Entretenimentos apelativos através da reprodução de imaginários coletivos: o arquétipo de 'Evil Genius'
[Optei por marcar todo o texto como 'spoiler' porque, como faz uma análise da narrativa de forma ampla, há muitos deles espalhados pelo texto. Se eu fosse marcar cada um individualmente, o texto ficaria fragmentado. Espero que leiam!]
A primeira informação que o documentário ‘Evil Genius’ passa é que Marjorie Diehl Armstrong não seria, quando criança, o que chamaríamos “normal”. O que é relacionado a isso depois: “quando criança, cresceu rápido; estranha; solitária” e é apresentada uma história de casa de bonecas sem informação nenhuma que ajude a corroborar com a ideia, apenas sugestões para o espectador acessar os imaginários coletivos mais básicos sobre os freaks de nossa sociedade. A ideia inicial é tão absurda, escandalosa e irresponsável, que eu cheguei a pensar e esperar (com o pouco que me restava de esperança de que a produção não fosse tão medíocre, talvez) que, ao longo da narrativa, ela seria revertida em seu oposto: “essa criança, na verdade, só era parte do julgamento de ‘estranha’ de uma sociedade que relaciona características arbitrárias à anormalidade”.
Mas isso nunca aconteceu. O que aconteceu foi o desenvolvimento de uma narrativa rasa e sensacionalista que cria a personagem que o título sugere: uma mulher inteligente, manipuladora e totalmente desequilibrada; por isso, perigosa à sociedade. Independentemente do que Marjorie fez ou dos crimes que possa ter cometido, não há justificativa plausível para a irresponsabilidade em se associar tudo isso àquelas características de “anormalidade” iniciais. Elas não são características de anormalidade, são comuns a muitas crianças que podem manifestá-las pelos mais diversos motivos: problemas pessoais, com os pais ou em seu contexto social; dificuldade de sociabilidade; exclusão; bullying; depressão infantil e uma série de tantos fatores quanto se tiver capacidade para lembrar. Nenhum deles, no entanto, faz essa criança “anormal”. A ideia de “anormalidade” e do “perigo” que os “estranhos” e ‘solitários” representam é, justamente, o que corrobora para justificar e acentuar a exclusão de tantas pessoas nos diversos meios que convivem. É o que corrobora para gerar a sociedade doente que vivemos, em uma estrutura hostil e degradante de exclusão aos diferentes.
Toda a narrativa se desenvolve aos moldes arquetípicos de uma peça de entretenimento: recorre à curiosidade dos espectadores, deixando informações reveladoras para os próximos episódios; cria uma atmosfera sombria, misteriosa e investigativa que é tão comum em seriados policiais; constrói personagens excêntricos, complexos e misteriosos em uma ambientação de pequena cidade de interior, quase um de cenário de Twin Peaks - diferente, no entanto, e com qualidade muito inferior, claro, em relação ao que David Lynch fez. Aqui, há a apelação ao “real” e a uma imagem pré-concebida, desgastada e superficial de “gênio do mal” para criar a atmosfera de entretenimento que, usando desse recursos, ajuda a prender o espectador. Mas a que custos?
Uma professora de criminologia, justiça criminal e sociologia de uma Universidade da Pennsylvania, Kathryn M Whiteley, desenvolve uma ideia mais complexa da personagem principal a partir de sua experiência com Marjorie. Em seu texto, ela discorre sobre as questões de saúde mental e trauma que afetam pessoas como Marjorie, assim como a propensão das pessoas em encontrar uma vilã engenhosa em sua mais “pura maldade”. No final de seu texto (tradução minha do trecho), ela diz: “Todo mundo ama um vilão, e há um fascínio crescente pelas mulheres criminosas e pelo crime factual, em geral. Mas é importante lembrar que são mulheres que, embora nem sempre sejam dignas de nosso perdão, são mais do que personagens unidimensionais e, em alguns casos, sofreram um trauma real.”
O que a peça de entretenimento da Netflix desenvolveu foi a dimensão de uma mulher perigosa e manipuladora; os homens que cometeram o crime em conjunto são mais vítimas dela do que verdadeiros criminosos. Há uma cena em específico que aparece duas vezes, exatamente a mesma cena: a primeira vez, por volta do minuto 16:50 da segunda parte, a imagem de Bill Rothstein moldada por seu amigo a partir de Marjorie: uma obsessão que parecia que ele tinha se submetido a ela, como se ela tivesse “entrado na cabeça dele”. Por volta do minuto 44:40 da parte 4, uma das últimas imagens do documentário, a exata mesma imagem do amigo dizendo que Marjorie teria entrado na cabeça de Bill é repetida. Uma das ideias finais que os produtores pretendem passar, não bastando ser transmitida apenas uma vez. Os tempos que apontei que as cenas aparecem são aproximados, mas o que há antes e depois é também interessante para se observar a construção dessa imagem do homem vítima da maldade feminina.
A ideia central de toda essa trama rasa, sensacionalista e irresponsável que foi desenvolvida é a de uma peça que, a custo de gerar algum entretenimento, desenvolve a ideia de uma louca inteligente que acabou por ser “femme fatale”. Claramente misógina e com tantos elementos narrativos clássicos de um freak show, não vai além do que há de mais superficial do imaginário coletivo sobre mulheres, sobre pessoas com sofrimentos mentais ou sobre os “esquisitos” e “anormais” espalhados pelo mundo. Em minha opinião crítica, essa peça é até interessante de ser assistida: como um exemplo de arquétipo do que há de mais medíocre, desgastado e apelativo na indústria do entretenimento.
Gênio Diabólico (1ª Temporada)
3.9 129Entretenimentos apelativos através da reprodução de imaginários coletivos: o arquétipo de 'Evil Genius'
[Optei por marcar todo o texto como 'spoiler' porque, como faz uma análise da narrativa de forma ampla, há muitos deles espalhados pelo texto. Se eu fosse marcar cada um individualmente, o texto ficaria fragmentado. Espero que leiam!]
A primeira informação que o documentário ‘Evil Genius’ passa é que Marjorie Diehl Armstrong não seria, quando criança, o que chamaríamos “normal”. O que é relacionado a isso depois: “quando criança, cresceu rápido; estranha; solitária” e é apresentada uma história de casa de bonecas sem informação nenhuma que ajude a corroborar com a ideia, apenas sugestões para o espectador acessar os imaginários coletivos mais básicos sobre os freaks de nossa sociedade. A ideia inicial é tão absurda, escandalosa e irresponsável, que eu cheguei a pensar e esperar (com o pouco que me restava de esperança de que a produção não fosse tão medíocre, talvez) que, ao longo da narrativa, ela seria revertida em seu oposto: “essa criança, na verdade, só era parte do julgamento de ‘estranha’ de uma sociedade que relaciona características arbitrárias à anormalidade”.
Mas isso nunca aconteceu. O que aconteceu foi o desenvolvimento de uma narrativa rasa e sensacionalista que cria a personagem que o título sugere: uma mulher inteligente, manipuladora e totalmente desequilibrada; por isso, perigosa à sociedade. Independentemente do que Marjorie fez ou dos crimes que possa ter cometido, não há justificativa plausível para a irresponsabilidade em se associar tudo isso àquelas características de “anormalidade” iniciais. Elas não são características de anormalidade, são comuns a muitas crianças que podem manifestá-las pelos mais diversos motivos: problemas pessoais, com os pais ou em seu contexto social; dificuldade de sociabilidade; exclusão; bullying; depressão infantil e uma série de tantos fatores quanto se tiver capacidade para lembrar. Nenhum deles, no entanto, faz essa criança “anormal”. A ideia de “anormalidade” e do “perigo” que os “estranhos” e ‘solitários” representam é, justamente, o que corrobora para justificar e acentuar a exclusão de tantas pessoas nos diversos meios que convivem. É o que corrobora para gerar a sociedade doente que vivemos, em uma estrutura hostil e degradante de exclusão aos diferentes.
Toda a narrativa se desenvolve aos moldes arquetípicos de uma peça de entretenimento: recorre à curiosidade dos espectadores, deixando informações reveladoras para os próximos episódios; cria uma atmosfera sombria, misteriosa e investigativa que é tão comum em seriados policiais; constrói personagens excêntricos, complexos e misteriosos em uma ambientação de pequena cidade de interior, quase um de cenário de Twin Peaks - diferente, no entanto, e com qualidade muito inferior, claro, em relação ao que David Lynch fez. Aqui, há a apelação ao “real” e a uma imagem pré-concebida, desgastada e superficial de “gênio do mal” para criar a atmosfera de entretenimento que, usando desse recursos, ajuda a prender o espectador. Mas a que custos?
Uma professora de criminologia, justiça criminal e sociologia de uma Universidade da Pennsylvania, Kathryn M Whiteley, desenvolve uma ideia mais complexa da personagem principal a partir de sua experiência com Marjorie. Em seu texto, ela discorre sobre as questões de saúde mental e trauma que afetam pessoas como Marjorie, assim como a propensão das pessoas em encontrar uma vilã engenhosa em sua mais “pura maldade”. No final de seu texto (tradução minha do trecho), ela diz: “Todo mundo ama um vilão, e há um fascínio crescente pelas mulheres criminosas e pelo crime factual, em geral. Mas é importante lembrar que são mulheres que, embora nem sempre sejam dignas de nosso perdão, são mais do que personagens unidimensionais e, em alguns casos, sofreram um trauma real.”
O que a peça de entretenimento da Netflix desenvolveu foi a dimensão de uma mulher perigosa e manipuladora; os homens que cometeram o crime em conjunto são mais vítimas dela do que verdadeiros criminosos. Há uma cena em específico que aparece duas vezes, exatamente a mesma cena: a primeira vez, por volta do minuto 16:50 da segunda parte, a imagem de Bill Rothstein moldada por seu amigo a partir de Marjorie: uma obsessão que parecia que ele tinha se submetido a ela, como se ela tivesse “entrado na cabeça dele”. Por volta do minuto 44:40 da parte 4, uma das últimas imagens do documentário, a exata mesma imagem do amigo dizendo que Marjorie teria entrado na cabeça de Bill é repetida. Uma das ideias finais que os produtores pretendem passar, não bastando ser transmitida apenas uma vez. Os tempos que apontei que as cenas aparecem são aproximados, mas o que há antes e depois é também interessante para se observar a construção dessa imagem do homem vítima da maldade feminina.
A ideia central de toda essa trama rasa, sensacionalista e irresponsável que foi desenvolvida é a de uma peça que, a custo de gerar algum entretenimento, desenvolve a ideia de uma louca inteligente que acabou por ser “femme fatale”. Claramente misógina e com tantos elementos narrativos clássicos de um freak show, não vai além do que há de mais superficial do imaginário coletivo sobre mulheres, sobre pessoas com sofrimentos mentais ou sobre os “esquisitos” e “anormais” espalhados pelo mundo. Em minha opinião crítica, essa peça é até interessante de ser assistida: como um exemplo de arquétipo do que há de mais medíocre, desgastado e apelativo na indústria do entretenimento.