Um verdadeiro mergulho no Cinema maiúsculo. Na minha percepção, Luiz Fernando Carvalho encontrou o caminho da essência de G.H. E a Maria Fernanda Cândido... sem palavras, eu não sinto forças no Verbo para descrever.
Vou escrever uma frase, um exagero - eu sei -, algo pessoal apenas, não precisam concordar nem nada : Para mim, até a data de hoje, foi o melhor filme da minha vida. No meio da sessão, senti umas mãos invisíveis saindo da tela de cinema e me tocando por dentro... senti aquela coisa forte de quando li Clarice pela primeira vez e uma vontade de chorar enorme. Obrigadíssimo ao diretor.
Sexualidade, confusão, prazeres, descobertas... todos os ingredientes necessários desse evento tão adorado por romancistas que é a adolescência. E tudo isso despoletado por brownies psicodélicos. Entendi o filme como uma viagem, física e metafísica, daquelas viagens que vão da realidade para a alma. Tudo isso é reforçado pelo nome eleito de um dos personagens, Ulisses, o grande personagem épico de Homero, o nome da viagem e da errância. Acho que esse é o convite do filme. Ao menos esse foi o convite que o filme me deu (E que bela tarde de domingo com eles...)
Infelizmente não me envolvi nem um pouco com o filme. O Wesley é muito exato no seu apontamento, logo abaixo, sobre o ar de pressa na execução. Mas convenhamos: o filme acerta muito na proposta de adaptar cinco contos do Guimarães Rosa, de modo que o resultado fica tão coeso (pensando na fluidez da narrativa) que o « filme » acaba por exceder a própria compreensão de « adaptação », tornando-se uma espécie de terceiro texto. A mesma maestria que eu vi no filme Inquietude, do Manoel de Oliveira, que adapta um conto de Agustina Bessa-Luis, uma peça do absurdista Helder Prista e um texto do simbolista Antonio Patricio, fazendo um filme que é mais que adaptação. Além do mais: Nelson Pereira dos Santos é um verdadeiro Mestre no trânsito com a literatura brasileira, e sigo acompanhando o meu colega, é pra ir « de coração aberto ». Só senti falta, mesmo, daquela presença mais apurada do « sentido de Mistério » que a gente encontra nas Primeiras estórias, do Rosa. Ainda assim, vale muito a pena assistir.
Para mim, a maneira como Naruse coloca o dinheiro e suas implicações nas ações da protagonista é extraordinária. Há diversos elementos interessantes no filme, mas eu queria comentar apenas um, que é crucial e que, digamos, é decisivo para o desenrolar da ação, que é o papel da cartomante, logo no início do filme. Uma personagem que tem quase a mesma função que a cartomante de "A hora da estrela", obra por todos nós conhecida de Clarice Lispector. Em Clarice, a personagem Macabéa (que, numa perspectiva "exterior", de fora, pouco tem a ver com a Mama, mas, interiormente, podem comungar de algumas semelhanças quanto a um desejo de querer algo a mais da vida) é mais ou menos coagida a procurar uma cartomante, Mme. Carlota, que maliciosamente lhe entrega uma "previsão" do destino da personagem. Em Narure, Mama não é coagida, mas recebe a "dica" da existência de uma cartomante, pessoa fiável, logo no momento em que há uma cena de suicídio de uma "garota" que trabalhava no bar Pássaro Azul. A cartomante alerta para o destino de Mama: irá receber uma proposta de casamento. O efeito é o mesmo utilizado em Clarice Lispector, o que a cartomante aponta é para a concretude do destino que, na verdade, é um infortúnio. E que belíssimas cenas compõem o infortúnio de Mama, que vem pelas mãos do Sr. Sekine! E nada mais conto, porque o filme fala por si só. Que linda obra.
Muito respeitosamente, quero destacar 2 questões importantes antes de lançar algum comentário acerca deste filme. 1) Uma coisa que eu uso para a crítica literária serve igualmente para a crítica de cinema: é um lugar cômodo julgar uma obra por "aquilo que ela não foi" ou que "poderia ter sido", porque o que se extrai daí são hipóteses e não é nada, absolutamente nada interessante avaliar uma obra de arte se escondendo sob a égide das hipóteses. Formou-se quase um consenso daqueles que se incomodaram com este filme a afirmação de que ele (i) seria melhor sucedido no gênero documentário, (ii) se fosse menos longo --- esta última, que já deixou há muito o cargo de "hipótese", no cinema, para assumir o posto de "senso comum", pois quase sempre é utilizada apenas como frase de efeito, sem qualquer ideia que lhe dê fundamento.
2) Outro consenso que se formou entre os insatisfeitos/críticos da obra é que ela é demasiado "panfletária", obra de "viés político" "viés ideológico". Para um país que é constantemente atormentado por fantasmas ideológicos, por boatos, por ideias terraplanistas, por ódio gratuito, oscilando entre o degredo e o flagelo de uma década completamente perdida, carente, mas ao mesmo tempo feroz com qualquer tipo de pensamento dialético, não me espanta em nada ainda hoje ouvir este tipo de avaliação: "esta obra não presta porque é panfletária". É perigoso e até mesquinho quando não se demarca, de um lado, o que é panfletário, e de outro, a função social da obra de arte. Parece óbvio, mas temos sempre que (re)lembrar o público que uma obra de arte jamais pode estar de costas voltadas para a sociedade e para o momento cultural ao qual pertence, jamais é um objeto dissociado de uma cultura. Parece óbvio, mas não podemos nos cansar de repetir que toda obra de arte tem uma função social, que toda obra de arte carrega um senso de realidade e por isso mesmo toda obra de arte é definida pelo seu "poder reflexivo", pelo seu pensamento. Toda obra de arte é uma "cadeia de pensamento" pelos seus argumentos, pelos seus discursos, pela sua linguagem. Numa época tão despovoada de boas intenções nunca ficará velha aquela lição de Jean-Paul Sartre, de que toda obra precisa ser "engajada", pois ainda (outro fantasma) nos ronda aquele fantasma do purismo, do formalismo.
3) Para quem tem o mínimo de bom senso (ou para quem não se vende àquilo que podemos chamar de "pensamento preguiçoso") não verá qualquer novidade nestes 2 pontos acima, e me perdoem a repetição, mas a gente precisa se compromissar contra este pensamento preguiçoso. Vou começar com um fato óbvio: ninguém é obrigado a gostar de uma obra de arte e é o pensamento dialético que mantém vivo o debate, afinal, toda obra de arte (me perdoem a insistência desta expressão, mas aproveito para "pensar" o filme e não só...) é múltipla, permite diversas leituras, não se esgota. Olhares plurais fazem com que a obra (sobre)viva dentro de nós. A obra continua em nós --- é aí que o pensamento preguiçoso atua, porque denigre a obra sem qualquer ideia.
Pois bem. Goste ou não, é indubitável o "lugar" em que a obra de Spike Lee se insere, é bem notório o seu contexto. E é incontornável o grito de espanto e o grito de revolta em sua narrativa. "Destacamento Blood" não se contenta em apresentar uma narrativa, mas funciona também como revisão e reparação históricas. Leio esta obra lembrando de uma (outra) velha lição acerca da ideia de "história" do filósofo alemão Walter Benjamin, a história dos cima e a dos de baixo, dos vencedores e dos vencidos. A gente não precisa ser Ph.D em Sociologia na América para saber / sentir em qual lado da história este filme se insere. Por isso é tão importante a gente continuar debatendo o "lugar de fala". Por isso um dos personagens dirá que os "EUA nos devem isso porque nós que construimos essa merda toda".
Mire vejam: há alguns pontos no filme que não me agradam, como o uso da imagem de Trump, que já foi até bem utilizada no desfecho de "Infiltrados na Klan". Algumas repetições não me convencem, porque podem ficar deslocadas na narrativa. Agora claro, a gente pode pensar sobre isso, mas nunca "utilizar" isso para desqualificar o filme.
Hoje cedo estava lendo uma crítica francesa até interessante sobre os pontos bem sucedidos e não tão bem sucedidos do filme, mas terminava por enquadrá-lo como "um filme militante". Sem desenvolvimento, eu não consigo entender o que é um filme "militante". Eu vejo um filme. Um filme engajado (há uma diferença pelo menos "filosófica" entre estas duas ideias, por deus!!!!!). Um filme que não se subalterna a nada.
Não é "lacração" que Skipe Lee está fazendo. Está mostrando o que deveria ser o óbvio para o século XXI: nossas vidas importam. Ao término do filme me senti um pouquinho "Blood", e, como eu disse acima, a obra de arte não termina porque ela continua em nós. E o engraçado é que depois que o filme "acabou", me veio aquela frase cantada por Elza Soares: "a carne mais barata do mercado não tá mais de graça".
Que filme maravilhoso do Shindô. Digo sem medo: dos 8 filmes que já vi deste cineasta, este é um dos melhores pra mim!! Ditch, literalmente traduzido por fosso,ou vala, traduz o filme, que poderíamos chamar de "Saga de Tsuru". OU a sua hora e sua vez! Este filme é um retrato cruel da pobreza, da miséria, da fome, da humilhação, do sofrimento, tudo encarnado numa protagonista, que pode-se comparar a uma Macabéa clariceana (pra mim, a personagem mais sofrida da literatura brasileira que eu ainda tenha lido). Nada é fácil pra Tsuru. E veja como Shindô, com maestria, filma de forma sutil. Pra quem quiser estudar o sofrimento, este filme é, de longe, aquilo que está no "Mundo como vontade e como representação" do Shopenhauer!!
Uma coisa que eu falei em Kuroneko, sobre a predileção do tema do inferno em Shindô, serve para este, mas não a questão mística. E sim aquilo que o velho Guimarães Rosa sabiamente dizia: o diabo é o homem!! E está aqui neste filme belíssimo.
Gostei bem mais deste do que "Onibaba" -- 1. não quer dizer isto dizer que Onibaba seja inferior e nem quero hierarquizar, afinal, minhas opiniões não valem nada mesmo; 2. como os camaradas já falaram abaixo,são duas obras parecidas,mas distintas, ou, como gosto de dizer, "próximas-na-distância".
Se em "Onibaba" vemos um Shindô já experiente, cujo filme tem várias linhas de força (o místico, o desejo, a repressão, a máscara etc), aqui o filme está imbuido de elementos místicos,na compreensão mais vulgar de 'mística' (o gato preto já é fio condutor do que quero dizer). Veja que Shindô continua aqui algo que "começa" em Onibaba (embora haja em "Filhos de Hiroshima" e "Ditch"), que é a ideia de "inferno". Veja, não precisa pensar em uma história do post-mortem, desde o mitológico,Hades e o submundo. "Inferno",como lugar de punição, é uma ideia estritamente medieval, é o medievo que estrutura a ideia de inferno. E Dante (tô pensando necessariamente nele) estrutura o inferno num movimento circular interessantíssimo, que está aqui (e no cinema de Kaneto Shindô): um movimento que começa no Inferno e termina no paraíso. Aqui, o Gintoki passa pelo inferno e, veja, no final enigmático, ele passa por uma espécie de corredor. E aquilo que começou, termina (em outros filmes do Shindô também dá pra ver esse movimento,como Ditch e Ningen). Vê-se,portanto, um Shindô interessado não só no folclore e na guerra (tema caro ao cinema nipônico como um todo),mas também interessado na ideia medieval de inferno (Filhos de Hiroshima talvez resuma bem o cruzamento do místico com o factual, na frase "A guerra que é o inferno", esculpida por uma criança).
Outras coisas neste filme são interessantes e dignas de nota, como o próprio pacto com o diabo feito pelas duas mulheres. Tema que em Goethe na lenda de Fausto, em Guimarães rosa, só pra citar alguns na literatura. Um pacto para se vingar dos samurais (já põe em xeque o poder destes). Fora a parte estética do filme, sublime tanto neste quanto em Onibaba. Mas como não tenho doutorado em cinema, e nem quero ter, fico aqui com meus botões!!
O que mais admiro no Kon Ichikawa é esse talento em tocar, como "estado de arte", em temas como desespero e solidão. Um pouco parecido com "Ningen", do Kaneto Shindô -- personagens solitários na vastidão do mar (Deleuze tem uma definição interessante do mar como um horizonte sem-fim, espaço liso que se deixa estriar,in Mil Platôs), mas por propósitos completamente diferentes -- este filme tem um movimento circular interessante, que vai do desespero à conquista, do inferno ao céu. E vejam a ironia da vida, no oceano pacífico que não tem nada de pacífico. Fernão de magalhães estava é por fora..
Maravilhoso filme. Mais de cinco décadas de trabalho só podia resultar em um filme maduro e bem construído como este. Destaco a ideia de solidão da velhice , e seu abandono – lembro sempre do sociólogo alemão Norbert Elias, Ozu e certo cinema polonês de Dorota Kedzierzawska que discutiram isso com maestria e exaustão. Uma cena de embate em um bar entre Yasukichi e um jovem que diz ser perda de tempo cuidar dos velhos, em tempos de guerra, reflete bem essa velha dicotomia entre o velho e o novo.
Outra questão que destaco é a lenda contada em preto-e-branco por Yasukichi, mesma lenda que levou Keisuke Kinoshita a rodar o antológico Balada de Narayama em 58, adaptação do romance de Shichiro Fukazawa, de 1956. Isso por si já é fantástico. Me fez ler melhor o Balada de Narayama de Kinoshita. Até então tinha lido esta lenda (o encontro de Orin com o monte Narayama) como o encontro do Ser com sua própria finitude, num caminho de silêncio e êxtase, a máxima heideggeriana “sein zum tode”. Mas depois desse filme vi melhor o lugar do próprio abandono nesta lenda.
Kaneto Shindô tem essa maestria de no mesmo filme tratar de muitas questões, como já desde “Onibaba”. Este não escapa. Depressão dos tempos modernos, os liames razão e loucura, tempo etc. Querer viver se dá não só por essa tentativa do protagonista de ultrapassar a solidão imposta, mas também porque a vida lhe é sonho. E ele repete isso no filme: “a vida é o sonho dos sonhos”. Lembra o Waly Salomão, nosso velho poeta baiano, que também repetia à exaustão “a vida é sonho”, assim como grande parte dos poetas românticos do séc. 19 também bradavam, a vida é sonho. Ou se encara de frente a vida, como fazia o Waly e nossos poetas “marginais”, e Yasukichi está próximo destes, ou se cai num escapismo, como faziam os românticos lá do séc. 19. Fato é que este filme é – ou melhor, foi, para mim – grandioso. Marcou-me.
De longe, um bom exemplo daquilo que o Michel Foucault chamou de “combate da castidade", o vício da fornicação que tem origem no próprio corpo e de "certo privilégio ontológico". Não vejo modo melhor que a leitura foucaultiana deste filme que, para mim, é o mais perturbador de Shuji Terayama. Muito mais caótico que o cinema de Teruo Ishii. A fibra metafórica que Terayama propõe neste filme é genial e certeira: crianças começam a pregar “leis” que impõem a liberdade (principalmente a sexual). Um jogo de inversão, se se parte da ideia que a criança é um “ser em formação”, já que aqui as crianças são tudo, menos “inocentes” e em “formação”. Aqui está a gênese do cinema de Terayama: o gozo livre, o desbunde. Terayama aqui nos mostra como o cinema que se quer anárquico pode derrubar os muros da moralidade.
O que Terayama aponta com crianças sodomizando adultos é para aquela ironia que encontramos no recente filme de Roy Andersson, "Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência" (2014), último da trilogia “ser um ser humano”, que expõe, em um humor negro, o que há de barbárie no ser humano. Ora, se em Andersson há um campo de concentração onde homens são queimados n'uma grande fornalha para divertir velhinhos, aqui em Terayama o vilarejo das crianças não parece estar longe da ideia de campo de concentração. Resulta isto aí: uma ironia do trágico humano em perfeita sutileza. Na rebelde obra de Terayama , que mais parece um grande "poema porrada" (para lembrar de um poema do Roberto Piva), este me foi o melhor....pra ficar na memória..
Um excelente esboço daquilo que o Gilles Deleuze chama de "sociedades de controle", quer dizer, a crise do confinamento. E é isto que o protagonista encara. Penso que este seja o filme mais rebelde de Terayama na crítica mordaz às novas configurações da sociedade japonesa ocidentalizada: bandeira estadunidense sendo queimada na frente de um casal fazendo sexo; drogas; citações de Maiakovski; o gozo livre. Não por menos que o resultado seja um livrinho (em inglês) de Steven C. Ridgely tratando justamente da contracultura em Terayama. Taí uma bela síntese do sentimento de busca (busca de sentido, talvez) e o sentimento inquietante que tanto perfilou os anos 70 do século XX.
Bobageria toda essa polêmica ao redor deste filme. O recurso da galhofa é o mesmo que há na "trilogia do poder" do cineasta russo Sokurov, mas aqui o resultado é um filme mais raso que um pires, que não se presta nem ao humor negro. Meia estrela para o James Franco e outra meia estrela pela sátira ao ditador norte-coreano..
Belíssima homenagem de um discípulo ao seu mestre, a partir de fragmentos de obras e depoimentos do poeta do cinema, Tarkovsky. Só quero chamar atenção para uma pequena frase dita pelo Tarkovsky --esta mesma cena retirada de "Tempo de Viagem" (1982)-- que, para mim, é de extrema importância tanto para o cinema quanto para a poesia: "Um cineasta é como um poeta ou um músico, e o total auto-sacrifício é necessário". Tarkovsky joga aqui com a tese de que a criação artística -- a obra de arte-- se dá na base vertiginosa e abissal da vida como sacrifício, que quer tambem dizer sofrimento, melancolia, ilusão, onde a vida se faz obscura e a obra de arte se faz inconformação -- isso é próprio do cinema de Tarkovsky. Dito de outro modo: o sacrifício, que fala Tarkovsky nesse fragmento, é a condição necessária e a base tanto para cineastas quanto para poetas. É na vida levada pelo sacrifício que faz com que desçamos às raízes da angústia, que encontremos a zona. Basta lembrar de uma frase do escritor em "Stalker", que diz que "o homem escreve porque sofre". E é este sacrifício que encontramos numa passagem da obra mais complexa de Tarkovsky, "O Espelho": "Vivemos todos à beira mar". Logo, é para isto que aponta Tarkovsky: viver do auto sacrifício necessário é viver à beira mar. à margem!! Eis aqui a fonte inspiradora de Sokurov...
Belíssimo filme, e meu primeiro que assisto do Shindô. Acerca da matéria histórica que trata, este filme tem um misto daquela sensibilidade poética que vemos em Keisuke Kinoshita (tenho em mente o 24 Olhos, ambos o mesmo papel de professora de vilarejo) com tons mais crus de um Kon Ichikawa (pensando,de longe, em Fogo na planície). O resultado disso é um filme munido de experiências traumáticas, em que memória e história se cruzam.Os relatos que a professora Ishikawa ouve são angustiantes,,no minimo. Para mim, a passagem mais dolorosa é o relato da enferma criança Toshiko, e é verdadeiro o que esta menina diz:
É certo que o resultado da guerra é sempre aquilo que Guimarães Rosa sempre dizia, que o diabo é o próprio homem. E diante do massacre e das ruínas, o retorno da professora Ishikawa a sua cidade natal, Hiroshima sete anos depois, é --a meu ver -- muito mais que colher depoimentos dos sobreviventes e rever conhecidos: é tentar religar os laços com o mundo, é buscar reatar o sentido da vida. A meu ver, novamente, este filme é excelente -se não um dos melhores, em mostrar como o japonês é um povo com grande força para se (re)erguer das ruínas, e reatar esse laço com o mundo.
Filme absolutamente grandioso. O título, por si só , já aponta para algo de nuclear nesta obra-prima: a dúplice função do fragmento, tanto do protagonista --que junta os pedaços por entre ruínas -- quanto do espectador, que tem que reunir esses fragmentos, preencher os espaços em branco, ligar os pontos. O resultado disso é a afirmação de uma tese que eu, particularmente, venho perseguindo por alguns anos : a busca de sentido na vida. Antonin, e nós que assistimos, juntamos os cacos não só para exorcisar o passado no resgate da memória, mas para buscar algum sentido na vida entre ruínas. Afinal, o efeito da guerra é justamente esse: ruínas, virar a realidade do avesso, embaralhar, reafirmar as potências do desfamiliarizar-se. Isso fica claro nas frases de Antonin que se repetem no filme: "Quanto tempo dura para construir o homem? Quanto tempo dura para destruí-lo?". Fica claro também na frase do capitão da tropa: "A guerra torna visível o que a paz tenta esconder: o poder de certos homens sobre outros". Perfeita tese. O que resulta disso é um palco de crueldade que Antonin experiencia. E veja: não é um filme habitual sobre guerra e seus efeitos. Parece haver uma mistura de sensibilidade, em tons poéticos, que faz lembrar aquele cinema poético de guerra de Malick, com algo cru, como aqueles filmes de Kon Ichikawa.. Sinceramente, um dos melhores filmes que vi em tempos..
Ao término do filme, mergulhado na inquietude, levantei o seguinte questionamento: qual o limite entre razão e loucura? Não simpatizo muito com Foucault, mas após o filme fui ler o livro homônimo do filósofo francês e lá me deparei com uma série de textos que nos conduzem justamente a problematizar o lugar do louco: por que julgamos o outro como louco, de mente doentia, logo, de assassino doentio? No caso Pierre Rivière, tem-se o autor do crime e o autor do texto, dupla atividade de Pierre.
Ainda na obra de Foucault (e vou tomar a obra como "guia" para entender e lançar luz ao filme e ao caso Rivière) deparei-me com as seguintes questões: 1. Jean-Pierre Peter e Jeanne Favret falam dos escritos de Rivière como relatos de uma "sufocação" (assim como Rivière criou engenhosamente instrumentos --que também aparece no filme-- o texto de Pierre seria também um instrumento fabricado justamente para re-posicioná-lo na margem: por que então julgar Pierre como mente doentia diante de tais criações?). 2. O próprio Foucault fala de "assassinato-narrativa", um conceito que por si já põe em diálogo loucura-escrita, loucura-literatura, o louco que se faz texto. Vale lembrar que na própria Antiguidade clássica, o "louco" era aquele que transmitia uma "mensagem cifrada" dos deuses (algo muito próximo dos personagens de Guimarães Rosa). Quem é , então o louco? O que pode um louco? 3. Philippe Riot (um dos melhores textos na referida obra de Foucault) lança um questionamento interessantíssimo: se é "na solidão que se desenvolve o delírio", Pierre Rivière é então um louco ou tão só um solitário obstinado? 4. Alexandre Fontana (outro ótimo texto nas Notas de Foucault) sai em defesa da não-loucura de Rivière, que "se passava por louco, mesmo não o sendo verdadeiramente". Se o caso Rivière abriu um entrave, na época, entre a medicina e o direito, foi para propor um entrave: entre o louco e o criminoso estaria um delírio parcial, um intervalo lúcido? A tese de Fontana , e que eu acho extremamente pertinente, é a que Pierre Rivière parece "ter feito sempre um pouco mais e um pouco demais".
Como não sou especialista no tema da loucura, mas é um tema que me desperta interesse, ao olhar para este filme -- que, a meu ver, traduziu brilhantemente o texto de Foucault, sem ser enfadonho, sem deixar sobras, e sem ser raso-- e para o caso Rivière, fico a me perguntar: Pierre Rivière não seria o grande exemplo daquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben chama de "vida nua"? Um corpo que não aguenta mais, como diz o deleuziano Peter Pelbart? Uma vida indeterminável diante de uma sociedade infame, como vivia Antonin Artaud? Se Agamben diz que a vida nua é a vida reduzida a seu estado de disformidade, me parece que Pierre Rivière muito bem exemplifica esse "estado de nudez biológica". E o que interessa o caso Pierre Rivière para nós, hoje, no século XXI? Para mim, no mínimo, serve mais ou menos igualmente ao mesmo motivo da obra "História da loucura" do Foucault : destruir verdades que até então parecem impor-se. Claro, são apenas interrogações minhas. Mais que um "comentário sobre o filme", tenho mais interrogações. E claro, interrogações de alguém que tem certo posicionamento filosófico. Evidente que outras pessoas e pessoas mais íntimas da leitura foucaultiana trarão mais luz a este filme -- e muito me admira , até o momento, um filme de tamanho relevo ter apenas 27 comentários no Filmow. Que siga o debate.
Saí da sala de cinema completamente arrasado, no modo como o diretor alterna entre o cru e o sensível. Principalmente por ser mais um filme (e um bom filme) a contribuir com o debate da violência homofóbica. Mas algumas coisas me irritaram neste filme. A maior dela é essa necessidade mesquinha em ter
, percebe-se que o personagem Diego fica evasivo, quer dizer, parece que aquele acontecimento não lhe atinge no âmago, no íntimo, só atinge uma parte superficial. O personagem não transmite dor. Do mesmo modo que não transmite nada para com o filho -- sob este quesito, entendo que o filme queira tocar na frágil relação pai-filho, mas ainda assim pareceu-me evasivo, não me convenceu. O que me deixou muito irritado neste filme é, no fim, Diego
? Se eu queria ver dor e sofrimento? Queria. Porque em se tratando de filmes sobre homossexualidade a vida não é nada feliz. Digo isso por causa própria. Quem quiser ver filme feliz, vá pra Disney. Dou nota 5 a duras penas, porque arrancou-me lágrimas em algumas cenas. Mas olho com desconfiança. Um filme ousado, bonito, envolvente, sensível, mas que cai feio na superficialidade.
Um filme belo, sensível, e bastante completo ao abordar a matéria histórica pré e pós 2ª Guerra Mundial no Japão a partir da perspectiva da empregada Taki e das eventuais discussões com seu sobrinho Takeshi. Posso dizer que este filme vai mais além , e de maneira mais sutil, no abordar dos elementos históricos dos filmes do Keisuke Kinoshita, diretamente em "O rio fuefuke" e indiretamente em "24 olhos". É simplesmente maravilhoso o diálogo história e sociedade entre tia e sobrinho quando aquela está escrevendo suas memórias (a boa e velha relação entre memória e história). Aprende-se muito com este filme, tanto em termos históricos quanto em termos poéticos. Parafraseando Clarice Lispector, descobri o mundo com este filme. Ou suas sutilezas, ainda presentes mesmo em tempos de crise.
Surpreendeu-me esta grande metáfora: sim. o filme pareceu-me funcionar como uma grande metáfora sobre o buscar. A mesma disposição de "grande metáfora" que HIMIKO, do Masahiro Shinoda, traz ao terminar o filme. Um filme muito difícil. Silencioso. Difícil de atravessar como é difícil de atravessar o sertão. Aquele sertão de Guimarães Rosa, só para clarificar o exemplo. Dificuldade, inclusive, percebida em algumas pessoas que saíram da exibição. Aqui escrevendo este brevíssimo comentário, lembro-me de um pequeno trecho de um poema do Murilo Mendes, que diz assim, e tem a ver com esta "busca" do filme: "Nós todos estamos na beira da agonia / caminhando sobre pedras angulosas e abismos". Essa é a busca do humano que o filme toca "em estado de arte": uma busca sobre pedras angulosas e (muitos) abismos. Enfim: um filme de grande dimensão ontológica. Pra se ver mais de 3x.
A relação com a morte que a narrativa trava é muito interessante e peculiar. Mas não sei se o filme ficou pequeno demais para o bom desenvolvimento que estava seguindo, ou se era melhor ter sido um curta. Confesso que sai da sala de cinema um tanto frustrado. Se há poesia neste filme, parece que passei muito longe dela. Mas como bom cristão que sou, assim que circular nos cinemas vejo novamente.
Interessante, até um pouco antes da 38Mostra, não havia cadastro deste diretor aqui no Filmow. Tampouco há nada sobre ele na enciclopédia de cinema japonês da Maria Novielli. Fora o obscurantismo, conheci um diretor genial. Daqueles que deixa aquela vontade de querer ver mais filmes. Dos 3 filmes que foram exibidos na Mostra em SP, gostei mais deste e do "Paixão Mórbida". Esses dois filmes têm um traço muito interessante: mulheres em um papel um tanto transgressor. Ou neste caso, dos caminhos e das escolhas de Matsuko. Surpreendi-me bastante com os 3 filmes deste sr. Noboru. Gostaria de rever, um dia. E o título deste filme? Não teria outro melhor.
Discordo completamente do comentário abaixo do sr. Cinema com Crítica, de este filme do Vecchiali ser uma "tentativa de filme". O que eu vi foi uma adaptação particular e própria. Uma adaptação belíssima do conto de Dostoievski. O problema é que muitas pessoas esperam uma adaptação aprisionada e "fiel", e eu , particularmente, já estou farto de discutir isso no Filmow. Se é para montar um tribunal contra uma adaptação livre e própria, esteticamente falando, vamos julgar Sokurov, Shinoda e tantos outros grandes. Por favor, e com todo respeito à divergência, mas dizer que este filme não confere volume ao texto de Dostoievski é um comentário raso em todas as esferas, na da tradução, da estética..
Quanto ao filme, saí arrasado da sala de cinema, como me senti arrasado diante do texto. Um filme que mergulha na ausência, na solidão, no sonho. Um filme que estreita os laços com aquilo que os poetas românticos no séc. XIX tanto perseguiam, o sonho: a vida como um sonho, ou o sonho como única possibilidade, já que a vida é insuficiente. Um sonho que flerta o delírio. Sonho - para lembrar o ontológico personagem sonolento e delirante de Georges Perec - que só "é" na noite, na solidão essencial da noite..Aquilo que o ensaísta francês Maurice Blanchot fala sobre o sonho, como a "intimidade essencial com o centro", parece servir para este filme: quase-teatral, os dois personagens (o sonhador e Nastenka) dialogam dentro da mesma intimidade nocturnal do Igitur de Mallarmé. E o que é mais precioso para o sonhante? O que é mais precioso para os poetas do romantismo? A fagulha da felicidade. A inalcansável felicidade. Relembro dos momentos finais do romance de Dostoievski: "Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?". Relembro também uma frase dita pelo sonhante no filme: "A esperança só ajuda a destruir a nós mesmos".
Para concluir essa prosa - muitas coisas a dizer, mas ando absolutamente sem saco para estender minhas notas: um dos melhores textos (de Dostoievski) para se compreender a poesia do séc. XIX, a solidão existencial e o lugar destes poetas no mundo. E um filme bastante particular em seu modo de tradução. Ainda não vi a tradução que o Visconti fez deste texto, espero ver. E se possível, re-ver este filme, tamanha a simpatia que tive. Recomendo muito.
Interessante que Ichikawa até então , com "Coração" e "O tempo do pavilhão dourado" vem seguindo um curso de adaptações "fiéis" e, segundo a Maria Novielli em seu "História do cinema japonês", Ichikawa é "menos fiel" na adaptação da obra de Junichiro para este "A Chave". Como eu não conheço o texto adaptado, eu vou confiar na citada pesquisadora.
A princípio, este filme pode funcionar como uma maravilhosa crítica à geração cosmética que passamos no século XXI, uma critica a juventude cada vez mais perseguidora da beleza e virilidade. Kenmochi seria, então, o traço de uma juventude escrava da própria juventude. Mas no decorrer do filme, a “estranha obsessão” de Kenmochi passa a ficar nítida, a medida em que os personagens vão participando de um jogo com uma coloração erótica. O que me chamou atenção foi a ação da personagem que é empregada da casa que, no final do filme,
Ora, veja-se que se trata de uma velha daltônica e com facilidade de confusão no campo associativo. Assim como ninguém acredita em sua confissão, nós também podemos perguntar: até que ponto podemos confiar nela? Isso me fez lembrar alguns narradores bêdados do "Tutameia", de Guimarães Rosa, que contam as histórias sob o efeito da cachaça e fica difícil o leitor "confiar" naquilo. O que eu quero dizer é: a empregada joga com essa ideia do confiar e do engano. Sem contar que o 'engano' (acho que "engano" é a melhor definição para as ações desta velha no filme) é um traço típico do gênero cômico. Como disse o Daniel abaixo, e eu concordo plenamente, isso só realça a elasticidade e versatilidade de Kon Ichikawa. Sem dúvidas, um filme muito bonito e interessante.
Esboço uma tese de que este filme é embrionário de uma matéria existencial que Ichikawa consolidará nos filmes seguintes, "Harpa da Birmânia" e "O Templo do Pavilhão Dourado", filmes que giram em torno da existência, solidão e morte. Eu fiquei muito impressionado com este filme e principalmente por ele apresentar dois personagens extremamente peculiares: Nobuchi (sensei), um homem cerrado em si, incapaz de relacionar-se com o mundo a sua volta, um homem que carrega profunda tristeza do ser, que aos poucos vai sendo revelada; e Kaji, que nos é apresentado no plano da memória de Nobuchi, personagem que é o símbolo e inspiração do sensei.
Kaji é um personagem que escolhe seguir a vida ascética e tal como o Buda histórico fez aos seus 29 anos, abandonar as doçuras da vida, liberar-se, desprender-se, e seguir o caminho da iluminação, até o momento em que se vê apaixonado pela jovem Shizu. Interessante nesta narrativa é ver como Kaji e Nobuchi caminham para uma mesma direção,
que é a morte como resultado; aliás, solidão e morte,tão bem operados neste filme, será uma operação presente tanto em "Harpa da Birmânia" quanto em "Pavilhão Dourado"
.
Outro fato interessante é que tanto Nobuchi quanto o harpista de "Harpa da Birmânia" irão deixar seu testemunho, veja-se como Ichikawa toma gosto por operar o recurso da memória. Por isso vejo esse filme como embrionário. uma anotação. uma passagem para... Só tenho a agradecer ao camarada Daniel que, com generosidade, me apresentou diretor e filme. Filme p/ ficar na memória.
A Paixão Segundo G.H.
2.9 33Um verdadeiro mergulho no Cinema maiúsculo. Na minha percepção, Luiz Fernando Carvalho encontrou o caminho da essência de G.H. E a Maria Fernanda Cândido... sem palavras, eu não sinto forças no Verbo para descrever.
Vou escrever uma frase, um exagero - eu sei -, algo pessoal apenas, não precisam concordar nem nada : Para mim, até a data de hoje, foi o melhor filme da minha vida. No meio da sessão, senti umas mãos invisíveis saindo da tela de cinema e me tocando por dentro... senti aquela coisa forte de quando li Clarice pela primeira vez e uma vontade de chorar enorme. Obrigadíssimo ao diretor.
Temporada de Patos
3.9 29Para mim, foi um filme bem prazeiroso de se assistir. E simbólico pra caramba!!
Sexualidade, confusão, prazeres, descobertas... todos os ingredientes necessários desse evento tão adorado por romancistas que é a adolescência. E tudo isso despoletado por brownies psicodélicos. Entendi o filme como uma viagem, física e metafísica, daquelas viagens que vão da realidade para a alma. Tudo isso é reforçado pelo nome eleito de um dos personagens, Ulisses, o grande personagem épico de Homero, o nome da viagem e da errância. Acho que esse é o convite do filme. Ao menos esse foi o convite que o filme me deu (E que bela tarde de domingo com eles...)
A Terceira Margem do Rio
2.9 24Infelizmente não me envolvi nem um pouco com o filme. O Wesley é muito exato no seu apontamento, logo abaixo, sobre o ar de pressa na execução. Mas convenhamos: o filme acerta muito na proposta de adaptar cinco contos do Guimarães Rosa, de modo que o resultado fica tão coeso (pensando na fluidez da narrativa) que o « filme » acaba por exceder a própria compreensão de « adaptação », tornando-se uma espécie de terceiro texto. A mesma maestria que eu vi no filme Inquietude, do Manoel de Oliveira, que adapta um conto de Agustina Bessa-Luis, uma peça do absurdista Helder Prista e um texto do simbolista Antonio Patricio, fazendo um filme que é mais que adaptação. Além do mais: Nelson Pereira dos Santos é um verdadeiro Mestre no trânsito com a literatura brasileira, e sigo acompanhando o meu colega, é pra ir « de coração aberto ». Só senti falta, mesmo, daquela presença mais apurada do « sentido de Mistério » que a gente encontra nas Primeiras estórias, do Rosa.
Ainda assim, vale muito a pena assistir.
Quando a Mulher Sobe a Escada
4.2 18Para mim, a maneira como Naruse coloca o dinheiro e suas implicações nas ações da protagonista é extraordinária. Há diversos elementos interessantes no filme, mas eu queria comentar apenas um, que é crucial e que, digamos, é decisivo para o desenrolar da ação, que é o papel da cartomante, logo no início do filme. Uma personagem que tem quase a mesma função que a cartomante de "A hora da estrela", obra por todos nós conhecida de Clarice Lispector. Em Clarice, a personagem Macabéa (que, numa perspectiva "exterior", de fora, pouco tem a ver com a Mama, mas, interiormente, podem comungar de algumas semelhanças quanto a um desejo de querer algo a mais da vida) é mais ou menos coagida a procurar uma cartomante, Mme. Carlota, que maliciosamente lhe entrega uma "previsão" do destino da personagem. Em Narure, Mama não é coagida, mas recebe a "dica" da existência de uma cartomante, pessoa fiável, logo no momento em que há uma cena de suicídio de uma "garota" que trabalhava no bar Pássaro Azul. A cartomante alerta para o destino de Mama: irá receber uma proposta de casamento. O efeito é o mesmo utilizado em Clarice Lispector, o que a cartomante aponta é para a concretude do destino que, na verdade, é um infortúnio. E que belíssimas cenas compõem o infortúnio de Mama, que vem pelas mãos do Sr. Sekine! E nada mais conto, porque o filme fala por si só. Que linda obra.
Destacamento Blood
3.8 448 Assista AgoraMuito respeitosamente, quero destacar 2 questões importantes antes de lançar algum comentário acerca deste filme.
1) Uma coisa que eu uso para a crítica literária serve igualmente para a crítica de cinema: é um lugar cômodo julgar uma obra por "aquilo que ela não foi" ou que "poderia ter sido", porque o que se extrai daí são hipóteses e não é nada, absolutamente nada interessante avaliar uma obra de arte se escondendo sob a égide das hipóteses. Formou-se quase um consenso daqueles que se incomodaram com este filme a afirmação de que ele (i) seria melhor sucedido no gênero documentário, (ii) se fosse menos longo --- esta última, que já deixou há muito o cargo de "hipótese", no cinema, para assumir o posto de "senso comum", pois quase sempre é utilizada apenas como frase de efeito, sem qualquer ideia que lhe dê fundamento.
2) Outro consenso que se formou entre os insatisfeitos/críticos da obra é que ela é demasiado "panfletária", obra de "viés político" "viés ideológico". Para um país que é constantemente atormentado por fantasmas ideológicos, por boatos, por ideias terraplanistas, por ódio gratuito, oscilando entre o degredo e o flagelo de uma década completamente perdida, carente, mas ao mesmo tempo feroz com qualquer tipo de pensamento dialético, não me espanta em nada ainda hoje ouvir este tipo de avaliação: "esta obra não presta porque é panfletária". É perigoso e até mesquinho quando não se demarca, de um lado, o que é panfletário, e de outro, a função social da obra de arte. Parece óbvio, mas temos sempre que (re)lembrar o público que uma obra de arte jamais pode estar de costas voltadas para a sociedade e para o momento cultural ao qual pertence, jamais é um objeto dissociado de uma cultura. Parece óbvio, mas não podemos nos cansar de repetir que toda obra de arte tem uma função social, que toda obra de arte carrega um senso de realidade e por isso mesmo toda obra de arte é definida pelo seu "poder reflexivo", pelo seu pensamento. Toda obra de arte é uma "cadeia de pensamento" pelos seus argumentos, pelos seus discursos, pela sua linguagem. Numa época tão despovoada de boas intenções nunca ficará velha aquela lição de Jean-Paul Sartre, de que toda obra precisa ser "engajada", pois ainda (outro fantasma) nos ronda aquele fantasma do purismo, do formalismo.
3) Para quem tem o mínimo de bom senso (ou para quem não se vende àquilo que podemos chamar de "pensamento preguiçoso") não verá qualquer novidade nestes 2 pontos acima, e me perdoem a repetição, mas a gente precisa se compromissar contra este pensamento preguiçoso. Vou começar com um fato óbvio: ninguém é obrigado a gostar de uma obra de arte e é o pensamento dialético que mantém vivo o debate, afinal, toda obra de arte (me perdoem a insistência desta expressão, mas aproveito para "pensar" o filme e não só...) é múltipla, permite diversas leituras, não se esgota. Olhares plurais fazem com que a obra (sobre)viva dentro de nós. A obra continua em nós --- é aí que o pensamento preguiçoso atua, porque denigre a obra sem qualquer ideia.
Pois bem. Goste ou não, é indubitável o "lugar" em que a obra de Spike Lee se insere, é bem notório o seu contexto. E é incontornável o grito de espanto e o grito de revolta em sua narrativa. "Destacamento Blood" não se contenta em apresentar uma narrativa, mas funciona também como revisão e reparação históricas. Leio esta obra lembrando de uma (outra) velha lição acerca da ideia de "história" do filósofo alemão Walter Benjamin, a história dos cima e a dos de baixo, dos vencedores e dos vencidos. A gente não precisa ser Ph.D em Sociologia na América para saber / sentir em qual lado da história este filme se insere. Por isso é tão importante a gente continuar debatendo o "lugar de fala". Por isso um dos personagens dirá que os "EUA nos devem isso porque nós que construimos essa merda toda".
Mire vejam: há alguns pontos no filme que não me agradam, como o uso da imagem de Trump, que já foi até bem utilizada no desfecho de "Infiltrados na Klan". Algumas repetições não me convencem, porque podem ficar deslocadas na narrativa. Agora claro, a gente pode pensar sobre isso, mas nunca "utilizar" isso para desqualificar o filme.
Hoje cedo estava lendo uma crítica francesa até interessante sobre os pontos bem sucedidos e não tão bem sucedidos do filme, mas terminava por enquadrá-lo como "um filme militante". Sem desenvolvimento, eu não consigo entender o que é um filme "militante". Eu vejo um filme. Um filme engajado (há uma diferença pelo menos "filosófica" entre estas duas ideias, por deus!!!!!). Um filme que não se subalterna a nada.
Não é "lacração" que Skipe Lee está fazendo. Está mostrando o que deveria ser o óbvio para o século XXI: nossas vidas importam. Ao término do filme me senti um pouquinho "Blood", e, como eu disse acima, a obra de arte não termina porque ela continua em nós. E o engraçado é que depois que o filme "acabou", me veio aquela frase cantada por Elza Soares: "a carne mais barata do mercado não tá mais de graça".
Ditch
4.1 3Que filme maravilhoso do Shindô. Digo sem medo: dos 8 filmes que já vi deste cineasta, este é um dos melhores pra mim!! Ditch, literalmente traduzido por fosso,ou vala, traduz o filme, que poderíamos chamar de "Saga de Tsuru". OU a sua hora e sua vez! Este filme é um retrato cruel da pobreza, da miséria, da fome, da humilhação, do sofrimento, tudo encarnado numa protagonista, que pode-se comparar a uma Macabéa clariceana (pra mim, a personagem mais sofrida da literatura brasileira que eu ainda tenha lido). Nada é fácil pra Tsuru. E veja como Shindô, com maestria, filma de forma sutil. Pra quem quiser estudar o sofrimento, este filme é, de longe, aquilo que está no "Mundo como vontade e como representação" do Shopenhauer!!
Uma coisa que eu falei em Kuroneko, sobre a predileção do tema do inferno em Shindô, serve para este, mas não a questão mística. E sim aquilo que o velho Guimarães Rosa sabiamente dizia: o diabo é o homem!! E está aqui neste filme belíssimo.
O Gato Preto
4.1 54 Assista AgoraGostei bem mais deste do que "Onibaba" -- 1. não quer dizer isto dizer que Onibaba seja inferior e nem quero hierarquizar, afinal, minhas opiniões não valem nada mesmo; 2. como os camaradas já falaram abaixo,são duas obras parecidas,mas distintas, ou, como gosto de dizer, "próximas-na-distância".
Se em "Onibaba" vemos um Shindô já experiente, cujo filme tem várias linhas de força (o místico, o desejo, a repressão, a máscara etc), aqui o filme está imbuido de elementos místicos,na compreensão mais vulgar de 'mística' (o gato preto já é fio condutor do que quero dizer). Veja que Shindô continua aqui algo que "começa" em Onibaba (embora haja em "Filhos de Hiroshima" e "Ditch"), que é a ideia de "inferno". Veja, não precisa pensar em uma história do post-mortem, desde o mitológico,Hades e o submundo. "Inferno",como lugar de punição, é uma ideia estritamente medieval, é o medievo que estrutura a ideia de inferno. E Dante (tô pensando necessariamente nele) estrutura o inferno num movimento circular interessantíssimo, que está aqui (e no cinema de Kaneto Shindô): um movimento que começa no Inferno e termina no paraíso. Aqui, o Gintoki passa pelo inferno e, veja, no final enigmático, ele passa por uma espécie de corredor. E aquilo que começou, termina (em outros filmes do Shindô também dá pra ver esse movimento,como Ditch e Ningen). Vê-se,portanto, um Shindô interessado não só no folclore e na guerra (tema caro ao cinema nipônico como um todo),mas também interessado na ideia medieval de inferno (Filhos de Hiroshima talvez resuma bem o cruzamento do místico com o factual, na frase "A guerra que é o inferno", esculpida por uma criança).
Outras coisas neste filme são interessantes e dignas de nota, como o próprio pacto com o diabo feito pelas duas mulheres. Tema que em Goethe na lenda de Fausto, em Guimarães rosa, só pra citar alguns na literatura. Um pacto para se vingar dos samurais (já põe em xeque o poder destes). Fora a parte estética do filme, sublime tanto neste quanto em Onibaba. Mas como não tenho doutorado em cinema, e nem quero ter, fico aqui com meus botões!!
Sozinho Através do Oceano Pacífico
4.1 2O que mais admiro no Kon Ichikawa é esse talento em tocar, como "estado de arte", em temas como desespero e solidão. Um pouco parecido com "Ningen", do Kaneto Shindô -- personagens solitários na vastidão do mar (Deleuze tem uma definição interessante do mar como um horizonte sem-fim, espaço liso que se deixa estriar,in Mil Platôs), mas por propósitos completamente diferentes -- este filme tem um movimento circular interessante, que vai do desespero à conquista, do inferno ao céu. E vejam a ironia da vida, no oceano pacífico que não tem nada de pacífico. Fernão de magalhães estava é por fora..
Quero Viver
4.1 2Maravilhoso filme. Mais de cinco décadas de trabalho só podia resultar em um filme maduro e bem construído como este. Destaco a ideia de solidão da velhice , e seu abandono – lembro sempre do sociólogo alemão Norbert Elias, Ozu e certo cinema polonês de Dorota Kedzierzawska que discutiram isso com maestria e exaustão. Uma cena de embate em um bar entre Yasukichi e um jovem que diz ser perda de tempo cuidar dos velhos, em tempos de guerra, reflete bem essa velha dicotomia entre o velho e o novo.
Outra questão que destaco é a lenda contada em preto-e-branco por Yasukichi, mesma lenda que levou Keisuke Kinoshita a rodar o antológico Balada de Narayama em 58, adaptação do romance de Shichiro Fukazawa, de 1956. Isso por si já é fantástico. Me fez ler melhor o Balada de Narayama de Kinoshita. Até então tinha lido esta lenda (o encontro de Orin com o monte Narayama) como o encontro do Ser com sua própria finitude, num caminho de silêncio e êxtase, a máxima heideggeriana “sein zum tode”. Mas depois desse filme vi melhor o lugar do próprio abandono nesta lenda.
Kaneto Shindô tem essa maestria de no mesmo filme tratar de muitas questões, como já desde “Onibaba”. Este não escapa. Depressão dos tempos modernos, os liames razão e loucura, tempo etc. Querer viver se dá não só por essa tentativa do protagonista de ultrapassar a solidão imposta, mas também porque a vida lhe é sonho. E ele repete isso no filme: “a vida é o sonho dos sonhos”. Lembra o Waly Salomão, nosso velho poeta baiano, que também repetia à exaustão “a vida é sonho”, assim como grande parte dos poetas românticos do séc. 19 também bradavam, a vida é sonho. Ou se encara de frente a vida, como fazia o Waly e nossos poetas “marginais”, e Yasukichi está próximo destes, ou se cai num escapismo, como faziam os românticos lá do séc. 19. Fato é que este filme é – ou melhor, foi, para mim – grandioso. Marcou-me.
Imperador Ketchup
3.7 48De longe, um bom exemplo daquilo que o Michel Foucault chamou de “combate da castidade", o vício da fornicação que tem origem no próprio corpo e de "certo privilégio ontológico". Não vejo modo melhor que a leitura foucaultiana deste filme que, para mim, é o mais perturbador de Shuji Terayama. Muito mais caótico que o cinema de Teruo Ishii. A fibra metafórica que Terayama propõe neste filme é genial e certeira: crianças começam a pregar “leis” que impõem a liberdade (principalmente a sexual). Um jogo de inversão, se se parte da ideia que a criança é um “ser em formação”, já que aqui as crianças são tudo, menos “inocentes” e em “formação”. Aqui está a gênese do cinema de Terayama: o gozo livre, o desbunde. Terayama aqui nos mostra como o cinema que se quer anárquico pode derrubar os muros da moralidade.
O que Terayama aponta com crianças sodomizando adultos é para aquela ironia que encontramos no recente filme de Roy Andersson, "Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência" (2014), último da trilogia “ser um ser humano”, que expõe, em um humor negro, o que há de barbárie no ser humano. Ora, se em Andersson há um campo de concentração onde homens são queimados n'uma grande fornalha para divertir velhinhos, aqui em Terayama o vilarejo das crianças não parece estar longe da ideia de campo de concentração. Resulta isto aí: uma ironia do trágico humano em perfeita sutileza. Na rebelde obra de Terayama , que mais parece um grande "poema porrada" (para lembrar de um poema do Roberto Piva), este me foi o melhor....pra ficar na memória..
Joguem Fora Seus Livros e Saiam às Ruas
4.3 43Um excelente esboço daquilo que o Gilles Deleuze chama de "sociedades de controle", quer dizer, a crise do confinamento. E é isto que o protagonista encara. Penso que este seja o filme mais rebelde de Terayama na crítica mordaz às novas configurações da sociedade japonesa ocidentalizada: bandeira estadunidense sendo queimada na frente de um casal fazendo sexo; drogas; citações de Maiakovski; o gozo livre. Não por menos que o resultado seja um livrinho (em inglês) de Steven C. Ridgely tratando justamente da contracultura em Terayama. Taí uma bela síntese do sentimento de busca (busca de sentido, talvez) e o sentimento inquietante que tanto perfilou os anos 70 do século XX.
A Entrevista
3.1 1,0K Assista AgoraBobageria toda essa polêmica ao redor deste filme. O recurso da galhofa é o mesmo que há na "trilogia do poder" do cineasta russo Sokurov, mas aqui o resultado é um filme mais raso que um pires, que não se presta nem ao humor negro. Meia estrela para o James Franco e outra meia estrela pela sátira ao ditador norte-coreano..
Melancolia de Moscow
3.9 5Belíssima homenagem de um discípulo ao seu mestre, a partir de fragmentos de obras e depoimentos do poeta do cinema, Tarkovsky. Só quero chamar atenção para uma pequena frase dita pelo Tarkovsky --esta mesma cena retirada de "Tempo de Viagem" (1982)-- que, para mim, é de extrema importância tanto para o cinema quanto para a poesia: "Um cineasta é como um poeta ou um músico, e o total auto-sacrifício é necessário". Tarkovsky joga aqui com a tese de que a criação artística -- a obra de arte-- se dá na base vertiginosa e abissal da vida como sacrifício, que quer tambem dizer sofrimento, melancolia, ilusão, onde a vida se faz obscura e a obra de arte se faz inconformação -- isso é próprio do cinema de Tarkovsky. Dito de outro modo: o sacrifício, que fala Tarkovsky nesse fragmento, é a condição necessária e a base tanto para cineastas quanto para poetas. É na vida levada pelo sacrifício que faz com que desçamos às raízes da angústia, que encontremos a zona. Basta lembrar de uma frase do escritor em "Stalker", que diz que "o homem escreve porque sofre". E é este sacrifício que encontramos numa passagem da obra mais complexa de Tarkovsky, "O Espelho": "Vivemos todos à beira mar". Logo, é para isto que aponta Tarkovsky: viver do auto sacrifício necessário é viver à beira mar. à margem!! Eis aqui a fonte inspiradora de Sokurov...
Filhos de Hiroshima
4.2 11 Assista AgoraBelíssimo filme, e meu primeiro que assisto do Shindô. Acerca da matéria histórica que trata, este filme tem um misto daquela sensibilidade poética que vemos em Keisuke Kinoshita (tenho em mente o 24 Olhos, ambos o mesmo papel de professora de vilarejo) com tons mais crus de um Kon Ichikawa (pensando,de longe, em Fogo na planície). O resultado disso é um filme munido de experiências traumáticas, em que memória e história se cruzam.Os relatos que a professora Ishikawa ouve são angustiantes,,no minimo. Para mim, a passagem mais dolorosa é o relato da enferma criança Toshiko, e é verdadeiro o que esta menina diz:
"a guerra que é o inferno".
É certo que o resultado da guerra é sempre aquilo que Guimarães Rosa sempre dizia, que o diabo é o próprio homem. E diante do massacre e das ruínas, o retorno da professora Ishikawa a sua cidade natal, Hiroshima sete anos depois, é --a meu ver -- muito mais que colher depoimentos dos sobreviventes e rever conhecidos: é tentar religar os laços com o mundo, é buscar reatar o sentido da vida. A meu ver, novamente, este filme é excelente -se não um dos melhores, em mostrar como o japonês é um povo com grande força para se (re)erguer das ruínas, e reatar esse laço com o mundo.
Les Fragments d'Antonin
5.0 1Filme absolutamente grandioso. O título, por si só , já aponta para algo de nuclear nesta obra-prima: a dúplice função do fragmento, tanto do protagonista --que junta os pedaços por entre ruínas -- quanto do espectador, que tem que reunir esses fragmentos, preencher os espaços em branco, ligar os pontos. O resultado disso é a afirmação de uma tese que eu, particularmente, venho perseguindo por alguns anos : a busca de sentido na vida. Antonin, e nós que assistimos, juntamos os cacos não só para exorcisar o passado no resgate da memória, mas para buscar algum sentido na vida entre ruínas. Afinal, o efeito da guerra é justamente esse: ruínas, virar a realidade do avesso, embaralhar, reafirmar as potências do desfamiliarizar-se. Isso fica claro nas frases de Antonin que se repetem no filme: "Quanto tempo dura para construir o homem? Quanto tempo dura para destruí-lo?". Fica claro também na frase do capitão da tropa: "A guerra torna visível o que a paz tenta esconder: o poder de certos homens sobre outros". Perfeita tese. O que resulta disso é um palco de crueldade que Antonin experiencia. E veja: não é um filme habitual sobre guerra e seus efeitos. Parece haver uma mistura de sensibilidade, em tons poéticos, que faz lembrar aquele cinema poético de guerra de Malick, com algo cru, como aqueles filmes de Kon Ichikawa.. Sinceramente, um dos melhores filmes que vi em tempos..
Eu, Pierre Rivière, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e …
3.7 38Ao término do filme, mergulhado na inquietude, levantei o seguinte questionamento: qual o limite entre razão e loucura? Não simpatizo muito com Foucault, mas após o filme fui ler o livro homônimo do filósofo francês e lá me deparei com uma série de textos que nos conduzem justamente a problematizar o lugar do louco: por que julgamos o outro como louco, de mente doentia, logo, de assassino doentio? No caso Pierre Rivière, tem-se o autor do crime e o autor do texto, dupla atividade de Pierre.
Ainda na obra de Foucault (e vou tomar a obra como "guia" para entender e lançar luz ao filme e ao caso Rivière) deparei-me com as seguintes questões: 1. Jean-Pierre Peter e Jeanne Favret falam dos escritos de Rivière como relatos de uma "sufocação" (assim como Rivière criou engenhosamente instrumentos --que também aparece no filme-- o texto de Pierre seria também um instrumento fabricado justamente para re-posicioná-lo na margem: por que então julgar Pierre como mente doentia diante de tais criações?).
2. O próprio Foucault fala de "assassinato-narrativa", um conceito que por si já põe em diálogo loucura-escrita, loucura-literatura, o louco que se faz texto. Vale lembrar que na própria Antiguidade clássica, o "louco" era aquele que transmitia uma "mensagem cifrada" dos deuses (algo muito próximo dos personagens de Guimarães Rosa). Quem é , então o louco? O que pode um louco?
3. Philippe Riot (um dos melhores textos na referida obra de Foucault) lança um questionamento interessantíssimo: se é "na solidão que se desenvolve o delírio", Pierre Rivière é então um louco ou tão só um solitário obstinado?
4. Alexandre Fontana (outro ótimo texto nas Notas de Foucault) sai em defesa da não-loucura de Rivière, que "se passava por louco, mesmo não o sendo verdadeiramente". Se o caso Rivière abriu um entrave, na época, entre a medicina e o direito, foi para propor um entrave: entre o louco e o criminoso estaria um delírio parcial, um intervalo lúcido? A tese de Fontana , e que eu acho extremamente pertinente, é a que Pierre Rivière parece "ter feito sempre um pouco mais e um pouco demais".
Como não sou especialista no tema da loucura, mas é um tema que me desperta interesse, ao olhar para este filme -- que, a meu ver, traduziu brilhantemente o texto de Foucault, sem ser enfadonho, sem deixar sobras, e sem ser raso-- e para o caso Rivière, fico a me perguntar: Pierre Rivière não seria o grande exemplo daquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben chama de "vida nua"? Um corpo que não aguenta mais, como diz o deleuziano Peter Pelbart? Uma vida indeterminável diante de uma sociedade infame, como vivia Antonin Artaud? Se Agamben diz que a vida nua é a vida reduzida a seu estado de disformidade, me parece que Pierre Rivière muito bem exemplifica esse "estado de nudez biológica". E o que interessa o caso Pierre Rivière para nós, hoje, no século XXI? Para mim, no mínimo, serve mais ou menos igualmente ao mesmo motivo da obra "História da loucura" do Foucault : destruir verdades que até então parecem impor-se. Claro, são apenas interrogações minhas. Mais que um "comentário sobre o filme", tenho mais interrogações. E claro, interrogações de alguém que tem certo posicionamento filosófico. Evidente que outras pessoas e pessoas mais íntimas da leitura foucaultiana trarão mais luz a este filme -- e muito me admira , até o momento, um filme de tamanho relevo ter apenas 27 comentários no Filmow. Que siga o debate.
Azul e Não Tão Rosa
3.7 36Saí da sala de cinema completamente arrasado, no modo como o diretor alterna entre o cru e o sensível. Principalmente por ser mais um filme (e um bom filme) a contribuir com o debate da violência homofóbica. Mas algumas coisas me irritaram neste filme. A maior dela é essa necessidade mesquinha em ter
"finais felizes"
assassinato do Fabrício
aparecer "festejando" com o outro barbudinho lá.
finais felizes se nada no terreno da homossexualidade e de seus direitos está em felicidade?
em terminar com outro
A Pequena Casa
3.7 8Um filme belo, sensível, e bastante completo ao abordar a matéria histórica pré e pós 2ª Guerra Mundial no Japão a partir da perspectiva da empregada Taki e das eventuais discussões com seu sobrinho Takeshi. Posso dizer que este filme vai mais além , e de maneira mais sutil, no abordar dos elementos históricos dos filmes do Keisuke Kinoshita, diretamente em "O rio fuefuke" e indiretamente em "24 olhos". É simplesmente maravilhoso o diálogo história e sociedade entre tia e sobrinho quando aquela está escrevendo suas memórias (a boa e velha relação entre memória e história). Aprende-se muito com este filme, tanto em termos históricos quanto em termos poéticos. Parafraseando Clarice Lispector, descobri o mundo com este filme. Ou suas sutilezas, ainda presentes mesmo em tempos de crise.
Jauja
3.5 40Surpreendeu-me esta grande metáfora: sim. o filme pareceu-me funcionar como uma grande metáfora sobre o buscar. A mesma disposição de "grande metáfora" que HIMIKO, do Masahiro Shinoda, traz ao terminar o filme. Um filme muito difícil. Silencioso. Difícil de atravessar como é difícil de atravessar o sertão. Aquele sertão de Guimarães Rosa, só para clarificar o exemplo. Dificuldade, inclusive, percebida em algumas pessoas que saíram da exibição. Aqui escrevendo este brevíssimo comentário, lembro-me de um pequeno trecho de um poema do Murilo Mendes, que diz assim, e tem a ver com esta "busca" do filme: "Nós todos estamos na beira da agonia / caminhando sobre pedras angulosas e abismos". Essa é a busca do humano que o filme toca "em estado de arte": uma busca sobre pedras angulosas e (muitos) abismos. Enfim: um filme de grande dimensão ontológica. Pra se ver mais de 3x.
Ventos de Agosto
3.3 73 Assista AgoraA relação com a morte que a narrativa trava é muito interessante e peculiar. Mas não sei se o filme ficou pequeno demais para o bom desenvolvimento que estava seguindo, ou se era melhor ter sido um curta. Confesso que sai da sala de cinema um tanto frustrado. Se há poesia neste filme, parece que passei muito longe dela. Mas como bom cristão que sou, assim que circular nos cinemas vejo novamente.
Quando a Chuva Cai
4.1 2Interessante, até um pouco antes da 38Mostra, não havia cadastro deste diretor aqui no Filmow. Tampouco há nada sobre ele na enciclopédia de cinema japonês da Maria Novielli. Fora o obscurantismo, conheci um diretor genial. Daqueles que deixa aquela vontade de querer ver mais filmes. Dos 3 filmes que foram exibidos na Mostra em SP, gostei mais deste e do "Paixão Mórbida". Esses dois filmes têm um traço muito interessante: mulheres em um papel um tanto transgressor. Ou neste caso, dos caminhos e das escolhas de Matsuko. Surpreendi-me bastante com os 3 filmes deste sr. Noboru. Gostaria de rever, um dia. E o título deste filme? Não teria outro melhor.
Noites Brancas no Píer
3.3 6Discordo completamente do comentário abaixo do sr. Cinema com Crítica, de este filme do Vecchiali ser uma "tentativa de filme". O que eu vi foi uma adaptação particular e própria. Uma adaptação belíssima do conto de Dostoievski. O problema é que muitas pessoas esperam uma adaptação aprisionada e "fiel", e eu , particularmente, já estou farto de discutir isso no Filmow. Se é para montar um tribunal contra uma adaptação livre e própria, esteticamente falando, vamos julgar Sokurov, Shinoda e tantos outros grandes. Por favor, e com todo respeito à divergência, mas dizer que este filme não confere volume ao texto de Dostoievski é um comentário raso em todas as esferas, na da tradução, da estética..
Quanto ao filme, saí arrasado da sala de cinema, como me senti arrasado diante do texto. Um filme que mergulha na ausência, na solidão, no sonho. Um filme que estreita os laços com aquilo que os poetas românticos no séc. XIX tanto perseguiam, o sonho: a vida como um sonho, ou o sonho como única possibilidade, já que a vida é insuficiente. Um sonho que flerta o delírio. Sonho - para lembrar o ontológico personagem sonolento e delirante de Georges Perec - que só "é" na noite, na solidão essencial da noite..Aquilo que o ensaísta francês Maurice Blanchot fala sobre o sonho, como a "intimidade essencial com o centro", parece servir para este filme: quase-teatral, os dois personagens (o sonhador e Nastenka) dialogam dentro da mesma intimidade nocturnal do Igitur de Mallarmé. E o que é mais precioso para o sonhante? O que é mais precioso para os poetas do romantismo? A fagulha da felicidade. A inalcansável felicidade. Relembro dos momentos finais do romance de Dostoievski: "Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?". Relembro também uma frase dita pelo sonhante no filme: "A esperança só ajuda a destruir a nós mesmos".
Para concluir essa prosa - muitas coisas a dizer, mas ando absolutamente sem saco para estender minhas notas: um dos melhores textos (de Dostoievski) para se compreender a poesia do séc. XIX, a solidão existencial e o lugar destes poetas no mundo. E um filme bastante particular em seu modo de tradução. Ainda não vi a tradução que o Visconti fez deste texto, espero ver. E se possível, re-ver este filme, tamanha a simpatia que tive. Recomendo muito.
Alucinação Sensual/ Estranha Obsessão
4.0 5Interessante que Ichikawa até então , com "Coração" e "O tempo do pavilhão dourado" vem seguindo um curso de adaptações "fiéis" e, segundo a Maria Novielli em seu "História do cinema japonês", Ichikawa é "menos fiel" na adaptação da obra de Junichiro para este "A Chave". Como eu não conheço o texto adaptado, eu vou confiar na citada pesquisadora.
A princípio, este filme pode funcionar como uma maravilhosa crítica à geração cosmética que passamos no século XXI, uma critica a juventude cada vez mais perseguidora da beleza e virilidade. Kenmochi seria, então, o traço de uma juventude escrava da própria juventude. Mas no decorrer do filme, a “estranha obsessão” de Kenmochi passa a ficar nítida, a medida em que os personagens vão participando de um jogo com uma coloração erótica. O que me chamou atenção foi a ação da personagem que é empregada da casa que, no final do filme,
envenena a todos.
Ora, veja-se que se trata de uma velha daltônica e com facilidade de confusão no campo associativo. Assim como ninguém acredita em sua confissão, nós também podemos perguntar: até que ponto podemos confiar nela? Isso me fez lembrar alguns narradores bêdados do "Tutameia", de Guimarães Rosa, que contam as histórias sob o efeito da cachaça e fica difícil o leitor "confiar" naquilo. O que eu quero dizer é: a empregada joga com essa ideia do confiar e do engano. Sem contar que o 'engano' (acho que "engano" é a melhor definição para as ações desta velha no filme) é um traço típico do gênero cômico. Como disse o Daniel abaixo, e eu concordo plenamente, isso só realça a elasticidade e versatilidade de Kon Ichikawa. Sem dúvidas, um filme muito bonito e interessante.
Coração
4.3 3Esboço uma tese de que este filme é embrionário de uma matéria existencial que Ichikawa consolidará nos filmes seguintes, "Harpa da Birmânia" e "O Templo do Pavilhão Dourado", filmes que giram em torno da existência, solidão e morte. Eu fiquei muito impressionado com este filme e principalmente por ele apresentar dois personagens extremamente peculiares: Nobuchi (sensei), um homem cerrado em si, incapaz de relacionar-se com o mundo a sua volta, um homem que carrega profunda tristeza do ser, que aos poucos vai sendo revelada; e Kaji, que nos é apresentado no plano da memória de Nobuchi, personagem que é o símbolo e inspiração do sensei.
Kaji é um personagem que escolhe seguir a vida ascética e tal como o Buda histórico fez aos seus 29 anos, abandonar as doçuras da vida, liberar-se, desprender-se, e seguir o caminho da iluminação, até o momento em que se vê apaixonado pela jovem Shizu. Interessante nesta narrativa é ver como Kaji e Nobuchi caminham para uma mesma direção,
que é a morte como resultado; aliás, solidão e morte,tão bem operados neste filme, será uma operação presente tanto em "Harpa da Birmânia" quanto em "Pavilhão Dourado"
Outro fato interessante é que tanto Nobuchi quanto o harpista de "Harpa da Birmânia" irão deixar seu testemunho, veja-se como Ichikawa toma gosto por operar o recurso da memória. Por isso vejo esse filme como embrionário. uma anotação. uma passagem para... Só tenho a agradecer ao camarada Daniel que, com generosidade, me apresentou diretor e filme. Filme p/ ficar na memória.