O que é o que é: fofo, inocente, sincero, intenso, às vezes engraçado, e pode ser muito, mas muito dolorido? Sim, estou falando de amor, mas na sua forma mais pura. Aquele primeiro, aquele mesmo que você não esqueceu até hoje. É disso que se trata o ABC do Amor (Little Manhattan, 2005).
Inicialmente cruzamos só com Gabe (Josh Hutcherson), um menino como quase todos os outros de sua idade, se não fosse pelo fato dele morar com os pais que mesmo separados ainda dividem o mesmo teto e não torcer o nariz quando vê uma garota. Menos quando vê Rosemary Telesco (Charlie Ray), uma mocinha que, apesar de ser sua amiga de infância, ele nunca havia notado antes, ele a redescobre quando está procurando um rosto familiar na sua recém-iniciada aula de Karatê.
Depois de sentir aquela estranheza ao olhar pra Rosemary, Gabe tenta lidar com o até então desconhecido sentimento com uma afobação cativante. Ele trava uma batalha sentimental dentro de si e as perguntas pipocam em sua mente, enquanto as respostas não vêm tão rápidas assim – isso quando vêm. ”O que fazer quando seu coração está batendo tão forte que até mesmo quem está ao lado parece escutar? É normal sentir isso? Eu devo ou não colocar minhas mãos sob as dela? E se ela tirar?” Quem assiste acha graça, claro, mas o desespero de Gabe só faz com que a gente tenha vontade de abraçá-lo e dizer que tudo ficará bem.
Com um elenco mirim muito bem sintonizado e um desenvolvimento que parece levar o espectador para dançar, ABC do Amor triunfa – nisso podemos incluir também as locações, que seguem a mesma linha leve e natural que o filme carrega. Eles conseguem transmitir toda essa aflição que é o primeiro amor.
… E você pensando que seria só mais um filme bobo da Sessão da Tarde, né? Ele já se tornou um clássico e se tornou também o tipo de filme que eu torço pra que passe quando estou de férias em casa.
Little Manhattan, de Mark Levin, 2005. ABC do Amor. Com: Josh Hutcherson, Charlie Ray, Bradley Whitford, Cynthia Nixon.
Baz Luhrmann é um cineasta conhecido por seus filmes exuberantes: cenários barrocos, trilha sonora rica e cenas apoteóticas. Romeu + Julieta e Moulin Rouge, seus melhores filmes, são belos exercícios visuais onde a estética característica de Luhrmann reforça e ambienta a história contada. O Grande Gatsby é o oposto disso.
O romance de Fitzgerald fornece uma história sutil, construída em detalhes e subtexto e cuja força está justamente naquilo que não é contado. A trama é contada por Nick Carraway, jovem recém-saído de Yale com um emprego no mercado financeiro de Manhattan e um pequeno chalé em West Egg, região de Long Island onde vivem os novos ricos. Nick é vizinho de Jay Gatsby, o homem misterioso que dá festas homéricas, mas de quem ninguém sabe nada. Gatsby se aproxima de Nick para chegar em sua prima Daisy Buchanan, que vive com o marido em East Egg, o lado do dinheiro tradicional, e com quem Gatsby, anos antes, teve uma história.
A história é simples, mas as relações entre os personagens, a relação deles com o dinheiro e o poder e a função desse dinheiro na identidade de um indivíduo são o que está realmente em questão. Tudo isso presente apenas por baixo de diálogos ácidos e ações frívolas.
No filme de Luhrmann não há nada por baixo. Ele constroi maravilhosamente a estética e o espírito dos anos loucos, seu filme não é apenas visualmente impressionante, é frenético e excessivo como foram os anos 20 e nisso o diretor acerta muito mais do que Jack Clayton, responsável pela morna adaptação de 1974. A essa estética se alia a trilha sonora carregada de hip hop organizada por Jay Z: a estética de opulência do hip hop é quase a versão atual das festas desproporcionais do “novo rico” Jay Gatsby, é um paralelo interessante e uma ironia fina.
Mas essa ironia é o único sinal de acidez, crítica ou descontrução em todo o filme. Luhrmann toma uma história sobre a podridão do sonho americano e as falsas promessas feita por ele e a transforma em ode à esperança. Gatsby não ama Daisy, ele a confunde com a identidade que deseja para si mesmo e o filme chega mesmo a explicar isso, de forma bastante didática, apenas para logo em seguida voltar a ser uma história de amor.
O didatismo, aliás, é um dos maiores problemas do filme, comprovando mais uma vez o pouco talento de Baz Luhrmann para sutilezas. A narração em off é excessivamente presente e explica em detalhes o que os personagens pensam e sentem mesmo que os bons atores pudessem muito bem demonstrar isso de forma mais cinematográfica. Essa necessidade de ser explícito e literal gera inclusive soluções feias e absurdamente clichês, como palavras surgindo na tela quando um personagem escreve uma carta.
Por outro lado, enquanto o diretor retira toda sutileza e subtexto do filme, os atores injetam nuances em suas interpretações. A Daisy de Carey Mulligan é ao mesmo tempo frágil, vulnerável e sedutora, a sua consciência de si mesmo, exaustão e frivolidade convivem de forma ambígua e encantadora. Leonardo DiCaprio é um Gatsby artificial, duro, ansioso e pouco confiante e deixa o espectador vislumbrar todo o vazio de um personagem que tem muitas histórias.
Há sem dúvida bons momentos em O Grande Gatsby, principalmente quando Luhrmann se afasta um pouco, dá tempo de respiro e deixa seus atores e o universo de Fitzgerald trabalharem. Entretanto, na maior parte do tempo tudo que vemos são milhões de planos muito curtos, uma montagem muito rápida e infinitos elementos em cena. É um videoclipe muito bonito, mas em que as cenas se sucedem tão rapidamente e há tantos elementos em tela que é impossível identificar, e mais ainda digerir, qualquer coisa.
The Great Gatsby, de Baz Luhrmann, 2013. O Grande Gatsby. Com Leonardo DiCaprio, Carey Mulligan, Tobey Maguire, Joel Edgerton.
Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) são dois estranhos que se conhecem em uma viagem de trem. Ela é francesa, inteligente e linda. Ele é americano, articulado e espirituoso. Os dois começam a conversar, assim, do nada. E se dão bem. Muito bem. Até que chega a hora de Jesse descer. Mas ele volta e faz uma proposta amalucada para Celine: ele pede que ela salte do trem e que andem juntos por Viena até a hora do voo dele. Para convencê-la, Jesse diz que se ela não fizer isso certamente se arrependerá e passará o resto de seus dias se perguntando “e se…”. Então ela vai. E eles caminham por uma tarde e uma noite pela cidade de Viena. E é isso. Basicamente isso.
Falando assim talvez pareça pouco. Mas não é. Embora Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) trate, em linhas simples, da tarde e da noite que dois estranhos partilharam, ele engloba temas muito maiores: há reflexões acerca do mundo e do papel da mulher e do homem naquele longínquo ano de 1995, ensaios sobre relacionamentos, indagações acerca do amor e momentos de ternura bruta.
Contando com personagens principais grandiosos, iluminados e interessantes, o filme aposta tudo em seus diálogos. Com uma naturalidade impressionante, os atores se debruçam no texto de Kim Krizan e Richard Linklater, que também dirige, e emprestam seu entusiasmo e inconsequência juvenis as palavras que dizem. Mesmo não havendo ação ou grandes eventos – na verdade, nada acontece, eles apenas conversam e conversam -, há algo vibrante e vivo permeando todo o longa.
E se o que Jesse e Celine dizem é interessante, o que eles não dizem também é. Quando eles se calam a câmera de Linklater explora o silêncio e o espaço entre duas pessoas – dando tempo para que o espectador reflita e absorva todo o sub-texto presente no material. A cena em que os dois visitam uma loja de discos e ouvem Come Here, de Kath Bloom, é tão bonita que chega a doer: a expectativa de algo a mais aconteça e de que as personagens se tornem mais íntimas são tão latentes que parecem palpáveis. Sem abrir brecha para breguice, os dois conseguem debochar de momentos idealizados e apresentando uma visão bastante particular a respeito das coisas eles conquistam nossa empatia e torcida. Eles são apaixonantes. E por parecem tão verossímeis a gente chega a pensar que algo real assim só existe no cinema.
Caminhando inevitavelmente para o único desfecho possível – afinal, sabemos desde o princípio que quando amanhecer Jesse precisará voltar para América e que Celine deverá retornar para Paris -, o final aberto ainda consegue causar impacto e soar atípico para um romance (aliás, Antes do Amanhecer é um romance?).
… Mas o melhor de tudo nem é o impacto ou a beleza do último diálogo. O mais legal é que cada um pode completar a lacuna que falta do jeito que quiser.
Before Sunrise, de Richard Linklater, 1995. Antes do Amanhecer. Com: Julie Delpy, Ethan Hawke, Dominik Castell e Erni Mangold.
Sabe aquele dia em que você acorda sem criatividade para escolher a trilha sonora do trajeto de casa para o trabalho e para não ter que pensar a respeito do que ouvir, você habilita o modo aleatório de qualquer que seja o dispositivo que você usa para ouvir música? E aí, alguma força cósmica, para lá de debochada e um tanto perversa, decide tocar aquela música cafona, que você ouvia naquele momento ridículo, em que seu coração se encontrava tão partido que você pensou que a tristeza nunca mais ia passar. Então, parte da dor retorna, mesmo que só um fiapinho. E você pensa sobre o masoquismo de manter aquilo ao alcance dos seus ouvidos, mas ah, já se passou um minuto e meio e faltam só mais dois para acabar…
A minha música cafona era All Out Of Love, do Air Supply. E eu sei que você, querido leitor, está rindo da minha cara nesse exato momento, mas eu não me importo. E eu não me importo porque eu sei que você já esteve nessa posição. Todo mundo já esteve. E é exatamente sobre isso que Todas As Canções Falam de Mim trata. À primeira vista, parece um daqueles filmes tristes, mas quando você observa com cuidado, vê que se trata de uma comédia romântica. Sem todo o lance de “garoto conhece garota” e mais numa linha “garoto tenta esquecer garota e percebe que isso é complicado”. Porque a garota continua surgindo nas ruas, nos livros, nos pensamentos e, principalmente, nas músicas bregas. Até a coisa chegar num ponto que parece que todas elas, sem exceção, foram escritas para narrar o fim do seu relacionamento.
O casal de Todas As Canções, Ramiro (Oriol Vila) e Andrea (Bárbara Lennie), ficou junto por seis anos. Dividiu um apartamento, conhece as mesmas pessoas e partilhou de um tipo de intimidade que não se tem com qualquer um. E eu não estou falando do sexo. Eu estou falando daquela intimidade que alguns diriam que mata o romantismo e que pode mesmo até matar, mas que serve para fortalecer coisa muito mais importante. Se fosse apenas sexo, tudo seria mais fácil. Mesmo Ramiro, um romântico que recebeu mais influência do seu local de trabalho (uma livraria) do que deveria, consegue perceber que as duas coisas não possuem qualquer ligação, já que diversas moças bonitas e interessantes passam por sua cama durante os 98 minutos de duração do longa, e ele não tem com elas um milésimo do envolvimento e da cumplicidade que tinha com Andrea. Há interesse, há alguma coisa além da simples carência movimentando esses outros relacionamentos, mas faltam outras mil coisas – que estavam ali mesmo nos piores momentos vividos com a ex.
Faltam as cartas de amor sem motivo aparente, escritas apenas para articular melhor aquilo que a fala não poderia dizer tão bem. Falta fazer papel de louco em lugares públicos. Falta a familiaridade com o corpo, com as expressões faciais, com as oscilações de humor. Falta, falta, falta… É tanta coisa que daria pra escrever outro roteiro só enumerando. O que importa mesmo é que todas as faltas e ausências (são duas coisas completamente diferentes e é importante destacar isso) vão culminar naquele desfecho bonito. Tão honesto e tão vulnerável que, em alguns momentos, você tem vontade de entrar em cena e dizer a Ramiro que ele não deve se colocar naquela posição. Porém, ao mesmo tempo, a gente sabe que é exatamente naquele lugar que ele deve estar se quiser expurgar seus demônios ou ter uma chance de ser feliz – nesse caso, é tudo uma questão de ângulo.
Todas Las Canciones Hablan De Mí, de Jonás Trueba, 2010. Todas As Canções Falam De Mim. Com: Oriol Vila, Bárbara Lennie, Bruno Bergonzini, Valeria Alonso, Ángela Cremonte, Miriam Giovanelli, Ramón Fontserè.
Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004) começa exatamente da mesma maneira que Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) termina: com cenas de uma cidade vazia. Se na primeira parte da história protagonizada por Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) esse recurso permitia que refletíssemos acerca do que tínhamos acabado de assistir, aqui ele incentiva que imaginemos o que vai acontecer. E, como não poderia deixar de ser, o que aconteceu com os dois personagens.
Logo descobrimos que Jesse se casou, teve um filho pequeno e que publicou um livro que virou um sucesso. E que esse livro, disfarçado de ficção, narrou em minúcias os eventos que assistimos no primeiro filme. Descobrimos também que Celine, agora com 32 anos, namora um fotografo, se formou em Ciências Políticas, trabalhou para o governo e largou tudo para atuar frente a uma ONG.
Não há dúvidas de que eles cresceram. Assim como também não há dúvidas de que o casal, apesar de ter mudado, conseguiu conversar, de alguma maneira, a mesma essência e química de nove anos atrás. Essa química se torna visível quando eles começam a conversar. Enquanto andam por Paris – Jesse tinha viajado para lá a fim de divulgar seu romance -, os dois falam sobre suas vidas, sobre o mundo e, principalmente, sobre o dia em que se conheceram.
Pondo fim a uma dúvida que durou quase uma década, Richard Linklater, o diretor – que também assina o roteiro ao lado dos dois atores -, é assertivo quando faz suas personagens explicarem (e convencerem) como chegaram até ali. Mantendo a estrutura do roteiro do primeiro filme (duas pessoas conversando enquanto caminham por uma cidade bonita – com um horário marcado para se despedirem), Linklater mostra maturidade e precisão ao se desvincilhar de clichês, conservar uma certa dose de mistério e criar um longa tecnicamente irrepreensível. Ele filma tudo com tanta naturalidade e esmero que parece que estamos vendo um único plano sequência. E assim como acontecia em Antes do Amanhecer, a inteligencia dos diálogos e a desenvoltura de Delpy e Hawke fazem o filme acontecer.
Revelando pouco a pouco a real dimensão e significado da noite que passaram juntos em 1995, Jesse e Celine se mostram mais vulneráveis do que quando jovens. Todas as certezas e sonhos que eles tinham foram substituídos por uma certa condescendência e conformismo. Ambos estão destroçados por dentro e insatisfeitos com suas vidas – apesar de parecerem bem e, aos olhos dos outros, “terem dado certo”.
Até que em determinado momento, o sentimento de culpa, os “e se…”, e a própria realidade confrontam os dois e em uma das sequências mais densas e bonitas sabemos, finalmente, o que eles pensam, sentem e acham a respeito do que viveram. E assim como no primeiro longa, o desfecho de Antes do Pôr-do-Sol deixa lacunas para que a gente complete.
Mas, diferentemente do que acontecia, dessa vez a gente tem quase certeza de como tudo terminará.
Before Sunset, de Richard Linklater, 2004. Antes do Amanhecer. Com Julie Delpy e Ethan Hawke.
Vocês podem me julgar, mas eu nunca tinha assistido a um filme sequer de Chan-wook Park. Nem mesmo Oldboy. E, talvez por isso, eu tenha estranhado um pouco Segredos de Sangue, o crossover do diretor para os Estados Unidos. Mas, quando me acostumei com o jeito de filmar de Park, acabei conseguindo me transportar para dentro do universo das personagens e apreciar os detalhes que pouco antes me incomodavam.
O filme trata a respeito da família Stoker após a morte de seu patriarca, Richard (Dermont Mulroney). Mais precisamente depois que Charlie (Matthew Goode), o irmão dele, vai viver com sua mulher, Evie (Nicole Kidman), e sua filha, India (Mia Wasikowska). Enquanto Evie é emocionalmente instável e se sentia presa pelo casamento há muito tempo, India, era bastante próxima do pai e está reagindo de um jeito bastante peculiar à toda a situação. A garota é calada, sem amigos, distante de todos os que a cercam e constantemente tem desconfianças acerca de Evie – que envolvem, principalmente, a maneira como ela lida com o luto. Aos poucos, a presença de Charlie vai agravando a maneira como India se sente. Mas, ao invés de explodir, a garota, gradualmente, vai se sentindo atraída por ele. E ela lida com isso dos jeitos mais estranhos possíveis, o que fica expresso pela maneira incômoda e inquieta com que Segredos de Sangue é filmado.
Chan-wook Park subverte os enquadramentos típicos em cenas de diálogo por meio de uma câmera que parece não ter foco: enquanto as personagens conversam, ela transita, gira e só oferece fragmentos ao expectador. As cenas clímax do longa são todas cortadas ao meio e retomadas posteriormente, quando Chan-wook oferece um quadro mais amplo dos acontecimentos e tira o público da escuridão. Tudo isso serve para ressaltar o clima de tensão sexual e psicose presentes, especialmente, na segunda metade de Segredos de Sangue. Porém, se a metade final do longa é cheia de reviravoltas e suspense, a primeira parece só um exercício de estilo. Um exercício interessante, que se debruça sobre detalhes microscópicos que agregam à trama, mas ainda assim só um exercício.
Mas, de tudo, o que mais me incomodou em Segredos foi o roteiro, que parece não dar suporte ao que os atores fazem em cena. Falta profundidade em alguns momentos e, em outros, falta clareza. É como se muito fosse deixado à cargo das sugestões e não apenas para que os atores pudessem criar em cima dos silêncios. É como se eles tivessem que elevar o nível para superar falhas. O que, por sorte, eles fazem. Mia Warsikowska está assustadora e intensa na pele de India. Seu guarda-roupa puritano e a sua atitude fazem parecer que a personagem foi transportada de umas cinco décadas para o nosso tempo. Nicole Kidman empresta à sua Evie um ar de mistério e distanciamento que tornam a personagem responsável por alguns dos melhores momentos do filme. E Matthew Goode, por sua vez, faz com que Charlie, mesmo sendo completamente assustador, pareça uma criança vendo o mundo pela primeira vez e se deslumbrando com o que encontra, o que é expresso por seus olhos constantemente arregalados e fixos.
No somatório final, Segredos de Sangue fica com saldo positivo. E como eu não conheço o trabalho anterior de Chan-wook Park, tudo o que eu posso fazer é especular a respeito de alguns detalhes. Mas o fato é que durante toda a projeção do filme não me saía da cabeça que o produto final podia ter sido muito melhor se o diretor tivesse liberdade plena de criação, como provavelmente tem na Coréia. Não sei até que ponto o envolvimento de distribuidoras e estúdio podem ter influenciado, mas a impressão que fica é que há um desconforto em algumas partes do longa, que podem vir justamente do “choque cultural”.
Stoker, de Chan-wook Park, 2013. Segredos de Sangue. Com: Mia Wasikowska, Nicole Kidman, Matthew Goode, Phyllis Somerville, Dermont Mulroney.
Brit Marling é uma moça bonita, loira, de olhos azuis e ótima atriz. Ela não teria problemas para se tornar uma estrela de comédias românticas, a nova mocinha bonita e adorável do cinema americano. Mas Marling queria mais que isso.
Incomodada com a pasteurização dos papeis femininos em Hollywood, ela resolveu colocar mãos à obra e escrever seu próprio roteiro: A Outra Terra foi escrito por ela, e dirigido por Mike Cahill, em pouco tempo e com quase nenhum dinheiro, mas se tornou o hit de Sundance 2011.
Rhoda (Marling), a protagonista, tem 17 anos e acabou de descobrir que foi aprovada no MIT. Na mesma noite, bêbada, ela se envolve em um acidente e mata duas pessoas. Quatro anos depois, ao sair da cadeia, ela não tem mais qualquer perspectiva e se vê completamente incapaz de escapar ao seu passado a não ser ganhando uma viagem para a recém-descoberta Outra Terra, um planeta perfeitamente simétrico a Terra, descoberto na noite em que ela causou o acidente.
Consumida pela culpa, pelas vidas que tirou e por sua própria, Rhoda vaga por um mundo com o qual não sabe lidar e, em um movimento tanto caridoso como egoísta, se aproxima do único sobrevivente do acidente, o homem de quem ela tirou a família. É brilhante a forma como Marling e Cahill constroem essa relação: eles a enche de sutilezas e afinidades, mas nunca deixam que o espectador esqueça o que está por baixo.
A capacidade dos autores de conduzir sutilezas e povoar um filme minimalista de nuances é o que sustenta A Outra Terra. De início o filme parece solto, sem qualquer trama que pudesse se desenvolver ali, mas quando Rhoda bate na casa John o que se segue é um roteiro sem viradas épicas, mas com uma carga de emoção e sentimentos capaz de mover e tocar o espectador e mesmo deixa-lo tenso ou apreensivo.
O controle que Cahill tem de sua decupagem ajuda a sustentar um filme tão mínimo. Seus planos são precisos e o uso frequente de planos detalhes, de forma semelhante ao que Sofia Coppola faz em As Virgens Suicidas, ajuda a construir a ideia de um universo contido dentro de um pequeno espaço. A atuação contida, suave e densa de Marling também dá alma a sua personagem e substância ao longa.
A Outra Terra é um filme bonito. Com um tema trágico e personagens desesperados, mas tão lírico e delicado que a fotografia com cara de filtro do instagram não chega a incomodar, mas casa com a atmosfera aérea de toda a obra. É um filme minimalista, mas tão extremamente bem feito e tocante que surpreende pensar que é a estreia de ambos, roteirista e diretor, mas nos lembra da possibilidade de um cinema fresco, barato e muito humano.
Another Earth, de Mike Cahill A Outra Terra. Com: Brit Marling, William Mapother, Mathew-Lee Erlbach, Bruce Colbert, Paul Mezey
A gente viu como eles se conheceram. A gente presenciou o reencontro. E a gente imaginou o que aconteceu depois do filme. O que não cogitamos foi que aquilo que vimos em Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004) não era o fim. Era, de certa forma, o começo.
Celine (Julie Delpy) estava certa. Jesse (Ethan Hawke) acabou perdendo o voo. E as consequências dessa decisão reverberam até hoje em suas vidas. Agora eles se conhecem. Melhor do que nunca. Viraram, finalmente, um casal de verdade. Desses, com filhos, ex-mulher e tudo mais. Passaram por muito. Lidaram com outro tanto. Conversaram sobre contas, sobre a rotina, sobre a saudade, sobre as crias e sobre os aspectos mais banais e complicados do cotidiano. E agora estão ali, aproveitando o último dia de férias na Grécia.
Envelheceram. Mas não mudaram. Ainda há química, bom humor e naturalidade. E agora falo não só das personagens, mas sim dos realizadores. Delpy, Hawke e Linklater assinam mais uma vez o roteiro. E o roteiro esclarece de maneira orgânica as perguntas que ficaram suspensas nos últimos nove anos.
Os longos planos sequências que ocorrem em paisagens muito bonitas ainda estão lá. E os diálogos maravilhosos, ora melancólicos e espirituosos, também. Mas Richard Linklater, o diretor, sabe que algumas coisas estão diferentes. Dessa vez ele dirige mais atores, ele expõe mais pontos de vista, ele imprime mais subtexto entre as linhas e os silêncios. E a gente sabe: há mais bagagem.
Construindo cenas com um cuidado raro e deixando pistas durante o caminho para o desfecho (que consegue ser ainda mais impactante e sublime do que o final de Antes do Pôr-do-Sol), Linklater, Delpy e Hawke fazem bonito. Pela primeira vez vemos pedaços de nudez. Pela primeira enxergamos as personagens em espaços físicos diferentes enquanto conversam. E isso machuca. E com essa crueza, que às vezes se confunde com crueldade, Jesse e Celine refletem a respeito das desilusões do dia a dia, do medo de que tudo acabe. Da vida real.
Para a gente, enquanto espectador, não resta muito além de ficar ali, quietinho. Observando, sofrendo e torcendo. Até que a chegada do final. E aí, meus amigos… Uau.
Before Midnight, de Richard Linklater, 2013.
Antes da Meia-Noite. Com: Ethan Hawke, Julie Delpy, Seamus Davey-Fitzpatrick, Jennifer Prior, Charlotte Prior, Walter Lassaly, Ariane Labed, Xenia Kalogeropoulou, Yiannis Papadopoulos, Panos Koronis e Yota Argyropoulou.
Se eu fizesse parte do time de executivos da AMC, nesse momento, estaria me chutando por ter recusado Rectify. Mas, como eu não sou, estou agradecendo ao Sundance Chanel por ter acreditado no potencial da história e feito dela a sua primeira produção independente. Porque o que a gente tem ali está muito acima da metade dos programas exibidos no momento. É tudo tão bem feito que eu não ficava impressionada assim com um seriado desde que Six Feet Under foi cancelado.
Às vezes, eu tinha a impressão de estar assistindo a um filme de seis horas de duração – é, esse é um ponto negativo: a primeira temporada conta com apenas 6 episódios. Tamanha a riqueza de detalhes e a preocupação estética. Rectify tem uma fotografia incrível, para dizer o mínimo. E não para por aí: a série transporta a sua proposta inicial – que é realizar uma análise do macro utilizando o micro – para a estética e se detém sobre miudezas, como um olhar ou um detalhe na roupa de alguém, por um tempo que seria julgado desnecessário, devido a velocidade com que as coisas precisam se mover em programas de TV.
Rectify não se preocupa com ritmo: é lenta, quase arrastada, e não desenvolve “a trama que todo mundo quer ver” em sua primeira temporada. Porém, isso tudo está longe de fazer falta, já que entender a personalidade do protagonista, Daniel (Aden Young), e a dinâmica de sua família, estranha exatamente porque muito convencional, é demasiadamente importante para que a análise pretendida aconteça. Porque, afinal, a questão que rege todo o seriado é: Daniel Holden matou ou não matou Hannah Dean? Tem-se a sua confissão, mas as evidências de DNA, encontradas 19 anos depois do assassinato, dizem o contrário e foram suficientes para anular o seu primeiro julgamento. Mas o comportamento dele e a sua relutância em desmentir a confissão ou dar a seu advogado, Jon (Luke Kirby), algo mínimo com o que trabalhar, soa contraditória. O fato é que, sobre isso, a gente não chega a nenhuma conclusão. Temos suspeitas, que podem ser levadas para qualquer lado que você desejar, mas nenhuma certeza.
Além de tudo isso, uma das coisas que mais deslumbra em Rectify é o elenco. Os atores dão o sangue para que o seriado seja absolutamente incrível. Aden Young faz com que Daniel seja, ao mesmo tempo, assustador e alguém que precisa ser protegido. Afinal, ele passou 19 anos trancado, sem sequer uma janela, e não tem a menor ideia de como conviver em sociedade. Regras básicas, para ele, não são tão elementares assim e ainda precisam ser aprendidas. Sua irmã, Amantha (Abigail Spencer), mascara a fragilidade e a necessidade de compreensão do que cerca Daniel cobrindo o irmão de cuidados, de um jeito maternal e um pouco sufocante. A mãe (J. Smith-Cameron), por sua vez, não sabe como trata-lo e, às vezes, parece ter medo de sua presença.
Em meio a esse quadro familiar complexo e cheio de nuances, Daniel não consegue entender qual é o seu papel no mundo. Não sabe como lidar com a revolta de parte da cidade e nem com a solidariedade apresentada por outra parte. E nós acompanhamos a sua jornada – que ainda nem sabemos ao certo sobre o que é. Às vezes parece que ele busca redenção. Às vezes parece que busca a si mesmo. Às vezes parece que ele está a procura de algo quase imaterial, mas capaz de salvá-lo. Ou vai ver ele esteja procurando todas essas coisas ao mesmo tempo.
Rectify Criada por: Mark Johnson Onde assistir: infelizmente, nenhum canal brasileiro comprou os direitos. Mas você pode correr pro computador mais próximo e se fazer esse favor agora mesmo
O segundo filme de Derek Cianfrance – e sucessor do excelente Namorados Para Sempre (Blue Valentine, 2010) – traz Ryan Gosling e Bradley Cooper nos papéis principais, vivendo pais completamente diferentes, com realidades diferentes, mas com um “objetivo” em comum: fazer o melhor que podem com aquilo que têm. E aí, um dia, sem maiores avisos as suas vidas se cruzam e isso desencadeia uma história cheia de reviravoltas – embora algumas sejam completamente previsíveis.
Na superfície, O Lugar Onde Tudo Termina não tem quaisquer semelhanças com Namorados Para Sempre, além de Gosling como protagonista. Porém, o modo com que Cianfrance lida com os seus temas é bastante comparável. Se em Namorados o foco é a relação entre Dean (Gosling) e Cindy (Michelle Williams), intercalada por dois períodos distintos, visando demonstrar como a passagem do tempo pode ser cruel e definitiva, em O Lugar Onde Tudo Termina a estrutura narrativa é mais linear, mas o tratamento da temática central – pais, filhos, relações familiares e o legado que deixamos para as novas gerações –, de algum modo, encontra ecos no primeiro filme do diretor.
A grande diferença está no tom com que tudo é contado. Começamos acompanhando Handsome Luke (Gosling) em sua moto, cortando um parque de diversões enquanto tenta chegar a uma espécie de circo, onde demonstra ao público as suas habilidades no Globo da Morte. Depois do espetáculo, ele esbarra em uma antiga paixão, Romina (Eva Mendes) e descobre que a moça tem um filho seu. E aí, Luke começa a pensar a respeito de romper com o seu estilo de vida solitário para estar ali para seu filho. Procurando por maneiras tortas de conseguir dinheiro para dar uma vida confortável ao bebê e a Romina, Luke entra num esquema de roubo de bancos com Robin (Ben Mendelsohn). O que o rapaz ignora é que já não há mais lugar para ele. Ro tem um novo namorado, uma nova vida e tudo se ajustou durante o ano em que ele esteve fora de Schenectady.
E durante uma hora acompanhamos as tentativas tortas de Luke de acertar as coisas entre ele e Romina e se fazer presente na vida de seu filho. Cianfrance se aproxima com confiança e estilo do personagem e entrega sequências filmadas de um jeito vibrante e emocional. Nos vemos inclinados a torcer pelo carismático anti-herói de Gosling, mesmo que tudo ao redor dele tenha cara e cheiro de tragédia. Até que, na primeira reviravolta do longa, vemos que estávamos certos a respeito do rapaz.
É nesse ponto que Derek Cianfrance decide que é hora de expandir a sua história e incluir o policial Avery Cross (Bradley Cooper). O contraste entre a organização da vida de Avery e o caos da de Luke e a culpa que o policial sente acerca dos eventos que aproximaram os dois, quando associados à exposição midiática e status indesejado de herói, atribuídos a Cross pelas suas supostas façanhas como policial, provocam uma mudança drástica no tom do filme, que passa a se mover entre elementos dramáticos e de thriller policial, enquanto nas partes onde Gosling se encontrava em cena a impressão era que estávamos assistindo a uma produção bem intencionada sobre gente com a vida difícil. E quando o longa salta 15 anos no tempo, vê-se outra mudança, tanto nos temas quanto no protagonismo, já que é a hora de “dar voz” aos filhos de Luke a Avery.
O esforço que O Lugar Onde Tudo Termina faz, durante os seus 140 minutos, para se manter consistente é notável. Porém, fica a sensação de que Derek Cianfrance poderia ter feito uma história grande, sobre culpa e redenção, caso não tivesse optado por ampliar o enredo e inserir novos personagens. Isso acaba por diminuir o impacto da ideia central, que era discutir as relações entre pais e filhos. A exploração dos legados deixados pelos pais a Jason (Dane DeHaan) e AJ (Emory Cohen) é interessante, mas leva a uma conclusão bastante artificial, sem a metade do refinamento emocional do primeiro ato do longa. Essas inconsistências nas mudanças do filme cooperam para minar o que poderia ter sido um todo coeso e emocionante.
Ao atirar para tantos lados, Cianfrance, infelizmente, fez com que O Lugar Onde Tudo Termina se perdesse em diversas passagens. Mas aquelas onde o filme se encontra são ótimas, marcadas por uma fotografia bonita e uma trilha sonora que não tem medo de correr riscos (o que já era demostrado pelo próprio trailer do filme). O que não funciona no filme não chega a fazer com que ele seja ruim, mas o torna desarticulado de forma que quando ele termina, queremos dizer ao diretor que valeu a tentativa, mas que não há problema em trabalhar com algo menor – no sentido de menos personagens, menos reviravoltas, etc. -, exatamente como ele havia feito em Namorados Para Sempre.
The Place Beyond The Pines, de Derek Cianfrance O Lugar Onde Tudo Termina. Com: Ryan Gosling, Eva Mendes, Badley Cooper, Ben Mendelsohn, Ray Liotta.
ABC do Amor
3.8 1,1KO que é o que é: fofo, inocente, sincero, intenso, às vezes engraçado, e pode ser muito, mas muito dolorido? Sim, estou falando de amor, mas na sua forma mais pura. Aquele primeiro, aquele mesmo que você não esqueceu até hoje. É disso que se trata o ABC do Amor (Little Manhattan, 2005).
Inicialmente cruzamos só com Gabe (Josh Hutcherson), um menino como quase todos os outros de sua idade, se não fosse pelo fato dele morar com os pais que mesmo separados ainda dividem o mesmo teto e não torcer o nariz quando vê uma garota. Menos quando vê Rosemary Telesco (Charlie Ray), uma mocinha que, apesar de ser sua amiga de infância, ele nunca havia notado antes, ele a redescobre quando está procurando um rosto familiar na sua recém-iniciada aula de Karatê.
Depois de sentir aquela estranheza ao olhar pra Rosemary, Gabe tenta lidar com o até então desconhecido sentimento com uma afobação cativante. Ele trava uma batalha sentimental dentro de si e as perguntas pipocam em sua mente, enquanto as respostas não vêm tão rápidas assim – isso quando vêm. ”O que fazer quando seu coração está batendo tão forte que até mesmo quem está ao lado parece escutar? É normal sentir isso? Eu devo ou não colocar minhas mãos sob as dela? E se ela tirar?” Quem assiste acha graça, claro, mas o desespero de Gabe só faz com que a gente tenha vontade de abraçá-lo e dizer que tudo ficará bem.
Com um elenco mirim muito bem sintonizado e um desenvolvimento que parece levar o espectador para dançar, ABC do Amor triunfa – nisso podemos incluir também as locações, que seguem a mesma linha leve e natural que o filme carrega. Eles conseguem transmitir toda essa aflição que é o primeiro amor.
… E você pensando que seria só mais um filme bobo da Sessão da Tarde, né? Ele já se tornou um clássico e se tornou também o tipo de filme que eu torço pra que passe quando estou de férias em casa.
Little Manhattan, de Mark Levin, 2005.
ABC do Amor. Com: Josh Hutcherson, Charlie Ray, Bradley Whitford, Cynthia Nixon.
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O Grande Gatsby
3.9 2,7K Assista AgoraBaz Luhrmann é um cineasta conhecido por seus filmes exuberantes: cenários barrocos, trilha sonora rica e cenas apoteóticas. Romeu + Julieta e Moulin Rouge, seus melhores filmes, são belos exercícios visuais onde a estética característica de Luhrmann reforça e ambienta a história contada. O Grande Gatsby é o oposto disso.
O romance de Fitzgerald fornece uma história sutil, construída em detalhes e subtexto e cuja força está justamente naquilo que não é contado. A trama é contada por Nick Carraway, jovem recém-saído de Yale com um emprego no mercado financeiro de Manhattan e um pequeno chalé em West Egg, região de Long Island onde vivem os novos ricos. Nick é vizinho de Jay Gatsby, o homem misterioso que dá festas homéricas, mas de quem ninguém sabe nada. Gatsby se aproxima de Nick para chegar em sua prima Daisy Buchanan, que vive com o marido em East Egg, o lado do dinheiro tradicional, e com quem Gatsby, anos antes, teve uma história.
A história é simples, mas as relações entre os personagens, a relação deles com o dinheiro e o poder e a função desse dinheiro na identidade de um indivíduo são o que está realmente em questão. Tudo isso presente apenas por baixo de diálogos ácidos e ações frívolas.
No filme de Luhrmann não há nada por baixo. Ele constroi maravilhosamente a estética e o espírito dos anos loucos, seu filme não é apenas visualmente impressionante, é frenético e excessivo como foram os anos 20 e nisso o diretor acerta muito mais do que Jack Clayton, responsável pela morna adaptação de 1974. A essa estética se alia a trilha sonora carregada de hip hop organizada por Jay Z: a estética de opulência do hip hop é quase a versão atual das festas desproporcionais do “novo rico” Jay Gatsby, é um paralelo interessante e uma ironia fina.
Mas essa ironia é o único sinal de acidez, crítica ou descontrução em todo o filme. Luhrmann toma uma história sobre a podridão do sonho americano e as falsas promessas feita por ele e a transforma em ode à esperança. Gatsby não ama Daisy, ele a confunde com a identidade que deseja para si mesmo e o filme chega mesmo a explicar isso, de forma bastante didática, apenas para logo em seguida voltar a ser uma história de amor.
O didatismo, aliás, é um dos maiores problemas do filme, comprovando mais uma vez o pouco talento de Baz Luhrmann para sutilezas. A narração em off é excessivamente presente e explica em detalhes o que os personagens pensam e sentem mesmo que os bons atores pudessem muito bem demonstrar isso de forma mais cinematográfica. Essa necessidade de ser explícito e literal gera inclusive soluções feias e absurdamente clichês, como palavras surgindo na tela quando um personagem escreve uma carta.
Por outro lado, enquanto o diretor retira toda sutileza e subtexto do filme, os atores injetam nuances em suas interpretações. A Daisy de Carey Mulligan é ao mesmo tempo frágil, vulnerável e sedutora, a sua consciência de si mesmo, exaustão e frivolidade convivem de forma ambígua e encantadora. Leonardo DiCaprio é um Gatsby artificial, duro, ansioso e pouco confiante e deixa o espectador vislumbrar todo o vazio de um personagem que tem muitas histórias.
Há sem dúvida bons momentos em O Grande Gatsby, principalmente quando Luhrmann se afasta um pouco, dá tempo de respiro e deixa seus atores e o universo de Fitzgerald trabalharem. Entretanto, na maior parte do tempo tudo que vemos são milhões de planos muito curtos, uma montagem muito rápida e infinitos elementos em cena. É um videoclipe muito bonito, mas em que as cenas se sucedem tão rapidamente e há tantos elementos em tela que é impossível identificar, e mais ainda digerir, qualquer coisa.
The Great Gatsby, de Baz Luhrmann, 2013.
O Grande Gatsby. Com Leonardo DiCaprio, Carey Mulligan, Tobey Maguire, Joel Edgerton.
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Antes do Amanhecer
4.3 1,9K Assista AgoraJesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) são dois estranhos que se conhecem em uma viagem de trem. Ela é francesa, inteligente e linda. Ele é americano, articulado e espirituoso. Os dois começam a conversar, assim, do nada. E se dão bem. Muito bem. Até que chega a hora de Jesse descer. Mas ele volta e faz uma proposta amalucada para Celine: ele pede que ela salte do trem e que andem juntos por Viena até a hora do voo dele. Para convencê-la, Jesse diz que se ela não fizer isso certamente se arrependerá e passará o resto de seus dias se perguntando “e se…”. Então ela vai. E eles caminham por uma tarde e uma noite pela cidade de Viena. E é isso. Basicamente isso.
Falando assim talvez pareça pouco. Mas não é. Embora Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) trate, em linhas simples, da tarde e da noite que dois estranhos partilharam, ele engloba temas muito maiores: há reflexões acerca do mundo e do papel da mulher e do homem naquele longínquo ano de 1995, ensaios sobre relacionamentos, indagações acerca do amor e momentos de ternura bruta.
Contando com personagens principais grandiosos, iluminados e interessantes, o filme aposta tudo em seus diálogos. Com uma naturalidade impressionante, os atores se debruçam no texto de Kim Krizan e Richard Linklater, que também dirige, e emprestam seu entusiasmo e inconsequência juvenis as palavras que dizem. Mesmo não havendo ação ou grandes eventos – na verdade, nada acontece, eles apenas conversam e conversam -, há algo vibrante e vivo permeando todo o longa.
E se o que Jesse e Celine dizem é interessante, o que eles não dizem também é. Quando eles se calam a câmera de Linklater explora o silêncio e o espaço entre duas pessoas – dando tempo para que o espectador reflita e absorva todo o sub-texto presente no material. A cena em que os dois visitam uma loja de discos e ouvem Come Here, de Kath Bloom, é tão bonita que chega a doer: a expectativa de algo a mais aconteça e de que as personagens se tornem mais íntimas são tão latentes que parecem palpáveis. Sem abrir brecha para breguice, os dois conseguem debochar de momentos idealizados e apresentando uma visão bastante particular a respeito das coisas eles conquistam nossa empatia e torcida. Eles são apaixonantes. E por parecem tão verossímeis a gente chega a pensar que algo real assim só existe no cinema.
Caminhando inevitavelmente para o único desfecho possível – afinal, sabemos desde o princípio que quando amanhecer Jesse precisará voltar para América e que Celine deverá retornar para Paris -, o final aberto ainda consegue causar impacto e soar atípico para um romance (aliás, Antes do Amanhecer é um romance?).
… Mas o melhor de tudo nem é o impacto ou a beleza do último diálogo. O mais legal é que cada um pode completar a lacuna que falta do jeito que quiser.
Before Sunrise, de Richard Linklater, 1995.
Antes do Amanhecer. Com: Julie Delpy, Ethan Hawke, Dominik Castell e Erni Mangold.
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Todas as Canções Falam de Mim
3.5 30Sabe aquele dia em que você acorda sem criatividade para escolher a trilha sonora do trajeto de casa para o trabalho e para não ter que pensar a respeito do que ouvir, você habilita o modo aleatório de qualquer que seja o dispositivo que você usa para ouvir música? E aí, alguma força cósmica, para lá de debochada e um tanto perversa, decide tocar aquela música cafona, que você ouvia naquele momento ridículo, em que seu coração se encontrava tão partido que você pensou que a tristeza nunca mais ia passar. Então, parte da dor retorna, mesmo que só um fiapinho. E você pensa sobre o masoquismo de manter aquilo ao alcance dos seus ouvidos, mas ah, já se passou um minuto e meio e faltam só mais dois para acabar…
A minha música cafona era All Out Of Love, do Air Supply. E eu sei que você, querido leitor, está rindo da minha cara nesse exato momento, mas eu não me importo. E eu não me importo porque eu sei que você já esteve nessa posição. Todo mundo já esteve. E é exatamente sobre isso que Todas As Canções Falam de Mim trata. À primeira vista, parece um daqueles filmes tristes, mas quando você observa com cuidado, vê que se trata de uma comédia romântica. Sem todo o lance de “garoto conhece garota” e mais numa linha “garoto tenta esquecer garota e percebe que isso é complicado”. Porque a garota continua surgindo nas ruas, nos livros, nos pensamentos e, principalmente, nas músicas bregas. Até a coisa chegar num ponto que parece que todas elas, sem exceção, foram escritas para narrar o fim do seu relacionamento.
O casal de Todas As Canções, Ramiro (Oriol Vila) e Andrea (Bárbara Lennie), ficou junto por seis anos. Dividiu um apartamento, conhece as mesmas pessoas e partilhou de um tipo de intimidade que não se tem com qualquer um. E eu não estou falando do sexo. Eu estou falando daquela intimidade que alguns diriam que mata o romantismo e que pode mesmo até matar, mas que serve para fortalecer coisa muito mais importante. Se fosse apenas sexo, tudo seria mais fácil. Mesmo Ramiro, um romântico que recebeu mais influência do seu local de trabalho (uma livraria) do que deveria, consegue perceber que as duas coisas não possuem qualquer ligação, já que diversas moças bonitas e interessantes passam por sua cama durante os 98 minutos de duração do longa, e ele não tem com elas um milésimo do envolvimento e da cumplicidade que tinha com Andrea. Há interesse, há alguma coisa além da simples carência movimentando esses outros relacionamentos, mas faltam outras mil coisas – que estavam ali mesmo nos piores momentos vividos com a ex.
Faltam as cartas de amor sem motivo aparente, escritas apenas para articular melhor aquilo que a fala não poderia dizer tão bem. Falta fazer papel de louco em lugares públicos. Falta a familiaridade com o corpo, com as expressões faciais, com as oscilações de humor. Falta, falta, falta… É tanta coisa que daria pra escrever outro roteiro só enumerando. O que importa mesmo é que todas as faltas e ausências (são duas coisas completamente diferentes e é importante destacar isso) vão culminar naquele desfecho bonito. Tão honesto e tão vulnerável que, em alguns momentos, você tem vontade de entrar em cena e dizer a Ramiro que ele não deve se colocar naquela posição. Porém, ao mesmo tempo, a gente sabe que é exatamente naquele lugar que ele deve estar se quiser expurgar seus demônios ou ter uma chance de ser feliz – nesse caso, é tudo uma questão de ângulo.
Todas Las Canciones Hablan De Mí, de Jonás Trueba, 2010.
Todas As Canções Falam De Mim. Com: Oriol Vila, Bárbara Lennie, Bruno Bergonzini, Valeria Alonso, Ángela Cremonte, Miriam Giovanelli, Ramón Fontserè.
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Antes do Pôr-do-Sol
4.2 1,5K Assista AgoraAntes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004) começa exatamente da mesma maneira que Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995) termina: com cenas de uma cidade vazia. Se na primeira parte da história protagonizada por Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) esse recurso permitia que refletíssemos acerca do que tínhamos acabado de assistir, aqui ele incentiva que imaginemos o que vai acontecer. E, como não poderia deixar de ser, o que aconteceu com os dois personagens.
Logo descobrimos que Jesse se casou, teve um filho pequeno e que publicou um livro que virou um sucesso. E que esse livro, disfarçado de ficção, narrou em minúcias os eventos que assistimos no primeiro filme. Descobrimos também que Celine, agora com 32 anos, namora um fotografo, se formou em Ciências Políticas, trabalhou para o governo e largou tudo para atuar frente a uma ONG.
Não há dúvidas de que eles cresceram. Assim como também não há dúvidas de que o casal, apesar de ter mudado, conseguiu conversar, de alguma maneira, a mesma essência e química de nove anos atrás. Essa química se torna visível quando eles começam a conversar. Enquanto andam por Paris – Jesse tinha viajado para lá a fim de divulgar seu romance -, os dois falam sobre suas vidas, sobre o mundo e, principalmente, sobre o dia em que se conheceram.
Pondo fim a uma dúvida que durou quase uma década, Richard Linklater, o diretor – que também assina o roteiro ao lado dos dois atores -, é assertivo quando faz suas personagens explicarem (e convencerem) como chegaram até ali. Mantendo a estrutura do roteiro do primeiro filme (duas pessoas conversando enquanto caminham por uma cidade bonita – com um horário marcado para se despedirem), Linklater mostra maturidade e precisão ao se desvincilhar de clichês, conservar uma certa dose de mistério e criar um longa tecnicamente irrepreensível. Ele filma tudo com tanta naturalidade e esmero que parece que estamos vendo um único plano sequência. E assim como acontecia em Antes do Amanhecer, a inteligencia dos diálogos e a desenvoltura de Delpy e Hawke fazem o filme acontecer.
Revelando pouco a pouco a real dimensão e significado da noite que passaram juntos em 1995, Jesse e Celine se mostram mais vulneráveis do que quando jovens. Todas as certezas e sonhos que eles tinham foram substituídos por uma certa condescendência e conformismo. Ambos estão destroçados por dentro e insatisfeitos com suas vidas – apesar de parecerem bem e, aos olhos dos outros, “terem dado certo”.
Até que em determinado momento, o sentimento de culpa, os “e se…”, e a própria realidade confrontam os dois e em uma das sequências mais densas e bonitas sabemos, finalmente, o que eles pensam, sentem e acham a respeito do que viveram. E assim como no primeiro longa, o desfecho de Antes do Pôr-do-Sol deixa lacunas para que a gente complete.
Mas, diferentemente do que acontecia, dessa vez a gente tem quase certeza de como tudo terminará.
Before Sunset, de Richard Linklater, 2004.
Antes do Amanhecer. Com Julie Delpy e Ethan Hawke.
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Segredos de Sangue
3.5 1,2K Assista AgoraVocês podem me julgar, mas eu nunca tinha assistido a um filme sequer de Chan-wook Park. Nem mesmo Oldboy. E, talvez por isso, eu tenha estranhado um pouco Segredos de Sangue, o crossover do diretor para os Estados Unidos. Mas, quando me acostumei com o jeito de filmar de Park, acabei conseguindo me transportar para dentro do universo das personagens e apreciar os detalhes que pouco antes me incomodavam.
O filme trata a respeito da família Stoker após a morte de seu patriarca, Richard (Dermont Mulroney). Mais precisamente depois que Charlie (Matthew Goode), o irmão dele, vai viver com sua mulher, Evie (Nicole Kidman), e sua filha, India (Mia Wasikowska). Enquanto Evie é emocionalmente instável e se sentia presa pelo casamento há muito tempo, India, era bastante próxima do pai e está reagindo de um jeito bastante peculiar à toda a situação. A garota é calada, sem amigos, distante de todos os que a cercam e constantemente tem desconfianças acerca de Evie – que envolvem, principalmente, a maneira como ela lida com o luto. Aos poucos, a presença de Charlie vai agravando a maneira como India se sente. Mas, ao invés de explodir, a garota, gradualmente, vai se sentindo atraída por ele. E ela lida com isso dos jeitos mais estranhos possíveis, o que fica expresso pela maneira incômoda e inquieta com que Segredos de Sangue é filmado.
Chan-wook Park subverte os enquadramentos típicos em cenas de diálogo por meio de uma câmera que parece não ter foco: enquanto as personagens conversam, ela transita, gira e só oferece fragmentos ao expectador. As cenas clímax do longa são todas cortadas ao meio e retomadas posteriormente, quando Chan-wook oferece um quadro mais amplo dos acontecimentos e tira o público da escuridão. Tudo isso serve para ressaltar o clima de tensão sexual e psicose presentes, especialmente, na segunda metade de Segredos de Sangue. Porém, se a metade final do longa é cheia de reviravoltas e suspense, a primeira parece só um exercício de estilo. Um exercício interessante, que se debruça sobre detalhes microscópicos que agregam à trama, mas ainda assim só um exercício.
Mas, de tudo, o que mais me incomodou em Segredos foi o roteiro, que parece não dar suporte ao que os atores fazem em cena. Falta profundidade em alguns momentos e, em outros, falta clareza. É como se muito fosse deixado à cargo das sugestões e não apenas para que os atores pudessem criar em cima dos silêncios. É como se eles tivessem que elevar o nível para superar falhas. O que, por sorte, eles fazem. Mia Warsikowska está assustadora e intensa na pele de India. Seu guarda-roupa puritano e a sua atitude fazem parecer que a personagem foi transportada de umas cinco décadas para o nosso tempo. Nicole Kidman empresta à sua Evie um ar de mistério e distanciamento que tornam a personagem responsável por alguns dos melhores momentos do filme. E Matthew Goode, por sua vez, faz com que Charlie, mesmo sendo completamente assustador, pareça uma criança vendo o mundo pela primeira vez e se deslumbrando com o que encontra, o que é expresso por seus olhos constantemente arregalados e fixos.
No somatório final, Segredos de Sangue fica com saldo positivo. E como eu não conheço o trabalho anterior de Chan-wook Park, tudo o que eu posso fazer é especular a respeito de alguns detalhes. Mas o fato é que durante toda a projeção do filme não me saía da cabeça que o produto final podia ter sido muito melhor se o diretor tivesse liberdade plena de criação, como provavelmente tem na Coréia. Não sei até que ponto o envolvimento de distribuidoras e estúdio podem ter influenciado, mas a impressão que fica é que há um desconforto em algumas partes do longa, que podem vir justamente do “choque cultural”.
Stoker, de Chan-wook Park, 2013.
Segredos de Sangue. Com: Mia Wasikowska, Nicole Kidman, Matthew Goode, Phyllis Somerville, Dermont Mulroney.
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A Outra Terra
3.7 874 Assista AgoraBrit Marling é uma moça bonita, loira, de olhos azuis e ótima atriz. Ela não teria problemas para se tornar uma estrela de comédias românticas, a nova mocinha bonita e adorável do cinema americano. Mas Marling queria mais que isso.
Incomodada com a pasteurização dos papeis femininos em Hollywood, ela resolveu colocar mãos à obra e escrever seu próprio roteiro: A Outra Terra foi escrito por ela, e dirigido por Mike Cahill, em pouco tempo e com quase nenhum dinheiro, mas se tornou o hit de Sundance 2011.
Rhoda (Marling), a protagonista, tem 17 anos e acabou de descobrir que foi aprovada no MIT. Na mesma noite, bêbada, ela se envolve em um acidente e mata duas pessoas. Quatro anos depois, ao sair da cadeia, ela não tem mais qualquer perspectiva e se vê completamente incapaz de escapar ao seu passado a não ser ganhando uma viagem para a recém-descoberta Outra Terra, um planeta perfeitamente simétrico a Terra, descoberto na noite em que ela causou o acidente.
Consumida pela culpa, pelas vidas que tirou e por sua própria, Rhoda vaga por um mundo com o qual não sabe lidar e, em um movimento tanto caridoso como egoísta, se aproxima do único sobrevivente do acidente, o homem de quem ela tirou a família. É brilhante a forma como Marling e Cahill constroem essa relação: eles a enche de sutilezas e afinidades, mas nunca deixam que o espectador esqueça o que está por baixo.
A capacidade dos autores de conduzir sutilezas e povoar um filme minimalista de nuances é o que sustenta A Outra Terra. De início o filme parece solto, sem qualquer trama que pudesse se desenvolver ali, mas quando Rhoda bate na casa John o que se segue é um roteiro sem viradas épicas, mas com uma carga de emoção e sentimentos capaz de mover e tocar o espectador e mesmo deixa-lo tenso ou apreensivo.
O controle que Cahill tem de sua decupagem ajuda a sustentar um filme tão mínimo. Seus planos são precisos e o uso frequente de planos detalhes, de forma semelhante ao que Sofia Coppola faz em As Virgens Suicidas, ajuda a construir a ideia de um universo contido dentro de um pequeno espaço. A atuação contida, suave e densa de Marling também dá alma a sua personagem e substância ao longa.
A Outra Terra é um filme bonito. Com um tema trágico e personagens desesperados, mas tão lírico e delicado que a fotografia com cara de filtro do instagram não chega a incomodar, mas casa com a atmosfera aérea de toda a obra. É um filme minimalista, mas tão extremamente bem feito e tocante que surpreende pensar que é a estreia de ambos, roteirista e diretor, mas nos lembra da possibilidade de um cinema fresco, barato e muito humano.
Another Earth, de Mike Cahill
A Outra Terra. Com: Brit Marling, William Mapother, Mathew-Lee Erlbach, Bruce Colbert, Paul Mezey
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Antes da Meia-Noite
4.2 1,5K Assista AgoraA gente viu como eles se conheceram. A gente presenciou o reencontro. E a gente imaginou o que aconteceu depois do filme. O que não cogitamos foi que aquilo que vimos em Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004) não era o fim. Era, de certa forma, o começo.
Celine (Julie Delpy) estava certa. Jesse (Ethan Hawke) acabou perdendo o voo. E as consequências dessa decisão reverberam até hoje em suas vidas. Agora eles se conhecem. Melhor do que nunca. Viraram, finalmente, um casal de verdade. Desses, com filhos, ex-mulher e tudo mais. Passaram por muito. Lidaram com outro tanto. Conversaram sobre contas, sobre a rotina, sobre a saudade, sobre as crias e sobre os aspectos mais banais e complicados do cotidiano. E agora estão ali, aproveitando o último dia de férias na Grécia.
Envelheceram. Mas não mudaram. Ainda há química, bom humor e naturalidade. E agora falo não só das personagens, mas sim dos realizadores. Delpy, Hawke e Linklater assinam mais uma vez o roteiro. E o roteiro esclarece de maneira orgânica as perguntas que ficaram suspensas nos últimos nove anos.
Os longos planos sequências que ocorrem em paisagens muito bonitas ainda estão lá. E os diálogos maravilhosos, ora melancólicos e espirituosos, também. Mas Richard Linklater, o diretor, sabe que algumas coisas estão diferentes. Dessa vez ele dirige mais atores, ele expõe mais pontos de vista, ele imprime mais subtexto entre as linhas e os silêncios. E a gente sabe: há mais bagagem.
Construindo cenas com um cuidado raro e deixando pistas durante o caminho para o desfecho (que consegue ser ainda mais impactante e sublime do que o final de Antes do Pôr-do-Sol), Linklater, Delpy e Hawke fazem bonito. Pela primeira vez vemos pedaços de nudez. Pela primeira enxergamos as personagens em espaços físicos diferentes enquanto conversam. E isso machuca. E com essa crueza, que às vezes se confunde com crueldade, Jesse e Celine refletem a respeito das desilusões do dia a dia, do medo de que tudo acabe. Da vida real.
Para a gente, enquanto espectador, não resta muito além de ficar ali, quietinho. Observando, sofrendo e torcendo. Até que a chegada do final. E aí, meus amigos… Uau.
Before Midnight, de Richard Linklater, 2013.
Antes da Meia-Noite. Com: Ethan Hawke, Julie Delpy, Seamus Davey-Fitzpatrick, Jennifer Prior, Charlotte Prior, Walter Lassaly, Ariane Labed, Xenia Kalogeropoulou, Yiannis Papadopoulos, Panos Koronis e Yota Argyropoulou.
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Rectify (1ª Temporada)
4.3 83Se eu fizesse parte do time de executivos da AMC, nesse momento, estaria me chutando por ter recusado Rectify. Mas, como eu não sou, estou agradecendo ao Sundance Chanel por ter acreditado no potencial da história e feito dela a sua primeira produção independente. Porque o que a gente tem ali está muito acima da metade dos programas exibidos no momento. É tudo tão bem feito que eu não ficava impressionada assim com um seriado desde que Six Feet Under foi cancelado.
Às vezes, eu tinha a impressão de estar assistindo a um filme de seis horas de duração – é, esse é um ponto negativo: a primeira temporada conta com apenas 6 episódios. Tamanha a riqueza de detalhes e a preocupação estética. Rectify tem uma fotografia incrível, para dizer o mínimo. E não para por aí: a série transporta a sua proposta inicial – que é realizar uma análise do macro utilizando o micro – para a estética e se detém sobre miudezas, como um olhar ou um detalhe na roupa de alguém, por um tempo que seria julgado desnecessário, devido a velocidade com que as coisas precisam se mover em programas de TV.
Rectify não se preocupa com ritmo: é lenta, quase arrastada, e não desenvolve “a trama que todo mundo quer ver” em sua primeira temporada. Porém, isso tudo está longe de fazer falta, já que entender a personalidade do protagonista, Daniel (Aden Young), e a dinâmica de sua família, estranha exatamente porque muito convencional, é demasiadamente importante para que a análise pretendida aconteça. Porque, afinal, a questão que rege todo o seriado é: Daniel Holden matou ou não matou Hannah Dean? Tem-se a sua confissão, mas as evidências de DNA, encontradas 19 anos depois do assassinato, dizem o contrário e foram suficientes para anular o seu primeiro julgamento. Mas o comportamento dele e a sua relutância em desmentir a confissão ou dar a seu advogado, Jon (Luke Kirby), algo mínimo com o que trabalhar, soa contraditória. O fato é que, sobre isso, a gente não chega a nenhuma conclusão. Temos suspeitas, que podem ser levadas para qualquer lado que você desejar, mas nenhuma certeza.
Além de tudo isso, uma das coisas que mais deslumbra em Rectify é o elenco. Os atores dão o sangue para que o seriado seja absolutamente incrível. Aden Young faz com que Daniel seja, ao mesmo tempo, assustador e alguém que precisa ser protegido. Afinal, ele passou 19 anos trancado, sem sequer uma janela, e não tem a menor ideia de como conviver em sociedade. Regras básicas, para ele, não são tão elementares assim e ainda precisam ser aprendidas. Sua irmã, Amantha (Abigail Spencer), mascara a fragilidade e a necessidade de compreensão do que cerca Daniel cobrindo o irmão de cuidados, de um jeito maternal e um pouco sufocante. A mãe (J. Smith-Cameron), por sua vez, não sabe como trata-lo e, às vezes, parece ter medo de sua presença.
Em meio a esse quadro familiar complexo e cheio de nuances, Daniel não consegue entender qual é o seu papel no mundo. Não sabe como lidar com a revolta de parte da cidade e nem com a solidariedade apresentada por outra parte. E nós acompanhamos a sua jornada – que ainda nem sabemos ao certo sobre o que é. Às vezes parece que ele busca redenção. Às vezes parece que busca a si mesmo. Às vezes parece que ele está a procura de algo quase imaterial, mas capaz de salvá-lo. Ou vai ver ele esteja procurando todas essas coisas ao mesmo tempo.
Rectify
Criada por: Mark Johnson
Onde assistir: infelizmente, nenhum canal brasileiro comprou os direitos. Mas você pode correr pro computador mais próximo e se fazer esse favor agora mesmo
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O Lugar Onde Tudo Termina
3.7 857 Assista AgoraO segundo filme de Derek Cianfrance – e sucessor do excelente Namorados Para Sempre (Blue Valentine, 2010) – traz Ryan Gosling e Bradley Cooper nos papéis principais, vivendo pais completamente diferentes, com realidades diferentes, mas com um “objetivo” em comum: fazer o melhor que podem com aquilo que têm. E aí, um dia, sem maiores avisos as suas vidas se cruzam e isso desencadeia uma história cheia de reviravoltas – embora algumas sejam completamente previsíveis.
Na superfície, O Lugar Onde Tudo Termina não tem quaisquer semelhanças com Namorados Para Sempre, além de Gosling como protagonista. Porém, o modo com que Cianfrance lida com os seus temas é bastante comparável. Se em Namorados o foco é a relação entre Dean (Gosling) e Cindy (Michelle Williams), intercalada por dois períodos distintos, visando demonstrar como a passagem do tempo pode ser cruel e definitiva, em O Lugar Onde Tudo Termina a estrutura narrativa é mais linear, mas o tratamento da temática central – pais, filhos, relações familiares e o legado que deixamos para as novas gerações –, de algum modo, encontra ecos no primeiro filme do diretor.
A grande diferença está no tom com que tudo é contado. Começamos acompanhando Handsome Luke (Gosling) em sua moto, cortando um parque de diversões enquanto tenta chegar a uma espécie de circo, onde demonstra ao público as suas habilidades no Globo da Morte. Depois do espetáculo, ele esbarra em uma antiga paixão, Romina (Eva Mendes) e descobre que a moça tem um filho seu. E aí, Luke começa a pensar a respeito de romper com o seu estilo de vida solitário para estar ali para seu filho. Procurando por maneiras tortas de conseguir dinheiro para dar uma vida confortável ao bebê e a Romina, Luke entra num esquema de roubo de bancos com Robin (Ben Mendelsohn). O que o rapaz ignora é que já não há mais lugar para ele. Ro tem um novo namorado, uma nova vida e tudo se ajustou durante o ano em que ele esteve fora de Schenectady.
E durante uma hora acompanhamos as tentativas tortas de Luke de acertar as coisas entre ele e Romina e se fazer presente na vida de seu filho. Cianfrance se aproxima com confiança e estilo do personagem e entrega sequências filmadas de um jeito vibrante e emocional. Nos vemos inclinados a torcer pelo carismático anti-herói de Gosling, mesmo que tudo ao redor dele tenha cara e cheiro de tragédia. Até que, na primeira reviravolta do longa, vemos que estávamos certos a respeito do rapaz.
É nesse ponto que Derek Cianfrance decide que é hora de expandir a sua história e incluir o policial Avery Cross (Bradley Cooper). O contraste entre a organização da vida de Avery e o caos da de Luke e a culpa que o policial sente acerca dos eventos que aproximaram os dois, quando associados à exposição midiática e status indesejado de herói, atribuídos a Cross pelas suas supostas façanhas como policial, provocam uma mudança drástica no tom do filme, que passa a se mover entre elementos dramáticos e de thriller policial, enquanto nas partes onde Gosling se encontrava em cena a impressão era que estávamos assistindo a uma produção bem intencionada sobre gente com a vida difícil. E quando o longa salta 15 anos no tempo, vê-se outra mudança, tanto nos temas quanto no protagonismo, já que é a hora de “dar voz” aos filhos de Luke a Avery.
O esforço que O Lugar Onde Tudo Termina faz, durante os seus 140 minutos, para se manter consistente é notável. Porém, fica a sensação de que Derek Cianfrance poderia ter feito uma história grande, sobre culpa e redenção, caso não tivesse optado por ampliar o enredo e inserir novos personagens. Isso acaba por diminuir o impacto da ideia central, que era discutir as relações entre pais e filhos. A exploração dos legados deixados pelos pais a Jason (Dane DeHaan) e AJ (Emory Cohen) é interessante, mas leva a uma conclusão bastante artificial, sem a metade do refinamento emocional do primeiro ato do longa. Essas inconsistências nas mudanças do filme cooperam para minar o que poderia ter sido um todo coeso e emocionante.
Ao atirar para tantos lados, Cianfrance, infelizmente, fez com que O Lugar Onde Tudo Termina se perdesse em diversas passagens. Mas aquelas onde o filme se encontra são ótimas, marcadas por uma fotografia bonita e uma trilha sonora que não tem medo de correr riscos (o que já era demostrado pelo próprio trailer do filme). O que não funciona no filme não chega a fazer com que ele seja ruim, mas o torna desarticulado de forma que quando ele termina, queremos dizer ao diretor que valeu a tentativa, mas que não há problema em trabalhar com algo menor – no sentido de menos personagens, menos reviravoltas, etc. -, exatamente como ele havia feito em Namorados Para Sempre.
The Place Beyond The Pines, de Derek Cianfrance
O Lugar Onde Tudo Termina. Com: Ryan Gosling, Eva Mendes, Badley Cooper, Ben Mendelsohn, Ray Liotta.
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