mesmo vale para a frieza de górgona exibida pela rainha, um figura inacessível que surge sempre ameaçadora, esfíngica e áspera.
O corpo quebrado e hesitante de Kristen Stewart reflete com perfeição o desconforto da própria Diana e é impressionante, desde as cenas iniciais, a maneira como a atriz assume o visual e os trejeitos do personagem com excelência. Diana surge imbuída de um sofrimento que ao mesmo tempo que a constitui e a diferencia dos seres impávidos da realeza, também denuncia sua covardia moral de viver aquilo que realmente deseja - uma vida mais amorosa e espontânea.
A abordagem intimista do filme revela o malabarismo que Diana faz com suas urgências mais íntimas; a personagem vaga pelos salões indecisa, ponderando se vai ou não ao jantar real, isto é, se cumpre ou não aquilo que os outros demandam dela, outros que pouco importam quem sejam, mas que dentro dela assumem o caráter do Dever, da Lei, do Carrasco. Sensivelmente batizado de "Spencer", o filme é sobre a Diana que ousa desafiar a sentença que ela própria impõe sobre si mesma, a sentença de sofrer para agradar, para pertencer e para, consequentemente, sumir. Se seu conflito inicial é ou desparecer no papel de princesa (engolida pelos ditames monárquicos, feitos somente de "passado", como ela mesma diz) ou desaparecer com o próprio corpo (na mutilação, na bulimia, no suicídio), mais tarde seu destino vai ganhando outras cores, tons de vida e de desejo.
Identificada aos belos faisões que são assassinados para jantares finos e que são criados somente para esse fim, ela reinventa seu desígnio. O interessante do filme é que ele não erotiza o sofrimento de Diana, não se trata de uma elegia ao seu status de mártir, e isto fica claro na maneira como o filme trabalha o personagem Major Gregory. O austero "vigia" da corte a presenteia com um livro sobre Ana Bolena (a rainha degolada por desafiar o sistema) e Diana cai em sua armadilha em um primeiro momento, temendo que sua rebeldia a leve ao mesmo destino da rainha; no entanto, o filme encerra com Diana devolvendo a ele o livro, isto é, devolvendo o lugar que ele a colocou e que ela aceitou, mas que agora soa demasiado estreito e fúnebre.
"Você precisa ser chocada", diz a amiga criada a Diana em determinado momento. Talvez o choque - o susto - que Diana leva ao constatar que se perdeu pelas estradas outrora familiares no começo do filme seja o mesmo que a impulsiona a, enfim, traçar um novo rumo em sua vida; é quando ela estranha não reconhecer seu próprio passado que suas certezas se abalam e uma faísca de coragem se anuncia, coragem de querer saber de si.
A luta interna de Diana comove, pois é uma versão fabulosa (no sentido de fábula mesmo, como o próprio filme se identifica) do sofrimento neurótico que gira em torno não de "ser ou não ser", mas de "ser do outro ou ser outro", de se acomodar no sofrimento confortável e sólido como as paredes do castelo ou de se aventurar nas estradas incertas do desejo, onde, como diz Clarice Lispector, se perder também é caminho.
Finch
3.6 221 Assista Agora"Finch" não hesita em traçar caminhos demasiado familiares. Em diversos momentos surge a sensação de que o filme está repetindo - à maneira do robô Jeff emulando seu criador - outros filmes de ficção/drama como "A Estrada" (2009) e "Corrida Silenciosa" (1972). No entanto, o longa nos conquista graças à atuação carismática de Tom Hanks, cuja simples presença já confere algo de familiar e afetivo à narrativa.
O robô Jeff - inventado pelo protagonista Finch e catalisador do arco dramático - às vezes se torna mais irritante do que carismático. Seu caráter infantilóide que se resume em ser impulsivamente curioso e em não compreender o abstrato da linguagem acaba denunciando uma puerilidade dos próprios roteiristas. O cachorrinho, por sua vez, é naturalmente adorável; se o robô Jeff e a maneira como surge e se desenvolve soa inverossímil, a relação de Finch com o animal desde o primeiro momento possui apelo e acaba segurando a força emotiva que o filme tão veemente procura.
É interessante que o longa opte por explorar o aspecto dramático da relação entre seus personagens em vez de apostar em cenas de ação carregadas de efeitos especiais como o fazem frequentemente os filmes atuais de ficção. O perigo que rodeia os protagonistas é palpável e há cenas de tensão, mas estas são misteriosas ou de fato ameaçadoras, jamais surgindo para infundir "adrenalina" ou deflagrar set-pieces elaborados.
Tenho um fraco por filmes situados em cenários pós-apocalípticos e apesar de "Finch" não ser necessariamente o mais criativo, ousado ou memorável, ele segue bem o manual e - titubeando entre o deprimente e o sentimental - acaba encontrando seu rumo, tornando seus personagens e suas jornadas dignas de afeição.
A Mulher na Janela
3.0 1,1K Assista AgoraTracy Letts escreveu dois excelentes roteiros nos últimos 20 anos - "Possuídos" de 2006 e "Killer Joe" de 2011. São obras que mergulham no mais sombrio do humano e conciliam uma abordagem grotesca e perversa com algo de genuíno e tocante. Seu último trabalho, "A Mulher na Janela", é um filme que retoma elementos de clássicos da paranoia como "Janela Indiscreta" (1954), "Copycat" (1995) e "O Inquilino" (1976), mas que ao contrário dos trabalhos anteriores de Letts, falha em erigir um protagonista cativante, um desenrolar tenso ou mesmo personagens secundários interessantes.
Se em "Possuídos" a folie à deux de um jovem casal nos deixa gradativamente sem ar e em "Killer Joe" ficamos fascinados em repugnância com os atos vis de uma família "caipira" disfuncional, "A Mulher na Janela" nos deixa indiferente em relação ao drama pessoal da protagonista Anna (Amy Adams), uma mulher de meia idade agorafóbica que presencia um assassinato no apartamento vizinho e tem sua sanidade questionada por si mesma e pelos que a cercam. Adams convém as emoções necessárias, mas por algum motivo sua personagem transmite uma amargura que causa antipatia e mesmo quando suas tragédias pessoais são reveladas, jamais nos importamos com seu destino. Ela sempre soa mais letárgica e indigesta do que absorta e vulnerável.
Joe Wright dirige o filme com um virtuosismo exagerado que vai contra o próprio teor sórdido da estória. A fotografia e a direção de arte são quase bonitas demais, evocando um caráter cênico distante da crueza urbana fétida e desamparada que o filme exige. É um tipo de filme que não comporta a elegância que Wright almeja e quanto mais nos aproximamos do clímax violento e absurdo (e é quando o filme finalmente parece ceder ao seu desvario latente) mais fica claro que uma abordagem crua e perversa seria mais adequada desde o início. É um projeto que não precisava fingir ter classe ou profundidade, já que seus melhores momentos são justamente aqueles que apostam no perigo real e próximo, na sordidez da vida urbana e das figuras ominosas que ali pululam.
Joe Wright se equivoca ao começar seu filme já fremente e aflito. Um bom suspense precisa da calmaria antes do pânico, caso contrário ele vira uma música de uma nota só. Não há espaço para que a paranoia da protagonista evolua; Anna já está em crise na primeira tomada. Wright jamais encontra o ritmo de seu filme e sua edição rápida e espalhafatosa corta a tensão em vez de fomentá-la. No entanto, há uma ou outra cena esteticamente inspirada: em uma delas, Anna finalmente consegue deixar sua casa e atravessa a rua encolhida debaixo de sua sombrinha - desatenta e apavorada, evitando olhar a seu redor; a câmera se posiciona de maneira que, assim como a protagonista, não enxerguemos nada além da parte inferior da sombrinha; enquanto isso, vemos as luzes dos carros piscarem por detrás do tecido e ouvimos os barulhos estridentes da rua sugerindo perigo iminente.
O filme emprega uma série de "falsos culpados" e de fato surpreende em sua grande revelação, no entanto, os personagens secundários (apesar de interpretados por excelentes atores como Julianne Moore, Jennifer Jason Leigh e Gary Oldman) não têm tempo suficiente de deixar sua marca - Leigh, em especial, uma atriz capaz de demonstrar grande intensidade, é completamente desperdiçada em um papel breve e anêmico. O longa, equivocadamente, nunca estreita os laços entre seus personagens, ele não cultiva as tensões psicológicas (apenas as sugere) e foca toda sua energia no drama interno de Anna que não é interessante o suficiente. Quando as revelações surgem, elas não possuem impacto emocional, pois não foram elaboradas e preparadas o bastante.
Apesar de divertir periodicamente (em particular em seu clímax "grand guignol"), "A Mulher na Janela" termina sem deixar qualquer ressonância e não traz nenhum olhar particularmente interessante, tenso ou subversivo ao gênero suspense e empalidece frente às diversas obras cinematográficos nas quais se inspira.
Fortes Sensações
2.8 2Por mais herético que isto possa soar, prefiro os "giallos" americanos aos europeus. "Sensations" é um "giallo" americano meio fora de época que combina o cinema thriller-erótico popular dos anos 90 com elementos sobrenaturais e nonsênsicos dos giallos italianos dos anos 70. A maioria destes últimos irritam pela terrível dublagem dessincronizada e pela narrativa excessivamente desvairada que deixa buracos demais pelo caminho. "Sensations" se salva destes enganos: o longa é tecnicamente bem feito e pragmático; a trama é sempre clara e por mais absurda que a estória seja, ela faz sentido dentro da lógica que o filme estabelece.
Kari Wuhrer, uma atriz belíssima que atuou praticamente apenas em filmes B, confere a protagonista Lila uma mistura de sensualidade vulgar e ingenuidade adolescente que a torna crível e suscetível aos perigos que o longa a sujeita. Lila é um estudante de artes dotada de uma hipersensibilidade que a permite ver cenas do passado simplesmente ao tocar em objetos. O professor canastrão interpretado por Eric Roberts aborda a moça para que ela investigue a morte de sua ex-namorada tocando em objetos que pertenciam a ela. A partir daí, Lila começa a se envolver com o professor ainda que este se revele cada vez mais dúbio e perigoso. É um filme erótico em que praticamente todos os personagens parecem atores pornôs fazendo bico em outros empregos, no entanto, o filme concilia bem os aspectos eróticos com o suspense. À maneria dos giallos, surgem uma série de "possíveis culpados" que de fato nos deixam curiosos e adivinhando.
O diretor - Brian Grant - não deixa a bola cair, o filme engata logo no começo um bom ritmo e o mantém. Apesar de psicologicamente não possuir muitas nuances (a fixação erótica de Lila pelo professor e vice versa não possui muitos desdobramentos, eles são basicamente locomotivas no cio), o longa mantém um nível satisfatório de tensão durante toda sua projeção. Não é uma tensão asfixiante, mas uma atmosfera sórdida e sinuosa que cativa. Pode não ser o thriller mais memorável da década, mas é uma anomalia interessante que merece ser mais conhecida. O desfecho de "Sensations" é surpreendente e remete aos filmes de Dario Argento; apesar de não possuir a estética singular e atraente das obras do diretor, possui a vantagem de contar com uma direção focada, um roteiro meticuloso e razoavelmente crível e boas atuações lúbricas.