Eu não sei que tipo de idiota começa a assistir uma série que trata do último ano de vida de uma mulher com câncer no estágio 4 e ainda tem expectativas de que isso tenha um final feliz. Mas, o fato é que eu sou esse tipo de idiota. E quando o fim chegou, há duas segundas feiras, eu estava desolada. A série (e sua personagem central) podia estar chegando ao estágio final do luto, a aceitação, mas eu ainda estava em negação profunda e disposta a barganhar para que os Jamison/Tolkie passassem mais um tempo fazendo parte da minha rotina.
The Big C: Hereafter tem como tema central o modo como Cathy Jamison (a linda da Laura Linney) lida com o fato de que seus tumores não diminuíram com nenhum dos tratamentos alternativos a que ela se submeteu. Assim, a quimioterapia, tão temida e evitada por Cathy, passa a ser a sua única opção – e, por um tempo, ela abraça esse fato. O desgaste da personagem é tão visível que, desde a primeira cena de Hearafter, queremos entrar na série e abraça-la. Queremos dizer que, de alguma forma, vai ficar tudo bem. Mas nós sabemos que não vai ficar tudo bem. E a temporada final de The Big C parece ter sido pensada para demonstrar que, às vezes, é ok parar de lutar pela vida e aceitar que sem as condições mínimas para cuidar de si mesmo, o melhor é admitir a presença da morte e perder o medo de ir – o que Cathy consegue fazer muito bem.
Porém, a aceitação da personagem soa estranhíssima para nós. Não só por se tratar de uma pessoa que parece não possuir qualquer apego pela sua vida, mas pelo pouco medo que ela demonstra de interromper o seu tratamento – o que poderá fazer com que fique cega e perca parte dos seus movimentos – e de se internar num asilo – onde terá contato com mais doença, mais morte e, provavelmente, morrerá longe de todas as pessoas que ama. É compreensível, porém, que ela não queira marcar os lugares onde sua família vive pela morte. Pelos arranjos, bem tortos e quase engraçados, que ela tenta fazer para que Paul (Oliver Platt), Adam (Gabriel Basso), Sean (John Benjamin Hickey) e Andrea (Gabourney Sidibe) fiquem bem, mesmo que ela não possa mais cerca-los de cuidados, nota-se que, na verdade, ela não quer todas aquelas coisas. Toda aquela solidão naquele ambiente estranho e meio macabro. O que ela quer mesmo é tornar todo o processo o mais confortável e o menos doloroso o possível para todos os envolvidos. A aceitação de Cathy se dá mais no sentido de que ela não é a única sofrendo com o câncer e, por isso, é preciso fazer com que as outras pessoas tenham um fiozinho de esperança e perspectiva de que, para elas, tudo ainda pode ficar bem.
Laura Linney, que já vinha se mostrando versátil nas outras três temporadas do seriado, está tão convincente, com uma aparência tão debilitada, que temos a impressão de que ela também está doente. O restante do elenco, especialmente Oliver Platt e Gabriel Basso, se mostra afiado e consegue arrancar lágrimas e sorrisos na mesma medida, como na formatura surpresa de Adam e no desfile de Andrea. O tom cômico (afinal, mesmo com o tema mórbido não podemos esquecer que The Big C é uma comédia) da temporada fica todo por conta de John Benjamin Hickey e das superstições surreais de sua personagem. A cena em que ele mostra ao sobrinho o gato do asilo de Cathy, conhecido entre os internos como Deathany (porque, supostamente, ela sabe quando as pessoas estão morrendo e sobe na cama delas!), coberto de penduricalhos e com roupinhas cor de rosa, na tentativa de fazer do bicho algo mais alegre, é hilária e faz a gente se lembrar das primeiras temporadas.
Mesmo que eu ainda esteja em negação, não consigo deixar de achar que The Big C teve um fim digno. A proposta inicial foi seguida e muito bem executada por Darlene Hunt e ela, mais uma vez, soube tirar lágrimas, dar esperança e arrancar sorrisos do expectador. Especialmente com os 5 minutos finais, que guardam uma revelação surpreendente e que fazem a gente entender – e quase partilhar – a aceitação de Cathy.
The Big C: Hereafter Criado por: Darlene Hunt Onde assistir: na Showtime ou na HBO
Olhando assim, você até poderia dizer: ‘afffee, mais uma série de zumbis?’ e eu não tiraria sua razão. Não até assistir ao primeiro episódio de In The Flesh. Criado por Dominic Mitchell, a série fala do que acontece no pós-apocalipse zumbi. Não há ataques de zumbis famintos por carne humana exceto nos flashbacks do personagem principal, Kieren ‘Ren’ Walker (Luke Newberry), que, a propósito, é um zumbi em recuperação. Isto mesmo, no pós-apocalipse os mortos-vivos são tratados com uma droga especialmente desenvolvida para serem reintegrados à sociedade. Também recebem outro nome. Nada de chamá-los de mortos-vivos. Eles sofrem de uma condição chamada PDS: Partially Deceased Syndrome, ou Síndrome do Falecimento Parcial.
Para que a reintegração seja um pouco menos traumática, afinal esses mesmos zumbis saíram comendo pessoas e espalhando terror antes de irem pra rehab, carregam um kit-maquiagem com direito a lente de contato para deixá-los com uma aparência mais vivaz, e um panfleto sobre sua nova condição. As famílias também recebem apoio através de terapia em grupo. E do panfletinho.
Luke Newberry impressiona como o jovem ex-zumbi Ren pela delicadeza de sua atuação. Sua adaptação é penosa, não pela droga, mas por sua personalidade sensível. Ele sofre com culpas, medos, arrependimentos, ‘e ses’. Parte da culpa vem das lembranças do que fez quando zumbi. Mas grande parte de seus medos é da própria vida que o aguarda.
A cidade natal de Ren, a pequena e retrógrada Roarton, é tida como a mais intolerante quando o assunto é a reintegração daqueles com PDS. E não é só aí que a cidade se mostra intolerante. Roarton é a cidade que se orgulha por ter conseguido se defender sem a ajuda do governo, e por ter criado uma milícia contra zumbis. Pode-se dizer que Roarton é uma caricatura, um microuniverso da intolerância dos dias de hoje, do orgulho nocivo de suas raízes, de sua comunidade hipócrita, de seus ideais conservadores. Ren é a antítese. A alma sensível. O artista cheio de potencial que não resistiu à pressão. E que agora procura fazer sentido da ‘vida’ a sua volta.
Outra personagem que ganha nossa atenção é a rebelde ex-zumbi Amy (Emily Bevan), que se recusa a ser o que não é. Amy quer aproveitar sua segunda chance, não quer se esconder por trás da maquiagem, nem da lente de contato. Quer ser ela mesma. E paga o preço por isso. Soa familiar sobre vários outros assuntos, não?
In The Flesh não é apenas mais uma série de zumbis. É uma série sobre a vida, sobre a (in)tolerância, sobre aceitação – não só a dos outros, mas a própria.
Infelizmente, possui só três episódios. Merecia mais, talvez mais algumas temporadas, já que provou ter potencial para tanto. O último episódio deixou a impressão de que foi feito às pressas, corrido mesmo. Deixou também várias perguntas no ar, e um enredo que ainda poderá render muitos frutos, como O Profeta, um ex-zumbi que usa a rede para espalhar suas ideias rebeldes contra os ‘vivos’, e que acredita num segundo apocalipse onde eles serão os vencedores. Espero que a BBC dê continuação à série que nos deixou com um gosto de quero mais.
In The Flesh Criado por: Dominic Mitchell Onde assistir: na BBC ou em um computador perto de você.
Uma garotinha linda e doce leva uma vida para lá de confortável com o seu pai e, assim como todos os nova-iorquinos ricos, no verão eles migram para os Hamptons. Lá, entre brincadeiras na praia com um cachorrinho pra lá de fofo e o vizinho ainda mais gracinha, tudo na vida da pequena Amanda Clarke (durante essa fase, vivida por Emily Alyn Lind) é colorido, alegre e extremamente superprotegido. Até que seu pai, David (James Tupper) é acusado de terrorismo, preso e ela vê tudo o que acreditava ser reduzido a nada. Então, a doçura de Amanda começa a desaparecer. Ela endurece e decide que irá se vingar de todas as pessoas responsáveis pelo declínio de seu pai – cuja inocência, para ela, é inquestionável. No topo de sua lista, estão os antigos chefes de David, Victoria (Madeleine Stowe) e Conrad Greysson (Henry Czerny).
Entre estadias em lares adotivos, sucessivos golpes da vida (pessoas mentindo para ela apenas para conseguir alguma informação nova a respeito de seu pai e esse tipo de coisa), uma passagem pelo reformatório e a sua transformação em Emily Thorne (Emily VanCamp), a pequena Amanda Clarke tem bastante tempo para arquitetar um plano de vingança complexo, que devido à sua fragilidade, se assemelha bastante a um castelo de cartas. Pelo seu reencontro com outras pessoas de seu passado, como Jack (Nick Wechsler), o vizinho com quem brincava, e a verdadeira Emily Thorne (Margarita Levieva), sua companheira de quarto no reformatório, seu plano vai se tornando ainda mais passível de uma queda brusca. Porém, como se poderia esperar, nada desmorona. Emily consegue sempre o que quer por meio dos artifícios mais batidos e dos golpes mais baixos.
Tudo isso soa bastante como uma novela do Gilberto Braga, certo? E é uma novela do Gilberto Braga. Com orçamento ridiculamente alto, “filmada” nos Hamptons e com protagonistas que não são ricos, mas podre de ricos. Para os personagens de Revenge 10 mil dólares é o troco do pão. E é isso que faz a série ser uma delícia de assistir: ela não tem pretensões maiores do que divertir. Não quer ser uma história sobre vingança e redenção tão profunda quanto, sei lá, Kill Bill. Quer ser entretenimento bobo e rápido, que não exige muito de seu público e entrega sempre sequências e revelações surpreendentes, beirando o surreal.
Eu juro, juro que é tudo muito bom de assistir. Você sempre fica esperando para saber qual será o próximo movimento da protagonista, qual será a próxima carta a cair de seu castelo. A primeira temporada da série é desenvolvida em um ritmo tão frenético que é quase impossível não assistir em uns dois ou três dias. A segunda conta com alguns tropeços, algumas sequências risíveis demais até para a proposta de Revenge, mas compensa em um season finale eletrizante, que eleva o título do seriado a outro plano e faz com que a terceira temporada prometa ser ainda melhor do que as suas antecessoras. A vingança não é mais só de Emily/Amanda: agora todos os personagens possuem um motivo para se voltar contra os Greysson e será divertido ver como os ricaços se desviam, novamente, das ameaças que os cercam.
Assistir a Revenge é como assistir a uma novela das 9. Não digo isso somente pelo seu mote, extremamente parecido com Avenida Brasil, mas pelo texto, pelo desenvolvimento, pela falta de compromisso em ser profundo… Enfim. Uma série de razões que pode desagradar ao público mais cult exigente, mas que não chega a ser um problema para aqueles que não ligam de apenas sentar na frente da TV e se divertir. E, além disso, eu acho importante sempre assistir a algo sabendo o que aquilo tem para oferecer. Revenge não tem nada de extraordinário, mas vai te deixar com aquela cara de “não acredito” em diversos momentos. E, para mim, de vez em quando isso basta.
Revenge Criada por: Mike Kelley Onde assistir: ABC, Sony Brasil ou Globo
Inicialmente, eu torci o nariz para Bates Motel. A ideia de contar os anos iniciais de Norman Bates (vivido na série por Freddie Higmore) era interessante. Quando vi Psicose (Psycho, 1960) fiquei pensando sobre como ele teria desenvolvido o Transtorno Dissociativo de Identidade e porque seria a mãe a pessoa em quem ele se “transformava” quando a doença se manifestava. Em partes, era possível prever pelo próprio filme, mas eu gostaria de mais algumas perguntas respondidas. Portanto, não foi mesmo preciosismo o que me fez não gostar de cara da série. Foi a tentativa – meio mal feita – de modernização.
Hoje em dia a polícia possui meios mais eficientes de se caçar um serial killer ou de rastrear pessoas desaparecidas. Há tecnologia que facilita diversos aspectos de uma investigação criminal, de modo que conduzir Bates, de sua adolescência até parte de sua vida adulta, matando as mocinhas que passassem por seu motel, num contexto onde se pode ir mais à fundo em tais histórias, parecia meio irrealista. E nem foi só isso: embora os personagens tenham iPhones, laptops e outros dispositivos eletrônicos, eles estão inseridos num cenário que lembra outra época, a época onde a história original se passa. E suas roupas, especialmente as de Norma (Vera Farmiga), em pouco ou nada condizem com o ano de 2013. Então, acho que foi mais isso: a modernização pelas metades. E algumas situações forçadas do primeiro episódio.
Entre essas situações, é preciso destacar o assassinato de Keith Summers, um morador local e dono anterior do motel onde a família Bates se instala após se mudar para White Pine Bay. Para mim, ficou parecendo que desejavam demonstrar, desde o começo, a loucura de Norma. Afinal, o sujeito já estava contido, havia evidências de sua tentativa de estupro e invasão de propriedade privada e, no entanto, ela considera que ligar para a polícia será um erro. E aí, Keith faz uma provocação mínima, perto de tudo o que ele havia feito antes, e ela o esfaqueia repetidamente, descartando qualquer possibilidade de que a situação fosse resolvida por meios legais. A tentativa de desenhar a personalidade da mãe opressora e desequilibrada é válida, afinal, tem-se aí a raiz da doença de Norman, mas isso poderia ter sido realizado de forma mais gradual, como foi feito em outros momentos da temporada.
Mas, as coisas mudam bastante depois de alguns episódios. Em um determinado ponto, eu me vi interessadíssima no que estava acontecendo em Bates Motel. Lá pelo quarto episódio a história ganha fôlego por meio da desconstrução de White Pine Bay. De um lugar pacato, a cidade passa a se transformar em um local cuja principal fonte de renda é a venda de drogas e o tráfico de escravos sexuais. As tramas paralelas envolvendo as pessoas que trabalham na plantação de maconha de Gil, bem como aquelas envolvendo o namorado de Norma, o policial Shelby, assumem um papel importante e servem para tirar o foco de dramas adolescentes relacionados ao “garoto excluído apaixonado pela garota popular que dá mole para o seu irmão mais velho”. Essas coisas podem até ser importantes, porque é claro que elas tiveram certo impacto na personalidade de Norman, mas caso decidissem mostra-lo apenas nos corredores da escola e se relacionando com a mãe, Bates Motel se tornaria completamente entediante.
Caso você seja como eu e tenha começado a assistir a série pensando em quando ele começaria a manifestar sua doença, respire fundo e aguente firme porque isso só acontece na segunda metade da temporada. E é um tanto sutil. Começa apenas com a repetição de discursos da mãe desfavoráveis às garotas por quem ele se interessa e não ocorre mais do que em um momento específico. O momento de maior proximidade com o Norman Bates que conhecemos ocorre somente nos minutos finais. Eu devo admitir que devido a algumas pistas dadas ao longo do último episódio, se tornou bastante claro quem seria a primeira vítima do garoto, mas não impede que você pare uns minutos e faça cara de choque para a TV.
Eu não sei se colocaria Bates Motel como A grande estreia da midseason de 2013, como alguns críticos e o próprio público vêm fazendo. A série tem sim os seus méritos e mostra promessa, já que agora Norman começou desenvolver o Transtorno Dissociativo. Mas há alguns erros que precisam ser corrigidos para a segunda temporada. E como algumas das histórias paralelas já foram enterradas, resta saber como serão conduzidas as novas, entre as quais estará a investigação do assassinato da primeira vítima da Norman. E o meu palpite é a pilha de corpos na sacada dos Bates vai aumentar consideravelmente nessa segunda temporada…
Criada por: Tucker Gates Onde assistir: em julho a série começará a ser exibida pela Universal
“As pessoas são como tapete. De vez em quando, precisam de um chacoalhão”.
A frase dita bem no começo do filme por um dos protagonistas de Colegas (Colegas, 2012) – o mais recente filme do diretor Marcelo Galvão (de Belini e o Demônio) e agraciado com o prêmio de melhor filme na Mostra de SP de Cinema e com o Kikito de Ouro do Festival de Cinema de Gramado – funciona como a grande moral do filme.
De um jeito leve e divertido (que em determinados momentos cai até no pastelão), mas sem ser em nenhum momento depreciativo, Marcelo trabalha temas como a quebra de preconceitos, a inclusão e o poder da mídia sensacionalista; em um roadmovie que conta a história de Stalone, Aninha e Márcio, três adolescentes que fogem da clínica em que foram internados por seus pais em busca da realização de seus sonhos (Stalone sonha em ver o mar, Aninha em se casar com um músico e Márcio em voar).
Viciado em filmes, é de Stalone a ideia da fuga da clínica. Os três jovens roubam o carro do zelador do prédio (vivido pelo sempre competente Lima Duarte e que faz as vezes de narrador da história) e para sobreviver durante a viagem, roubam postos de gasolina, supermercados e lanchonetes. A partir daí, a mídia cria o mito da gangue de adolescentes com Síndrome de Down que são altamente perigosos e que causam o terror e a destruição por onde passam. Ao longo do filme, os três se metem em muitas confusões, mas acabam conseguindo (mesmo que acidentalmente) escapar da atrapalhada polícia e indo parar em outro país.
Se Marcelo inovou ao realizar um longa onde os protagonistas têm Síndrome de Down, falhou, entretanto, na construção dos seus diálogos e no desenvolvimento do roteiro. Falta ao filme ritmo e por muitas vezes as ações acabam se tornando repetitivas e pouco criativas. As falas dos personagens dão a impressão de ser um grande arranjado de frases prontas, partindo muitas vezes pra clichês.
Mas as funções sociais e humanas de Colegas ainda são o mais importante e nesse quesito, o roteiro trabalha muito bem. Os protagonistas são felizes e capazes, que sonham, se apaixonam, se emocionam e se aventuram por si, sem precisar de auxílios de outras pessoas. Marcelo colabora assim, para que seja colocada uma pedra definitiva na ideia de que o portador de Síndrome de Down é pior do que uma pessoa que não possui a síndrome.
Mesmo com algumas falhas, Colegas cumpre muito bem a função de inclusão social e de quebra de preconceitos. Duvido que ao terminar o filme, você não esteja com cisco nos olhos e que sua visão não mude em relação a várias coisas da vida. Marcelo Galvão nos faz de tapete. E nos chacoalha muito bem.
Colegas, de Marcelo Galvão, 2012. Colegas. Com: Ariel Goldenberg, Rita Pokk, Breno Viola, Rui Unas, Deto Montenegro, Juliana Didone, Leonardo Miggiorin e Lima Duarte.
Ginger (Elle Fanning) e Rosa (Alice Englert) são amigas desde a infância. Elas nasceram em 1945, o último ano da Segunda Guerra Mundial. Sob o signo de uma constante ameaça nuclear. Desse modo, mesmo que as primeiras sequências em que vemos as duas sejam permeadas por euforia adolescente, seu universo é desenhado por Sally Potter, a diretora do longa, com tons de marrom e cinza, marcado por ambientações que nos transmitem a impressão de umidade e frio. Por meio da criação de tais ambientes, o espectador ganha consciência do contexto de medo em que vivem as personagens título.
Apesar de inseridas nesse espaço, as garotas se comportam como duas adolescentes comuns, que estão descobrindo o seu lugar no mundo e sua própria identidade. Por isso, procuram exercer diversas atividades consideradas adultas. Beijam-se como modo de praticar “para quando for necessário”, fumam seus primeiros cigarros juntas, vão a reuniões de grupos anti-guerra e, para o horror do pai de Ginger, Roland (Alessandro Nivola), visitam uma igreja.
Ginger, pelas influências dos pais e dos amigos deles, é mais voltada para atividades intelectuais. Escreve poesia, ouve jazz e cita Simone de Beauvoir para contra argumentar as afirmações lidas por Rosa em uma revista adolescente. Rosa, por sua vez, dá pouca importância para essas coisas, mas tem mais consciência de sua própria sexualidade e do impacto que possui sobre homens mais velhos. Por mais que pareçam opostas, as meninas se assemelham em um ponto crucial: as duas se encontram à deriva, esquecidas pelas figuras adultas de suas vidas. Dessa forma, o ambiente permissivo em que vivem, acaba funcionando como algo prejudicial, que levará as duas ao limite.
Devido à liberdade que lhes é concedida, durante toda a projeção do longa somos levados a acreditar que elas possuem uma maturidade e um desenvolvimento psicológico que nem mesmo os adultos presentes em sua vida possuem. E é somente quando se encontram completamente fragilizadas que Ginger e Rosa vão deixar transparecer que são apenas adolescentes. Graças a proximidade e ausência de julgamentos com que a câmera filma Elle Fanning e Alice Englert somos capazes de perceber a sua inocência e o quanto ainda são meninas, por mais que se esforcem para parecer mulheres.
Por meio de uma história marcada por altos e baixos, onde o que se passa no interior das personagens tem tanta importância quanto o que ocorre no mundo exterior, Ginger e Rosa nos mostra que amadurecimento não é algo que, simplesmente, vem com o tempo e a idade. É algo que se constrói todos os dias, seja por meio de decepções ou mesmo novas experiências. E isso nunca é algo fácil de se atingir.
Ginger & Rose, Sally Potter, 2013. Ginger e Rosa. Com Elle Fanning, Alice Englert, Alessandro Nivola, Annette Benning, Oliver Platt, Christina Hendricks, Timothy Spall e Jodhi May.
Quando Julie Delpy lançou 2 Dias em Paris (2 Days In Paris, 2007) – filme que protagonizou, escreveu, musicou e dirigiu – muita gente apontou semelhanças com os trabalhos que a atriz desenvolvia com Richard Linklater, diretor de Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) e Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004). Embora a comparação fosse injusta (as personagens de Delpy tinham alma, originalidade e não eram cópias das figuras de Linklater), ela não era totalmente descabida: tanto nos filmes do diretor quanto no filme de Delpy o interesse do espectador era conduzido por diálogos ora engraçados, ora tristes; a câmera ficava boa parte do tempo na mão; os protagonistas sempre pareciam ir a um lugar; havia a questão das brincadeiras relacionadas as diferenças culturais de seus protagonistas; e, claro, como o próprio título sugeria, havia uma data certa para que os eventos terminassem. Se os ecos de Linklater fizeram com que Julie criasse um filme agridoce que dispunha de um final muito mais significativo do que todos os 100 minutos que o antecediam, nessa espécie de continuação o alvo de Julie é outro.
Com piadas repletas de ironia e sarcasmo, Delpy emula a persona de Woody Allen e cria sua Marion com simpatia e carisma. As semelhanças com Woody, aliás, transcendem os diálogos e aparecem nos óculos de aro grosso e também em algumas características psicológicas.
Interpretando a mesma Marion de seis anos atrás, Julie compreende que não há necessidade de reprisar o papel do outro longa. Em vez disso, ela constrói uma personagem mais leve, menos histérica, tão neurótica quanto antes e, de certa forma satisfeita com a vida que leva (e isso pode ser visto pelo modo que ela se move e também pela postura que adota em situações específicas). A impressão que fica é que Marion, de fato, viveu e aprendeu durante os anos de hiato que separam um filme de outro. Como se nesse ínterim as mudanças que sabemos que aconteceram em sua vida (a separação de Jack, a morte da mãe, o casamento com Mingus, a maternidade) tivessem a moldado. Dito isso, é notável a capacidade da moça (não só como atriz mas também como autora) de delimitar com destreza o perfil de sua personagem (percebam como logo na introdução ela resolve em poucos minutos toda e qualquer questão que tenha ficado em aberto no longa anterior, respondendo com leveza as perguntas que o representante mais afoito do público faria).
Tendo como cenário a cidade de Nova York, o enredo de 2 Dias em Nova York se desenvolve quando Marion e seu esposo, Mingus (Chris Rock), recebem em sua casa seu pai (Albert Delpy, pai da atriz da vida real), sua irmã (Alexia Landeau) e o atual namorado dela (Alexandre Nahon) – que não por acaso é ex-namorado de Marion -. A partir desse momento, confusões rocambolescas relacionadas ao choque cultura (algo que já havia sido retratado em 2 Dias em Paris), ditam o tom do filme e funcionam como motor para que a trama se desenvolva a caminho de uma inevitável catarse.
O bacana é perceber que no repertório de referências absorvidas por Julie há espaço não só para Allen como também para Altman (notem que todos os diálogos são proferidos quase que ao mesmo tempo, acentuando ainda mais a sensação de bagunça e “realidade” – mesmo nas situações mais absurdas), e que o humor que ela realiza transcende a questão textual (a sequência final, por exemplo, mostra que há boas ideias em relação ao humor físico). No fim das contas, até mesmo os arcos que pareceram acrescidos apenas para causar um maior estranhamento (como o fato de Marion vender de papel passado sua alma em uma exposição de arte) passam a fazer sentido, arrancando não só boas risadas como também sorrisos de ternura, revelando que mais do ecos de outros cineastas há algo genuíno (e de certa forma ingênuo) no material que apresenta.
2 Days in New York, de Julie Delpy, 2012. 2 Dias em Nova York. Com: Julie Delpy, Chris Rock, Albert Delpy, Vincent Gallo, Alexia Landeau, Alexandre Nahon, Kate Burton, Dylan Baker e Daniel Brühl.
Remakes podem ter diversas motivações para serem feitos: quando um filme europeu ou latino-americano faz um sucesso inesperado e Hollywood aproveita para vender a ideia ao público americano que não vê filmes com legendas, porque um diretor quer revisitar sua própria obra ou porque parece rentável atualizar um clássico de outras épocas e vende-lo para novas gerações. A Morte do Demônio (Evil Dead, 2013) é sem dúvida o último caso: o filme que lançou Sam Raimi não foi exatamente refeito, mas relido, adaptado ao paladar de uma geração acostumada a zumbis realistas e computação gráfica.
A história sofreu algumas alterações: agora o enredo se centra em Mia, uma jovem que decide largar as drogas e para isso convoca seu irmão e melhores amigos para se internar em uma cabana enquanto ela passa pela abstinência. A tentativa de tornar os personagens mais profundos, mais dramáticos, faz com que o longa comece clichê, mas é um acerto de Fede Alvarez (o estreante que dirige o filme, produzido pelo próprio Raimi) manter essa história apenas como pano de fundo e usa-la quando convém para amarrar a trama dos demônios. O que se segue é a mesma coisa do filme original: os jovens encontram um livro encapado em pele no porão, sem querer liberam os demônios que habitam a floresta e durante 40 minutos subsequentes eles lutam por suas vidas.
A Morte do Demônio sem dúvidas começa fraco: a explicação desnecessária para os demônios na floresta, a menina viciada, o drama entre ela e o irmão, as atuações ruins… Tudo isso soa como Stigmata, Na Companhia do Medo, ou qualquer filme de terror supostamente profundo e sem graça. Mas quando o sangue começa a jorrar na tela, Alvarez se encontra.
Se havia algo de genuinamente perturbador na artificialidade do primeiro Evil Dead, aqui, ao menos em um primeiro momento, o terror vem por meio do realismo. As feridas e o sangue são realistas suficiente para que o espectador se incomode, a dor dos personagens causa uma reação real e por vezes a sala toda interage em expressões de nojo e aflição. Funciona, incomoda, mas falta charme, ironia e tudo aquilo que tornou tão emblemático o original.
Mas a violência escala rapidamente e o que era realista vai se tornando absurdo. Os personagens decepam os próprios membros sem qualquer apego e em jatos de sangue dignos de Tarantino, o filme assume definitivamente sua veia trash e demonstra porque é um remake que funciona.
A Morte do Demônio não é fiel ao original, mas o tem sempre em mente: há pequenas referências divertidas, como um moletom da Michigan University, há uma personagem que desenha, e mesmo a forma do colar que o irmão de Mia dá de presente a ela. E se por um lado existem alterações de roteiro, por outro Alvarez chega até a repetir planos de Raimi e toda sua decupagem é uma homenagem ao cineasta. A consciência que o diretor tem de seu trabalho e do objetivo de seu filme também ajudam.
Alvarez sabe que precisa vender, sabe que o que está fazendo é tentar atrair uma audiência fascinada com The Walking Dead para os filmes de terror e quem sabe dar novo fôlego comercial ao gênero e ironiza suas próprias saídas fáceis. Ele dá uma trilha sonora brega e planos com cara de anos 80 a cena mais emocionalmente dramática do filme, faz sua protagonista arrancar o braço de baixo de um carro como se fosse borracha e termina tudo com uma chuva (literalmente) de sangue. É nojento, irreal e sim, ruim, mas é exatamente isso que se espera de A Morte do Demônio e funciona.
No fim, o remake não é inventivo, ou original como o filme de Sam Raimi, mas não o perde de vista, honra sua memória e assume com dignidade o trabalho de atualiza-lo e devolve-lo a vida. Cumpre sua função de incomodar, entrega a quantidade de sangue esperada e, mesmo sem a ironia fina do primeiro, diverte.
Evil Dead, de Fede Alvarez, 2013. A Morte do Demônio. Com: Jane Levy, Shiloh Fernandez, Lou Taylor Pucci, Jessica Lucas e Elizabeth Blackmore.
“Quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem. Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci. Mas depois, como de costume, obedeci.“
Parece meio absurda a ideia de criar um filme inteiro tendo como base alguns versos de uma música de poucos minutos. Não, não parece absurdo. Parece desnecessário. E impraticável. Como é possível prolongar um momento que dura segundos em sequências de minutos inteiros? Em O Abismo Prateado (O Abismo Prateado, 2013), novo filme de Karim Aïnouz, funciona como resposta.
Sem se preocupar em estabelecer um enredo propriamente dito, Aïnouz foca a sua atenção em uma única personagem. Com a câmera colada no rosto de sua atriz principal durante quase toda a projeção, o diretor traduz em quadros (um mais bonito do que o outro) suas angústias mais íntimas. Não há amarras ou limites. Tudo parece solto, alinhavado. Como se estivéssemos diante de uma experiência totalmente orgânica. O desespero não só soa real como também parece tangível, palpável.
Por meio de enquadramentos fechados, de uma montagem que corta frames quando julga necessário, de uma trilha musical que é quebrada por silêncios e de uma câmera que emula toda a subjetividade da insanidade, O Abismo Prateado consegue fazer com que criemos um laço verdadeiro com Violeta (Alessandra Negrini).
Quase sem diálogos, o roteiro escrito por Beatriz Bracher, com base na música Olhos nos Olhos, de Chico Buarque, acompanha o cotidiano de uma dentista que vê seu mundo desabar quando recebe uma ligação de seu esposo dizendo que está a abandonando. Agindo por impulso, ela deixa seu consultório, vai atrás de seu marido e na busca por um sentido experimenta sensações de tédio, vazio, preenchimento, compaixão e ternura.
Se o filme funciona em seu silêncio, o mérito não é só de Karim, mas também de Alessandra Negrini. Defendendo com os dentes sua Violeta, a atriz consegue comunicar a confusão mental e emocional de sua personagem sem precisar de momentos catárticos. A sutileza da composição pode ser vista na sequência em que ela pega um táxi e a taxista tenta conversar acerca de sua vida pessoal. A maneira com que ela reage, estando distante e respondendo de maneira monossilábica (demonstrando resquícios de melancolia e confusão e ainda assim parecendo doce) ilustra bem a meticulosidade e complexidade do trabalho.
… E a tal música que inspirou a obra finalmente dá as caras no final do longa. De duas maneiras inesperadas. E o final, em si, coerente e cheio de significado, funciona como alento e permite que nós, espectadores, voltemos a respirar com facilidade depois de 85 minutos de tensão. E mostra, de uma vez por todas, que é possível sim adaptar alguns versos em filme. Neste caso, em um ótimo filme.
O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz, 2013. O Abismo Prateado. Com: Alessandra Negrini, Thiago Martins e Otto Jr.
As personagens principais de Ferrugem e Osso (De Rouille et D’Os, 2012) são fortes. Cada qual a sua maneira, elas demonstram sua força através de seus corpos, suas palavras, suas ações e, principalmente, suas reações.
Quando colocadas em frente a problemas reais, as duas titubeiam. Demonstram medo. Insegurança. E erram. Tais quais pessoas de verdade. Talvez esse seja o grande mérito do filme: durante todo o tempo, Jacques Audiard, o diretor, não se esforça para que gostemos de seus protagonistas. E parece não fazer esforços para que os odiemos. É tudo natural.
Lidando com dois tipos quebrados – tanto física quanto emocionalmente -, Audiard narra a evolução de seres diferentes que se encontram em momentos nada felizes de suas vidas. Stéphanie, interpretada por Martion Cottilard, é inteligente, independente e incrivelmente bonita. Tudo parece funcionar em sua vida, até que durante um espetáculo em um parque aquático uma baleia a ataca e, por consequência, ela perde suas pernas. Alain, vivido por Matthias Schoenaerts, compõe o outro polo do longa de um jeito impulsivo, violento e bruto. Sua personagem é uma sobrevivente. Pai solteiro, não se relaciona com ninguém intimamente. Sexo é sexo, briga é briga e a vida, como um todo, é simples – e brutal.
O choque de cultura e as situações limites que cada um passa entre os 120 minutos de filme nos fazem crer que estamos assistindo, como intrusos, dois personagens que não buscam redenção – apenas sobrevivem sem a menor perspectiva de felicidade (por esse motivo, cenas como a de que Alain ganha uma luta ganha um significado todo especial, visto que tanto ele quanto Stéphanie experimentam uma sensação de felicidade genuína que, não por acaso, foi alcançada a custo de sangue e dor).
A paleta de cores gelada, a ausência de trilha musical durante quase todo o tempo, e a escassez das palavras, tornam Ferrugem e Osso uma experiência dolorosa. Funcionando muito bem graças a montagem (repare como o uso inteligente da trilha sonora e os cortes da imagem na sequência em que Stéphanie sofre o acidente causa tensão) e a atuação de Cotillard e Matthias Schoenaerts (ambos indicados em Cannes ano passado nos prêmios de atuação), o filme exige do espectador bastante atenção para que suas sutilezas sejam notadas e apreciadas. Mesmo com momentos catárticos, como a sequência em que a personagem de Marion descobre que não tem mais suas pernas, alguns dos instantes mais sutis são tão fortes e impactantes quanto. A cena em que Alain sugere que poderia transar com Stéphanie, por exemplo, revela muito sobre o caráter de ambos.
Essa sutileza que permeia todo o relacionamento dos dois é quebrada abruptamente no terceiro ato do longa. Se até então a condução de Ferrugem e Osso dava sinais que não haveria redenção para Stéphanie e Alain, no final, todo o trabalho de composição é quase que jogado fora em decorrência a um fato que soa artificial e parece ter como único propósito oferecer um tipo de felicidade pré-fabricada aos espectadores e as personagens.
O problema só não chega a ser maior porque os atores realmente acreditam no que fazem, e também porque o texto do diretor, escrito em parceria com Thomas Bidegain e Craig Davidson, guarda para os últimos minutos o trecho falado mais bonito de todo o longa (que justifica, entre outras coisas, o título do filme). As palavras são tão avassaladoras que permanecemos atônicos mesmo após o fim – que tal qual o destino de suas personagens, soa incompleto, melancólico, agridoce e extremamente possível. E forte. Bem forte.
De Rouille et D’Os, de Jacques Audiard, 2012. Ferrugem e Osso. Com: Marion Cotillard, Matthias Schoenaerts, Armand Verdure, Céline Sallette, Bouli Lanners e Corinne Masiero
Cores (Cores, 2012) é um filme cínico. Dotado de um humor que não provoca riso, mas sorrisos amargos, o longa é construído de contrastes – o que fica óbvio logo de cara por causa de seu título (todo o filme é em branco e preto), suas personagens (todos são jovens, cheios de sonhos, vivem numa cidade que não para e mesmo assim são absorvidos pelo tédio) e situações quase absurdas, originadas por pensamentos banais.
As observações feitas por seus protagonistas soam cruéis e honestas e, às vezes, pretensiosas. Em linhas gerais, pode-se dizer que Cores fala sobre três amigos que em meio a uma rotina massacrante passam o tempo conversando, se preocupando com contas, bebendo, se drogando vez ou outra e, eventualmente, transando. Essa inquietude, prolixidade e falta de ação representa muito bem o estado de espírito das pessoas que vemos em cena e também serve para adjetivar o próprio filme. Sem uma trama definida, a câmera de Francisco Garcia, diretor e co-roteirista do projeto, percorre corpos e rostos criando quadros bonitos e explorando espaços, parecendo buscar, tal qual as personagens que mostra, uma cura para o próprio tédio.
Tédio este que é demonstrado lindamente na sequência em que jovens bebendo e se divertindo parecem tristes, na parte em que os amigos decidem ir para praia e o carro quebra e também num momento chave em que uma metáfora de purificação ganha vida em imagens (maravilhosamente fotografadas).
Se as intenções são boas e as ideias também, o mesmo não se pode dizer da execução. Enfraquecido com diálogos pobres (a parte em que a mocinha encontra um affair chega a ser constrangedora por conter frases feitas e lugares comuns) e atuações um tanto quanto artificiais (por parte de Pedro di Pietro e Guilherme Leme), Cores exige do espectador uma certa condescendência para ser apreciado e, em contrapartida, parece não oferecer nada em troca.
É como se o vazio e a vulgaridade (normalidade?) opaca de seus protagonistas contaminasse todo o longa. E isso não é de todo mal, uma vez que o projeto ganha pela honestidade: enquanto versa sobre o tédio e sobre o nada ele, ao final de tudo, entrega exatamente isso.
Cores, de Francisco Garcia, 2012. Cores. Com: Acauã Sol, Simone Iliescu, Pedro di Pietro, Maria Célia Camargo, Guilherme Leme, Graça de Andrade e Tonico Pereira.
Nos primeiros minutos de Amor Profundo (The Deep Blue Sea, 2011), comecei a pensar a respeito das semelhanças entre Hester, personagem defendida brilhantemente por Rachel Weisz, e outras duas protagonistas de histórias de amor com cunho trágico, Emma Bovary e Anna Karenina. Pensem comigo: Hester é uma vítima de suas próprias paixões e decisões. Não importa o quanto seus amores sejam destrutivos, ela insiste em vivê-los porque não consegue conceber a sua vida sem tais sentimentos. Frequentemente associa o amor e a morte. Perceberam? Pois é. Hester parece ter saído diretamente de um romance realista do século XIX. Você pode estar pensando que isso soa deslocado, mas a verdade é que tais histórias são atemporais: sempre vai existir uma mocinha trágica disposta a se jogar na linha do trem por um sujeito charmoso e covarde.
Hester é casada com um juiz, William Coyller (Simon Russel Beale), pelo menos duas décadas mais velho do que ela. Nas sequências em que a vemos acompanhada do marido, percebemos que ela não se encaixa no universo do qual ele faz parte – o que é evidenciado especialmente pela visita que fazem à mãe aristocrática e arcaica (Ann Mitchell) de William -, mas que nutre por ele alguma espécie de ternura. Ele, por sua vez, a ama. O problema entre os dois não é a idade, a mãe ou mesmo a sensação de não pertencimento: Hes procura por um amor que a faça perder o controle e a tranquilidade oferecida por Bill nunca será capaz de preencher essa necessidade.
E é aí que entra o outro vértice desse triângulo, o ex-militar Freddie Page (Tom Hiddleston). Freddie sabe exatamente o que dizer, quando dizer e em que tom dizê-lo. É irresistivelmente charmoso e seu mundo é excitante, marcado por noites de bebedeira, música e dança. Enfim, tudo o que é oferecido por ele está bem distante da polidez e da apatia a que Hester estava acostumada. Porém, como se poderia esperar, as coisas com Freddie não são estáveis. Há brigas demais, negligência demais. Tudo parece ser regido por impulsos e não há espaço para considerar como as ações praticadas afetam o outro. Ele lhe oferece a intensidade que ela buscava, mas isso vem com um preço que, ao expectador, parece alto demais.
O cenário do pós-guerra em Londres serve para reforçar a bagunça psicológica de Hester. O caos em que se encontra é encenado por Terrence Davies como se fosse uma ópera, de modo que o longa é iniciado pelo Concerto para Violino e Orquestra Opus 14, de Samuel Barber. Durante seus sete primeiros minutos não se tem uma fala. Vê-se somente algumas lembranças de Hes, filmadas de um jeito muito etéreo e luxuoso, que reforça a ideia de que a personagem paira entre a vida e a morte. Posteriormente, quando ela é “acordada” e a ação do filme começa a se desenvolver, a postura dos atores em cena e o jeito com que os diálogos são construídos nos remetem ao teatro e nos fazem lembrar daquilo que serviu como matéria prima para a confecção do roteiro de Amor Profundo: uma peça de mesmo nome, escrita em 1952, por Terrence Rattingan.
Amor Profundo é uma das coisas mais arrebatadoras que assisti em um tempo considerável. Pelas cores utilizadas, pelos planos, pelos diálogos certeiros… Mas, principalmente, por que é orgânico e humano.
The Deep Blue Sea, de Terrence Davies, 2011. Amor Profundo. Com: Rachel Weisz, Tom Hiddleston, Simon Russel Beale, Ann Mitchell.
Em 2008, a Marvel decidiu investir em um filme do Homem de Ferro, personagem um tanto desconhecido de seu universo e visto com ressalvas mesmo por aqueles envolvidos com HQs. O carisma de Robert Downey Jr. e o foco no humor ácido do personagem fizeram do filme um sucesso inesperado e hoje Tony Stark é a maior estrela do estúdio.
Homem de Ferro 3 vem na esteira da bilheteria absurda de Os Vingadores e o filme parece exatamente isso: a Marvel ganhando dinheiro certo e apostando no “em time que está ganhando…”
A trama começa com um Tony Stark em crise: assombrado pelos acontecimentos de Os Vingadores e tendo problemas para se adaptar ao posto de homem maduro exigido por Pepper Potts agora que ela passou de secretária-babá para namorada. Stark será tirado de sua inércia quando um ataque terrorista fere gravemente seu amigo e ex-segurança e a investigação o leva ao perigoso terrorista Mandarim. No entanto, ele precisa fazer isso sem sua conhecida armadura, que foi danificada em uma explosão organizada pelo vilão.
Filmes de super-herói são em primeiro lugar filmes de ação e, sendo assim, viradas complicadas de roteiro e mergulhos profundos na psicologia dos personagens podem ser dispensados. Foi o que fez Os Vingadores com bastante eficiência. Por outro lado, era um filme de conjunto que tratava de uma “mitologia” extensa e que tinha na química entre seus personagens o elemento que amarrava as explosões e ets. Homem de Ferro é um filme de um homem só e esse homem, a exemplo da maior parte dos super-heróis, é uma figura controversa.
Mas Tony Stark não é controverso como o Batman, ou mesmo a Viúva Negra, seu personagem não tem grandes traumas do passado ou demônios internos, ao contrário, a dificuldade da personalidade de Stark está exatamente em sua imensa frivolidade e o novo filme parece esquecer disso. Não faz muito sentido que Stark seja assombrado pelo que aconteceu em Nova Iorque, menos ainda porque seu personagem parecia estar quase se divertindo no filme anterior. Além disso, o conflito homem real X super herói ou a trama em que um herói perde seus poderes (no caso, a armadura) e deve encontrar sua força dentro do homem comum é o clichê do clichê dos filmes de super-herói.
Homem de Ferro 3 quer dar ao personagem uma profundidade que ele não possui e acaba perdendo o que ele tem de característico e interessante. Ao tentar tornar Tony Stark tridimensional tudo que a Marvel consegue é deixa-lo plano e sem a mesma graça dos filmes anteriores.
Embora o carisma de Downey Jr. continue funcionando, as melhores piadas vem de um garotinho de 10 anos. Apesar disso as sequências de ação são eficientes e a virada de roteiro do Mandarim é quase genial (e um tapa na cara dos que duvidaram da possibilidade de adaptar o personagem).
Outro problema, que para maior parte do público talvez não chegue a ser um problema, é que a Marvel desperdiça de novo a chance de ter uma personagem feminina forte. Pepper Potts é inteligente, eficiente e capaz de comandar uma empresa gigantesca, mas está constantemente no lugar de donzela em perigo. Exceto por uma sequência de talvez 30 segundos, tudo que Potts faz é cobrar Stark, ser incapaz de vê-lo pelo que é, achar a armadura uma perda de tempo (vamos lembrar que o Homem de Ferro foi um dos maiores responsáveis pela vitória em Os Vingadores) e precisar ser salva por ele. Talvez esse tipo de enfoque seja parte do motivo pelo qual eu era a única mulher não acompanhando o namorado em uma sessão lotada de sábado à noite.
No fim, Homem de Ferro 3 diverte, mas não com o frescor que costumava apresentar, nem com a despretensão de Os Vingadores. É um filme morno, menos ruim do que Thor, mas bem aquém das possibilidades do personagem.
Iron Man 3, de Shane Black, 2013. Homem de Ferro 3. Com: Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow, Guy Pearce, Don Cheadle, Ben Kingsley.
“Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé, que vai defender a classe operária, salvar a classe operária e cantar o que é bom para a classe operária. Nenhum operário foi consultado, não há nenhum operário no palco, talvez nem mesmo na plateia, mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários. Os operários que se calem. Que procurem seu lugar, com sua ignorância, porque Tom Zé e seus amigos estão falando do dia que virá e na felicidade dos operários.”
Trecho da música Classe Operária, de Tom Zé.
Doméstica (Doméstica, 2013) se vende como um filme sobre aquelas que sempre foram coadjuvantes: as empregadas mensalistas. Mas a verdade é que o documentário de Gabriel Mascaro é sobre outra coisa. Ou melhor, outras coisas.
Dando a missão de retratar a vida de suas empregadas, Gabriel entrega a sete jovens de diferentes classes sociais, regiões e hábitos uma câmera. Não há regra pré-estabelecida. Basta filmar o que eles acharem interessante. Parece banal, não é?
Mas não, não é. Criando antagonistas e denunciando a hipocrisia latente desses que são verdadeiros “sinhozinhos”, Gabriel monta os recortes de olhares com uma coerência assustadora. A cada filmete a intenção do diretor fica mais clara e percebemos que por mais diferente que sejam a vida das empregadas retratadas todas as histórias possuem pontos em comum.
Desse modo, pode-se dizer que o traço mais marcante de Doméstica é a vaidade explícita de alguns patrões. Cada um, cada qual a sua maneira, demonstra diferentes níveis de interesse por suas empregadas e parecem mais preocupados em demonstrar que são bondosos para com eles ao dizer frases como “ela é quase da família” ou “ele come da minha comida“, fazendo com que a doméstica, que deveria ser o foco, acabe como um mero veículo de exibição. Então Gabriel revela que o filme não é sobre domésticas, mas sobre seus chefes e as relações deles para com elas.
Por sua vez, as empregadas retratadas apresentam traços que variam entre ingenuidade, submissão e ressentimento. Percebemos por olhares e por respostas ora espontâneas, ora pensadas; diferentes tipos de nuances e sentimentos.
O último segmento, em especial, sintetiza muito bem as intenções dos filmes. O garoto que o registra parece alheio a vida da pessoa que o serve, e, quando ele toca uma música de Bob Dylan e olha o vazio, vira vilão da história. Sua mãe, que depõe a respeito da mulher que é apenas quatro anos mais velha que ela e que brincava junto com ela na infância, demonstra resquícios de culpa e condescendência. A mensalista, por outro lado, revela com suas pausas e silêncios suas verdadeiras emoções. É como se ela não pudesse dizer que não é feliz porque sabe das consequências que suas palavras terão. Então, nesse exercício sutil de observação, as coisas continuam como estão.
E continuam mesmo. Ao final do filme percebemos que algumas daquelas mulheres eram filhas de outras mulheres com a mesma profissão – mostrando que as raízes escravagistas se fazem presentes, mesmo que veladas. Percebemos também que há quem deixe os filhos com uma empregada para trabalhar como empregada em outro lugar. Notamos e sentimos o abandono de um certo personagem. E percebemos, principalmente, que há uma infinidade de sentimentos por todo o lado.
Na última sexta-feira assisti ao filme que você fez a respeito de sua irmã, Elena. Fiquei muito impressionado. Ele era muito bonito.
A combinação de sua voz, tão doce e baixa, com aquelas imagens, recortes de registros e música, fizeram com que eu me sentisse íntimo e próximo de você e de Elena. Veja só que bobagem! Eu, que nunca as conheci, estava ali, numa sala escura, não só interessado como também absorto em suas vidas. Era como se estivesse lendo (vendo?) por cima dos ombros uma carta endereçada a outra pessoa. Como se o real destinatário soubesse de minha indiscrição, mas não se importasse.
De certa maneira eu fiz mesmo isso, não fiz? Na verdade, você que fez quando mostrou as cartas em áudio que sua irmã tinha feito durante o tempo em que esteve em Nova York querendo ser atriz de cinema. Achei bonito demais da conta o sonho dela. E mais ainda a maneira com que ela encontrou de descrever isso. O que você escolheu filmar (e o jeito que você fez isso) também foi lindo. A câmera na mão, a falta de foco, o excesso de luzes. Tudo que eu imaginaria a respeito da cidade e das sensações que Elena descreveu nos áudios estava ali, concreto, graças à você. Acho que você também imaginou o que ela passou do mesmo jeito que eu.
Mas não sei, sabe, Petra. Fiquei incomodado. Assim, de verdade. Porque ao mesmo tempo em que eu estava intrigado (e eu juro que estava!) sobre o destino de sua irmã perdida, comecei a achar que a reconstrução dos lugares por meio das imagens, da música e até das entrevistas (especialmente a que fez com sua mãe) eram forçadas. Desculpe. Não quero te chamar de oportunista. Quando o filme chegou ao final (na verdade, antes disso) eu sabia que você não era. Só que essa sensação me acompanhou por um tempo – em sequências inteiras. Fiquei pensando que talvez Elena, o longa, fosse muito mais forte se as cenas fossem menos maquiadas, menos posadas. Fiquei pensando até que ponto o que você dizia era verdadeiro. Se as palavras – tão bonitas! – tinham sido pensadas ou repensadas (mesmo sabendo que elas eram frutos de um roteiro, porque documentários tem roteiros) ou se você falava mesmo daquele jeito. Se as fusões nos quadros, se as transições de imagens e se a teatralidade da coisa toda buscava emular algum momento ou ludibriar pelo simples gosto de manipular. Na parte em que você faz aquela espécie de dança (com as mãos) para falar sobre seu renascimento/superação, por exemplo, cheguei a desacreditar em tudo.
Depois fiquei pensando se isso não era a maneira que você encontrou de exorcizar seus demônios e sentimentos. Porque eu sei que você sentiu de verdade tudo aquilo. Talvez não daquele jeito. Ou talvez exatamente daquele jeito, não sei. (Abro um parentese para confidenciar algo. Aquela coisa que sua mãe disse no momento chave do filme, que ela pensou em… Você sabe, me deixou deveras emocionado. Lembrei da pessoa que mais amei na vida. E das coisas que ela me contou sobre o acontecimento mais triste de todos. E aí senti muito. Por causa do filme, por causa de você e por causa dela.)
Me perdi. Não foi de propósito, eu juro. Voltando a falar sobre a suposta artificialidade… Mandei tudo as favas no final. Quando vi você e seus pares submersos, flutuando, entendi, finalmente, que tudo era verdade, assim, doído mesmo. Porque a metáfora, embora fosse miraculosamente construída (aliás, parabéns à você e a seus diretores de fotografia por a escolha da luz e dos ângulos – vê-las ali, de cima, foi mais do que lindo), dizia muito sobre uma sensação real.
Acho que arte o papel da arte é esse, não é? Falar. Seja com as verdades tangíveis ou as verdades que a gente cria porque elas não existem fora da gente. E sabe, você falou. Comigo, com sua irmã e, tenho certeza, com quem quer que tenha assistido seu filme.
Elena, de Petra Costa, 2013. Elena. Com: Petra Costa e Elena Andrade.
Lá pelo meio de Terapia de Risco eu estava completamente rendida. Pensando que estava diante de um suspense realmente bom (o que não acontecia há um tempo), admirada com a atuação da Rooney Mara (acreditem: Lisbeth Salander é só a ponta do iceberg!) e pensando que, talvez, o Soderbergh devesse mesmo se aposentar, como os boatos recentes afirmam. Gosto da carreira dele de um modo geral, mas sempre digo que as pessoas deviam parar enquanto estão no ápice. Quando faltavam 20 minutos para que os créditos finais de Terapia de Risco subissem, minha opinião se modificou.
A ação de Terapia se inicia quando Martin Taylor (Channing Tatum), um figurão de Wall Street, é liberado da cadeia. Sua esposa, Emily Taylor (Rooney Mara), se encontra fragilizada e sem saber como se adaptar à nova situação. Então, um belo dia, saindo do estacionamento de seu prédio, ela decide chocar o seu carro contra um muro de concreto. A tentativa não resulta em nada mais que alguns arranhões e no encontro entre Emily e aquele que passaria a ser seu psiquiatra, Johnatan Banks (Jude Law). Para ter uma visão mais ampla de Emily, Jon decide entrar em contato com sua antiga psiquiatra, que havia tratado a moça na ocasião da prisão de seu marido, a doutora Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones). Tudo parecia ir muito bem até que num ataque de sonambulismo (um dos efeitos colaterais do antidepressivo receitado por Jon) acaba matando Martin. E, evidentemente, não se lembrando de nada, já que não estava consciente quando o fato se desenrolou.
Desde os primeiros minutos, a trama se desenvolve de uma maneira ágil, que fisga o expectador e o transporta para dentro da tela. Além de intrigados por Emily, ficamos intrigados a respeito do quanto as ações que presenciamos são mesmo culpa da droga e o quanto há ali dos desejos da personagem. Além disso, começamos a pensar sobre o papel da mídia em julgamentos que se tornam conhecidos em território nacional/mundial, a necessidade de se apontar um culpado e sobre a indústria farmacêutica, que disponibiliza para consumo medicamentos cujos efeitos negativos ainda não foram plenamente identificados. Pensamos, então, estar diante de mais uma das história de Soderbergh sobre o impacto que forças muito maiores do que indivíduos podem ter em suas vidas, tal como o diretor havia feito em Erin Brockovich, Contágio e Traffic. O modo escorregadio como tudo isso é construído também serve para reforçar essa impressão, que permanece conosco até que surge o clímax de Terapia de Risco.
A necessidade de dar muitas explicações, o tom forçado dos diálogos e o excesso de reviravoltas (desnecessárias) fazem com que o filme se perca um pouco. E que perca também em impacto. Seria melhor que o roteiro mantivesse algumas coisas em suspenso e, dessa maneira, se poupasse de alguns momentos constrangedores, como a última cena entre Emily e Victoria, digna de fazer parte de um episódio de Revenge (e eu não me lembrei só pelos nomes das protagonistas!) ou de um capítulo de novela das 9. Não somente pelo que foi citado, mas pelo tom fantasioso, completamente fora da realidade das personagens (em especial Victoria), que as coisas assumem nesse momento.
Mesmo que o único problema de Terapia seja o seu clímax, ao fim da projeção tem-se a impressão de que, de alguma forma, o restante foi prejudicado pelo desfecho. Caso essa seja mesmo a despedida de Soderbergh de Hollywood, ele pode ir certo de que criou títulos memoráveis. Mas eu não gostaria que o homem que dirigiu Sexo, Mentiras e Videotape me deixasse como última lembrança um desfecho ruim.
Side Effects, de Steven Soderbergh, 2013. Terapia de Risco. Com: Rooney Mara, Channing Tatum, Jude Law, Catherine Zeta-Jones.
Lembro que meu primeiro contato com Gia – Fama & Destruição (Gia, 1998) foi numa noite entediante anos atrás. Estava buscando algo na TV para me distrair ou pelo menos me dar sono, foi aí que me deparei com Angelina Jolie sendo incrível no papel de Gia. A partir daí não consegui mais desgrudar meus olhos da tela. E olha que essa primeira vez que assisti era dublado.
Baseado numa história real sob a direção de Michael Cristofer, o filme emula um documentário e retrata a trajetória chocante da supermodelo, que fez muito sucesso no fim dos anos 1970 ao início dos anos 1980, Gia Carangi, ou apenas Gia (Angelina Jolie), como ficou conhecida em todo o mundo.
Ela deixa a sua vida de garçonete no restaurante do pai na Filadélfia para arriscar tudo sendo modelo em Nova York. Sem saber e sem se importar muito se não passaria apenas de mais um rostinho bonito, ela faz seu primeiro teste com Wilhelmina Cooper (Faye Dunaway), que mais tarde se torna responsável pela carreira eletrizante dela.
Com um bom desenvolvimento e mesclando entre depoimentos de pessoas próximas de Gia (mãe, o distante pai, algumas pessoas que trabalharam com ela, o grande amor da sua vida etc.) e a angustia relatada pela modelo em seu diário, o longa faz com que, logo de início, o expectador queira consumi-lo de uma só vez.
Gia tinha um crescente desejo dentro si que, aparentemente, nunca foi preenchido, levando-a assim a procurar a resposta de sua tristeza nas drogas. Sempre muito carente, imediatista e manipuladora, logo sua vida pessoal conturbada foi passando por cima de seu trabalho e consequentemente levando-a ao esquecimento.
É um filme triste, reflexivo e apaixonante. Não há como negar que “Too beautiful to die. Too wild to live.” (“Bela demais para morrer. Selvagem demais para viver”) não defina por inteiro, o inteiro que Gia Marie Carangi nos entregou em sua potente e rápida carreira.
Gia, de Michael Cristofer, 1998 Gia – Fama & Destruição. Com: Angelina Jolie, Elizabeth Mitchell, Faye Dunaway, Mercedes Ruehl, Edmund Genest.
É como se fosse um delírio de febre. É, acho que Em Transe (Trance, 2013) é isso. Com cortes rápidos, cores quentes, e ângulos pouco usuais, Danny Boyle retoma os tiques que o tornaram conhecido e soa frenético, esperto e ligeiro.
Ligeiro a ponto de que a gente nem perceba que seu filme tem 101 minutos. Tendo como ponto de partida a vida Simon (James McAvoy), um leiloeiro que se acomuna com alguns bandidos para roubar um quadro de Goya, Em Transe começa rápido e só faz acelerar. Depois de uma abertura impressionante (em que vemos o tal roubo), Boyle reordena os elementos vistos em cena para criar um universo bastante particular. E só quando a doutora Elizabeth (Rosario Dawson, esplêndida) aparece em cena – a fim de fazer com que Simon se recorde onde escondeu o quadro – é que temos noção (e algumas pistas) da verdadeira história que Danny quer contar.
Cheio de bom humor e ritmo, o longa avança em cima das descobertas que Elizabeth faz enquanto Simon está sob efeito de sua hipnotize. Logo percebemos que o leiloeiro traiu seus sócios porque tinha medo de morrer quando entregasse o quadro. E logo notamos que ninguém ali parece totalmente puro. A evolução do trio de protagonistas, aliás, é digna de nota: acrescentando nuances e acentuando ou omitindo traços que sempre estiveram lá, os atores, cheios de carisma, criam composições intrigantes.
Sugestões são desenhadas diante de nossos olhos, apagadas, desmentidas e reforçadas – de acordo com a vontade do diretor. Fica óbvio em determinado momento que Boyle quer que participemos e, por isso, nos entrega todas as fichas para que joguemos e articulemos junto com o filme. Apostando em reviravoltas, o roteiro de Joe Ahearne e John Hodgee apresenta novas camadas a cada sequência. O perigo eminente, as traições e as imagens (que parecem refletir não a realidade, mas a percepção que as personagens tem dos espaços) injetam em Em Transe fôlego e consciência.
Mesmo com algumas pontas soltas e algumas falhas (a falta de química entre Dawson e Cassel, por exemplo), o impacto de Em Transe (tido, em parte, graças ao apuro estético que é notável em todos os minutos) se sobressai a seus defeitos e seu final, didático e explicativo, agrega valor ao recolher todas as pistas deixadas durante a projeção.
E como um espasmo de febre que surge e que vai, Em Transe simplesmente termina. E a gente acha ótimo quando isso acontece.
Trance, de Danny Boyle, 2013. Em Transe. Com: James McAvoy, Vincent Cassel, Rosario Dawson, Danny Sapani, Wahab Sheikn, Tuppence Middleton e Matt Cross.
Aqui está um daqueles filmes que te seduz só pelo curioso cartaz. Ao menos esse foi o meu caso, além dos fatos dele ser de 2009, ter saído há meses em TVs por assinatura e até alguns dias atrás estar na programação de estreias nos cinemas – a distribuidora, Esfera Filmes, desistiu de lançá-lo, pelo menos por enquanto. O que é uma pena, pois com a polêmica em torno do PEC (Proposta de Emenda à Constituição) em alta, certamente as situações iniciais retratadas no longa seriam um prato cheio nas discussões (de mesa de bar) sobre o assunto.
Vencedor de diversos prêmios em festivais mundo à fora, A Criada (La Nana, 2009) conta a história de Raquel (maravilhosamente interpretada por Catalina Saavedra – vale ressaltar), uma empregada introvertida e solitária, que abdica de sua própria vida e familiares para servir a família Valdés – dedicação essa que já perdura há 23 anos. Se sentindo parte pertencente ímpar daquela família, Raquel reluta quando sua patroa anuncia que contratará uma ajudante para ela.
Raquel não vê essa contratação como um alívio no serviço da casa e sim como uma ameaça. Um visível medo da família – especialmente dos filhos – gostarem mais da “impostora” do que dela. Determinada a defender o seu território, Raquel assume de vez sua identidade paranoica e vai desde dar sumiço num gatinho até desinfetar o banheiro toda vez que a ajudante o utiliza.
O que nas primeiras cenas parecia ser uma crítica ríspida sobre essa falsa relação fraternal entre empregado e patrão (Raquel comemorando sua festa surpresa de aniversário organizado pela família, recebendo uniforme de presente e logo levantando da mesa pra lavar o prato de todos), logo se torna um produto de humor negro primoroso. Manobra arriscada do diretor, Sebastián Silva, seguir por uma vertente totalmente oposta a apresentada inicialmente, mas ainda assim muito gratificante para (alguns) espectadores.
La Nana, de Sebastián Silva, 2009. A Criada. Com: Catalina Saavedra, Claudia Celedón, Agustín Silva, Alejandro Goic, Andrea García-Huidobro, Mariana Loyola.
Há algumas semanas li por aí um moço falando que estava curioso em ver como adaptariam para o cinema vida de João de Santo Cristo, personagem da emblemática Faroeste Caboclo, da Legião Urbana. Ele falou que estava intrigado, principalmente, em saber como Maria Lúcia apareceria, do nada, com uma Winchester 22 no duelo final entre Jeremias e João e ninguém perceberia. E como João levaria cinco tiros nas costas e sobreviveria. E, mais do que tudo, ele queria descobrir como o público perceberia que o tal moço que tinha raiva do mundo só queria falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só… Ah, vocês conhecem o resto da música.
O que vocês não conhecem são as invencionices do filme Faroeste Caboclo. E que filme! Se apegando a tríade Jerê-João-Maria, René Sampaio, o diretor, colore as lacunas deixadas pela composição de Renato Russo e cria um conto de amor que funciona a ponto de fazer com que a gente torça e sofra por uma história que a gente já sabe o final.
Isso só acontece porque ele gasta tempo para contar a história de suas personagens e encontra espaço tanto para referenciar a obra que dá base ao filme como também para incrementar com o que ele acha que vai fazer o longa funcionar. Por meio de flashbacks de passagens-chave a gente entende quem é João (Fabrício Boliveira) e o que o motiva. Entende quem é Maria Lúcia. E entende também o porquê dos dois estarem juntos e se apaixonarem. E por mais que a justificativa da postura de antagonista de Jeremias (Felipe Abib) seja torpe, a gente até engole e não se importa muito porque…
Porque todo o resto é animal. Com belos quadros que expressam muito bem a melancolia de Brasília e das personagens que lá vivem, Faroeste Caboclo tem imagens poderosas. Os planos que mostram Maria Lúcia (Isis Valverde) nos telhados enquanto olha a cidade, a infância da personagem título, a chegada de João (saindo da rodoviária e vendo as luzes de natal), e o trecho final são deslumbrantes. A coisa só não é melhor por causa do desenho de som.
Se antecipando muitas vezes, a trilha incidental acaba soando intrusiva e ilustrativa demais. Nos momentos mais leves ela parece piscar para o espectador, dando orientações de “agora você tem que rir”, “ó, fica de olho que vai acontecer algo tenso” e etc. Pior ainda foi a decisão de inserir uma narração óbvia. A gravidade da escolha é tamanha que em determinadas sequências (como na de abertura) a voz de João “briga” com as imagens e as enfraquece, deixando tudo tão mastigadinho e expositivo que a redundância não só confunde como também irrita – o que é uma pena, levando em conta o já mencionado apurado trabalho imagético do longa.
Mas maior do que qualquer equívoco e acidente de percurso (além do problema da trilha, a direção de arte apela para o óbvio nos objetos e cores que compõem a casa da personagem pai de Maria Lúcia), é o final grandioso que René prepara. Se apoiando em referências que vão de De Palma a Sergio Leone, o diretor alterna tons e humores e brinca com o cinema de gênero, fazendo valer o título de faroeste que o longa apresenta.
Poética e impactante, a sequência final é poderosa e coerente com o resto da narrativa – se mostrando tão épica quanto a música que a originou.
Faroeste Caboclo, de René Sampaio, 2013. Faroeste Caboclo. Com: Fabrício Boliveira, Isis Valverde, Felipe Abib, Antonio Calloni, César Troncoso, Rodrigo Pandolfo e Marcos Paulo.
A criatividade dos diretores e roteiristas das décadas de 50 e 60 para driblar a censura e o moralismo está entre as coisas que mais me encantam em produções da época. Especialmente aquelas contando com o nome de Marilyn Monroe, já que, mesmo sem querer, a atriz acabou conhecida pelo forte apelo sexual. Quando ela se encontrava em cena, algumas vezes, o tom de sua voz e a maneira como posicionava o seu corpo eram suficientes para que sugestões sexuais fossem feitas. E num filme que conta com o título original de Let’s Make Love é claro que isso não poderia ser diferente. Portanto, ver cenas como a última canção do longa e a clássica My Heart Belongs To Daddy incluídas no corte final do filme é surpreendente. E isso só aconteceu, sem dúvidas, graças ao roteiro inventivo. Preservando ambiguidades e se apoiando no clichê de que “a maldade está nos olhos de quem vê”, Norman Krasna e Hal Kanter, os roteiristas de Adorável Pecadora, criam algo que, ao expectador de hoje, soa deliciosamente inocente. De uma inocência que provoca, que incita, mas ainda assim inocente.
A ação de Adorável Pecadora se desenvolve quando o playboy Jean-Marc Clement (Yves Montand) descobre que um musical off Broadway, cujo intuito é satirizar a sua vida, está em fase de produção. Ao invés de tentar vetar The Billionaire por meios legais, Jean decide se aproximar dos responsáveis pela produção e conferir o que exatamente é o objeto de escárnio da peça. Em sua primeira aparição no teatro, ele vê a magnética Amanda Dell (Monroe) ensaiando o seu solo no espetáculo. Fascinado pela beleza da moça, bem como pelo fato de que ela não sabe quem ele é, Jean-Marc decide assumir o papel de si mesmo em The Billionaire para poder ter mais contato com Amanda. Em pouco tempo o playboy se encontra intensamente apaixonado por ela e surpreso com o fato de que alguém pode amar mais do que o seu dinheiro. Afinal, para Amanda, ele é um ator que, constantemente, se encontra em dificuldades, assim como tantas outras pessoas do meio.
Daí para frente o longa se dedica a mostrar o relacionamento dos dois. Porém, o verdadeiro objetivo, para mim, está em demonstrar a magia do show business. George Cukor, o diretor do filme, parece mais interessado em explicitar a cena teatral de Greenwich Village do que os seus personagens. Ele demonstra, com maestria, o caos dos bastidores do teatro. Os primeiros ensaios, onde ainda não se sabe bem qual a cara dar a cada personagem; o envolvimento dos patrocinadores que, algumas vezes, pode moldar determinada peça em direções completamente opostas às desejadas… Esse tipo de coisa. E, no fim, vemos como a criatividade, que acaba por superar a falta de recursos e outros empecilhos vivenciados constantemente por artistas, tem um impacto grande e positivo na vida de Clement: seu mundo se torna mais mágico, mais colorido e menos burocrático. Arrisco dizer que a arte foi capaz de transformar partes da personalidade autocentrada do moço. E, claro, o amor também teve lá o seu papel.
Embora algumas pessoas insistam em dizer que não temos Marilyn em seu melhor nesse filme, eu não consigo concordar. A destreza com que Amanda Dell é construída, a inocência e o apelo sexual da personagem nos mostram tudo aquilo que tornou a atriz conhecida. Quando Clement entra no teatro pela primeira vez e vê Amanda ensaiando, o contraste entre o tom meio sacana da canção de Cole Porter e o modo quase angelical com o qual a moça é apresentada (a luz realça a brancura de sua bela e o loiro de seus cabelos) fazem com que o público se torne tão voyeiur quanto Jean-Marc Clement – que fantasia escutar (!) tais canções sugestivas em companhia da atriz. Além disso, Cukor demonstra consciência do amor da câmera por sua estrela e não hesita em abusar da beleza de seu rosto e em apostar em figurinos que realcem as suas curvas.
No fim, Adorável Pecadora não é uma obra prima como os outros musicais de Cukor. Está longe de contar com o glamour e o orçamento astronômico (para a época) de My Fair Lady. Mas é um filme delicioso, cheio de sugestões bem feitas e interessantes, que te mantém preso durante toda a projeção. E, se isso tudo não for suficiente para você, eu tenho certeza que Marilyn no auge de sua beleza será.
Let’s Make Love, de George Cukor. Adorável Pecadora. Com: Marilyn Monroe, Yves Montand, Tony Randall e Frankie Vaughan.
Românticos Anônimos (Les Émotifs Anonymes, 2010) é uma comédia romântica sobre medo. Você deve estar se perguntando: Mas hein? Pois é.
Neste filme francês, escrito e dirigido por Jean-Pierre Améris, o tema principal é a timidez extrema e o medo de viver. Angélique (Isabelle Carré) é uma mulher que tem medo de tudo. Frequenta inclusive um grupo de apoio para pessoas como ela, que começam a compartilhar seus medos com: ‘Olá, sou fulano/a e sou emotivo/a’. Na primeira vez que Angélique se apresenta, sofre um desmaio tal o seu pavor de se expor. O medo de viver é tão grande que Angélique esconde que é uma chocolatière (expert em chocolates) de primeira. Por sete anos conseguiu trabalhar anonimamente em sua casa, se fazendo passar por um ‘ermitão’ que produzia chocolates excelentes, mas quando o dono da loja de chocolates para quem ela trabalhava morre, Angélique se vê numa encruzilhada.
Cantando uma versão francesa de I Have Confidence In Me, música que Julie Andrews cantou no filme A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), Angélique parte para procurar emprego em uma fábrica de chocolates que está à beira da falência. Aqui ela conhece o dono Jean-René (Bonoît Poelvoorde), que sofre dos mesmos males que ela, e cujo lema do pai ficou para sempre em sua mente: ‘Que nada nos aconteça’. Jean-René consegue ser ainda mais fechado e tímido do que a protagonista. Uma das cenas mais tragicômicas acontece num restaurante onde estão tendo o primeiro encontro, e Jean-René precisa se desculpar a cada minuto para ir ao banheiro devido ao nervosismo extremo, e no fim, fica tão mortificado em ter dado um super fora que foge pela janela do banheiro.
Românticos Anônimos não é um filme para cínicos. É um filme para almas como as de Angélique e Jean-René, românticas, sensíveis, medrosas e que lutam diariamente contra seus próprios fantasmas. O melhor de tudo é que o diretor, que sofre dos mesmos males de Jean-René, retratou um assunto pesado com delicadeza e humor. E chocolate, bastante chocolate.
Les Émotifs Anonymes, de Jean-Pierre Améris, 2010. Românticos Anônimos. Com: Isabelle Carré, Benoît Poelvoorde, Lorella Cravotta, Lisa Lamétrie, Pierre Niney e Swann Arlaud.
Comecei a assistir A Escolha Perfeita (Pitch Perfect, 2012) com os dois pés atrás. O plot não favorecia muito a produção, fazendo com que ela parecesse algo entre Glee e High School Musical: The College Years. E aí, eu torci o nariz por um tempo. Até que o ócio me fez assistir o filme e, meus amigos, que surpresa agradável.
No longa Anna Kendrick é Becca, uma garota apaixonada por música que está começando a faculdade. Muito contrariada por estar naquele ambiente, porque ela queria mesmo era ir pra Los Angeles ser produtora musical, Becca não possui qualquer interesse em se envolver com as atividades do campus ou em conhecer pessoas. Um belo dia, Chloe (Brittany Snow), uma das duas integrantes restantes no The Barden Bellas, um grupo acappella formado apenas por garotas, escuta Becca cantando no chuveiro e insiste tanto que a garota acaba se juntando a elas. Mesmo achando a imagem do grupo arcaica e as músicas cantadas pelas garotas ainda mais arcaicas, ela se esforça para pertencer e entregar o seu melhor desempenho.
Entre as integrantes do grupo também está a engraçadíssima Fat Amy (Rebel Wilson), que aposta em piadas de gordo e em seu sedentarismo (e pouca vontade de mudar isso) para fazer rir. Há também Stacie (Alexis Knapp), uma ninfomaníaca que sempre acrescenta sexo nas performances insossas das Bellas; Lily (Hana Mae Lee) uma japonesa que fala coisas absurdas num tom de voz super baixo e ninguém nunca ouve; Chloe que é tão irritante quanto fofa; Cynthia Rose (Ester Dean), uma lésbica “enrustida” com problemas relacionados a jogos de azar; e a “líder” do grupo, a irritante e miss perfeição Aubrey (Anna Camp), que é contra qualquer tentativa de modernização por acreditar que o setlist que o The Barden Bellas canta desde o verão de 1980 é excelente e agrada à plateia. Aubrey não percebe (ou se nega a ver) que todos quase dormem enquanto seu grupo se encontra no palco e que a inventividade de seus rivais, os Treblemakers, faz todos se levantarem, dançarem e torcerem por eles.
Apostando num humor com o timing meio estranho, em números acapella que quase fazem corais do tipo parecerem legais e menos nerd, personagens bastante inusitadas e um roteiro pra lá de espertinho, A Escolha Perfeita consegue se desviar de quase todos os clichês de produções do tipo. Evitando momentos piegas e criando oportunidades de humor onde poderia haver aquelas tentativas falhas e vergonhosas de dar mais profundidade às personagens do que é cabível, os roteiristas Kay Cannon (que tem no currículo alguns episódios de 30 Rock! ) e Mike Rapkin (autor do livro em que A Escolha Perfeita foi baseado), entregam um trabalho debochado e que cumpre bem o propósito de fazer rir. Nos pontos que poderiam cair em fórmulas batidas, eles optam por inserir piadas e transformá-los em algo completamente WTF?, mas que, por alguma razão obscura, funciona muito bem.
Outro ponto bem bacana de A Escolha Perfeita é a maneira como as sequências musicais foram filmadas, especialmente a cena da batalha dos refrões. É tudo bem produzidinho, bem coreografado e quase chega a soar forçado – o que é exatamente o oposto do que um sing off deveria ser. Porém, isso não chega a acontecer devido à empolgação do elenco em tais cenas. Nós quase ficamos convencidos de que aquelas garotas estão mesmo disputando com um grupo rival. E, além disso, essa impressão de que as coisas são um pouco exageradas é o que dá ao filme uma cara mais de musical e menos de comédia com inclinações musicais, como o supramencionado Glee.
Aliás, por falar em Glee, antes de continuar escrevendo essa série acho que os roteiristas deviam dar uma olhada em A Escolha Perfeita. Com certeza eles poderiam aprender algo sobre montar um “coral” com seres que parecem ter saído de uma espécie de “Island Of Misfit Toys” sem ficar, o tempo todo, dando lições de moral e colocando-os como coitadinhos oprimidos. Em A Escolha Perfeita só quem se encontra dentro do padrão é Aubrey. Mas ela acaba percebendo que o talento das outras pode somar muito mais às Bellas do que a beleza de suas antecessoras. E o público é levado a perceber isso de um modo natural e gradativo, sem que nenhum grande discurso a respeito da diversidade e da importância da inclusão seja necessário.
Pitch Perfect, de Jason Moore, 2012. A Escolha Perfeita. Com: Anna Kendrick, Brittany Snow, Anna Camp, Rebel Wilson, Alexis Knapp, Ester Dean, Hana Mae Lee, Skylar Astin, Ben Platt.
A mocinha, que já não é tão moça, se vê frustrada com sua vida. De repente, não mais que de repente, ela é transportada a seu passado e tem a chance de mudar seu destino.
Tá, eu sei. A premissa não é das mais originais. Coppola mesmo fez seu Peggy Sue – Seu Passado a Espera (Peggy Sue, 1986) usando a mesma fórmula. Mas mesmo partindo de um ponto batido, Camille Outra Vez (Camille Redouble, 2012) tem seu charme. Muito charme. Isso acontece por dois motivos: a época para qual Camille é transportada (os anos 80!) e Noémie Lvovsky, interprete da personagem título – que não por acaso escreve, dirige e protagoniza.
Percorrendo caminhos que fogem do óbvio e alterando com destreza momentos de drama e comédia, Lvovsky cria um conto com contornos de fábula, se desdobra em funções e conduz sua Camille para um desfecho bonito e, dependendo do ponto de vista, melancólico. Durante o trajeto ela nos brinda com sequências memoráveis, como aquela em que dança com suas amigas Walking On Sunshine, de Katrina And The Waves; ou a parte em que decide dar para um mocinho que a encarou por alguns segundos (essa cena, inclusive, merece destaque pela graça e pela verossimilhança em retratar o sexo juvenil tal qual como ele é: desajeitado e cheio de vontade).
Adjacências técnicas como a cuidadosa direção de arte e figurinos (reparem só a quantidade de referências e detalhes no quarto de Camille) são apenas um bônus: a atriz, aqui, é a estrela. E ela brilha. Em uma performance enérgica Noémie se despe de vaidade e aparece de cara limpa, comunicando muito com olhares e gestos. Dando uma vitalidade atípica a seu eu do passado, a atriz mostra não ter medo do ridículo ao se vestir como uma adolescente da década de oitenta.
Com um texto que respeita as sutilezas e decisões estéticas interessantes (mesmo quando volta a seus 16 anos a aparência dela permanece a mesma dos dias atuais), Camille Outra Vez se revela como um entretenimento genuinamente leve e reflexivo, sem nunca pender para a pedância ou superficialidade.
Camille Redouble, de Noémie Lvovsky, 2012. Camille Outra Vez. Com: Noémie Lvovsky, Samir Guesmi, Judith Chemla e India Hair.
Aquela Doença com C (4ª Temporada)
4.6 126Eu não sei que tipo de idiota começa a assistir uma série que trata do último ano de vida de uma mulher com câncer no estágio 4 e ainda tem expectativas de que isso tenha um final feliz. Mas, o fato é que eu sou esse tipo de idiota. E quando o fim chegou, há duas segundas feiras, eu estava desolada. A série (e sua personagem central) podia estar chegando ao estágio final do luto, a aceitação, mas eu ainda estava em negação profunda e disposta a barganhar para que os Jamison/Tolkie passassem mais um tempo fazendo parte da minha rotina.
The Big C: Hereafter tem como tema central o modo como Cathy Jamison (a linda da Laura Linney) lida com o fato de que seus tumores não diminuíram com nenhum dos tratamentos alternativos a que ela se submeteu. Assim, a quimioterapia, tão temida e evitada por Cathy, passa a ser a sua única opção – e, por um tempo, ela abraça esse fato. O desgaste da personagem é tão visível que, desde a primeira cena de Hearafter, queremos entrar na série e abraça-la. Queremos dizer que, de alguma forma, vai ficar tudo bem. Mas nós sabemos que não vai ficar tudo bem. E a temporada final de The Big C parece ter sido pensada para demonstrar que, às vezes, é ok parar de lutar pela vida e aceitar que sem as condições mínimas para cuidar de si mesmo, o melhor é admitir a presença da morte e perder o medo de ir – o que Cathy consegue fazer muito bem.
Porém, a aceitação da personagem soa estranhíssima para nós. Não só por se tratar de uma pessoa que parece não possuir qualquer apego pela sua vida, mas pelo pouco medo que ela demonstra de interromper o seu tratamento – o que poderá fazer com que fique cega e perca parte dos seus movimentos – e de se internar num asilo – onde terá contato com mais doença, mais morte e, provavelmente, morrerá longe de todas as pessoas que ama. É compreensível, porém, que ela não queira marcar os lugares onde sua família vive pela morte. Pelos arranjos, bem tortos e quase engraçados, que ela tenta fazer para que Paul (Oliver Platt), Adam (Gabriel Basso), Sean (John Benjamin Hickey) e Andrea (Gabourney Sidibe) fiquem bem, mesmo que ela não possa mais cerca-los de cuidados, nota-se que, na verdade, ela não quer todas aquelas coisas. Toda aquela solidão naquele ambiente estranho e meio macabro. O que ela quer mesmo é tornar todo o processo o mais confortável e o menos doloroso o possível para todos os envolvidos. A aceitação de Cathy se dá mais no sentido de que ela não é a única sofrendo com o câncer e, por isso, é preciso fazer com que as outras pessoas tenham um fiozinho de esperança e perspectiva de que, para elas, tudo ainda pode ficar bem.
Laura Linney, que já vinha se mostrando versátil nas outras três temporadas do seriado, está tão convincente, com uma aparência tão debilitada, que temos a impressão de que ela também está doente. O restante do elenco, especialmente Oliver Platt e Gabriel Basso, se mostra afiado e consegue arrancar lágrimas e sorrisos na mesma medida, como na formatura surpresa de Adam e no desfile de Andrea. O tom cômico (afinal, mesmo com o tema mórbido não podemos esquecer que The Big C é uma comédia) da temporada fica todo por conta de John Benjamin Hickey e das superstições surreais de sua personagem. A cena em que ele mostra ao sobrinho o gato do asilo de Cathy, conhecido entre os internos como Deathany (porque, supostamente, ela sabe quando as pessoas estão morrendo e sobe na cama delas!), coberto de penduricalhos e com roupinhas cor de rosa, na tentativa de fazer do bicho algo mais alegre, é hilária e faz a gente se lembrar das primeiras temporadas.
Mesmo que eu ainda esteja em negação, não consigo deixar de achar que The Big C teve um fim digno. A proposta inicial foi seguida e muito bem executada por Darlene Hunt e ela, mais uma vez, soube tirar lágrimas, dar esperança e arrancar sorrisos do expectador. Especialmente com os 5 minutos finais, que guardam uma revelação surpreendente e que fazem a gente entender – e quase partilhar – a aceitação de Cathy.
The Big C: Hereafter
Criado por: Darlene Hunt
Onde assistir: na Showtime ou na HBO
Publicado originalmente em:
In the Flesh (1ª Temporada)
4.2 237Olhando assim, você até poderia dizer: ‘afffee, mais uma série de zumbis?’ e eu não tiraria sua razão. Não até assistir ao primeiro episódio de In The Flesh. Criado por Dominic Mitchell, a série fala do que acontece no pós-apocalipse zumbi. Não há ataques de zumbis famintos por carne humana exceto nos flashbacks do personagem principal, Kieren ‘Ren’ Walker (Luke Newberry), que, a propósito, é um zumbi em recuperação. Isto mesmo, no pós-apocalipse os mortos-vivos são tratados com uma droga especialmente desenvolvida para serem reintegrados à sociedade. Também recebem outro nome. Nada de chamá-los de mortos-vivos. Eles sofrem de uma condição chamada PDS: Partially Deceased Syndrome, ou Síndrome do Falecimento Parcial.
Para que a reintegração seja um pouco menos traumática, afinal esses mesmos zumbis saíram comendo pessoas e espalhando terror antes de irem pra rehab, carregam um kit-maquiagem com direito a lente de contato para deixá-los com uma aparência mais vivaz, e um panfleto sobre sua nova condição. As famílias também recebem apoio através de terapia em grupo. E do panfletinho.
Luke Newberry impressiona como o jovem ex-zumbi Ren pela delicadeza de sua atuação. Sua adaptação é penosa, não pela droga, mas por sua personalidade sensível. Ele sofre com culpas, medos, arrependimentos, ‘e ses’. Parte da culpa vem das lembranças do que fez quando zumbi. Mas grande parte de seus medos é da própria vida que o aguarda.
A cidade natal de Ren, a pequena e retrógrada Roarton, é tida como a mais intolerante quando o assunto é a reintegração daqueles com PDS. E não é só aí que a cidade se mostra intolerante. Roarton é a cidade que se orgulha por ter conseguido se defender sem a ajuda do governo, e por ter criado uma milícia contra zumbis. Pode-se dizer que Roarton é uma caricatura, um microuniverso da intolerância dos dias de hoje, do orgulho nocivo de suas raízes, de sua comunidade hipócrita, de seus ideais conservadores. Ren é a antítese. A alma sensível. O artista cheio de potencial que não resistiu à pressão. E que agora procura fazer sentido da ‘vida’ a sua volta.
Outra personagem que ganha nossa atenção é a rebelde ex-zumbi Amy (Emily Bevan), que se recusa a ser o que não é. Amy quer aproveitar sua segunda chance, não quer se esconder por trás da maquiagem, nem da lente de contato. Quer ser ela mesma. E paga o preço por isso. Soa familiar sobre vários outros assuntos, não?
In The Flesh não é apenas mais uma série de zumbis. É uma série sobre a vida, sobre a (in)tolerância, sobre aceitação – não só a dos outros, mas a própria.
Infelizmente, possui só três episódios. Merecia mais, talvez mais algumas temporadas, já que provou ter potencial para tanto. O último episódio deixou a impressão de que foi feito às pressas, corrido mesmo. Deixou também várias perguntas no ar, e um enredo que ainda poderá render muitos frutos, como O Profeta, um ex-zumbi que usa a rede para espalhar suas ideias rebeldes contra os ‘vivos’, e que acredita num segundo apocalipse onde eles serão os vencedores. Espero que a BBC dê continuação à série que nos deixou com um gosto de quero mais.
In The Flesh
Criado por: Dominic Mitchell
Onde assistir: na BBC ou em um computador perto de você.
Publicada originalmente em:
Revenge (2ª Temporada)
4.2 649Uma garotinha linda e doce leva uma vida para lá de confortável com o seu pai e, assim como todos os nova-iorquinos ricos, no verão eles migram para os Hamptons. Lá, entre brincadeiras na praia com um cachorrinho pra lá de fofo e o vizinho ainda mais gracinha, tudo na vida da pequena Amanda Clarke (durante essa fase, vivida por Emily Alyn Lind) é colorido, alegre e extremamente superprotegido. Até que seu pai, David (James Tupper) é acusado de terrorismo, preso e ela vê tudo o que acreditava ser reduzido a nada. Então, a doçura de Amanda começa a desaparecer. Ela endurece e decide que irá se vingar de todas as pessoas responsáveis pelo declínio de seu pai – cuja inocência, para ela, é inquestionável. No topo de sua lista, estão os antigos chefes de David, Victoria (Madeleine Stowe) e Conrad Greysson (Henry Czerny).
Entre estadias em lares adotivos, sucessivos golpes da vida (pessoas mentindo para ela apenas para conseguir alguma informação nova a respeito de seu pai e esse tipo de coisa), uma passagem pelo reformatório e a sua transformação em Emily Thorne (Emily VanCamp), a pequena Amanda Clarke tem bastante tempo para arquitetar um plano de vingança complexo, que devido à sua fragilidade, se assemelha bastante a um castelo de cartas. Pelo seu reencontro com outras pessoas de seu passado, como Jack (Nick Wechsler), o vizinho com quem brincava, e a verdadeira Emily Thorne (Margarita Levieva), sua companheira de quarto no reformatório, seu plano vai se tornando ainda mais passível de uma queda brusca. Porém, como se poderia esperar, nada desmorona. Emily consegue sempre o que quer por meio dos artifícios mais batidos e dos golpes mais baixos.
Tudo isso soa bastante como uma novela do Gilberto Braga, certo? E é uma novela do Gilberto Braga. Com orçamento ridiculamente alto, “filmada” nos Hamptons e com protagonistas que não são ricos, mas podre de ricos. Para os personagens de Revenge 10 mil dólares é o troco do pão. E é isso que faz a série ser uma delícia de assistir: ela não tem pretensões maiores do que divertir. Não quer ser uma história sobre vingança e redenção tão profunda quanto, sei lá, Kill Bill. Quer ser entretenimento bobo e rápido, que não exige muito de seu público e entrega sempre sequências e revelações surpreendentes, beirando o surreal.
Eu juro, juro que é tudo muito bom de assistir. Você sempre fica esperando para saber qual será o próximo movimento da protagonista, qual será a próxima carta a cair de seu castelo. A primeira temporada da série é desenvolvida em um ritmo tão frenético que é quase impossível não assistir em uns dois ou três dias. A segunda conta com alguns tropeços, algumas sequências risíveis demais até para a proposta de Revenge, mas compensa em um season finale eletrizante, que eleva o título do seriado a outro plano e faz com que a terceira temporada prometa ser ainda melhor do que as suas antecessoras. A vingança não é mais só de Emily/Amanda: agora todos os personagens possuem um motivo para se voltar contra os Greysson e será divertido ver como os ricaços se desviam, novamente, das ameaças que os cercam.
Assistir a Revenge é como assistir a uma novela das 9. Não digo isso somente pelo seu mote, extremamente parecido com Avenida Brasil, mas pelo texto, pelo desenvolvimento, pela falta de compromisso em ser profundo… Enfim. Uma série de razões que pode desagradar ao público mais cult exigente, mas que não chega a ser um problema para aqueles que não ligam de apenas sentar na frente da TV e se divertir. E, além disso, eu acho importante sempre assistir a algo sabendo o que aquilo tem para oferecer. Revenge não tem nada de extraordinário, mas vai te deixar com aquela cara de “não acredito” em diversos momentos. E, para mim, de vez em quando isso basta.
Revenge
Criada por: Mike Kelley
Onde assistir: ABC, Sony Brasil ou Globo
Publicado originalmente em:
Bates Motel (1ª Temporada)
4.3 1,4KInicialmente, eu torci o nariz para Bates Motel. A ideia de contar os anos iniciais de Norman Bates (vivido na série por Freddie Higmore) era interessante. Quando vi Psicose (Psycho, 1960) fiquei pensando sobre como ele teria desenvolvido o Transtorno Dissociativo de Identidade e porque seria a mãe a pessoa em quem ele se “transformava” quando a doença se manifestava. Em partes, era possível prever pelo próprio filme, mas eu gostaria de mais algumas perguntas respondidas. Portanto, não foi mesmo preciosismo o que me fez não gostar de cara da série. Foi a tentativa – meio mal feita – de modernização.
Hoje em dia a polícia possui meios mais eficientes de se caçar um serial killer ou de rastrear pessoas desaparecidas. Há tecnologia que facilita diversos aspectos de uma investigação criminal, de modo que conduzir Bates, de sua adolescência até parte de sua vida adulta, matando as mocinhas que passassem por seu motel, num contexto onde se pode ir mais à fundo em tais histórias, parecia meio irrealista. E nem foi só isso: embora os personagens tenham iPhones, laptops e outros dispositivos eletrônicos, eles estão inseridos num cenário que lembra outra época, a época onde a história original se passa. E suas roupas, especialmente as de Norma (Vera Farmiga), em pouco ou nada condizem com o ano de 2013. Então, acho que foi mais isso: a modernização pelas metades. E algumas situações forçadas do primeiro episódio.
Entre essas situações, é preciso destacar o assassinato de Keith Summers, um morador local e dono anterior do motel onde a família Bates se instala após se mudar para White Pine Bay. Para mim, ficou parecendo que desejavam demonstrar, desde o começo, a loucura de Norma. Afinal, o sujeito já estava contido, havia evidências de sua tentativa de estupro e invasão de propriedade privada e, no entanto, ela considera que ligar para a polícia será um erro. E aí, Keith faz uma provocação mínima, perto de tudo o que ele havia feito antes, e ela o esfaqueia repetidamente, descartando qualquer possibilidade de que a situação fosse resolvida por meios legais. A tentativa de desenhar a personalidade da mãe opressora e desequilibrada é válida, afinal, tem-se aí a raiz da doença de Norman, mas isso poderia ter sido realizado de forma mais gradual, como foi feito em outros momentos da temporada.
Mas, as coisas mudam bastante depois de alguns episódios. Em um determinado ponto, eu me vi interessadíssima no que estava acontecendo em Bates Motel. Lá pelo quarto episódio a história ganha fôlego por meio da desconstrução de White Pine Bay. De um lugar pacato, a cidade passa a se transformar em um local cuja principal fonte de renda é a venda de drogas e o tráfico de escravos sexuais. As tramas paralelas envolvendo as pessoas que trabalham na plantação de maconha de Gil, bem como aquelas envolvendo o namorado de Norma, o policial Shelby, assumem um papel importante e servem para tirar o foco de dramas adolescentes relacionados ao “garoto excluído apaixonado pela garota popular que dá mole para o seu irmão mais velho”. Essas coisas podem até ser importantes, porque é claro que elas tiveram certo impacto na personalidade de Norman, mas caso decidissem mostra-lo apenas nos corredores da escola e se relacionando com a mãe, Bates Motel se tornaria completamente entediante.
Caso você seja como eu e tenha começado a assistir a série pensando em quando ele começaria a manifestar sua doença, respire fundo e aguente firme porque isso só acontece na segunda metade da temporada. E é um tanto sutil. Começa apenas com a repetição de discursos da mãe desfavoráveis às garotas por quem ele se interessa e não ocorre mais do que em um momento específico. O momento de maior proximidade com o Norman Bates que conhecemos ocorre somente nos minutos finais. Eu devo admitir que devido a algumas pistas dadas ao longo do último episódio, se tornou bastante claro quem seria a primeira vítima do garoto, mas não impede que você pare uns minutos e faça cara de choque para a TV.
Eu não sei se colocaria Bates Motel como A grande estreia da midseason de 2013, como alguns críticos e o próprio público vêm fazendo. A série tem sim os seus méritos e mostra promessa, já que agora Norman começou desenvolver o Transtorno Dissociativo. Mas há alguns erros que precisam ser corrigidos para a segunda temporada. E como algumas das histórias paralelas já foram enterradas, resta saber como serão conduzidas as novas, entre as quais estará a investigação do assassinato da primeira vítima da Norman. E o meu palpite é a pilha de corpos na sacada dos Bates vai aumentar consideravelmente nessa segunda temporada…
Criada por: Tucker Gates
Onde assistir: em julho a série começará a ser exibida pela Universal
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Colegas
3.4 606“As pessoas são como tapete. De vez em quando, precisam de um chacoalhão”.
A frase dita bem no começo do filme por um dos protagonistas de Colegas (Colegas, 2012) – o mais recente filme do diretor Marcelo Galvão (de Belini e o Demônio) e agraciado com o prêmio de melhor filme na Mostra de SP de Cinema e com o Kikito de Ouro do Festival de Cinema de Gramado – funciona como a grande moral do filme.
De um jeito leve e divertido (que em determinados momentos cai até no pastelão), mas sem ser em nenhum momento depreciativo, Marcelo trabalha temas como a quebra de preconceitos, a inclusão e o poder da mídia sensacionalista; em um roadmovie que conta a história de Stalone, Aninha e Márcio, três adolescentes que fogem da clínica em que foram internados por seus pais em busca da realização de seus sonhos (Stalone sonha em ver o mar, Aninha em se casar com um músico e Márcio em voar).
Viciado em filmes, é de Stalone a ideia da fuga da clínica. Os três jovens roubam o carro do zelador do prédio (vivido pelo sempre competente Lima Duarte e que faz as vezes de narrador da história) e para sobreviver durante a viagem, roubam postos de gasolina, supermercados e lanchonetes. A partir daí, a mídia cria o mito da gangue de adolescentes com Síndrome de Down que são altamente perigosos e que causam o terror e a destruição por onde passam. Ao longo do filme, os três se metem em muitas confusões, mas acabam conseguindo (mesmo que acidentalmente) escapar da atrapalhada polícia e indo parar em outro país.
Se Marcelo inovou ao realizar um longa onde os protagonistas têm Síndrome de Down, falhou, entretanto, na construção dos seus diálogos e no desenvolvimento do roteiro. Falta ao filme ritmo e por muitas vezes as ações acabam se tornando repetitivas e pouco criativas. As falas dos personagens dão a impressão de ser um grande arranjado de frases prontas, partindo muitas vezes pra clichês.
Mas as funções sociais e humanas de Colegas ainda são o mais importante e nesse quesito, o roteiro trabalha muito bem. Os protagonistas são felizes e capazes, que sonham, se apaixonam, se emocionam e se aventuram por si, sem precisar de auxílios de outras pessoas. Marcelo colabora assim, para que seja colocada uma pedra definitiva na ideia de que o portador de Síndrome de Down é pior do que uma pessoa que não possui a síndrome.
Mesmo com algumas falhas, Colegas cumpre muito bem a função de inclusão social e de quebra de preconceitos. Duvido que ao terminar o filme, você não esteja com cisco nos olhos e que sua visão não mude em relação a várias coisas da vida. Marcelo Galvão nos faz de tapete. E nos chacoalha muito bem.
Colegas, de Marcelo Galvão, 2012.
Colegas. Com: Ariel Goldenberg, Rita Pokk, Breno Viola, Rui Unas, Deto Montenegro, Juliana Didone, Leonardo Miggiorin e Lima Duarte.
Publicado originalmente em:
Ginger & Rosa
3.4 430 Assista AgoraGinger (Elle Fanning) e Rosa (Alice Englert) são amigas desde a infância. Elas nasceram em 1945, o último ano da Segunda Guerra Mundial. Sob o signo de uma constante ameaça nuclear. Desse modo, mesmo que as primeiras sequências em que vemos as duas sejam permeadas por euforia adolescente, seu universo é desenhado por Sally Potter, a diretora do longa, com tons de marrom e cinza, marcado por ambientações que nos transmitem a impressão de umidade e frio. Por meio da criação de tais ambientes, o espectador ganha consciência do contexto de medo em que vivem as personagens título.
Apesar de inseridas nesse espaço, as garotas se comportam como duas adolescentes comuns, que estão descobrindo o seu lugar no mundo e sua própria identidade. Por isso, procuram exercer diversas atividades consideradas adultas. Beijam-se como modo de praticar “para quando for necessário”, fumam seus primeiros cigarros juntas, vão a reuniões de grupos anti-guerra e, para o horror do pai de Ginger, Roland (Alessandro Nivola), visitam uma igreja.
Ginger, pelas influências dos pais e dos amigos deles, é mais voltada para atividades intelectuais. Escreve poesia, ouve jazz e cita Simone de Beauvoir para contra argumentar as afirmações lidas por Rosa em uma revista adolescente. Rosa, por sua vez, dá pouca importância para essas coisas, mas tem mais consciência de sua própria sexualidade e do impacto que possui sobre homens mais velhos. Por mais que pareçam opostas, as meninas se assemelham em um ponto crucial: as duas se encontram à deriva, esquecidas pelas figuras adultas de suas vidas. Dessa forma, o ambiente permissivo em que vivem, acaba funcionando como algo prejudicial, que levará as duas ao limite.
Devido à liberdade que lhes é concedida, durante toda a projeção do longa somos levados a acreditar que elas possuem uma maturidade e um desenvolvimento psicológico que nem mesmo os adultos presentes em sua vida possuem. E é somente quando se encontram completamente fragilizadas que Ginger e Rosa vão deixar transparecer que são apenas adolescentes. Graças a proximidade e ausência de julgamentos com que a câmera filma Elle Fanning e Alice Englert somos capazes de perceber a sua inocência e o quanto ainda são meninas, por mais que se esforcem para parecer mulheres.
Por meio de uma história marcada por altos e baixos, onde o que se passa no interior das personagens tem tanta importância quanto o que ocorre no mundo exterior, Ginger e Rosa nos mostra que amadurecimento não é algo que, simplesmente, vem com o tempo e a idade. É algo que se constrói todos os dias, seja por meio de decepções ou mesmo novas experiências. E isso nunca é algo fácil de se atingir.
Ginger & Rose, Sally Potter, 2013.
Ginger e Rosa. Com Elle Fanning, Alice Englert, Alessandro Nivola, Annette Benning, Oliver Platt, Christina Hendricks, Timothy Spall e Jodhi May.
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Dois Dias em Nova York
2.9 108Quando Julie Delpy lançou 2 Dias em Paris (2 Days In Paris, 2007) – filme que protagonizou, escreveu, musicou e dirigiu – muita gente apontou semelhanças com os trabalhos que a atriz desenvolvia com Richard Linklater, diretor de Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) e Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004). Embora a comparação fosse injusta (as personagens de Delpy tinham alma, originalidade e não eram cópias das figuras de Linklater), ela não era totalmente descabida: tanto nos filmes do diretor quanto no filme de Delpy o interesse do espectador era conduzido por diálogos ora engraçados, ora tristes; a câmera ficava boa parte do tempo na mão; os protagonistas sempre pareciam ir a um lugar; havia a questão das brincadeiras relacionadas as diferenças culturais de seus protagonistas; e, claro, como o próprio título sugeria, havia uma data certa para que os eventos terminassem. Se os ecos de Linklater fizeram com que Julie criasse um filme agridoce que dispunha de um final muito mais significativo do que todos os 100 minutos que o antecediam, nessa espécie de continuação o alvo de Julie é outro.
Com piadas repletas de ironia e sarcasmo, Delpy emula a persona de Woody Allen e cria sua Marion com simpatia e carisma. As semelhanças com Woody, aliás, transcendem os diálogos e aparecem nos óculos de aro grosso e também em algumas características psicológicas.
Interpretando a mesma Marion de seis anos atrás, Julie compreende que não há necessidade de reprisar o papel do outro longa. Em vez disso, ela constrói uma personagem mais leve, menos histérica, tão neurótica quanto antes e, de certa forma satisfeita com a vida que leva (e isso pode ser visto pelo modo que ela se move e também pela postura que adota em situações específicas). A impressão que fica é que Marion, de fato, viveu e aprendeu durante os anos de hiato que separam um filme de outro. Como se nesse ínterim as mudanças que sabemos que aconteceram em sua vida (a separação de Jack, a morte da mãe, o casamento com Mingus, a maternidade) tivessem a moldado. Dito isso, é notável a capacidade da moça (não só como atriz mas também como autora) de delimitar com destreza o perfil de sua personagem (percebam como logo na introdução ela resolve em poucos minutos toda e qualquer questão que tenha ficado em aberto no longa anterior, respondendo com leveza as perguntas que o representante mais afoito do público faria).
Tendo como cenário a cidade de Nova York, o enredo de 2 Dias em Nova York se desenvolve quando Marion e seu esposo, Mingus (Chris Rock), recebem em sua casa seu pai (Albert Delpy, pai da atriz da vida real), sua irmã (Alexia Landeau) e o atual namorado dela (Alexandre Nahon) – que não por acaso é ex-namorado de Marion -. A partir desse momento, confusões rocambolescas relacionadas ao choque cultura (algo que já havia sido retratado em 2 Dias em Paris), ditam o tom do filme e funcionam como motor para que a trama se desenvolva a caminho de uma inevitável catarse.
O bacana é perceber que no repertório de referências absorvidas por Julie há espaço não só para Allen como também para Altman (notem que todos os diálogos são proferidos quase que ao mesmo tempo, acentuando ainda mais a sensação de bagunça e “realidade” – mesmo nas situações mais absurdas), e que o humor que ela realiza transcende a questão textual (a sequência final, por exemplo, mostra que há boas ideias em relação ao humor físico). No fim das contas, até mesmo os arcos que pareceram acrescidos apenas para causar um maior estranhamento (como o fato de Marion vender de papel passado sua alma em uma exposição de arte) passam a fazer sentido, arrancando não só boas risadas como também sorrisos de ternura, revelando que mais do ecos de outros cineastas há algo genuíno (e de certa forma ingênuo) no material que apresenta.
2 Days in New York, de Julie Delpy, 2012.
2 Dias em Nova York. Com: Julie Delpy, Chris Rock, Albert Delpy, Vincent Gallo, Alexia Landeau, Alexandre Nahon, Kate Burton, Dylan Baker e Daniel Brühl.
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A Morte do Demônio
3.2 3,9K Assista AgoraRemakes podem ter diversas motivações para serem feitos: quando um filme europeu ou latino-americano faz um sucesso inesperado e Hollywood aproveita para vender a ideia ao público americano que não vê filmes com legendas, porque um diretor quer revisitar sua própria obra ou porque parece rentável atualizar um clássico de outras épocas e vende-lo para novas gerações. A Morte do Demônio (Evil Dead, 2013) é sem dúvida o último caso: o filme que lançou Sam Raimi não foi exatamente refeito, mas relido, adaptado ao paladar de uma geração acostumada a zumbis realistas e computação gráfica.
A história sofreu algumas alterações: agora o enredo se centra em Mia, uma jovem que decide largar as drogas e para isso convoca seu irmão e melhores amigos para se internar em uma cabana enquanto ela passa pela abstinência. A tentativa de tornar os personagens mais profundos, mais dramáticos, faz com que o longa comece clichê, mas é um acerto de Fede Alvarez (o estreante que dirige o filme, produzido pelo próprio Raimi) manter essa história apenas como pano de fundo e usa-la quando convém para amarrar a trama dos demônios. O que se segue é a mesma coisa do filme original: os jovens encontram um livro encapado em pele no porão, sem querer liberam os demônios que habitam a floresta e durante 40 minutos subsequentes eles lutam por suas vidas.
A Morte do Demônio sem dúvidas começa fraco: a explicação desnecessária para os demônios na floresta, a menina viciada, o drama entre ela e o irmão, as atuações ruins… Tudo isso soa como Stigmata, Na Companhia do Medo, ou qualquer filme de terror supostamente profundo e sem graça. Mas quando o sangue começa a jorrar na tela, Alvarez se encontra.
Se havia algo de genuinamente perturbador na artificialidade do primeiro Evil Dead, aqui, ao menos em um primeiro momento, o terror vem por meio do realismo. As feridas e o sangue são realistas suficiente para que o espectador se incomode, a dor dos personagens causa uma reação real e por vezes a sala toda interage em expressões de nojo e aflição. Funciona, incomoda, mas falta charme, ironia e tudo aquilo que tornou tão emblemático o original.
Mas a violência escala rapidamente e o que era realista vai se tornando absurdo. Os personagens decepam os próprios membros sem qualquer apego e em jatos de sangue dignos de Tarantino, o filme assume definitivamente sua veia trash e demonstra porque é um remake que funciona.
A Morte do Demônio não é fiel ao original, mas o tem sempre em mente: há pequenas referências divertidas, como um moletom da Michigan University, há uma personagem que desenha, e mesmo a forma do colar que o irmão de Mia dá de presente a ela. E se por um lado existem alterações de roteiro, por outro Alvarez chega até a repetir planos de Raimi e toda sua decupagem é uma homenagem ao cineasta. A consciência que o diretor tem de seu trabalho e do objetivo de seu filme também ajudam.
Alvarez sabe que precisa vender, sabe que o que está fazendo é tentar atrair uma audiência fascinada com The Walking Dead para os filmes de terror e quem sabe dar novo fôlego comercial ao gênero e ironiza suas próprias saídas fáceis. Ele dá uma trilha sonora brega e planos com cara de anos 80 a cena mais emocionalmente dramática do filme, faz sua protagonista arrancar o braço de baixo de um carro como se fosse borracha e termina tudo com uma chuva (literalmente) de sangue. É nojento, irreal e sim, ruim, mas é exatamente isso que se espera de A Morte do Demônio e funciona.
No fim, o remake não é inventivo, ou original como o filme de Sam Raimi, mas não o perde de vista, honra sua memória e assume com dignidade o trabalho de atualiza-lo e devolve-lo a vida. Cumpre sua função de incomodar, entrega a quantidade de sangue esperada e, mesmo sem a ironia fina do primeiro, diverte.
Evil Dead, de Fede Alvarez, 2013.
A Morte do Demônio. Com: Jane Levy, Shiloh Fernandez, Lou Taylor Pucci, Jessica Lucas e Elizabeth Blackmore.
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O Abismo Prateado
3.3 214 Assista Agora“Quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem. Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci. Mas depois, como de costume, obedeci.“
Parece meio absurda a ideia de criar um filme inteiro tendo como base alguns versos de uma música de poucos minutos. Não, não parece absurdo. Parece desnecessário. E impraticável. Como é possível prolongar um momento que dura segundos em sequências de minutos inteiros? Em O Abismo Prateado (O Abismo Prateado, 2013), novo filme de Karim Aïnouz, funciona como resposta.
Sem se preocupar em estabelecer um enredo propriamente dito, Aïnouz foca a sua atenção em uma única personagem. Com a câmera colada no rosto de sua atriz principal durante quase toda a projeção, o diretor traduz em quadros (um mais bonito do que o outro) suas angústias mais íntimas. Não há amarras ou limites. Tudo parece solto, alinhavado. Como se estivéssemos diante de uma experiência totalmente orgânica. O desespero não só soa real como também parece tangível, palpável.
Por meio de enquadramentos fechados, de uma montagem que corta frames quando julga necessário, de uma trilha musical que é quebrada por silêncios e de uma câmera que emula toda a subjetividade da insanidade, O Abismo Prateado consegue fazer com que criemos um laço verdadeiro com Violeta (Alessandra Negrini).
Quase sem diálogos, o roteiro escrito por Beatriz Bracher, com base na música Olhos nos Olhos, de Chico Buarque, acompanha o cotidiano de uma dentista que vê seu mundo desabar quando recebe uma ligação de seu esposo dizendo que está a abandonando. Agindo por impulso, ela deixa seu consultório, vai atrás de seu marido e na busca por um sentido experimenta sensações de tédio, vazio, preenchimento, compaixão e ternura.
Se o filme funciona em seu silêncio, o mérito não é só de Karim, mas também de Alessandra Negrini. Defendendo com os dentes sua Violeta, a atriz consegue comunicar a confusão mental e emocional de sua personagem sem precisar de momentos catárticos. A sutileza da composição pode ser vista na sequência em que ela pega um táxi e a taxista tenta conversar acerca de sua vida pessoal. A maneira com que ela reage, estando distante e respondendo de maneira monossilábica (demonstrando resquícios de melancolia e confusão e ainda assim parecendo doce) ilustra bem a meticulosidade e complexidade do trabalho.
… E a tal música que inspirou a obra finalmente dá as caras no final do longa. De duas maneiras inesperadas. E o final, em si, coerente e cheio de significado, funciona como alento e permite que nós, espectadores, voltemos a respirar com facilidade depois de 85 minutos de tensão. E mostra, de uma vez por todas, que é possível sim adaptar alguns versos em filme. Neste caso, em um ótimo filme.
O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz, 2013.
O Abismo Prateado. Com: Alessandra Negrini, Thiago Martins e Otto Jr.
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Ferrugem e Osso
3.9 821 Assista AgoraAs personagens principais de Ferrugem e Osso (De Rouille et D’Os, 2012) são fortes. Cada qual a sua maneira, elas demonstram sua força através de seus corpos, suas palavras, suas ações e, principalmente, suas reações.
Quando colocadas em frente a problemas reais, as duas titubeiam. Demonstram medo. Insegurança. E erram. Tais quais pessoas de verdade. Talvez esse seja o grande mérito do filme: durante todo o tempo, Jacques Audiard, o diretor, não se esforça para que gostemos de seus protagonistas. E parece não fazer esforços para que os odiemos. É tudo natural.
Lidando com dois tipos quebrados – tanto física quanto emocionalmente -, Audiard narra a evolução de seres diferentes que se encontram em momentos nada felizes de suas vidas. Stéphanie, interpretada por Martion Cottilard, é inteligente, independente e incrivelmente bonita. Tudo parece funcionar em sua vida, até que durante um espetáculo em um parque aquático uma baleia a ataca e, por consequência, ela perde suas pernas. Alain, vivido por Matthias Schoenaerts, compõe o outro polo do longa de um jeito impulsivo, violento e bruto. Sua personagem é uma sobrevivente. Pai solteiro, não se relaciona com ninguém intimamente. Sexo é sexo, briga é briga e a vida, como um todo, é simples – e brutal.
O choque de cultura e as situações limites que cada um passa entre os 120 minutos de filme nos fazem crer que estamos assistindo, como intrusos, dois personagens que não buscam redenção – apenas sobrevivem sem a menor perspectiva de felicidade (por esse motivo, cenas como a de que Alain ganha uma luta ganha um significado todo especial, visto que tanto ele quanto Stéphanie experimentam uma sensação de felicidade genuína que, não por acaso, foi alcançada a custo de sangue e dor).
A paleta de cores gelada, a ausência de trilha musical durante quase todo o tempo, e a escassez das palavras, tornam Ferrugem e Osso uma experiência dolorosa. Funcionando muito bem graças a montagem (repare como o uso inteligente da trilha sonora e os cortes da imagem na sequência em que Stéphanie sofre o acidente causa tensão) e a atuação de Cotillard e Matthias Schoenaerts (ambos indicados em Cannes ano passado nos prêmios de atuação), o filme exige do espectador bastante atenção para que suas sutilezas sejam notadas e apreciadas. Mesmo com momentos catárticos, como a sequência em que a personagem de Marion descobre que não tem mais suas pernas, alguns dos instantes mais sutis são tão fortes e impactantes quanto. A cena em que Alain sugere que poderia transar com Stéphanie, por exemplo, revela muito sobre o caráter de ambos.
Essa sutileza que permeia todo o relacionamento dos dois é quebrada abruptamente no terceiro ato do longa. Se até então a condução de Ferrugem e Osso dava sinais que não haveria redenção para Stéphanie e Alain, no final, todo o trabalho de composição é quase que jogado fora em decorrência a um fato que soa artificial e parece ter como único propósito oferecer um tipo de felicidade pré-fabricada aos espectadores e as personagens.
O problema só não chega a ser maior porque os atores realmente acreditam no que fazem, e também porque o texto do diretor, escrito em parceria com Thomas Bidegain e Craig Davidson, guarda para os últimos minutos o trecho falado mais bonito de todo o longa (que justifica, entre outras coisas, o título do filme). As palavras são tão avassaladoras que permanecemos atônicos mesmo após o fim – que tal qual o destino de suas personagens, soa incompleto, melancólico, agridoce e extremamente possível. E forte. Bem forte.
De Rouille et D’Os, de Jacques Audiard, 2012.
Ferrugem e Osso. Com: Marion Cotillard, Matthias Schoenaerts, Armand Verdure, Céline Sallette, Bouli Lanners e Corinne Masiero
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Cores
2.8 52Cores (Cores, 2012) é um filme cínico. Dotado de um humor que não provoca riso, mas sorrisos amargos, o longa é construído de contrastes – o que fica óbvio logo de cara por causa de seu título (todo o filme é em branco e preto), suas personagens (todos são jovens, cheios de sonhos, vivem numa cidade que não para e mesmo assim são absorvidos pelo tédio) e situações quase absurdas, originadas por pensamentos banais.
As observações feitas por seus protagonistas soam cruéis e honestas e, às vezes, pretensiosas. Em linhas gerais, pode-se dizer que Cores fala sobre três amigos que em meio a uma rotina massacrante passam o tempo conversando, se preocupando com contas, bebendo, se drogando vez ou outra e, eventualmente, transando. Essa inquietude, prolixidade e falta de ação representa muito bem o estado de espírito das pessoas que vemos em cena e também serve para adjetivar o próprio filme. Sem uma trama definida, a câmera de Francisco Garcia, diretor e co-roteirista do projeto, percorre corpos e rostos criando quadros bonitos e explorando espaços, parecendo buscar, tal qual as personagens que mostra, uma cura para o próprio tédio.
Tédio este que é demonstrado lindamente na sequência em que jovens bebendo e se divertindo parecem tristes, na parte em que os amigos decidem ir para praia e o carro quebra e também num momento chave em que uma metáfora de purificação ganha vida em imagens (maravilhosamente fotografadas).
Se as intenções são boas e as ideias também, o mesmo não se pode dizer da execução. Enfraquecido com diálogos pobres (a parte em que a mocinha encontra um affair chega a ser constrangedora por conter frases feitas e lugares comuns) e atuações um tanto quanto artificiais (por parte de Pedro di Pietro e Guilherme Leme), Cores exige do espectador uma certa condescendência para ser apreciado e, em contrapartida, parece não oferecer nada em troca.
É como se o vazio e a vulgaridade (normalidade?) opaca de seus protagonistas contaminasse todo o longa. E isso não é de todo mal, uma vez que o projeto ganha pela honestidade: enquanto versa sobre o tédio e sobre o nada ele, ao final de tudo, entrega exatamente isso.
Cores, de Francisco Garcia, 2012.
Cores. Com: Acauã Sol, Simone Iliescu, Pedro di Pietro, Maria Célia Camargo, Guilherme Leme, Graça de Andrade e Tonico Pereira.
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Amor Profundo
3.2 180 Assista AgoraNos primeiros minutos de Amor Profundo (The Deep Blue Sea, 2011), comecei a pensar a respeito das semelhanças entre Hester, personagem defendida brilhantemente por Rachel Weisz, e outras duas protagonistas de histórias de amor com cunho trágico, Emma Bovary e Anna Karenina. Pensem comigo: Hester é uma vítima de suas próprias paixões e decisões. Não importa o quanto seus amores sejam destrutivos, ela insiste em vivê-los porque não consegue conceber a sua vida sem tais sentimentos. Frequentemente associa o amor e a morte. Perceberam? Pois é. Hester parece ter saído diretamente de um romance realista do século XIX. Você pode estar pensando que isso soa deslocado, mas a verdade é que tais histórias são atemporais: sempre vai existir uma mocinha trágica disposta a se jogar na linha do trem por um sujeito charmoso e covarde.
Hester é casada com um juiz, William Coyller (Simon Russel Beale), pelo menos duas décadas mais velho do que ela. Nas sequências em que a vemos acompanhada do marido, percebemos que ela não se encaixa no universo do qual ele faz parte – o que é evidenciado especialmente pela visita que fazem à mãe aristocrática e arcaica (Ann Mitchell) de William -, mas que nutre por ele alguma espécie de ternura. Ele, por sua vez, a ama. O problema entre os dois não é a idade, a mãe ou mesmo a sensação de não pertencimento: Hes procura por um amor que a faça perder o controle e a tranquilidade oferecida por Bill nunca será capaz de preencher essa necessidade.
E é aí que entra o outro vértice desse triângulo, o ex-militar Freddie Page (Tom Hiddleston). Freddie sabe exatamente o que dizer, quando dizer e em que tom dizê-lo. É irresistivelmente charmoso e seu mundo é excitante, marcado por noites de bebedeira, música e dança. Enfim, tudo o que é oferecido por ele está bem distante da polidez e da apatia a que Hester estava acostumada. Porém, como se poderia esperar, as coisas com Freddie não são estáveis. Há brigas demais, negligência demais. Tudo parece ser regido por impulsos e não há espaço para considerar como as ações praticadas afetam o outro. Ele lhe oferece a intensidade que ela buscava, mas isso vem com um preço que, ao expectador, parece alto demais.
O cenário do pós-guerra em Londres serve para reforçar a bagunça psicológica de Hester. O caos em que se encontra é encenado por Terrence Davies como se fosse uma ópera, de modo que o longa é iniciado pelo Concerto para Violino e Orquestra Opus 14, de Samuel Barber. Durante seus sete primeiros minutos não se tem uma fala. Vê-se somente algumas lembranças de Hes, filmadas de um jeito muito etéreo e luxuoso, que reforça a ideia de que a personagem paira entre a vida e a morte. Posteriormente, quando ela é “acordada” e a ação do filme começa a se desenvolver, a postura dos atores em cena e o jeito com que os diálogos são construídos nos remetem ao teatro e nos fazem lembrar daquilo que serviu como matéria prima para a confecção do roteiro de Amor Profundo: uma peça de mesmo nome, escrita em 1952, por Terrence Rattingan.
Amor Profundo é uma das coisas mais arrebatadoras que assisti em um tempo considerável. Pelas cores utilizadas, pelos planos, pelos diálogos certeiros… Mas, principalmente, por que é orgânico e humano.
The Deep Blue Sea, de Terrence Davies, 2011.
Amor Profundo. Com: Rachel Weisz, Tom Hiddleston, Simon Russel Beale, Ann Mitchell.
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Homem de Ferro 3
3.5 3,4K Assista AgoraEm 2008, a Marvel decidiu investir em um filme do Homem de Ferro, personagem um tanto desconhecido de seu universo e visto com ressalvas mesmo por aqueles envolvidos com HQs. O carisma de Robert Downey Jr. e o foco no humor ácido do personagem fizeram do filme um sucesso inesperado e hoje Tony Stark é a maior estrela do estúdio.
Homem de Ferro 3 vem na esteira da bilheteria absurda de Os Vingadores e o filme parece exatamente isso: a Marvel ganhando dinheiro certo e apostando no “em time que está ganhando…”
A trama começa com um Tony Stark em crise: assombrado pelos acontecimentos de Os Vingadores e tendo problemas para se adaptar ao posto de homem maduro exigido por Pepper Potts agora que ela passou de secretária-babá para namorada. Stark será tirado de sua inércia quando um ataque terrorista fere gravemente seu amigo e ex-segurança e a investigação o leva ao perigoso terrorista Mandarim. No entanto, ele precisa fazer isso sem sua conhecida armadura, que foi danificada em uma explosão organizada pelo vilão.
Filmes de super-herói são em primeiro lugar filmes de ação e, sendo assim, viradas complicadas de roteiro e mergulhos profundos na psicologia dos personagens podem ser dispensados. Foi o que fez Os Vingadores com bastante eficiência. Por outro lado, era um filme de conjunto que tratava de uma “mitologia” extensa e que tinha na química entre seus personagens o elemento que amarrava as explosões e ets. Homem de Ferro é um filme de um homem só e esse homem, a exemplo da maior parte dos super-heróis, é uma figura controversa.
Mas Tony Stark não é controverso como o Batman, ou mesmo a Viúva Negra, seu personagem não tem grandes traumas do passado ou demônios internos, ao contrário, a dificuldade da personalidade de Stark está exatamente em sua imensa frivolidade e o novo filme parece esquecer disso. Não faz muito sentido que Stark seja assombrado pelo que aconteceu em Nova Iorque, menos ainda porque seu personagem parecia estar quase se divertindo no filme anterior. Além disso, o conflito homem real X super herói ou a trama em que um herói perde seus poderes (no caso, a armadura) e deve encontrar sua força dentro do homem comum é o clichê do clichê dos filmes de super-herói.
Homem de Ferro 3 quer dar ao personagem uma profundidade que ele não possui e acaba perdendo o que ele tem de característico e interessante. Ao tentar tornar Tony Stark tridimensional tudo que a Marvel consegue é deixa-lo plano e sem a mesma graça dos filmes anteriores.
Embora o carisma de Downey Jr. continue funcionando, as melhores piadas vem de um garotinho de 10 anos. Apesar disso as sequências de ação são eficientes e a virada de roteiro do Mandarim é quase genial (e um tapa na cara dos que duvidaram da possibilidade de adaptar o personagem).
Outro problema, que para maior parte do público talvez não chegue a ser um problema, é que a Marvel desperdiça de novo a chance de ter uma personagem feminina forte. Pepper Potts é inteligente, eficiente e capaz de comandar uma empresa gigantesca, mas está constantemente no lugar de donzela em perigo. Exceto por uma sequência de talvez 30 segundos, tudo que Potts faz é cobrar Stark, ser incapaz de vê-lo pelo que é, achar a armadura uma perda de tempo (vamos lembrar que o Homem de Ferro foi um dos maiores responsáveis pela vitória em Os Vingadores) e precisar ser salva por ele. Talvez esse tipo de enfoque seja parte do motivo pelo qual eu era a única mulher não acompanhando o namorado em uma sessão lotada de sábado à noite.
No fim, Homem de Ferro 3 diverte, mas não com o frescor que costumava apresentar, nem com a despretensão de Os Vingadores. É um filme morno, menos ruim do que Thor, mas bem aquém das possibilidades do personagem.
Iron Man 3, de Shane Black, 2013.
Homem de Ferro 3. Com: Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow, Guy Pearce, Don Cheadle, Ben Kingsley.
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Doméstica
3.8 124“Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé, que vai defender a classe operária, salvar a classe operária e cantar o que é bom para a classe operária. Nenhum operário foi consultado, não há nenhum operário no palco, talvez nem mesmo na plateia, mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários. Os operários que se calem. Que procurem seu lugar, com sua ignorância, porque Tom Zé e seus amigos estão falando do dia que virá e na felicidade dos operários.”
Trecho da música Classe Operária, de Tom Zé.
Doméstica (Doméstica, 2013) se vende como um filme sobre aquelas que sempre foram coadjuvantes: as empregadas mensalistas. Mas a verdade é que o documentário de Gabriel Mascaro é sobre outra coisa. Ou melhor, outras coisas.
Dando a missão de retratar a vida de suas empregadas, Gabriel entrega a sete jovens de diferentes classes sociais, regiões e hábitos uma câmera. Não há regra pré-estabelecida. Basta filmar o que eles acharem interessante. Parece banal, não é?
Mas não, não é. Criando antagonistas e denunciando a hipocrisia latente desses que são verdadeiros “sinhozinhos”, Gabriel monta os recortes de olhares com uma coerência assustadora. A cada filmete a intenção do diretor fica mais clara e percebemos que por mais diferente que sejam a vida das empregadas retratadas todas as histórias possuem pontos em comum.
Desse modo, pode-se dizer que o traço mais marcante de Doméstica é a vaidade explícita de alguns patrões. Cada um, cada qual a sua maneira, demonstra diferentes níveis de interesse por suas empregadas e parecem mais preocupados em demonstrar que são bondosos para com eles ao dizer frases como “ela é quase da família” ou “ele come da minha comida“, fazendo com que a doméstica, que deveria ser o foco, acabe como um mero veículo de exibição. Então Gabriel revela que o filme não é sobre domésticas, mas sobre seus chefes e as relações deles para com elas.
Por sua vez, as empregadas retratadas apresentam traços que variam entre ingenuidade, submissão e ressentimento. Percebemos por olhares e por respostas ora espontâneas, ora pensadas; diferentes tipos de nuances e sentimentos.
O último segmento, em especial, sintetiza muito bem as intenções dos filmes. O garoto que o registra parece alheio a vida da pessoa que o serve, e, quando ele toca uma música de Bob Dylan e olha o vazio, vira vilão da história. Sua mãe, que depõe a respeito da mulher que é apenas quatro anos mais velha que ela e que brincava junto com ela na infância, demonstra resquícios de culpa e condescendência. A mensalista, por outro lado, revela com suas pausas e silêncios suas verdadeiras emoções. É como se ela não pudesse dizer que não é feliz porque sabe das consequências que suas palavras terão. Então, nesse exercício sutil de observação, as coisas continuam como estão.
E continuam mesmo. Ao final do filme percebemos que algumas daquelas mulheres eram filhas de outras mulheres com a mesma profissão – mostrando que as raízes escravagistas se fazem presentes, mesmo que veladas. Percebemos também que há quem deixe os filhos com uma empregada para trabalhar como empregada em outro lugar. Notamos e sentimos o abandono de um certo personagem. E percebemos, principalmente, que há uma infinidade de sentimentos por todo o lado.
Domésticas, de Gabriel Mascaros, 2013.
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Elena
4.2 1,3K Assista AgoraPetra,
Na última sexta-feira assisti ao filme que você fez a respeito de sua irmã, Elena. Fiquei muito impressionado. Ele era muito bonito.
A combinação de sua voz, tão doce e baixa, com aquelas imagens, recortes de registros e música, fizeram com que eu me sentisse íntimo e próximo de você e de Elena. Veja só que bobagem! Eu, que nunca as conheci, estava ali, numa sala escura, não só interessado como também absorto em suas vidas. Era como se estivesse lendo (vendo?) por cima dos ombros uma carta endereçada a outra pessoa. Como se o real destinatário soubesse de minha indiscrição, mas não se importasse.
De certa maneira eu fiz mesmo isso, não fiz? Na verdade, você que fez quando mostrou as cartas em áudio que sua irmã tinha feito durante o tempo em que esteve em Nova York querendo ser atriz de cinema. Achei bonito demais da conta o sonho dela. E mais ainda a maneira com que ela encontrou de descrever isso. O que você escolheu filmar (e o jeito que você fez isso) também foi lindo. A câmera na mão, a falta de foco, o excesso de luzes. Tudo que eu imaginaria a respeito da cidade e das sensações que Elena descreveu nos áudios estava ali, concreto, graças à você. Acho que você também imaginou o que ela passou do mesmo jeito que eu.
Mas não sei, sabe, Petra. Fiquei incomodado. Assim, de verdade. Porque ao mesmo tempo em que eu estava intrigado (e eu juro que estava!) sobre o destino de sua irmã perdida, comecei a achar que a reconstrução dos lugares por meio das imagens, da música e até das entrevistas (especialmente a que fez com sua mãe) eram forçadas. Desculpe. Não quero te chamar de oportunista. Quando o filme chegou ao final (na verdade, antes disso) eu sabia que você não era. Só que essa sensação me acompanhou por um tempo – em sequências inteiras. Fiquei pensando que talvez Elena, o longa, fosse muito mais forte se as cenas fossem menos maquiadas, menos posadas. Fiquei pensando até que ponto o que você dizia era verdadeiro. Se as palavras – tão bonitas! – tinham sido pensadas ou repensadas (mesmo sabendo que elas eram frutos de um roteiro, porque documentários tem roteiros) ou se você falava mesmo daquele jeito. Se as fusões nos quadros, se as transições de imagens e se a teatralidade da coisa toda buscava emular algum momento ou ludibriar pelo simples gosto de manipular. Na parte em que você faz aquela espécie de dança (com as mãos) para falar sobre seu renascimento/superação, por exemplo, cheguei a desacreditar em tudo.
Depois fiquei pensando se isso não era a maneira que você encontrou de exorcizar seus demônios e sentimentos. Porque eu sei que você sentiu de verdade tudo aquilo. Talvez não daquele jeito. Ou talvez exatamente daquele jeito, não sei. (Abro um parentese para confidenciar algo. Aquela coisa que sua mãe disse no momento chave do filme, que ela pensou em… Você sabe, me deixou deveras emocionado. Lembrei da pessoa que mais amei na vida. E das coisas que ela me contou sobre o acontecimento mais triste de todos. E aí senti muito. Por causa do filme, por causa de você e por causa dela.)
Me perdi. Não foi de propósito, eu juro. Voltando a falar sobre a suposta artificialidade… Mandei tudo as favas no final. Quando vi você e seus pares submersos, flutuando, entendi, finalmente, que tudo era verdade, assim, doído mesmo. Porque a metáfora, embora fosse miraculosamente construída (aliás, parabéns à você e a seus diretores de fotografia por a escolha da luz e dos ângulos – vê-las ali, de cima, foi mais do que lindo), dizia muito sobre uma sensação real.
Acho que arte o papel da arte é esse, não é? Falar. Seja com as verdades tangíveis ou as verdades que a gente cria porque elas não existem fora da gente. E sabe, você falou. Comigo, com sua irmã e, tenho certeza, com quem quer que tenha assistido seu filme.
Elena, de Petra Costa, 2013.
Elena. Com: Petra Costa e Elena Andrade.
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Terapia de Risco
3.6 1,0K Assista AgoraLá pelo meio de Terapia de Risco eu estava completamente rendida. Pensando que estava diante de um suspense realmente bom (o que não acontecia há um tempo), admirada com a atuação da Rooney Mara (acreditem: Lisbeth Salander é só a ponta do iceberg!) e pensando que, talvez, o Soderbergh devesse mesmo se aposentar, como os boatos recentes afirmam. Gosto da carreira dele de um modo geral, mas sempre digo que as pessoas deviam parar enquanto estão no ápice. Quando faltavam 20 minutos para que os créditos finais de Terapia de Risco subissem, minha opinião se modificou.
A ação de Terapia se inicia quando Martin Taylor (Channing Tatum), um figurão de Wall Street, é liberado da cadeia. Sua esposa, Emily Taylor (Rooney Mara), se encontra fragilizada e sem saber como se adaptar à nova situação. Então, um belo dia, saindo do estacionamento de seu prédio, ela decide chocar o seu carro contra um muro de concreto. A tentativa não resulta em nada mais que alguns arranhões e no encontro entre Emily e aquele que passaria a ser seu psiquiatra, Johnatan Banks (Jude Law). Para ter uma visão mais ampla de Emily, Jon decide entrar em contato com sua antiga psiquiatra, que havia tratado a moça na ocasião da prisão de seu marido, a doutora Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones). Tudo parecia ir muito bem até que num ataque de sonambulismo (um dos efeitos colaterais do antidepressivo receitado por Jon) acaba matando Martin. E, evidentemente, não se lembrando de nada, já que não estava consciente quando o fato se desenrolou.
Desde os primeiros minutos, a trama se desenvolve de uma maneira ágil, que fisga o expectador e o transporta para dentro da tela. Além de intrigados por Emily, ficamos intrigados a respeito do quanto as ações que presenciamos são mesmo culpa da droga e o quanto há ali dos desejos da personagem. Além disso, começamos a pensar sobre o papel da mídia em julgamentos que se tornam conhecidos em território nacional/mundial, a necessidade de se apontar um culpado e sobre a indústria farmacêutica, que disponibiliza para consumo medicamentos cujos efeitos negativos ainda não foram plenamente identificados. Pensamos, então, estar diante de mais uma das história de Soderbergh sobre o impacto que forças muito maiores do que indivíduos podem ter em suas vidas, tal como o diretor havia feito em Erin Brockovich, Contágio e Traffic. O modo escorregadio como tudo isso é construído também serve para reforçar essa impressão, que permanece conosco até que surge o clímax de Terapia de Risco.
A necessidade de dar muitas explicações, o tom forçado dos diálogos e o excesso de reviravoltas (desnecessárias) fazem com que o filme se perca um pouco. E que perca também em impacto. Seria melhor que o roteiro mantivesse algumas coisas em suspenso e, dessa maneira, se poupasse de alguns momentos constrangedores, como a última cena entre Emily e Victoria, digna de fazer parte de um episódio de Revenge (e eu não me lembrei só pelos nomes das protagonistas!) ou de um capítulo de novela das 9. Não somente pelo que foi citado, mas pelo tom fantasioso, completamente fora da realidade das personagens (em especial Victoria), que as coisas assumem nesse momento.
Mesmo que o único problema de Terapia seja o seu clímax, ao fim da projeção tem-se a impressão de que, de alguma forma, o restante foi prejudicado pelo desfecho. Caso essa seja mesmo a despedida de Soderbergh de Hollywood, ele pode ir certo de que criou títulos memoráveis. Mas eu não gostaria que o homem que dirigiu Sexo, Mentiras e Videotape me deixasse como última lembrança um desfecho ruim.
Side Effects, de Steven Soderbergh, 2013.
Terapia de Risco. Com: Rooney Mara, Channing Tatum, Jude Law, Catherine Zeta-Jones.
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Gia - Fama e Destruição
4.0 646 Assista AgoraLembro que meu primeiro contato com Gia – Fama & Destruição (Gia, 1998) foi numa noite entediante anos atrás. Estava buscando algo na TV para me distrair ou pelo menos me dar sono, foi aí que me deparei com Angelina Jolie sendo incrível no papel de Gia. A partir daí não consegui mais desgrudar meus olhos da tela. E olha que essa primeira vez que assisti era dublado.
Baseado numa história real sob a direção de Michael Cristofer, o filme emula um documentário e retrata a trajetória chocante da supermodelo, que fez muito sucesso no fim dos anos 1970 ao início dos anos 1980, Gia Carangi, ou apenas Gia (Angelina Jolie), como ficou conhecida em todo o mundo.
Ela deixa a sua vida de garçonete no restaurante do pai na Filadélfia para arriscar tudo sendo modelo em Nova York. Sem saber e sem se importar muito se não passaria apenas de mais um rostinho bonito, ela faz seu primeiro teste com Wilhelmina Cooper (Faye Dunaway), que mais tarde se torna responsável pela carreira eletrizante dela.
Com um bom desenvolvimento e mesclando entre depoimentos de pessoas próximas de Gia (mãe, o distante pai, algumas pessoas que trabalharam com ela, o grande amor da sua vida etc.) e a angustia relatada pela modelo em seu diário, o longa faz com que, logo de início, o expectador queira consumi-lo de uma só vez.
Gia tinha um crescente desejo dentro si que, aparentemente, nunca foi preenchido, levando-a assim a procurar a resposta de sua tristeza nas drogas. Sempre muito carente, imediatista e manipuladora, logo sua vida pessoal conturbada foi passando por cima de seu trabalho e consequentemente levando-a ao esquecimento.
É um filme triste, reflexivo e apaixonante. Não há como negar que “Too beautiful to die. Too wild to live.” (“Bela demais para morrer. Selvagem demais para viver”) não defina por inteiro, o inteiro que Gia Marie Carangi nos entregou em sua potente e rápida carreira.
Gia, de Michael Cristofer, 1998
Gia – Fama & Destruição. Com: Angelina Jolie, Elizabeth Mitchell, Faye Dunaway, Mercedes Ruehl, Edmund Genest.
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Em Transe
3.6 738É como se fosse um delírio de febre. É, acho que Em Transe (Trance, 2013) é isso. Com cortes rápidos, cores quentes, e ângulos pouco usuais, Danny Boyle retoma os tiques que o tornaram conhecido e soa frenético, esperto e ligeiro.
Ligeiro a ponto de que a gente nem perceba que seu filme tem 101 minutos. Tendo como ponto de partida a vida Simon (James McAvoy), um leiloeiro que se acomuna com alguns bandidos para roubar um quadro de Goya, Em Transe começa rápido e só faz acelerar. Depois de uma abertura impressionante (em que vemos o tal roubo), Boyle reordena os elementos vistos em cena para criar um universo bastante particular. E só quando a doutora Elizabeth (Rosario Dawson, esplêndida) aparece em cena – a fim de fazer com que Simon se recorde onde escondeu o quadro – é que temos noção (e algumas pistas) da verdadeira história que Danny quer contar.
Cheio de bom humor e ritmo, o longa avança em cima das descobertas que Elizabeth faz enquanto Simon está sob efeito de sua hipnotize. Logo percebemos que o leiloeiro traiu seus sócios porque tinha medo de morrer quando entregasse o quadro. E logo notamos que ninguém ali parece totalmente puro. A evolução do trio de protagonistas, aliás, é digna de nota: acrescentando nuances e acentuando ou omitindo traços que sempre estiveram lá, os atores, cheios de carisma, criam composições intrigantes.
Sugestões são desenhadas diante de nossos olhos, apagadas, desmentidas e reforçadas – de acordo com a vontade do diretor. Fica óbvio em determinado momento que Boyle quer que participemos e, por isso, nos entrega todas as fichas para que joguemos e articulemos junto com o filme. Apostando em reviravoltas, o roteiro de Joe Ahearne e John Hodgee apresenta novas camadas a cada sequência. O perigo eminente, as traições e as imagens (que parecem refletir não a realidade, mas a percepção que as personagens tem dos espaços) injetam em Em Transe fôlego e consciência.
Mesmo com algumas pontas soltas e algumas falhas (a falta de química entre Dawson e Cassel, por exemplo), o impacto de Em Transe (tido, em parte, graças ao apuro estético que é notável em todos os minutos) se sobressai a seus defeitos e seu final, didático e explicativo, agrega valor ao recolher todas as pistas deixadas durante a projeção.
E como um espasmo de febre que surge e que vai, Em Transe simplesmente termina. E a gente acha ótimo quando isso acontece.
Trance, de Danny Boyle, 2013.
Em Transe. Com: James McAvoy, Vincent Cassel, Rosario Dawson, Danny Sapani, Wahab Sheikn, Tuppence Middleton e Matt Cross.
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A Criada
3.8 104 Assista AgoraAqui está um daqueles filmes que te seduz só pelo curioso cartaz. Ao menos esse foi o meu caso, além dos fatos dele ser de 2009, ter saído há meses em TVs por assinatura e até alguns dias atrás estar na programação de estreias nos cinemas – a distribuidora, Esfera Filmes, desistiu de lançá-lo, pelo menos por enquanto. O que é uma pena, pois com a polêmica em torno do PEC (Proposta de Emenda à Constituição) em alta, certamente as situações iniciais retratadas no longa seriam um prato cheio nas discussões (de mesa de bar) sobre o assunto.
Vencedor de diversos prêmios em festivais mundo à fora, A Criada (La Nana, 2009) conta a história de Raquel (maravilhosamente interpretada por Catalina Saavedra – vale ressaltar), uma empregada introvertida e solitária, que abdica de sua própria vida e familiares para servir a família Valdés – dedicação essa que já perdura há 23 anos. Se sentindo parte pertencente ímpar daquela família, Raquel reluta quando sua patroa anuncia que contratará uma ajudante para ela.
Raquel não vê essa contratação como um alívio no serviço da casa e sim como uma ameaça. Um visível medo da família – especialmente dos filhos – gostarem mais da “impostora” do que dela. Determinada a defender o seu território, Raquel assume de vez sua identidade paranoica e vai desde dar sumiço num gatinho até desinfetar o banheiro toda vez que a ajudante o utiliza.
O que nas primeiras cenas parecia ser uma crítica ríspida sobre essa falsa relação fraternal entre empregado e patrão (Raquel comemorando sua festa surpresa de aniversário organizado pela família, recebendo uniforme de presente e logo levantando da mesa pra lavar o prato de todos), logo se torna um produto de humor negro primoroso. Manobra arriscada do diretor, Sebastián Silva, seguir por uma vertente totalmente oposta a apresentada inicialmente, mas ainda assim muito gratificante para (alguns) espectadores.
La Nana, de Sebastián Silva, 2009.
A Criada. Com: Catalina Saavedra, Claudia Celedón, Agustín Silva, Alejandro Goic, Andrea García-Huidobro, Mariana Loyola.
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Faroeste Caboclo
3.2 2,4KHá algumas semanas li por aí um moço falando que estava curioso em ver como adaptariam para o cinema vida de João de Santo Cristo, personagem da emblemática Faroeste Caboclo, da Legião Urbana. Ele falou que estava intrigado, principalmente, em saber como Maria Lúcia apareceria, do nada, com uma Winchester 22 no duelo final entre Jeremias e João e ninguém perceberia. E como João levaria cinco tiros nas costas e sobreviveria. E, mais do que tudo, ele queria descobrir como o público perceberia que o tal moço que tinha raiva do mundo só queria falar com o presidente para ajudar toda essa gente que só… Ah, vocês conhecem o resto da música.
O que vocês não conhecem são as invencionices do filme Faroeste Caboclo. E que filme! Se apegando a tríade Jerê-João-Maria, René Sampaio, o diretor, colore as lacunas deixadas pela composição de Renato Russo e cria um conto de amor que funciona a ponto de fazer com que a gente torça e sofra por uma história que a gente já sabe o final.
Isso só acontece porque ele gasta tempo para contar a história de suas personagens e encontra espaço tanto para referenciar a obra que dá base ao filme como também para incrementar com o que ele acha que vai fazer o longa funcionar. Por meio de flashbacks de passagens-chave a gente entende quem é João (Fabrício Boliveira) e o que o motiva. Entende quem é Maria Lúcia. E entende também o porquê dos dois estarem juntos e se apaixonarem. E por mais que a justificativa da postura de antagonista de Jeremias (Felipe Abib) seja torpe, a gente até engole e não se importa muito porque…
Porque todo o resto é animal. Com belos quadros que expressam muito bem a melancolia de Brasília e das personagens que lá vivem, Faroeste Caboclo tem imagens poderosas. Os planos que mostram Maria Lúcia (Isis Valverde) nos telhados enquanto olha a cidade, a infância da personagem título, a chegada de João (saindo da rodoviária e vendo as luzes de natal), e o trecho final são deslumbrantes. A coisa só não é melhor por causa do desenho de som.
Se antecipando muitas vezes, a trilha incidental acaba soando intrusiva e ilustrativa demais. Nos momentos mais leves ela parece piscar para o espectador, dando orientações de “agora você tem que rir”, “ó, fica de olho que vai acontecer algo tenso” e etc. Pior ainda foi a decisão de inserir uma narração óbvia. A gravidade da escolha é tamanha que em determinadas sequências (como na de abertura) a voz de João “briga” com as imagens e as enfraquece, deixando tudo tão mastigadinho e expositivo que a redundância não só confunde como também irrita – o que é uma pena, levando em conta o já mencionado apurado trabalho imagético do longa.
Mas maior do que qualquer equívoco e acidente de percurso (além do problema da trilha, a direção de arte apela para o óbvio nos objetos e cores que compõem a casa da personagem pai de Maria Lúcia), é o final grandioso que René prepara. Se apoiando em referências que vão de De Palma a Sergio Leone, o diretor alterna tons e humores e brinca com o cinema de gênero, fazendo valer o título de faroeste que o longa apresenta.
Poética e impactante, a sequência final é poderosa e coerente com o resto da narrativa – se mostrando tão épica quanto a música que a originou.
Faroeste Caboclo, de René Sampaio, 2013.
Faroeste Caboclo. Com: Fabrício Boliveira, Isis Valverde, Felipe Abib, Antonio Calloni, César Troncoso, Rodrigo Pandolfo e Marcos Paulo.
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Adorável Pecadora
3.7 65 Assista AgoraA criatividade dos diretores e roteiristas das décadas de 50 e 60 para driblar a censura e o moralismo está entre as coisas que mais me encantam em produções da época. Especialmente aquelas contando com o nome de Marilyn Monroe, já que, mesmo sem querer, a atriz acabou conhecida pelo forte apelo sexual. Quando ela se encontrava em cena, algumas vezes, o tom de sua voz e a maneira como posicionava o seu corpo eram suficientes para que sugestões sexuais fossem feitas. E num filme que conta com o título original de Let’s Make Love é claro que isso não poderia ser diferente. Portanto, ver cenas como a última canção do longa e a clássica My Heart Belongs To Daddy incluídas no corte final do filme é surpreendente. E isso só aconteceu, sem dúvidas, graças ao roteiro inventivo. Preservando ambiguidades e se apoiando no clichê de que “a maldade está nos olhos de quem vê”, Norman Krasna e Hal Kanter, os roteiristas de Adorável Pecadora, criam algo que, ao expectador de hoje, soa deliciosamente inocente. De uma inocência que provoca, que incita, mas ainda assim inocente.
A ação de Adorável Pecadora se desenvolve quando o playboy Jean-Marc Clement (Yves Montand) descobre que um musical off Broadway, cujo intuito é satirizar a sua vida, está em fase de produção. Ao invés de tentar vetar The Billionaire por meios legais, Jean decide se aproximar dos responsáveis pela produção e conferir o que exatamente é o objeto de escárnio da peça. Em sua primeira aparição no teatro, ele vê a magnética Amanda Dell (Monroe) ensaiando o seu solo no espetáculo. Fascinado pela beleza da moça, bem como pelo fato de que ela não sabe quem ele é, Jean-Marc decide assumir o papel de si mesmo em The Billionaire para poder ter mais contato com Amanda. Em pouco tempo o playboy se encontra intensamente apaixonado por ela e surpreso com o fato de que alguém pode amar mais do que o seu dinheiro. Afinal, para Amanda, ele é um ator que, constantemente, se encontra em dificuldades, assim como tantas outras pessoas do meio.
Daí para frente o longa se dedica a mostrar o relacionamento dos dois. Porém, o verdadeiro objetivo, para mim, está em demonstrar a magia do show business. George Cukor, o diretor do filme, parece mais interessado em explicitar a cena teatral de Greenwich Village do que os seus personagens. Ele demonstra, com maestria, o caos dos bastidores do teatro. Os primeiros ensaios, onde ainda não se sabe bem qual a cara dar a cada personagem; o envolvimento dos patrocinadores que, algumas vezes, pode moldar determinada peça em direções completamente opostas às desejadas… Esse tipo de coisa. E, no fim, vemos como a criatividade, que acaba por superar a falta de recursos e outros empecilhos vivenciados constantemente por artistas, tem um impacto grande e positivo na vida de Clement: seu mundo se torna mais mágico, mais colorido e menos burocrático. Arrisco dizer que a arte foi capaz de transformar partes da personalidade autocentrada do moço. E, claro, o amor também teve lá o seu papel.
Embora algumas pessoas insistam em dizer que não temos Marilyn em seu melhor nesse filme, eu não consigo concordar. A destreza com que Amanda Dell é construída, a inocência e o apelo sexual da personagem nos mostram tudo aquilo que tornou a atriz conhecida. Quando Clement entra no teatro pela primeira vez e vê Amanda ensaiando, o contraste entre o tom meio sacana da canção de Cole Porter e o modo quase angelical com o qual a moça é apresentada (a luz realça a brancura de sua bela e o loiro de seus cabelos) fazem com que o público se torne tão voyeiur quanto Jean-Marc Clement – que fantasia escutar (!) tais canções sugestivas em companhia da atriz. Além disso, Cukor demonstra consciência do amor da câmera por sua estrela e não hesita em abusar da beleza de seu rosto e em apostar em figurinos que realcem as suas curvas.
No fim, Adorável Pecadora não é uma obra prima como os outros musicais de Cukor. Está longe de contar com o glamour e o orçamento astronômico (para a época) de My Fair Lady. Mas é um filme delicioso, cheio de sugestões bem feitas e interessantes, que te mantém preso durante toda a projeção. E, se isso tudo não for suficiente para você, eu tenho certeza que Marilyn no auge de sua beleza será.
Let’s Make Love, de George Cukor.
Adorável Pecadora. Com: Marilyn Monroe, Yves Montand, Tony Randall e Frankie Vaughan.
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Românticos Anônimos
3.9 494Românticos Anônimos (Les Émotifs Anonymes, 2010) é uma comédia romântica sobre medo. Você deve estar se perguntando: Mas hein? Pois é.
Neste filme francês, escrito e dirigido por Jean-Pierre Améris, o tema principal é a timidez extrema e o medo de viver. Angélique (Isabelle Carré) é uma mulher que tem medo de tudo. Frequenta inclusive um grupo de apoio para pessoas como ela, que começam a compartilhar seus medos com: ‘Olá, sou fulano/a e sou emotivo/a’. Na primeira vez que Angélique se apresenta, sofre um desmaio tal o seu pavor de se expor. O medo de viver é tão grande que Angélique esconde que é uma chocolatière (expert em chocolates) de primeira. Por sete anos conseguiu trabalhar anonimamente em sua casa, se fazendo passar por um ‘ermitão’ que produzia chocolates excelentes, mas quando o dono da loja de chocolates para quem ela trabalhava morre, Angélique se vê numa encruzilhada.
Cantando uma versão francesa de I Have Confidence In Me, música que Julie Andrews cantou no filme A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965), Angélique parte para procurar emprego em uma fábrica de chocolates que está à beira da falência. Aqui ela conhece o dono Jean-René (Bonoît Poelvoorde), que sofre dos mesmos males que ela, e cujo lema do pai ficou para sempre em sua mente: ‘Que nada nos aconteça’. Jean-René consegue ser ainda mais fechado e tímido do que a protagonista. Uma das cenas mais tragicômicas acontece num restaurante onde estão tendo o primeiro encontro, e Jean-René precisa se desculpar a cada minuto para ir ao banheiro devido ao nervosismo extremo, e no fim, fica tão mortificado em ter dado um super fora que foge pela janela do banheiro.
Românticos Anônimos não é um filme para cínicos. É um filme para almas como as de Angélique e Jean-René, românticas, sensíveis, medrosas e que lutam diariamente contra seus próprios fantasmas. O melhor de tudo é que o diretor, que sofre dos mesmos males de Jean-René, retratou um assunto pesado com delicadeza e humor. E chocolate, bastante chocolate.
Les Émotifs Anonymes, de Jean-Pierre Améris, 2010.
Românticos Anônimos. Com: Isabelle Carré, Benoît Poelvoorde, Lorella Cravotta, Lisa Lamétrie, Pierre Niney e Swann Arlaud.
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A Escolha Perfeita
3.8 1,6K Assista AgoraComecei a assistir A Escolha Perfeita (Pitch Perfect, 2012) com os dois pés atrás. O plot não favorecia muito a produção, fazendo com que ela parecesse algo entre Glee e High School Musical: The College Years. E aí, eu torci o nariz por um tempo. Até que o ócio me fez assistir o filme e, meus amigos, que surpresa agradável.
No longa Anna Kendrick é Becca, uma garota apaixonada por música que está começando a faculdade. Muito contrariada por estar naquele ambiente, porque ela queria mesmo era ir pra Los Angeles ser produtora musical, Becca não possui qualquer interesse em se envolver com as atividades do campus ou em conhecer pessoas. Um belo dia, Chloe (Brittany Snow), uma das duas integrantes restantes no The Barden Bellas, um grupo acappella formado apenas por garotas, escuta Becca cantando no chuveiro e insiste tanto que a garota acaba se juntando a elas. Mesmo achando a imagem do grupo arcaica e as músicas cantadas pelas garotas ainda mais arcaicas, ela se esforça para pertencer e entregar o seu melhor desempenho.
Entre as integrantes do grupo também está a engraçadíssima Fat Amy (Rebel Wilson), que aposta em piadas de gordo e em seu sedentarismo (e pouca vontade de mudar isso) para fazer rir. Há também Stacie (Alexis Knapp), uma ninfomaníaca que sempre acrescenta sexo nas performances insossas das Bellas; Lily (Hana Mae Lee) uma japonesa que fala coisas absurdas num tom de voz super baixo e ninguém nunca ouve; Chloe que é tão irritante quanto fofa; Cynthia Rose (Ester Dean), uma lésbica “enrustida” com problemas relacionados a jogos de azar; e a “líder” do grupo, a irritante e miss perfeição Aubrey (Anna Camp), que é contra qualquer tentativa de modernização por acreditar que o setlist que o The Barden Bellas canta desde o verão de 1980 é excelente e agrada à plateia. Aubrey não percebe (ou se nega a ver) que todos quase dormem enquanto seu grupo se encontra no palco e que a inventividade de seus rivais, os Treblemakers, faz todos se levantarem, dançarem e torcerem por eles.
Apostando num humor com o timing meio estranho, em números acapella que quase fazem corais do tipo parecerem legais e menos nerd, personagens bastante inusitadas e um roteiro pra lá de espertinho, A Escolha Perfeita consegue se desviar de quase todos os clichês de produções do tipo. Evitando momentos piegas e criando oportunidades de humor onde poderia haver aquelas tentativas falhas e vergonhosas de dar mais profundidade às personagens do que é cabível, os roteiristas Kay Cannon (que tem no currículo alguns episódios de 30 Rock! ) e Mike Rapkin (autor do livro em que A Escolha Perfeita foi baseado), entregam um trabalho debochado e que cumpre bem o propósito de fazer rir. Nos pontos que poderiam cair em fórmulas batidas, eles optam por inserir piadas e transformá-los em algo completamente WTF?, mas que, por alguma razão obscura, funciona muito bem.
Outro ponto bem bacana de A Escolha Perfeita é a maneira como as sequências musicais foram filmadas, especialmente a cena da batalha dos refrões. É tudo bem produzidinho, bem coreografado e quase chega a soar forçado – o que é exatamente o oposto do que um sing off deveria ser. Porém, isso não chega a acontecer devido à empolgação do elenco em tais cenas. Nós quase ficamos convencidos de que aquelas garotas estão mesmo disputando com um grupo rival. E, além disso, essa impressão de que as coisas são um pouco exageradas é o que dá ao filme uma cara mais de musical e menos de comédia com inclinações musicais, como o supramencionado Glee.
Aliás, por falar em Glee, antes de continuar escrevendo essa série acho que os roteiristas deviam dar uma olhada em A Escolha Perfeita. Com certeza eles poderiam aprender algo sobre montar um “coral” com seres que parecem ter saído de uma espécie de “Island Of Misfit Toys” sem ficar, o tempo todo, dando lições de moral e colocando-os como coitadinhos oprimidos. Em A Escolha Perfeita só quem se encontra dentro do padrão é Aubrey. Mas ela acaba percebendo que o talento das outras pode somar muito mais às Bellas do que a beleza de suas antecessoras. E o público é levado a perceber isso de um modo natural e gradativo, sem que nenhum grande discurso a respeito da diversidade e da importância da inclusão seja necessário.
Pitch Perfect, de Jason Moore, 2012.
A Escolha Perfeita. Com: Anna Kendrick, Brittany Snow, Anna Camp, Rebel Wilson, Alexis Knapp, Ester Dean, Hana Mae Lee, Skylar Astin, Ben Platt.
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Camille Outra Vez
3.4 86A mocinha, que já não é tão moça, se vê frustrada com sua vida. De repente, não mais que de repente, ela é transportada a seu passado e tem a chance de mudar seu destino.
Tá, eu sei. A premissa não é das mais originais. Coppola mesmo fez seu Peggy Sue – Seu Passado a Espera (Peggy Sue, 1986) usando a mesma fórmula. Mas mesmo partindo de um ponto batido, Camille Outra Vez (Camille Redouble, 2012) tem seu charme. Muito charme. Isso acontece por dois motivos: a época para qual Camille é transportada (os anos 80!) e Noémie Lvovsky, interprete da personagem título – que não por acaso escreve, dirige e protagoniza.
Percorrendo caminhos que fogem do óbvio e alterando com destreza momentos de drama e comédia, Lvovsky cria um conto com contornos de fábula, se desdobra em funções e conduz sua Camille para um desfecho bonito e, dependendo do ponto de vista, melancólico. Durante o trajeto ela nos brinda com sequências memoráveis, como aquela em que dança com suas amigas Walking On Sunshine, de Katrina And The Waves; ou a parte em que decide dar para um mocinho que a encarou por alguns segundos (essa cena, inclusive, merece destaque pela graça e pela verossimilhança em retratar o sexo juvenil tal qual como ele é: desajeitado e cheio de vontade).
Adjacências técnicas como a cuidadosa direção de arte e figurinos (reparem só a quantidade de referências e detalhes no quarto de Camille) são apenas um bônus: a atriz, aqui, é a estrela. E ela brilha. Em uma performance enérgica Noémie se despe de vaidade e aparece de cara limpa, comunicando muito com olhares e gestos. Dando uma vitalidade atípica a seu eu do passado, a atriz mostra não ter medo do ridículo ao se vestir como uma adolescente da década de oitenta.
Com um texto que respeita as sutilezas e decisões estéticas interessantes (mesmo quando volta a seus 16 anos a aparência dela permanece a mesma dos dias atuais), Camille Outra Vez se revela como um entretenimento genuinamente leve e reflexivo, sem nunca pender para a pedância ou superficialidade.
Camille Redouble, de Noémie Lvovsky, 2012.
Camille Outra Vez. Com: Noémie Lvovsky, Samir Guesmi, Judith Chemla e India Hair.
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