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"A arte é uma mentira. O papel do artista é convencer os outros da veracidade de suas mentiras." (Paul Klee)

Últimas opiniões enviadas

  • Rafael Bedran

    "A Baleia" tem, em seu centro, uma atuação muito sincera e comovente de Brander Fraser como um professor de literatura recluso e morbidamente obeso. Só o fato de um ator outrora galã e protagonista de filmes nostálgicos estilo "sessão da tarde" de repente surgir com uma aparência tão melancólica, corpulenta e fatigante já é o suficiente para despertar em nós certo incômodo e tristeza. O personagem de Charlie opera de maneira interessante - sua visão de mundo é otimista e tolerante para todo o universo (até mesmo em relação à filha rebelde e perversa interpretada por Sadie Sink), menos para si próprio - Charlie se maltrata, se pune de culpa e se enche de comida como um coveiro atola uma cova de terra. O longa traça um paralelo entre o protagonista e a estória de Moby Dick e, no caso, Charlie é simultaneamente o capitão e a baleia, assombrado pela própria imagem mórbida e sempre a um passo de aniquilá-la de vez, de dar fim ao seu sofrimento, de se libertar do peso do seu corpo e do seu mundo - este restrito a um pequeno apartamento-câmara-masmorra.

    Brander Fraser é o ator perfeito para o papel: ele confere a Charlie uma inocência e um desamparo genuínos, seus rompantes de emoção surgem de maneira muito espontânea, sem afetações desnecessárias (mesmo se o roteiro não enfatizasse como Charlie é um sujeito delicado e doce, o próprio semblante de Fraser, com seus grandes olhos melífluos e carentes já dariam conta do recado). Infelizmente, o mesmo não pode ser dito a respeito da condução do diretor Darren Aronofsky. Apesar de sua estética exagerada e opressiva de "Grand-Guignol" ter funcionado de maneira brilhante em filmes como "Cisne Negro" (2010) e "Pi" (1998), aqui seus exageros quase matam seu filme. Aronofsky parece não compreender o minimalismo do roteiro de "A Baleia" e que as angústias do personagem de Charlie são suficientes para embalar a narrativa e comover o espectador; o diretor insiste em uma trilha sonora melodramática e ostensiva que abafa as cenas e quase ofusca as interpretações brilhantes do elenco. Em outros momentos, Aronofsky filma suas cenas como se ainda estivesse flertando com o gênero horror como o fez de maneira genial em "Cisne Negro", mas aqui tal abordagem soa descomedida, como uma má compreensão do pathos do protagonista.

    Há momentos brilhantes em "A Baleia" - os diálogos entre a personagem de Hong Chau (melhor amiga de Charlie) e o protagonista são dotados de um espontaneidade cativante e tocante; aliás, a atriz merece o Oscar de coadjuvante deste ano, sua interpretação consegue amalgamar de maneira magistral um ressentimento engasgado, uma revolta com as condições duras inerentes à própria vida e um afeto de mãe, ao mesmo tempo, duro e caloroso. É uma personagem complexa que vai revelando diversas nuances a cada cena em que aparece. A relação de Charlie com seus alunos virtuais (o personagem jamais liga sua câmera do laptop com medo da reação que sua imagem provocaria) é explorada de maneira muito interessante, culminando em uma excelente cena em que Charlie subverte seus métodos de ensino e rasga o véu de decoro do universo acadêmico ao expor aquilo que realmente sente e guarda no peito.

    O longa é baseado em uma peça de teatro e em certos momentos sentimos uma certa artificialidade nos diálogos e na forma como alguns entreveros dramáticos são solucionados. Isso é notável principalmente na cena em que a ex-esposa de Charlie faz uma visita a ele e os dois finalmente discutem o que acontecera durante todos os dolorosos anos em que se distanciaram, é uma cena que soa um tanto apressada e inverossímil - a conversa surge demasiado elaborada e lúcida para pessoas que há tanto tempo guardam sentimentos contritos e conflitantes e é dotada de reações emotivas um pouco fora do eixo; é uma cena com cara de ensaio de teatro e passa a impressão de que se faz necessária apenas para satisfazer maquinações do roteiro e dar seguimento à redenção de Charlie, mas não soa leal aos personagens que, naquele momento, já conhecemos bem.

    O filme pesa a mão em alguns momentos em relação à monstruosidade da personagem de Sadie Sink, é um recurso que quer realçar a benevolência de Charlie, mas que funcionaria melhor com um pouco mais de sutileza. No entanto, essa relação dual central do filme funciona bem em outros instantes e são justamente as cenas em que a filha não é tão má assim e Charlie não é tão bonzinho assim que dão vida ao filme e conferem a ele um peso dramático consistente. Infelizmente, a cena clímax que deveria ser um soco no estômago, acaba se tornando algo "over" e pretensiosamente transcendental - não precisava; quando Aronofsky exagera na estética a sensação que temos é que o diretor perde a confiança em seu material e nas performances de seus atores quando, na verdade, essas são as maiores forças de seu projeto; bastava que ele saísse do caminho do próprio filme (maneirasse nos cacoetes e no vício de criar estrondo de fora para dentro) e permitisse que seus atores e o drama que entoam tivessem mais espaço livre para brilhar.

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  • Rafael Bedran

    Quando somos apresentados à personagem central de "Tár", logo no início do longa, sentimos por ela grande fascínio - ela é uma maestrina importante, talentosa, culta, hermética, emproada e de grande dignidade. Ela possui a personalidade que é atribuída estereotipadamente aos gênios - circunspecta, severamente obcecada pelo seu nicho artístico, levemente autística em seu mundo particular e prolixa em seus devaneios intelectualóides. Seu semblant é de grande valor para a comunidade artística que a vê como alguém muito especial, que se destaca do ser-humano mundano, alguém dotado de uma compreensão anormal da fruição artística e do virtuosismo. Ela parece habitar um plano mais sublime, uma redoma de bom gosto em que o sofrimento é válido apenas em prol da beleza e da perfeição estética. Aos poucos, o brilhante "Tár" de Todd Fields vai desconstruindo esse ideal, desmantelando esse ego magnífico. Sob os escombros de uma Deusa arruinada, surge um personagem muito real e fascinante.

    O filme lembra o excelente "A Primavera de Uma Solteirona" de 1969 estrelando Maggie Smith. Tár, assim como a idiossincrática e magnética professora Jean Brodie, mas de maneira menos maníaca e espirituosa, mantém com todos ao seu redor (em especial seus interesses amorosos) uma relação delicada de mestre e servo, ela goza em saber que a colocam em um pedestal e goza também em rapidamente substituir seus pequenos brinquedos adoradores por outros mais novos e desafiadores. Descrevendo o filme assim parece que ele exibe Tar como um monstro narcisista, mas não é bem assim - sua paixão visceral pelo ofício da música a enaltece e assim o faz também o amor que sente pela filha adotada (ela chega ao ponto de ameaçar uma das coleguinhas da filha caso ela volte a praticar bullying com a garota). O longa não a crucifica pelo seu sintoma de cunho quase perverso, pelo contrário, ele a humaniza ao mostrá-la tão susceptível às paixões e ao núcleo devastador das neuroses como qualquer outra pessoa. A primeira mácula na esplendorosa armadura da artista surge na forma de uma ex-aluna (e ex-amante) que a ameaça constantemente através de e-mails agressivos e potencialmente perigosos, a ex-aluna - uma rejeitada devastada - ameaça arruinar a vida de Tár que assume em relação a ela uma postura de fantasma, de alguém que nunca teve nada a ver com isso. Se a princípio tal postura soa de uma frieza cruel logo compreendemos que quando Tár rejeita a ex-aluna mentecapta ela está, na verdade, rejeitando a si mesma, desviando o olhar da sua própria loucura e devastação, tão bem disfarçadas e controladas sob o véu de sua altivez. Entendemos isso no momento em que Tar se apaixona por uma nova estudante que, inesperadamente, inverte a dinâmica de seus jogos sexuais - de repente, ela não é mais o objeto admirado que subjuga o outro, mas aquela que, de pernas frementes de adolescente, anseia migalhas de amor daquela que ama.

    Tár explora essa dinâmica psicológica de maneira muito bem feita. A rigidez, a ordem e a compostura que caracterizam o universo da música clássica - e que de certa forma também o fazem a personagem principal - contrastam de maneira potente com o que há de mais caótico e hórrido em Tár e em todos nós: a pulsão sexual e o desamparo que nos constitui no nível mais basal. O filme vai mostrando - através da deterioração subjetiva da personagem - que Tár não é apenas uma maestrina brilhante e sublime, mas é também todas as "loucas" frágeis e carentes que rejeitou. É revelado, gradualmente, o núcleo frágil da personagem à revelia de todas suas camadas de decoro (o vocabulário pomposo e o cálculo de seus gestos vão perdendo a eficácia), até que a personagem, feito pipoca, vira ao avesso e expõe suas entranhas amorfas.

    O filme se dispõe de aspectos visuais e narrativos muito interessantes para dar forma ao que se passa na subjetividade da personagem. Em determinado momento, por exemplo, ela procura afoita pela moça por quem se apaixona (mas que a rejeita) pelas ruas da cidade e acaba adentrando em uma espécie de túnel subterrâneo, um local ameaçador, estranho e caliginoso que causa a ela grande desconforto - ao tentar escapar ela tropeça em uma escada e machuca as costas e o rosto. A inversão de papéis que Tár estabelece ao se relacionar com a jovem é também um cenário inédito a ela - ali, não é mais ela quem dita as regras; perdida em seu próprio desejo ela adentra um território novo, obscuro, de grande angústia e fragilidade e que revela a ela algo horrível sobre si. O rosto esfolado é pouco comparado aos danos que a relação masoquista estabelecida com a jovem anuncia ao seu ego. De repente, ela não é mais condutora.

    O filme alinha seu aspecto dramático com nuances muito interessantes de humor. Há uma cena, por exemplo, em que Tár visita um spa nas Filipinas e é instruída pela recepcionista para que selecione sua massagista a gosto; por detrás de uma vitrine de vidro se encontram dezenas de massagistas enumeradas, organizadas meticulosamente à maneira de uma orquestra, de cabeças baixas, submissas, aguardando o comando. Tal cena, uma espécie de quadro paródico e grotesco do modo de se relacionar da protagonista, causa nela uma grande repulsa de si - ela chega a vomitar na calçada tamanha a rejeição ao que a constitui tão intimamente - a urgência de reger, controlar, subjugar.

    Todd Field dirige o filme de maneira contida, mantendo seus planos estáticos e contemplativos e permitindo que o drama deflagre a partir dos diálogos e das atuações; é uma direção sensível e minimalista que busca captar a essência da cena sem jamais cair no melodrama. Cate Blanchett merece todos os prêmios do ano, sua atuação é intensa, mas jamais passa do ponto, a atriz explode nas horas certas e mantém sempre presente no semblante o sinal das maquinações internas da personagem, das angústias sobre as quais pouco pode se dizer, mas que se fazem indisputáveis em sua expressão de górgona auto-petrificante.

    O longa se conclui com uma cena fantástica (que não irei revelar), mas que de maneira sardônica coloca a personagem em uma situação tão humilhante, inesperada e longe do ideal que tinha de si que sentimos uma mistura de comoção e alívio. Digo alívio, pois de certa forma o destino de Tár é o de todos nós, o de nos flagrarmos, mais cedo ou mais tarde, em parcial ou total desacerto com aquilo que narcisisticamente almejávamos em onipotência. Compreendemos que até aquela mulher aparentemente absoluta das primeiras cenas não é tão absoluta assim e tem de se refazer por onde é possível. Tár desmistifica não só o ego ideal, mas também - de maneira tragicômica - a noção de que a arte salva, de que ela é totalmente capaz de sublimar nossos impulsos menos nobres. A arte talvez salve um instante, mas depois dele é, de novo, cada um por si.

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  • Rafael Bedran

    "Aftersun" acompanha as memórias de uma jovem adulta refletindo sobre as férias que passara com o pai há 20 anos em um resort. O longa possui o arcabouço de um bom filme, mas não atinge a gravidade que pretende. A estética de Charlotte Wells impressiona - a diretora consegue conferir uma intimidade impressionante a seu filme, seja através do foco no barulho da respiração dos personagens ou nos planos fechados que colocam sempre a expressividade destes e seus sentimentos em primazia. Os atores principais, Paul Mescal e Frankie Corio, são de uma naturalidade formidável, acreditamos facilmente que estamos testemunhando duas pessoas reais interagindo.

    O que impede "Aftersun" de ser um filme realmente potente, no entanto, é seu roteiro um tanto pusilânime. Se em um primeiro momento fiquei tocado pela naturalidade que o filme consegue atingir ao explorar a relação pai e filha sob um viés nostálgico, comecei a sentir falta - a partir da metade do filme - de algo um pouco mais substancioso. Senti que, apesar das cenas convincentes, algo da relação dos dois não estava sendo mostrado ou perscrutado, que as férias dos dois estavam perfeitas demais. O filme aponta - pelo tom misterioso e dúbio que estabelece - que haverá uma subversão ou um rompimento da relação pai e filha, mas ele não a aprofunda. O minimalismo do filme, em vez de fomentar sua força dramática, a restringe. Apesar de possuir o tom contemplativo e poético de obras-primas como "Poesia" (2010) de Lee Chang-Dong e "A Filha Perdida" (2021) de Maggie Gyllenhaal, "Aftersun" não engrena no subtexto da angustia como estes o fazem, é como se o filme estivesse sempre aquém da verdadeira camada dramática que o tornaria pungente. Talvez seja exigir demais que todo filme centrado na subjetividade de uma personagem e na arqueologia de seu passado íntimo possua a densidade de uma Elena Ferrante, mas "Aftersun" frustra em especial, pois possui elementos bons demais (atuação, estética, temática) para ficar à deriva como fica.

    Há cenas muito boas que consistem de filmagens da pequena Sophie feitas por uma câmera digital, são cenas inocentes em que ela faz palhaçadas para a câmera e filma o pai em momentos aleatórios e descontraídos, aliás, o filme se inicia com uma cena deste tipo e traz de maneira muito espontânea a sensação de intimidade e naturalidade entre os dois, no entanto, me decepcionei ao constatar que as cenas "reais" do filme, isto é, aquelas filmadas pela diretora, não são tão diferentes daquelas filmadas pela pequena Sophie, isto é, elas não aprofundam como deveriam a relação dos dois e nem lançam insights que rompem com as encenações pueris da garota, são prolongamentos do olhar infantil, fiquei desejando que houvesse uma cisão mais marcante entre estes dois pontos de vista.

    O filme mostra em flashes a vida adulta da personagem principal e como as reminiscências do pai trazem um sentimento de vazio e angustia, no entanto, o que testemunhamos da relação entre pai e filha parece não ser suficiente para explicar ou sustentar o sentimento atual da jovem. A ideia central do filme parece ser examinar a perda do pai idílico, falar da ressignificação de uma infância a partir de um olhar adulto menos inocente, do desvelar daquilo que até então ficou subentendido e marcado apelas pela angustia, no entanto, são raras as vezes que o filme de fato mergulha nesse sentimento durante as cenas do passado; a atmosfera plangente que marca a vida atual da filha carecia de mais contexto e ressonância com as cenas infantis. O filme às vezes sugere que o personagem do pai sofre de vícios e de uma angustia com a efemeridade da juventude e com o peso da responsabilidade paterna (há uma excelente cena em que o pai chora nu em soluços sentado à beira da cama), mas o longa falha em levar esta tensão interna do pai para o relacionamento pai e filha; não é que o filme precisava de mais solavancos dramáticos (seu clima realista, contido e casual é seu grande louro), mas seu não-dito carecia de mais carga implícita, falta tempestade sob o véu da placidez.

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  • GC
    GC

    Espetacular suas reflexões sobre Tár.
    Parabéns, e obrigado.

  • Fábio Caldas
    Fábio Caldas

    Muito bom seu texto sobre "O homem do norte" e vi pelo suas cotações a outros filmes que você parece ser bem exigente.. :)

    Resolvi navegar depois pelo instagram...
    Abs

  • Júú
    Júú

    Ah, que pena. De qualquer forma, obrigada por me responder.

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