O Tempo suspenso em Balsa de Marcelo Pedroso. Fico pensando se ainda é possível classificar filmes em gêneros/estilos no momento que o cinema vive. Penso que não, ainda assim pretensamente cravaria que Balsa trata-se de um exemplo definitivo de documentário observativo. Apesar de tal divagação ser desnecessária é interessante, de qualquer jeito, que todas estejam dispostas.
Andar de Balsa é transitar, é deslocar, é partir e chegar. Como num aeroporto, como num terminal. A diferença é a flutuação. O fluir. Viajar de uma margem a outra do rio é transitar por flutuações, e toda potência que flutuar carrega. Se possível que criem um verbo novo para ser metaforado por jovens artistas o quanto rápido for possível: Balsar.
Me pego a pensar também, talvez chapado pelas imagens monótonas, que estar numa balsa (balsar) é suspender o tempo. A balsa se movimenta nas imagens, os corpos não. Os corpos permanecem estáticos, em outro tempo.
Daí, pra mim, é impossível não lembrar do livro que tenho lido nos últimos dias, Caim do Saramago. No mesmo, Caim, amaldiçoado por deus pelo assassinato do irmão, é fadado a caminhar a esmo pelo mundo na companhia única de um jumento, um dos mais belos. Nesse caso “a esmo pelo mundo” inclui vagar entre tempos; tempos que a partir das reflexões do autor não passam de presentes. De um presente para outros presentes.
Assim existem os passageiros da balsa de Pedroso, suspensos no tempo da chegada até a partida.
E se os passageiros estão em um tempo suspenso e os balseiros? que vivem e existem somente nas balsas? Esses, ao meu ver, vivem a suspensão. Vivem-na em ciclo. Tantas partidas e tantas chegadas, sendo que estas nem mais partidas ou chegadas são, visto tal contexto cíclico.
Marcelo nos induz a isso, os círculos que baixam e sobem as rampas, o último traveling (esse do ponto de vista do balseiro) e a noite navegando de lugar algum pra lugar nenhum, ao meu ver, são símbolos desse viver suspenso, quase clandestino a ponto do balseiro evitar a câmera, preservando sua privacidade por meio de sua capa de chuva.
Afinal o filme todo é trânsito. Mas no fim é sobre o que? sobre a balsa? sobre os balseiros? sobre os passageiros suspensos no tempo?…
Interessante notar que, a partir da escolha do diretor, sempre estamos subordinados a visão moral de Adrien; moralidade que o próprio dúvida se quer a seguir. Visto isso, todo contato que temos com os diversos personagens que desenvolvem a narrativa (essa de primeira importância no cinema de Rohmer) é por meio da visão e comentários de Adrien.
A partir disso consigo analisar duas possibilidades extremas e opostas para o espectador: a identificação e a aversão ao discurso de Adrien. Culminando disso, ao meu ver, chegamos ao cerne dos fins do cinema, a auto-reflexão do espectador.
O filme, afinal, se assemelha a uma conversa do espectador com Adrien (o dono do discurso), que nos faz refletir sobre nossa própria moralidade e sobre nosso ideário.
*****RESENHA - Baseada em "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" de Walter Benjamin*******
A Chinesa, de Jean-Luc Godard, não só atesta um novo viés do cinema de Godard, como inspira um novo viés do cinema mundial. O filme trata de um grupo de jovens comunistas e suas relações ideárias.
Godard nos expõe nesse filme uma espécie de manifesto ao comunismo e socialismo, para isso traçando reflexões cinematográficas de todo tipo e sempre de modo a desconstruir e problematizar convicções de seus personagens, como ao questionar a índole da personagem de Anne Wiazemski, universitária que visava destruir a universidade sem mensurar os impactos que isso acarretaria.
Um ponto importante é a aproximação que Godard constrói de seu cinema com o teatro Brechtinano, a exemplo a cena em que o personagem de Jean-Pierre Léaud, ator que em momentos está ciente e faz questão de conscientizar o espectador de sua posição quanto ao filme – aspecto que o realizador se empenhará a demonstrar, seja em intertítulos, ou de outras formas mais explicitas, como apresentar sua câmera. Ainda pensando a construção do personagem de Léaud, ao analisarmos percebemos ainda uma aproximação ao que Walter Benjamin notara como essencial na atuação para cinema que de forma mais sintetizada ele aponta “Desde muito, os observadores especializados reconheceram que ‘os maiores efeitos são alcançados quando os atores representam o menos possível’, em outro ponto ainda nota que o ator (e consequentemente o realizador) “terá que esperar até que o cinema se liberte da sua exploração pelo capitalismo” para ter total controle sobre a atuação e seu efeito; nesse ponto “A Chinesa” converge com o pensamento de Walter Benjamin, no que tange não só a utilização ( e ao próprio diálogo inicial) de Léaud, um ator que tem características chaves que assemelham-se ao personagem e um total controle do discurso e do efeito produzido, visto que Godard privilegia menos o capital do que a obra em si.
Ademais nesse filme Godard consegue exprimir uma potência da arte cinematográfica que Benjamin destacava em seu estudo, a do cinema – visto que esse o continha como essência a reprodutibilidade técnica, desde seu fazer – como uma das formas mais potentes de comunicação com as massas, assim Godard consegue com seu filme se aproximar das massas francesas, fazendo com que seu filme não somente contribua para as manifestações de 68 como torne-se um símbolo das mesmas. Além disso, com essa aproximação poderosa advinda da reprodutibilidade Godard consegue praticar um desejo do próprio comunismo. Por outro lado, o que não tange de modo algum ao valor ou qualidade do filme, percebe-se na obra de Godard (principalmente por essa, mesmo antes de ser comunista e socialista, é uma obra que desconstrói métodos estéticos e subvertem toda metafísica gramática cinematográfica) uma complexidade que pode distanciar o espectador de uma “digestão” mais simples do sentido comunista do filme – levando em consideração a intenção comunista de chegar ao proletário e a probabilidade desse estar mais condicionado a absorver um cinema com técnicas e construções clássicas. Ainda nesse sentido também deve-se notar o processo de Godard na própria desconstrução dos militantes comunistas, seu radicalismo, ou seus equívocos, enfim suas incoerências; analisando por essa ótica o processo de construção (ou desconstrução) do filme torna-se ainda mais importante.
Por fim, deve-se afirmar que Godard é um dos realizadores mais interessantes do cinema, suas construções e desconstruções não cabem em duas laudas, ou mesmo em uma semana de reflexão, que esse texto seja como o próprio “A Chinesa” que em um de seus intertítulos se afirma: “Um Filme Em Construção”.
Saló – 120 dias em Sodoma, é um filme escrito e dirigido por Pier Paolo Pasolini. A narrativa, em uma análise simplista, nos mostra quatro fascistas que após sequestrarem um número considerável de jovens italianos, entre homens e mulheres, praticam neles todo tipo de experimento sexual, visando subjuga-los e obter prazer.
Para a devida análise do filme devemos contextualizar a Itália – país de produção do filme – como uma nação que se livrara a pouco do fascismo como ideologia dominante e que a pesar disso ainda coexistia com focos dessa ideologia no povo e governo. Ademais lembremo-nos também da postura de Pasolini como homo afetivo e forte contestador do regime fascista e do vigente conservadorismo que assolava a Itália, quiçá a Europa como um todo.
Com isso em mente façamos as devidas considerações¬ sobre o filme que é considerado um dos mais perturbadores da jovem história do cinema; escorando-se no sadismo sexual dos fascistas a obra atenta para a extrema humilhação, opressão e agressão – entre essas: constantes estupros, agressões físicas e morais, tortura, etc. - direcionadas para os jovens sequestrados, a ponto de a morte ser considerada o maior prêmio que eles poderiam ter em cárcere. Nesse ponto deve-se ressaltar que Pasolini nos insere nesse mundo de modo que nos deixa livre para fazermos nosso juízo de valor sobre os atos cometidos. Outro ponto a ressaltar é a evasão de Pasolini ao aspecto doutrinador que a obra possa ter; desse modo ele evita comungar-se com o modelo pedagógico de eficácia da arte do qual Jacques Rancière falava e do qual – ao que parece semelhante a Pasolini – detestava; modelo este que se baseava nas “lógicas de situações que deveriam ser reconhecidas para a orientação no mundo e modelos de pensamento e ação por imitar e evitar”, em contra partida Pasolini flertava com um conceito mais aprovado por Rancière, o da eficácia estética
“Trata-se de uma eficácia paradoxal: é a eficácia da própria separação, da descontinuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis através das quais os espectadores, os leitores ou os ouvintes se apropriam desta” (Rancière, p. 56)
Percebemos então o filme de Pasolini como uma “obra aberta”, citada por Humberto Eco como: “processos em que, ao invés de uma sequência unívoca e necessária de eventos, se estabelece como que um campo de probabilidades, uma ‘ambiguidade’ de situação, capaz de estimular escolhas operativas ou interpretativas sempre diferentes”; isso torna-se amplamente aparente devido ao constante uso de símbolos para expressar as mais diversas conclusões - a exemplo, os jovens são literalmente tratados como cães pelos velhos fascistas, cena em que em análise pessoa expressa perfeitamente o que o fascismo estaria fazendo com a Itália e seu futuro, subjugando-a como um animal de estimação; uma cena em que o intelecto do espectador é tão necessário para a finalização da obra quanto o poder de criador de símbolos do autor.
É válido ressaltar, também, outro pensamento de Eco, ainda sobre “obra aberta”, “cada ser humano vive dentro de um certo modelo cultural e interpreta a experiência com base no mundo de formas assuntivas que adquiriu”(ECO, 2005, p. 142) analisando sobre a luz da referida citação podemos discorrer sobre os locais de fala e de escuta na obra; de modo que, como Eco disse, nossas interpretações serão dispares de acordo com nosso contexto e vivência, a exemplo, cabe a um norte americano estar disposto a ouvir o que Pasolini como italiano, homo afetivo e artista contestador tem a nos apresentar com seus símbolos e signos distintos, porém como infere-se de todo conceito de “obra aberta” de Eco, a obra, seu entendimento e a escuta, depende tanto da participação do espectador, quanto do autor, sendo que caso um dos referidos não esteja propenso a construção haverá ruído e a obra não estará plena.
Para finalizar meus devaneios sobre a experiência de recepção de “Saló” devo citar por fim os versos de Hesíodo que Aristóteles nos iluminou: “Ótimo é aquele que por si tudo entenda/ sábio é também aquele que obediente ouça/ quem bem fala; mas quem por si não pense/ nem ouvindo a outrem sinta o coração desperto/ este é, em verdade, um homem inútil”
O Novíssimo Cinema Brasileiro a cada ano toma mais força. Se uma de suas características mais marcantes é a urgência, então aqui temos um genuíno filme dessa linha.
Marília Rocha, assim como as personagens que constrói, vive o momento, cada dia e cada ato com uma importância plena em si só; pelo menos é que transparece de seu filme. A simplicidade, o cotidiano, a urgência e o vazio são sua poética, estética e dispositivo.
Na incerteza de saber quem e de onde é, o filme desesperadamente se apresenta a nós, não respondendo com certezas, de modo mais eficaz: nos fazendo o sentir - e sentir-se nele, nos identificarmos com.
Por fim é impossível não lembrar do discurso da geração mumblecore norte-americana de cineastas, a geração dos cineastas que resmungavam e sentia cada cena como um processo único e sensorial.
Um filme interessante, sobre visões diversas de mundo (uma mais tradicional e outra progressista). A empatia é o fio condutor do filme, a mãe quer descobrir quem o filho é e como o criar, enquanto o mesmo quer saber o que ela sente, quem foi, os que amou. Paralelo a isso o filme constrói um retrato, como são as fotos de Abbie, de época a partir da vivência de cada umx - aqui o estilo documental usado algumas vez se faz bem sagaz.
Como se portar com os novos papéis assumidos nesta transição de eras? Como ser mãe de um jovem crescendo com as mais diversas influências? Como conviver em meio aos resquícios de tradição quando você se tornou uma mulher tão diferente, autêntica e emponderada? Ademais como ser uma adolescente, descobrindo sua sexualidade (com liberdade não antes vista, longe de ser ideal) e ainda sim sofrendo a pressão dos antigos costumes?
Longe de responder, o filme - através do _Q_ empático - nos situa na perspectiva de Jaime que busca entender a si mesmo e como cada uma dessas mulheres o influencia. Como homem ele nunca irá compreender isso em plenitude, apesar de achar que sim muitas vezes.
Levantando discussões interessantes, longe de ser arbitrário sobre elas, temos uma visão masculina (tanto de Jaime quanto de Mike Mills) sobre o gênero oposto. Um encorajamento a empatia e uma visão otimista sobre as relações entre modernidadeXtradição e gêneros opostos, embalado ora pelo punk, ora pelo clássico em cores neutras ou vibrantes.
Obra pontual no contexto cinematográfico brasileiro “Terra Estrangeira” se encontra num período denominado “Retomada” por alguns críticos. Após um tenebroso período em que a Arte foi marginalizada no Brasil (entre elas o cinema foi um dos que mais sofreu) determinados realizadores produzem material para tentar alavancar o cinema brasileiro a grande expoente cinematográfico como o foi no cinema novo. Entre críticas e louvores o período é destaque por um relativo reconhecimento da crítica internacional, fazendo carreira em festivais e dando destaque a realizadores; no fim das contas a “Retomada” marca o cinema nacional historicamente e indica um futuro promissor.
“Quanto mais o tempo passa mais eu me sinto estrangeira, cada vez mais tenho consciência do meu sotaque de que a minha voz é uma ofensa pro ouvido deles” diz Alex, personagem interpretada com eficiência por Fernanda Torres, a Miguel. Em “Terra Estrangeira” observamos personagens que se sentem estrangeiros onde estão e buscam de toda forma o seu “lar”. Alex e Miguel buscam de qualquer maneira voltar ao Brasil, sentimento que se intensifica pela realidade que vivem em Portugal (essa longe de ser uma potência europeia como séculos atrás) e o relacionamento desgastado; paralelo a isso no Brasil acompanhamos a sina de D. Manuela que sonha em voltar para a Espanha, país onde nasceu, com seu filho Paco, porém esse ao contrário da mãe quer ficar no Brasil, tem seus projetos individuais, raízes que o prendem. Se o “sentir-se estrangeiro” para Miguel, Alex e D. Manuela é claro, para Paco será uma construção. Apesar de ser um Sonho para D. Manuela a viagem para a terra natal não é um futuro tão crível ainda, situação que se agrava em consequência do caos político e econômico que vive o Brasil nos anos 90’s – devido ao déficit financeiro do país o dinheiro que ela guardava em sua poupança para ir para Espanha se reduzirá. Em consequência da impossibilidade de realização do sonho e, ainda, o agrave desse impossível, D. Manuela sofre uma parada cardíaca, motivo de sua morte e início da metamorfose psicológica de Paco. Agora sem dinheiro e sem sua mãe, Paco, também se vê sem norte, sem um horizonte; mesmo seu sonho em ser ator é frustrado pelo trauma que a morte repentina da mãe lhe causou. Visto isso conseguimos compreender como Paco, assim como Alex e Miguel se torna um estrangeiro, porém em seu próprio país. Após isso Paco conhece um homem misterioso chamado Igor, esse lhe proporciona a chance de realizar o sonho de sua em ir para a Espanha; Agora um estrangeiro em seu lar, Paco, vê nessa viagem a oportunidade de achar seu novo lar, mas para isso Igor lhe pede um favor que ele se prontifica a cumprir, tendo assim ter que ir para Portugal encontrar Miguel.
> A memória como ponto de recomeço.
“Faz duas semanas que minha mãe morreu, mas parece que faz dez anos, não consigo lembrar de nada dela no último dia, não consigo lembrar nem como ela estava vestida; será que a gente esquece de propósito? ”. Com esse trecho do texto de Paco, os realizadores deixaram para nós claro um dos temas centrais do filme, o esquecimento. Se para ele, não lembrar nada de sua mãe foi uma fuga, para Alex lembrar do Brasil das cidades e do povo é um refúgio, assim como lembrar as pequenas lembranças, as roupas engraçadas que Paco usa são um exemplo. Outra menção ao esquecimento permeia o primeiro encontro entre Igor e Paco, no qual o primeiro se apresenta como zelador das lembranças esquecidas de velhos tempos, esse que como representante da lembrança caçará Paco por Portugal quando o mesmo quebrar o combinado proposto por ele; Igor é a materialização da lembrança de qual Paco foge desde o Brasil, contraste que fica claro quando elegemos Pedro (o livreiro - profissional que trabalha guardando os registros literários de um mundo todo, também representação de lembranças - amigo de Alex) como a materialização das lembranças dela, lembranças que não são nocivas, ao contrário são nostálgicas, um refúgio; assim como o livreiro foi para a mesma. Para Paco fugir de Igor e sair de Portugal é fugir de suas lembranças destrutivas, para Alex sair de Portugal é fugir do caos que sua vida se tornou; assim os dois juntos rumam para a Espanha, um encontrará seu “lar”, o lugar dos sonhos de sua mãe, a outra terá perspectivas para um recomeço onde poderá construir o refúgio de suas lembranças.
> O mar e a paisagem como recurso narrativo.
Literariamente fica claro o sentimento de estar deslocado no estrangeiro, mas os realizadores além disso conseguem imprimir de forma imagética esse sentimento de forma ainda mais acentuada; para isso se valem da força das paisagens e constroem o mar como um signo. Uma ora nos becos periféricos e esquecidos de Lisboa em outra nas ruínas de uma grande construção antiga, a sensação de solidão é constante ora induzida pela claustrofobia que espaços como os quartos pequenos do hotel e apartamento – assim como a já citada periferia de Lisboa -, ora pela vastidão e vazio; nesse contexto devemos destacar duas cenas: as ruínas da construção onde Alex e Paco estão isolados de todo o resto e constroem um mundo novo e particular que os abriga – a relação amorosa dos dois tem início nesse momento, levando-os a esquecer mesmo os conflitos em que estão envolvidos -, esse mundo particular que só será retomado numa cena em que após uma noite de amor os dois estão numa praia deserta, perante eles somente um navio naufragado, seria a imagem do navio em destroços o fim da necessidade de fuga (visto o aconchego que o mundo próprio que eles construíram criou) ou a impossibilidade da mesma? A partir da cena acima citada podemos perceber o mar, o mesmo que naufragou enormes navios, como um signo. Se para Truffaut o mar foi a fuga, a visão de um mundo além, para Thomas e Salles o mar é a prisão, é o que não fará Alex e Paco fugirem, “é o fim” como a própria Alex diz; ademais o mar foi o fim também para D. Manuela, morta pela impossibilidade de cruzar o mar e chegar a sua terra natal; e o mar, agora somente representado pela inundação da sala da casa de Paco, foi quem destruiu todas as últimas lembranças de dela de sua terra. Por fim mais dois signos podem ser apreendidos sobre o mar, um que lhe usa como justificativa a distância dos povos irmãos de idioma português, os quais hoje estão relegados a se verem com discriminação e a permanecer num constante conflito cultural; e o signo que a partir da grandeza do mar mostra como o ser humano é efêmero, a riqueza é passageira, os diamantes serão pisados e assim como nós e nossas pequenas memórias serão esquecidos.
Daniela Thomas e Walter Salles entregam uma direção incrível, um filme moderno, com referências desde o Cinema Noir até a Nouvelle Vague. O destaque é para o virtuosismo de Walter Carvalho na fotografia do filme. Um filme que marca escancara um devir no cinema brasileiro.
> O cinema contra uma representação de tempo linear.
Antes de iniciar as divagações sobre o filme “Cemitério do Esplendor”, filme de 2015, último longa-metragem dirigido por Apichatpong Weerasethakul até então, devemos situar o realizador em um contexto cinematográfico. Joe, como informalmente o chamam, faz frente em uma “vanguarda” artística de cinema chamada “Estética de Fluxo” (termo cunhado por Stéphane Bouquet, em um artigo publicado na revista Cahiers du Cinema, edição 566), esta desponta mundialmente na primeira década dos anos 00’s e tem como características a se destacar (enumeração feita de maneira simplista baseado no estudo de Erly Vieira Jr.): “Um fluxo esticado, continuo, um escorrer de imagens na qual se abismam todos os instrumentos clássicos mantidos pela própria definição de mise-en-scene” (LALANNE, 2002), além disso uma “reinserção corporal no espaço e tempo do cotidiano” (VIEIRA JR. 2009), o tableaux (híbridos de plano fílmico e quadro pictórico) – expressão cunha por Jean Marc Lalanne -, um tempo não-linear, por fim a se destacar (para essa crítica), “uma conexão com a natureza, com uma noção de fluxo e variação de energias” (MARQUES, 2008).
Relacionado a isso, vemos em “Cemitério do Esplendor” soldados dormindo em um hospital, porém o sono dos mesmos é atípico, uma doença especificamente; em que eles passam a maior parte do dia, ou até dias, dormindo. Nesse contexto, Joe sagazmente trabalha dois campos no filme, o onírico/espiritual e o “palpável” / “real”, sendo por vezes o onírico guiado pelos sonhos de Itt, um dos soldados delicadamente interpretado pelo ótimo Banlop Namloi. O ponto é que Weerasethakul nos guia através de seu fluxo por uma jornada ambígua – forte característica da “estética do fluxo” também – na qual nós naturalmente mesclamos um campo a outro, não sendo tão claro distinguir o que é espiritual e o que é real, assim como acontece com os soldados que passam a viver o real nos seus sonhos e seus sonhos na realidade; interessante notar os meios que o realizador nos conduz a isso; de forma mais visual podemos destacar determinada cena na qual as escadas rolantes do cinema, um local em plena atividade, se sobrepõe em um fade longo sobre a sala de hospital em que os soldados estão, essa, com uma tonalidade azulada em decorrência dos aparelhos que nos indicam que os pacientes dormem e os sonhos fluem ou mesmo nas caminhadas de Jenrira em que hora ela encontra duas deusas de Lao, hora caminha por um palácio de vidas passadas guiada por Itt (deve-se destacar que o palácio é visto como um bosque no presente, uma forte presença do natural). Paralelo a isso, Apichatpong também trabalha narrativamente para a construção dessa ambiguidade, seja repetindo cenas de pontos de vistas diferentes em momentos distintos do filme (cena das pessoas trocando de lugar simultaneamente no bosque, destacando aqui o corpo como guia do olhar e uma dilatação do espaço tempo no quadro) nos causando um estranhamento com a quebra de linearidade (o que é passado não pode ser presente), seja construindo elipses temporais indefinidas na qual não sabemos quanto tempo se passou no campo “real” (como a caminhada pelo palácio/bosque) ou mesmo propondo usando os atores para guiar essa confusão – como visto na cena final em que Jenjira Pongpas, interprete de Jenjira força-se a abrir os olhos o máximo que pode para acordar, como Itt a havia ensinado. Assim, com a ressignificação do tempo diegético, Joe consegue apresentar uma convivência fluida entre espiritualidade e realidade, fato que pontua como característica da cidade (quiçá da Tailândia moderna), essa ideia de convivência e troca permeará outros temas do filme ainda.
> Diálogos entre moderno e clássico.
Tanto quanto o convívio entre o espiritual e o “real”, o filme propõe uma convivência entre o moderno e o tradicional. É pungente logo no primeiro plano do filme a sensação de mudança, sensação essa que pode ser gerada a partir de dois processos, conflito e convivência. No que tange a convivência podemos notar os diversos modos que Apichatpong nos apresenta essa mudança a partir do convívio. Analisando de uma posição que toma o onírico/espiritual por tradicional temos Keng, uma personagem interpretada por Jarinpattra Rueangram, que tem um dom de nascença que a permite conversar (em casos ser o receptáculo) de espíritos, assim sendo ela começa a ajudar as famílias a se comunicar com os espíritos dos soldados que dormem; em certo ponto há um rumor que o FBI a teria chamado para trabalhar com eles, pois ela já havia ajudado a resolver determinados casos policiais, com isso Joe nos mostra uma peculiar sinergia entre a cientificidade da criminologia forense e a espiritualidade dos antepassados. Além disso, ainda trabalhando a convivência entre o moderno e o onírico, nos vemos adiante de uma cena em que um professor – ou médico – através de explicações cientificas explica as mulheres familiares dos soldados como funciona o sonho, ademais ainda as ensina como elas devem proceder para se sentirem melhor através da energia corporal. O filme também nos proporciona perceber essa convivência no aspecto das relações interpessoais; em umas das caminhadas de Jenjira ela para num determinado templo para orar para as deusas de Lao, vemos um estado-unidense que posteriormente numa conversa com Itt ela revelará que é seu companheiro, tendo conhecido o mesmo através da internet e ainda confidenciando que ela nem mesmo sabe falar inglês direito, a situação toda escancara de forma natural e descontraída a modernização que o país, até relativamente pouco tempo interiorano, vem sofrendo e que paralelo a esse crescimento desperta interesse dos estrangeiros pela sua religiosidade e cultura; importante notar que Apichatpong de forma alguma crítica essa nova forma de se comunicar e relacionar, tendo uma visão otimista nesse ponto. Apesar dessa modernização Weerasethakul deixa evidente que a cultura e as tradições nunca serão esquecidas pelo povo, aspectos do filme como personagens que conseguem rever suas vidas passadas, o uso de ervas medicinais e a crença em seus deuses deixa tudo isso bem pontuado. Por fim a esse tópico devemos atentar para como esse debate de convívio é levado a produção de cinema tailandês, nos é mostrado Jenjira e Itt assistindo um filme, nesse os efeitos especiais são exagerados, longe de serem bons (são na verdade risíveis), a narrativa é veloz e muito poluída, clássica da poética hegemônica do cinema norte-americano – reflexo do crescimento da modernização e da globalização -, obviamente, para quem acompanha, o oposto do cinema de Joe; não é surpreendente quando Itt sai carregado do cinema, pois havia dormido na sessão, exatamente como certos críticos apontam (negativamente) que acontece com quem vê os filmes de Apichatpong. Por outro lado, se há convívio em paralelo há conflito, é o que nos mostra o realizador.
> Um olhar sobre desigualdade e esquecimento.
Uma placa em meio ao bosque esquecido indica: “O homem rico é como uma formiga sempre sendo observado, o homem pobre é como uma montanha sempre ignorado”. Apichatpong nos apresenta com otimismo o convívio entre modernidade e tradição, sonho e realidade; porém, como magistral autor que é, também nos lembra que esse devir pode ser destrutivo. A mudança em casos fere, isso fica claro nas falas de Jenjira sobre a velha escola já destruída e a preocupação das enfermeiras com o hospital que pode ser posto abaixo a qualquer momento, além disso é pontual notar essa destruição (representada pelo esquecimento) no aspecto da tradição; as deusas em roupas casuais comentam sobre a guerra travada em vidas passadas, na qual os mortos foram enterrados onde hoje é o hospital em que dormem os soldados, assim como somos guiados por Itt através de um palácio de ouro séculos atrás, em seu lugar só restam escombros de outra época, estatuas destruídas e um bosque abandonado, das salas de espelho ou de música de que fala não se tem nem a lembrança, as memórias do local foram esquecidas, notamos o receio de Apichatpong para com o presente quando percebemos isso. Paralelo a isso nos é apresentando também uma visão da desigualdade, através de montagens consecutivas percebemos que enquanto os soldados ainda têm onde dormir e sonhar, não podemos dizer o mesmo para outros da cidade que moram embaixo de postes de luz ou paradas de ônibus. Porém mesmo com receio do esquecimento e do agravo das desigualdades o realizador ainda nos mostra as crianças jogando football entre as máquinas da construção como se a escola ainda existisse e as crianças pudessem habitar o local, mais um fulgor de esperança.
É magistral o modo que Apichatpong Weerasethakul, mesmo sem guiar nosso olhar nos leva para uma experiência onírica (porém sensata e crítica) pelo espaço do filme, com atuações tão competentes quanto a direção e uma noção estética apurada o filme é nada menos que um esplendor. Ao fim do filme temos que nos esforçar tanto quanto Jenjira Pongpas para saber se vivemos um sonho ou permanecemos no mundo real.
"Se nossas linhas formarem uma barca real fomos feitos um pro outro".
De forma simplista Tropical Malady é a convivência entre tradição e modernidade, espiritualidade e realidade e do animalismo com a própria vida humana, tendo como plano a subdesenvolvida Tailândia (urbana ou - como na densa selva - interiorana), da qual seus habitantes ainda lembram de suas vidas passadas, ao mesmo tempo que vivem o novo a cada dia.
O caminho que Kyungsoo percorre para não se tornar o monstro que suas frustrações querem o transformar é longo e tortuoso, assim como é o caminho de cada personagem que na tela surge (não são poucos, visto que falamos de Sang-Soo). Seu amigo Sungwoo não tem aptidão alguma para relações, está preso num aborto de homem moderno, além de ter sua herança de família comandada por sua prima. Os dois se conflituam, este tem como motivação um afastamento passado e a frustração com a vida que ambos carregam, conflitos que se intensificam com a chegada Myung-Suk, se a primeira vista, ela, parece um equilíbrio para a relação dos dois (uma mulher aparentemente dona de toda sua vida "Eu bebo porque eu gosto do sabor") ao decorrer do filme ficará claro que assim como os outros ela luta contra as próprias frustrações; importante notar que na personagem de Myung talvez resida o problema chave do filme, em momentos a personalidade dela torna-se INcrível, ao que parece para reforçar a ideia de frustração que gera o "monstro", porém com essa inconsistência Sang-Soo relega a mulher Myung um papel injusto (e até estereotipado de forma sexista - a mulher que é obsessiva pelo amor de um homem). Kyungsoo foge, foge da obsessão de Myung, foge do amigo que deixou/decepcionou novamente e segue ruma seu regresso. O tom de nostalgia impera em Kyung, lembra-se do colegial, das jovens do colegial (um tempo em que era fácil ser humano?), acha suas memórias em Sun-Young, a induz ao adultério, sem pestanejar diz que a ama e a obsedia; afinal vê nela suas memórias, o tempo em que havia inocência e pureza; mas não é tão simples, com Sun há uma família, há a tradição, o casamento. Novamente o conflito, novamente a dificuldade e o monstro. As portas fechadas.
"Eu não quero mais sexo, apenas morrer puro e inocente", Kyung se vê como a cobra que regressa pelo portal como um monstro de tradições antigas.
Ao se ater a esse ponto de discussão do filme, negligencio outras possíveis discussões como o conflito entre Tradição X Modernidade, a construção sexista das personagens femininas ou as pequenas peculiaridades na poética do diretor que não são comuns em sua filmografia. Não é o melhor filme de Hong Sang-Soo, ele parece não dominar o roteiro com tanta maestria como geralmente o faz e uma visão tradicional e pouco complexa de alguns personagens prejudicam a obra. Sang-Soo é um cineasta que provoca debate, repetidamente (como são seus filmes).
Do humano perdido, do filho que repete os atos do pai, da morte ao aprendizado. Da destruição para a mudança. A vida é sinergia. É troca e ciclo. Morte e vida, propriedade e discussão são dispensáveis em meio a esse círculo.
Um filme que nos mostra uma existência cíclica, para nos lembrarmos que devemos viver em sinergia.
Mansu, foge do fracasso de seu primeiro filme permanecendo no seu porto seguro, a faculdade, do mesmo modo que foge do futuro e se prende ao amor por Sunhi, o que por fim é também é sua busca; O professor Choi sonha em fugir de sua própria vida e rotina e ser livre como o amigo JaeHak que a meses fugiu de sua casa e esposa; por fim Sunhi que foge e busca entender a si mesmo, com suas dúvidas, sonhos e insegurança. Sunhi se vê diante de 3 homens apaixonados, o bem sucedido Choi, o livre JaeHak, ou o tão querido, porém passado Mansu. Entender do Sunhi foge e do que procura, é como entender a própria Sunhi.
Um filme que cria uma empatia enorme com o espectador, ainda mais se o mesmo estiver tão perdido quanto Sunhi.
ressalvo a representação de noção cíclica de tempo, que (em minha opinião) não convence. Pontos me incomodaram bastante como novamente um exacerbado ufanismo dos EUA e o maniqueísmo com a China (sendo esta obviamente, visto a nacionalidade do filme, o mal). Em determinado momento do filme a impressão é de metáfora: uma guerra se inicia a partir de uma interpretação errada, uma falta de empatia com o diferente, ato tão comum na humanidade, porém reduzir os motivos de uma guerra a somente essa metáfora é esquecer da crueldade da política de exploração e de interesses financeiros (forte no EUA, aliás). Ademais, considero o a conclusão tosca, uma ligação (digna de Batman VS. Superman aliás) seria capaz de mudar a cabeça de um general retratado como inescrupuloso e decido e, além disso, um simples recuo de armas faz os ETs regressarem (entendo o processo de desenvolvimento, no qual os ETs queriam presentear o humano com a escrita, mas não seria o caso de o fazer independente da guerra?) Por fim o filme tem um plot twist que faz o filme tendenciar para o existencialismo como tema, algo que ao me ver foi bastante inconsistente, pois de repente ele surge, sendo escassamente pontuado ao longo do filme, e logo o filme finaliza.
Conflito esse que é o mote de tudo que se vê adiante. Desde o desinteresse dos dois por Sunhwo a partir do momento que a mesma toma as rédeas da vida (consequentemente de seu sexo) até o novo caso de Munho com uma estudante com a qual ainda mantém a figura de homem másculo ( figura que é reforçada pelo saco de socos, a profissão e o consolo que dá a Sunhwo depois da partida do "amigo"). Ademais o sexo seria uma arma para a mulher se emponderar e subjulgar a opressão masculina? (Opressão clara em diversas cenas do filme com destaque para a cena em que Munho transa com Sunhwo pela primeira vez, na qual o mesmo desconhece que as mulheres tenham pelos nas pernas, visto que culturalmente nenhuma é estimulada a os ter e por isso são tão raros há tanto tempo). Hang Sang-Soo nos entrega uma obra que se faz grandes nos pequenos detalhes, de personagens que se mutam ao longo do filme e com suas mutações questionam pequenos tradições sexistas do mundo.
Por fim, deve se dizer que Sang-Soo mais questiona que se posiciona (como isso interfere numa obra ou seu valor?)
É interesse ver como Hong Sang-Soo é fiel a uma poética e estética que vem construindo a muito tempo. Não tão grande quanto outros filmes do mesmo, ainda assim é muito bom ver o cinema simples (ou cru) e o minimalismo naturalista dele. Ademais a facilidade com que Sang-Soo brinca com o roteiro, como embaralhamento da carta, é demais; afinal será que briga em que Mo-ri se mete no filme estava naquela folha deixada pra trás, assim como o mesmo quer deixar esse costume no passado?
Sinto uma aproximação ao que Woody Allen fez em sua melhor fase, pelos encontros e desencontros, pelo desconcerto em cada fala, e pelo brincar de cinema. E ao brincar de cinema Sang-Soo consegue fazer uma obra muito rara e delicada, de infinitas possibilidades nas mas simples mudanças.
Não se compara a qualidade do mangá, mas ainda assim é legal ver algumas cenas marcantes, e a música Solanin consegue reviver as memórias do mangá em nossa cabeça.
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Balsa
3.8 3O Tempo suspenso em Balsa de Marcelo Pedroso.
Fico pensando se ainda é possível classificar filmes em gêneros/estilos no momento que o cinema vive. Penso que não, ainda assim pretensamente cravaria que Balsa trata-se de um exemplo definitivo de documentário observativo. Apesar de tal divagação ser desnecessária é interessante, de qualquer jeito, que todas estejam dispostas.
Andar de Balsa é transitar, é deslocar, é partir e chegar. Como num aeroporto, como num terminal. A diferença é a flutuação. O fluir. Viajar de uma margem a outra do rio é transitar por flutuações, e toda potência que flutuar carrega. Se possível que criem um verbo novo para ser metaforado por jovens artistas o quanto rápido for possível: Balsar.
Me pego a pensar também, talvez chapado pelas imagens monótonas, que estar numa balsa (balsar) é suspender o tempo. A balsa se movimenta nas imagens, os corpos não. Os corpos permanecem estáticos, em outro tempo.
Daí, pra mim, é impossível não lembrar do livro que tenho lido nos últimos dias, Caim do Saramago. No mesmo, Caim, amaldiçoado por deus pelo assassinato do irmão, é fadado a caminhar a esmo pelo mundo na companhia única de um jumento, um dos mais belos. Nesse caso “a esmo pelo mundo” inclui vagar entre tempos; tempos que a partir das reflexões do autor não passam de presentes. De um presente para outros presentes.
Assim existem os passageiros da balsa de Pedroso, suspensos no tempo da chegada até a partida.
E se os passageiros estão em um tempo suspenso e os balseiros? que vivem e existem somente nas balsas? Esses, ao meu ver, vivem a suspensão. Vivem-na em ciclo. Tantas partidas e tantas chegadas, sendo que estas nem mais partidas ou chegadas são, visto tal contexto cíclico.
Marcelo nos induz a isso, os círculos que baixam e sobem as rampas, o último traveling (esse do ponto de vista do balseiro) e a noite navegando de lugar algum pra lugar nenhum, ao meu ver, são símbolos desse viver suspenso, quase clandestino a ponto do balseiro evitar a câmera, preservando sua privacidade por meio de sua capa de chuva.
Afinal o filme todo é trânsito. Mas no fim é sobre o que? sobre a balsa? sobre os balseiros? sobre os passageiros suspensos no tempo?…
…é sobre o deslocamento então?
A Colecionadora
3.8 49 Assista AgoraInteressante notar que, a partir da escolha do diretor, sempre estamos subordinados a visão moral de Adrien; moralidade que o próprio dúvida se quer a seguir. Visto isso, todo contato que temos com os diversos personagens que desenvolvem a narrativa (essa de primeira importância no cinema de Rohmer) é por meio da visão e comentários de Adrien.
A partir disso consigo analisar duas possibilidades extremas e opostas para o espectador: a identificação e a aversão ao discurso de Adrien. Culminando disso, ao meu ver, chegamos ao cerne dos fins do cinema, a auto-reflexão do espectador.
O filme, afinal, se assemelha a uma conversa do espectador com Adrien (o dono do discurso), que nos faz refletir sobre nossa própria moralidade e sobre nosso ideário.
A Chinesa
3.9 135*****RESENHA - Baseada em "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" de Walter Benjamin*******
A Chinesa, de Jean-Luc Godard, não só atesta um novo viés do cinema de Godard, como inspira um novo viés do cinema mundial. O filme trata de um grupo de jovens comunistas e suas relações ideárias.
Godard nos expõe nesse filme uma espécie de manifesto ao comunismo e socialismo, para isso traçando reflexões cinematográficas de todo tipo e sempre de modo a desconstruir e problematizar convicções de seus personagens, como ao questionar a índole da personagem de Anne Wiazemski, universitária que visava destruir a universidade sem mensurar os impactos que isso acarretaria.
Um ponto importante é a aproximação que Godard constrói de seu cinema com o teatro Brechtinano, a exemplo a cena em que o personagem de Jean-Pierre Léaud, ator que em momentos está ciente e faz questão de conscientizar o espectador de sua posição quanto ao filme – aspecto que o realizador se empenhará a demonstrar, seja em intertítulos, ou de outras formas mais explicitas, como apresentar sua câmera. Ainda pensando a construção do personagem de Léaud, ao analisarmos percebemos ainda uma aproximação ao que Walter Benjamin notara como essencial na atuação para cinema que de forma mais sintetizada ele aponta “Desde muito, os observadores especializados reconheceram que ‘os maiores efeitos são alcançados quando os atores representam o menos possível’, em outro ponto ainda nota que o ator (e consequentemente o realizador) “terá que esperar até que o cinema se liberte da sua exploração pelo capitalismo” para ter total controle sobre a atuação e seu efeito; nesse ponto “A Chinesa” converge com o pensamento de Walter Benjamin, no que tange não só a utilização ( e ao próprio diálogo inicial) de Léaud, um ator que tem características chaves que assemelham-se ao personagem e um total controle do discurso e do efeito produzido, visto que Godard privilegia menos o capital do que a obra em si.
Ademais nesse filme Godard consegue exprimir uma potência da arte cinematográfica que Benjamin destacava em seu estudo, a do cinema – visto que esse o continha como essência a reprodutibilidade técnica, desde seu fazer – como uma das formas mais potentes de comunicação com as massas, assim Godard consegue com seu filme se aproximar das massas francesas, fazendo com que seu filme não somente contribua para as manifestações de 68 como torne-se um símbolo das mesmas. Além disso, com essa aproximação poderosa advinda da reprodutibilidade Godard consegue praticar um desejo do próprio comunismo. Por outro lado, o que não tange de modo algum ao valor ou qualidade do filme, percebe-se na obra de Godard (principalmente por essa, mesmo antes de ser comunista e socialista, é uma obra que desconstrói métodos estéticos e subvertem toda metafísica gramática cinematográfica) uma complexidade que pode distanciar o espectador de uma “digestão” mais simples do sentido comunista do filme – levando em consideração a intenção comunista de chegar ao proletário e a probabilidade desse estar mais condicionado a absorver um cinema com técnicas e construções clássicas. Ainda nesse sentido também deve-se notar o processo de Godard na própria desconstrução dos militantes comunistas, seu radicalismo, ou seus equívocos, enfim suas incoerências; analisando por essa ótica o processo de construção (ou desconstrução) do filme torna-se ainda mais importante.
Por fim, deve-se afirmar que Godard é um dos realizadores mais interessantes do cinema, suas construções e desconstruções não cabem em duas laudas, ou mesmo em uma semana de reflexão, que esse texto seja como o próprio “A Chinesa” que em um de seus intertítulos se afirma: “Um Filme Em Construção”.
Salò, ou os 120 Dias de Sodoma
3.2 1,0K*****Resenha*****
Saló – 120 dias em Sodoma, é um filme escrito e dirigido por Pier Paolo Pasolini. A narrativa, em uma análise simplista, nos mostra quatro fascistas que após sequestrarem um número considerável de jovens italianos, entre homens e mulheres, praticam neles todo tipo de experimento sexual, visando subjuga-los e obter prazer.
Para a devida análise do filme devemos contextualizar a Itália – país de produção do filme – como uma nação que se livrara a pouco do fascismo como ideologia dominante e que a pesar disso ainda coexistia com focos dessa ideologia no povo e governo. Ademais lembremo-nos também da postura de Pasolini como homo afetivo e forte contestador do regime fascista e do vigente conservadorismo que assolava a Itália, quiçá a Europa como um todo.
Com isso em mente façamos as devidas considerações¬ sobre o filme que é considerado um dos mais perturbadores da jovem história do cinema; escorando-se no sadismo sexual dos fascistas a obra atenta para a extrema humilhação, opressão e agressão – entre essas: constantes estupros, agressões físicas e morais, tortura, etc. - direcionadas para os jovens sequestrados, a ponto de a morte ser considerada o maior prêmio que eles poderiam ter em cárcere. Nesse ponto deve-se ressaltar que Pasolini nos insere nesse mundo de modo que nos deixa livre para fazermos nosso juízo de valor sobre os atos cometidos. Outro ponto a ressaltar é a evasão de Pasolini ao aspecto doutrinador que a obra possa ter; desse modo ele evita comungar-se com o modelo pedagógico de eficácia da arte do qual Jacques Rancière falava e do qual – ao que parece semelhante a Pasolini – detestava; modelo este que se baseava nas “lógicas de situações que deveriam ser reconhecidas para a orientação no mundo e modelos de pensamento e ação por imitar e evitar”, em contra partida Pasolini flertava com um conceito mais aprovado por Rancière, o da eficácia estética
“Trata-se de uma eficácia paradoxal: é a eficácia da própria separação, da descontinuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis através das quais os espectadores, os leitores ou os ouvintes se apropriam desta” (Rancière, p. 56)
Percebemos então o filme de Pasolini como uma “obra aberta”, citada por Humberto Eco como: “processos em que, ao invés de uma sequência unívoca e necessária de eventos, se estabelece como que um campo de probabilidades, uma ‘ambiguidade’ de situação, capaz de estimular escolhas operativas ou interpretativas sempre diferentes”; isso torna-se amplamente aparente devido ao constante uso de símbolos para expressar as mais diversas conclusões - a exemplo, os jovens são literalmente tratados como cães pelos velhos fascistas, cena em que em análise pessoa expressa perfeitamente o que o fascismo estaria fazendo com a Itália e seu futuro, subjugando-a como um animal de estimação; uma cena em que o intelecto do espectador é tão necessário para a finalização da obra quanto o poder de criador de símbolos do autor.
É válido ressaltar, também, outro pensamento de Eco, ainda sobre “obra aberta”, “cada ser humano vive dentro de um certo modelo cultural e interpreta a experiência com base no mundo de formas assuntivas que adquiriu”(ECO, 2005, p. 142) analisando sobre a luz da referida citação podemos discorrer sobre os locais de fala e de escuta na obra; de modo que, como Eco disse, nossas interpretações serão dispares de acordo com nosso contexto e vivência, a exemplo, cabe a um norte americano estar disposto a ouvir o que Pasolini como italiano, homo afetivo e artista contestador tem a nos apresentar com seus símbolos e signos distintos, porém como infere-se de todo conceito de “obra aberta” de Eco, a obra, seu entendimento e a escuta, depende tanto da participação do espectador, quanto do autor, sendo que caso um dos referidos não esteja propenso a construção haverá ruído e a obra não estará plena.
Para finalizar meus devaneios sobre a experiência de recepção de “Saló” devo citar por fim os versos de Hesíodo que Aristóteles nos iluminou: “Ótimo é aquele que por si tudo entenda/ sábio é também aquele que obediente ouça/ quem bem fala; mas quem por si não pense/ nem ouvindo a outrem sinta o coração desperto/ este é, em verdade, um homem inútil”
A Cidade Onde Envelheço
3.6 130 Assista AgoraO Novíssimo Cinema Brasileiro a cada ano toma mais força. Se uma de suas características mais marcantes é a urgência, então aqui temos um genuíno filme dessa linha.
Marília Rocha, assim como as personagens que constrói, vive o momento, cada dia e cada ato com uma importância plena em si só; pelo menos é que transparece de seu filme. A simplicidade, o cotidiano, a urgência e o vazio são sua poética, estética e dispositivo.
Na incerteza de saber quem e de onde é, o filme desesperadamente se apresenta a nós, não respondendo com certezas, de modo mais eficaz: nos fazendo o sentir - e sentir-se nele, nos identificarmos com.
Por fim é impossível não lembrar do discurso da geração mumblecore norte-americana de cineastas, a geração dos cineastas que resmungavam e sentia cada cena como um processo único e sensorial.
Mulheres do Século XX
4.0 415 Assista AgoraUm filme interessante, sobre visões diversas de mundo (uma mais tradicional e outra progressista). A empatia é o fio condutor do filme, a mãe quer descobrir quem o filho é e como o criar, enquanto o mesmo quer saber o que ela sente, quem foi, os que amou. Paralelo a isso o filme constrói um retrato, como são as fotos de Abbie, de época a partir da vivência de cada umx - aqui o estilo documental usado algumas vez se faz bem sagaz.
Como se portar com os novos papéis assumidos nesta transição de eras? Como ser mãe de um jovem crescendo com as mais diversas influências? Como conviver em meio aos resquícios de tradição quando você se tornou uma mulher tão diferente, autêntica e emponderada? Ademais como ser uma adolescente, descobrindo sua sexualidade (com liberdade não antes vista, longe de ser ideal) e ainda sim sofrendo a pressão dos antigos costumes?
Longe de responder, o filme - através do _Q_ empático - nos situa na perspectiva de Jaime que busca entender a si mesmo e como cada uma dessas mulheres o influencia. Como homem ele nunca irá compreender isso em plenitude, apesar de achar que sim muitas vezes.
Levantando discussões interessantes, longe de ser arbitrário sobre elas, temos uma visão masculina (tanto de Jaime quanto de Mike Mills) sobre o gênero oposto. Um encorajamento a empatia e uma visão otimista sobre as relações entre modernidadeXtradição e gêneros opostos, embalado ora pelo punk, ora pelo clássico em cores neutras ou vibrantes.
Terra Estrangeira
4.1 182 Assista Agora******Crítica******
Obra pontual no contexto cinematográfico brasileiro “Terra Estrangeira” se encontra num período denominado “Retomada” por alguns críticos. Após um tenebroso período em que a Arte foi marginalizada no Brasil (entre elas o cinema foi um dos que mais sofreu) determinados realizadores produzem material para tentar alavancar o cinema brasileiro a grande expoente cinematográfico como o foi no cinema novo. Entre críticas e louvores o período é destaque por um relativo reconhecimento da crítica internacional, fazendo carreira em festivais e dando destaque a realizadores; no fim das contas a “Retomada” marca o cinema nacional historicamente e indica um futuro promissor.
> Sentir-se estrangeiro.
“Quanto mais o tempo passa mais eu me sinto estrangeira, cada vez mais tenho consciência do meu sotaque de que a minha voz é uma ofensa pro ouvido deles” diz Alex, personagem interpretada com eficiência por Fernanda Torres, a Miguel. Em “Terra Estrangeira” observamos personagens que se sentem estrangeiros onde estão e buscam de toda forma o seu “lar”. Alex e Miguel buscam de qualquer maneira voltar ao Brasil, sentimento que se intensifica pela realidade que vivem em Portugal (essa longe de ser uma potência europeia como séculos atrás) e o relacionamento desgastado; paralelo a isso no Brasil acompanhamos a sina de D. Manuela que sonha em voltar para a Espanha, país onde nasceu, com seu filho Paco, porém esse ao contrário da mãe quer ficar no Brasil, tem seus projetos individuais, raízes que o prendem. Se o “sentir-se estrangeiro” para Miguel, Alex e D. Manuela é claro, para Paco será uma construção.
Apesar de ser um Sonho para D. Manuela a viagem para a terra natal não é um futuro tão crível ainda, situação que se agrava em consequência do caos político e econômico que vive o Brasil nos anos 90’s – devido ao déficit financeiro do país o dinheiro que ela guardava em sua poupança para ir para Espanha se reduzirá. Em consequência da impossibilidade de realização do sonho e, ainda, o agrave desse impossível, D. Manuela sofre uma parada cardíaca, motivo de sua morte e início da metamorfose psicológica de Paco. Agora sem dinheiro e sem sua mãe, Paco, também se vê sem norte, sem um horizonte; mesmo seu sonho em ser ator é frustrado pelo trauma que a morte repentina da mãe lhe causou. Visto isso conseguimos compreender como Paco, assim como Alex e Miguel se torna um estrangeiro, porém em seu próprio país.
Após isso Paco conhece um homem misterioso chamado Igor, esse lhe proporciona a chance de realizar o sonho de sua em ir para a Espanha; Agora um estrangeiro em seu lar, Paco, vê nessa viagem a oportunidade de achar seu novo lar, mas para isso Igor lhe pede um favor que ele se prontifica a cumprir, tendo assim ter que ir para Portugal encontrar Miguel.
> A memória como ponto de recomeço.
“Faz duas semanas que minha mãe morreu, mas parece que faz dez anos, não consigo lembrar de nada dela no último dia, não consigo lembrar nem como ela estava vestida; será que a gente esquece de propósito? ”. Com esse trecho do texto de Paco, os realizadores deixaram para nós claro um dos temas centrais do filme, o esquecimento. Se para ele, não lembrar nada de sua mãe foi uma fuga, para Alex lembrar do Brasil das cidades e do povo é um refúgio, assim como lembrar as pequenas lembranças, as roupas engraçadas que Paco usa são um exemplo. Outra menção ao esquecimento permeia o primeiro encontro entre Igor e Paco, no qual o primeiro se apresenta como zelador das lembranças esquecidas de velhos tempos, esse que como representante da lembrança caçará Paco por Portugal quando o mesmo quebrar o combinado proposto por ele; Igor é a materialização da lembrança de qual Paco foge desde o Brasil, contraste que fica claro quando elegemos Pedro (o livreiro - profissional que trabalha guardando os registros literários de um mundo todo, também representação de lembranças - amigo de Alex) como a materialização das lembranças dela, lembranças que não são nocivas, ao contrário são nostálgicas, um refúgio; assim como o livreiro foi para a mesma. Para Paco fugir de Igor e sair de Portugal é fugir de suas lembranças destrutivas, para Alex sair de Portugal é fugir do caos que sua vida se tornou; assim os dois juntos rumam para a Espanha, um encontrará seu “lar”, o lugar dos sonhos de sua mãe, a outra terá perspectivas para um recomeço onde poderá construir o refúgio de suas lembranças.
> O mar e a paisagem como recurso narrativo.
Literariamente fica claro o sentimento de estar deslocado no estrangeiro, mas os realizadores além disso conseguem imprimir de forma imagética esse sentimento de forma ainda mais acentuada; para isso se valem da força das paisagens e constroem o mar como um signo.
Uma ora nos becos periféricos e esquecidos de Lisboa em outra nas ruínas de uma grande construção antiga, a sensação de solidão é constante ora induzida pela claustrofobia que espaços como os quartos pequenos do hotel e apartamento – assim como a já citada periferia de Lisboa -, ora pela vastidão e vazio; nesse contexto devemos destacar duas cenas: as ruínas da construção onde Alex e Paco estão isolados de todo o resto e constroem um mundo novo e particular que os abriga – a relação amorosa dos dois tem início nesse momento, levando-os a esquecer mesmo os conflitos em que estão envolvidos -, esse mundo particular que só será retomado numa cena em que após uma noite de amor os dois estão numa praia deserta, perante eles somente um navio naufragado, seria a imagem do navio em destroços o fim da necessidade de fuga (visto o aconchego que o mundo próprio que eles construíram criou) ou a impossibilidade da mesma?
A partir da cena acima citada podemos perceber o mar, o mesmo que naufragou enormes navios, como um signo. Se para Truffaut o mar foi a fuga, a visão de um mundo além, para Thomas e Salles o mar é a prisão, é o que não fará Alex e Paco fugirem, “é o fim” como a própria Alex diz; ademais o mar foi o fim também para D. Manuela, morta pela impossibilidade de cruzar o mar e chegar a sua terra natal; e o mar, agora somente representado pela inundação da sala da casa de Paco, foi quem destruiu todas as últimas lembranças de dela de sua terra. Por fim mais dois signos podem ser apreendidos sobre o mar, um que lhe usa como justificativa a distância dos povos irmãos de idioma português, os quais hoje estão relegados a se verem com discriminação e a permanecer num constante conflito cultural; e o signo que a partir da grandeza do mar mostra como o ser humano é efêmero, a riqueza é passageira, os diamantes serão pisados e assim como nós e nossas pequenas memórias serão esquecidos.
Daniela Thomas e Walter Salles entregam uma direção incrível, um filme moderno, com referências desde o Cinema Noir até a Nouvelle Vague. O destaque é para o virtuosismo de Walter Carvalho na fotografia do filme. Um filme que marca escancara um devir no cinema brasileiro.
Cemitério do Esplendor
3.8 43****Crítica****
> O cinema contra uma representação de tempo linear.
Antes de iniciar as divagações sobre o filme “Cemitério do Esplendor”, filme de 2015, último longa-metragem dirigido por Apichatpong Weerasethakul até então, devemos situar o realizador em um contexto cinematográfico. Joe, como informalmente o chamam, faz frente em uma “vanguarda” artística de cinema chamada “Estética de Fluxo” (termo cunhado por Stéphane Bouquet, em um artigo publicado na revista Cahiers du Cinema, edição 566), esta desponta mundialmente na primeira década dos anos 00’s e tem como características a se destacar (enumeração feita de maneira simplista baseado no estudo de Erly Vieira Jr.): “Um fluxo esticado, continuo, um escorrer de imagens na qual se abismam todos os instrumentos clássicos mantidos pela própria definição de mise-en-scene” (LALANNE, 2002), além disso uma “reinserção corporal no espaço e tempo do cotidiano” (VIEIRA JR. 2009), o tableaux (híbridos de plano fílmico e quadro pictórico) – expressão cunha por Jean Marc Lalanne -, um tempo não-linear, por fim a se destacar (para essa crítica), “uma conexão com a natureza, com uma noção de fluxo e variação de energias” (MARQUES, 2008).
Relacionado a isso, vemos em “Cemitério do Esplendor” soldados dormindo em um hospital, porém o sono dos mesmos é atípico, uma doença especificamente; em que eles passam a maior parte do dia, ou até dias, dormindo. Nesse contexto, Joe sagazmente trabalha dois campos no filme, o onírico/espiritual e o “palpável” / “real”, sendo por vezes o onírico guiado pelos sonhos de Itt, um dos soldados delicadamente interpretado pelo ótimo Banlop Namloi. O ponto é que Weerasethakul nos guia através de seu fluxo por uma jornada ambígua – forte característica da “estética do fluxo” também – na qual nós naturalmente mesclamos um campo a outro, não sendo tão claro distinguir o que é espiritual e o que é real, assim como acontece com os soldados que passam a viver o real nos seus sonhos e seus sonhos na realidade; interessante notar os meios que o realizador nos conduz a isso; de forma mais visual podemos destacar determinada cena na qual as escadas rolantes do cinema, um local em plena atividade, se sobrepõe em um fade longo sobre a sala de hospital em que os soldados estão, essa, com uma tonalidade azulada em decorrência dos aparelhos que nos indicam que os pacientes dormem e os sonhos fluem ou mesmo nas caminhadas de Jenrira em que hora ela encontra duas deusas de Lao, hora caminha por um palácio de vidas passadas guiada por Itt (deve-se destacar que o palácio é visto como um bosque no presente, uma forte presença do natural). Paralelo a isso, Apichatpong também trabalha narrativamente para a construção dessa ambiguidade, seja repetindo cenas de pontos de vistas diferentes em momentos distintos do filme (cena das pessoas trocando de lugar simultaneamente no bosque, destacando aqui o corpo como guia do olhar e uma dilatação do espaço tempo no quadro) nos causando um estranhamento com a quebra de linearidade (o que é passado não pode ser presente), seja construindo elipses temporais indefinidas na qual não sabemos quanto tempo se passou no campo “real” (como a caminhada pelo palácio/bosque) ou mesmo propondo usando os atores para guiar essa confusão – como visto na cena final em que Jenjira Pongpas, interprete de Jenjira força-se a abrir os olhos o máximo que pode para acordar, como Itt a havia ensinado. Assim, com a ressignificação do tempo diegético, Joe consegue apresentar uma convivência fluida entre espiritualidade e realidade, fato que pontua como característica da cidade (quiçá da Tailândia moderna), essa ideia de convivência e troca permeará outros temas do filme ainda.
> Diálogos entre moderno e clássico.
Tanto quanto o convívio entre o espiritual e o “real”, o filme propõe uma convivência entre o moderno e o tradicional. É pungente logo no primeiro plano do filme a sensação de mudança, sensação essa que pode ser gerada a partir de dois processos, conflito e convivência. No que tange a convivência podemos notar os diversos modos que Apichatpong nos apresenta essa mudança a partir do convívio. Analisando de uma posição que toma o onírico/espiritual por tradicional temos Keng, uma personagem interpretada por Jarinpattra Rueangram, que tem um dom de nascença que a permite conversar (em casos ser o receptáculo) de espíritos, assim sendo ela começa a ajudar as famílias a se comunicar com os espíritos dos soldados que dormem; em certo ponto há um rumor que o FBI a teria chamado para trabalhar com eles, pois ela já havia ajudado a resolver determinados casos policiais, com isso Joe nos mostra uma peculiar sinergia entre a cientificidade da criminologia forense e a espiritualidade dos antepassados. Além disso, ainda trabalhando a convivência entre o moderno e o onírico, nos vemos adiante de uma cena em que um professor – ou médico – através de explicações cientificas explica as mulheres familiares dos soldados como funciona o sonho, ademais ainda as ensina como elas devem proceder para se sentirem melhor através da energia corporal. O filme também nos proporciona perceber essa convivência no aspecto das relações interpessoais; em umas das caminhadas de Jenjira ela para num determinado templo para orar para as deusas de Lao, vemos um estado-unidense que posteriormente numa conversa com Itt ela revelará que é seu companheiro, tendo conhecido o mesmo através da internet e ainda confidenciando que ela nem mesmo sabe falar inglês direito, a situação toda escancara de forma natural e descontraída a modernização que o país, até relativamente pouco tempo interiorano, vem sofrendo e que paralelo a esse crescimento desperta interesse dos estrangeiros pela sua religiosidade e cultura; importante notar que Apichatpong de forma alguma crítica essa nova forma de se comunicar e relacionar, tendo uma visão otimista nesse ponto. Apesar dessa modernização Weerasethakul deixa evidente que a cultura e as tradições nunca serão esquecidas pelo povo, aspectos do filme como personagens que conseguem rever suas vidas passadas, o uso de ervas medicinais e a crença em seus deuses deixa tudo isso bem pontuado. Por fim a esse tópico devemos atentar para como esse debate de convívio é levado a produção de cinema tailandês, nos é mostrado Jenjira e Itt assistindo um filme, nesse os efeitos especiais são exagerados, longe de serem bons (são na verdade risíveis), a narrativa é veloz e muito poluída, clássica da poética hegemônica do cinema norte-americano – reflexo do crescimento da modernização e da globalização -, obviamente, para quem acompanha, o oposto do cinema de Joe; não é surpreendente quando Itt sai carregado do cinema, pois havia dormido na sessão, exatamente como certos críticos apontam (negativamente) que acontece com quem vê os filmes de Apichatpong. Por outro lado, se há convívio em paralelo há conflito, é o que nos mostra o realizador.
> Um olhar sobre desigualdade e esquecimento.
Uma placa em meio ao bosque esquecido indica: “O homem rico é como uma formiga sempre sendo observado, o homem pobre é como uma montanha sempre ignorado”. Apichatpong nos apresenta com otimismo o convívio entre modernidade e tradição, sonho e realidade; porém, como magistral autor que é, também nos lembra que esse devir pode ser destrutivo. A mudança em casos fere, isso fica claro nas falas de Jenjira sobre a velha escola já destruída e a preocupação das enfermeiras com o hospital que pode ser posto abaixo a qualquer momento, além disso é pontual notar essa destruição (representada pelo esquecimento) no aspecto da tradição; as deusas em roupas casuais comentam sobre a guerra travada em vidas passadas, na qual os mortos foram enterrados onde hoje é o hospital em que dormem os soldados, assim como somos guiados por Itt através de um palácio de ouro séculos atrás, em seu lugar só restam escombros de outra época, estatuas destruídas e um bosque abandonado, das salas de espelho ou de música de que fala não se tem nem a lembrança, as memórias do local foram esquecidas, notamos o receio de Apichatpong para com o presente quando percebemos isso. Paralelo a isso nos é apresentando também uma visão da desigualdade, através de montagens consecutivas percebemos que enquanto os soldados ainda têm onde dormir e sonhar, não podemos dizer o mesmo para outros da cidade que moram embaixo de postes de luz ou paradas de ônibus. Porém mesmo com receio do esquecimento e do agravo das desigualdades o realizador ainda nos mostra as crianças jogando football entre as máquinas da construção como se a escola ainda existisse e as crianças pudessem habitar o local, mais um fulgor de esperança.
É magistral o modo que Apichatpong Weerasethakul, mesmo sem guiar nosso olhar nos leva para uma experiência onírica (porém sensata e crítica) pelo espaço do filme, com atuações tão competentes quanto a direção e uma noção estética apurada o filme é nada menos que um esplendor. Ao fim do filme temos que nos esforçar tanto quanto Jenjira Pongpas para saber se vivemos um sonho ou permanecemos no mundo real.
Mal dos Trópicos
4.0 85"Se nossas linhas formarem uma barca real fomos feitos um pro outro".
De forma simplista Tropical Malady é a convivência entre tradição e modernidade, espiritualidade e realidade e do animalismo com a própria vida humana, tendo como plano a subdesenvolvida Tailândia (urbana ou - como na densa selva - interiorana), da qual seus habitantes ainda lembram de suas vidas passadas, ao mesmo tempo que vivem o novo a cada dia.
Turning Gate
3.9 3Um filme sobre conflitos.
"Kyungsoo, mesmo sendo difícil ser um humano não vamos nos transformar em monstros, ok?"
O caminho que Kyungsoo percorre para não se tornar o monstro que suas frustrações querem o transformar é longo e tortuoso, assim como é o caminho de cada personagem que na tela surge (não são poucos, visto que falamos de Sang-Soo). Seu amigo Sungwoo não tem aptidão alguma para relações, está preso num aborto de homem moderno, além de ter sua herança de família comandada por sua prima. Os dois se conflituam, este tem como motivação um afastamento passado e a frustração com a vida que ambos carregam, conflitos que se intensificam com a chegada Myung-Suk, se a primeira vista, ela, parece um equilíbrio para a relação dos dois (uma mulher aparentemente dona de toda sua vida "Eu bebo porque eu gosto do sabor") ao decorrer do filme ficará claro que assim como os outros ela luta contra as próprias frustrações; importante notar que na personagem de Myung talvez resida o problema chave do filme, em momentos a personalidade dela torna-se INcrível, ao que parece para reforçar a ideia de frustração que gera o "monstro", porém com essa inconsistência Sang-Soo relega a mulher Myung um papel injusto (e até estereotipado de forma sexista - a mulher que é obsessiva pelo amor de um homem).
Kyungsoo foge, foge da obsessão de Myung, foge do amigo que deixou/decepcionou novamente e segue ruma seu regresso. O tom de nostalgia impera em Kyung, lembra-se do colegial, das jovens do colegial (um tempo em que era fácil ser humano?), acha suas memórias em Sun-Young, a induz ao adultério, sem pestanejar diz que a ama e a obsedia; afinal vê nela suas memórias, o tempo em que havia inocência e pureza; mas não é tão simples, com Sun há uma família, há a tradição, o casamento. Novamente o conflito, novamente a dificuldade e o monstro. As portas fechadas.
"Eu não quero mais sexo, apenas morrer puro e inocente", Kyung se vê como a cobra que regressa pelo portal como um monstro de tradições antigas.
Ao se ater a esse ponto de discussão do filme, negligencio outras possíveis discussões como o conflito entre Tradição X Modernidade, a construção sexista das personagens femininas ou as pequenas peculiaridades na poética do diretor que não são comuns em sua filmografia. Não é o melhor filme de Hong Sang-Soo, ele parece não dominar o roteiro com tanta maestria como geralmente o faz e uma visão tradicional e pouco complexa de alguns personagens prejudicam a obra. Sang-Soo é um cineasta que provoca debate, repetidamente (como são seus filmes).
A Tartaruga Vermelha
4.1 392 Assista AgoraUma vida feita de ciclos, esses marcados pela destruição/separação e reconstrução.
Do humano perdido, do filho que repete os atos do pai, da morte ao aprendizado. Da destruição para a mudança. A vida é sinergia. É troca e ciclo. Morte e vida, propriedade e discussão são dispensáveis em meio a esse círculo.
Um filme que nos mostra uma existência cíclica, para nos lembrarmos que devemos viver em sinergia.
Nossa Sunhi
3.5 13Um filme sobre fuga e busca.
Mansu, foge do fracasso de seu primeiro filme permanecendo no seu porto seguro, a faculdade, do mesmo modo que foge do futuro e se prende ao amor por Sunhi, o que por fim é também é sua busca; O professor Choi sonha em fugir de sua própria vida e rotina e ser livre como o amigo JaeHak que a meses fugiu de sua casa e esposa; por fim Sunhi que foge e busca entender a si mesmo, com suas dúvidas, sonhos e insegurança. Sunhi se vê diante de 3 homens apaixonados, o bem sucedido Choi, o livre JaeHak, ou o tão querido, porém passado Mansu. Entender do Sunhi foge e do que procura, é como entender a própria Sunhi.
Um filme que cria uma empatia enorme com o espectador, ainda mais se o mesmo estiver tão perdido quanto Sunhi.
A Chegada
4.2 3,4K Assista AgoraTecnicamente o filme é muito bom, fotografia, som, direção, direção de arte;
ressalvo a representação de noção cíclica de tempo, que (em minha opinião) não convence. Pontos me incomodaram bastante como novamente um exacerbado ufanismo dos EUA e o maniqueísmo com a China (sendo esta obviamente, visto a nacionalidade do filme, o mal). Em determinado momento do filme a impressão é de metáfora: uma guerra se inicia a partir de uma interpretação errada, uma falta de empatia com o diferente, ato tão comum na humanidade, porém reduzir os motivos de uma guerra a somente essa metáfora é esquecer da crueldade da política de exploração e de interesses financeiros (forte no EUA, aliás). Ademais, considero o a conclusão tosca, uma ligação (digna de Batman VS. Superman aliás) seria capaz de mudar a cabeça de um general retratado como inescrupuloso e decido e, além disso, um simples recuo de armas faz os ETs regressarem (entendo o processo de desenvolvimento, no qual os ETs queriam presentear o humano com a escrita, mas não seria o caso de o fazer independente da guerra?) Por fim o filme tem um plot twist que faz o filme tendenciar para o existencialismo como tema, algo que ao me ver foi bastante inconsistente, pois de repente ele surge, sendo escassamente pontuado ao longo do filme, e logo o filme finaliza.
Obs: Amy Adams incrível realmente...
A Mulher é o Futuro do Homem
3.4 13 Assista AgoraO filme conflitua o homem e a mulher do início a fim.
Conflito esse que é o mote de tudo que se vê adiante. Desde o desinteresse dos dois por Sunhwo a partir do momento que a mesma toma as rédeas da vida (consequentemente de seu sexo) até o novo caso de Munho com uma estudante com a qual ainda mantém a figura de homem másculo ( figura que é reforçada pelo saco de socos, a profissão e o consolo que dá a Sunhwo depois da partida do "amigo"). Ademais o sexo seria uma arma para a mulher se emponderar e subjulgar a opressão masculina? (Opressão clara em diversas cenas do filme com destaque para a cena em que Munho transa com Sunhwo pela primeira vez, na qual o mesmo desconhece que as mulheres tenham pelos nas pernas, visto que culturalmente nenhuma é estimulada a os ter e por isso são tão raros há tanto tempo). Hang Sang-Soo nos entrega uma obra que se faz grandes nos pequenos detalhes, de personagens que se mutam ao longo do filme e com suas mutações questionam pequenos tradições sexistas do mundo.
Montanha da Liberdade
3.7 10É interesse ver como Hong Sang-Soo é fiel a uma poética e estética que vem construindo a muito tempo. Não tão grande quanto outros filmes do mesmo, ainda assim é muito bom ver o cinema simples (ou cru) e o minimalismo naturalista dele. Ademais a facilidade com que Sang-Soo brinca com o roteiro, como embaralhamento da carta, é demais; afinal será que briga em que Mo-ri se mete no filme estava naquela folha deixada pra trás, assim como o mesmo quer deixar esse costume no passado?
La La Land: Cantando Estações
4.1 3,6K Assista AgoraMais do mesmo, mascarado de inovador :/
O Que Está Por Vir
3.8 102 Assista AgoraUm filme tecnicamente redondo. Sobressalta aos olhos porém a delicadeza com que trata seus personagens. Um filme sobre horizontes..
obs: pros que veneram Huppert pelo médio Elle, deveriam ver ela nesse filme.
Certo Agora, Errado Antes
3.8 49 Assista AgoraSinto uma aproximação ao que Woody Allen fez em sua melhor fase, pelos encontros e desencontros, pelo desconcerto em cada fala, e pelo brincar de cinema. E ao brincar de cinema Sang-Soo consegue fazer uma obra muito rara e delicada, de infinitas possibilidades nas mas simples mudanças.
Anomalisa
3.8 497 Assista AgoraKaufman e suas pérolas. Vale muito. Redondinho :)
Solanin
4.1 31Não se compara a qualidade do mangá, mas ainda assim é legal ver algumas cenas marcantes, e a música Solanin consegue reviver as memórias do mangá em nossa cabeça.