o transe do povo é perpétuo na república das bananas, dilacerados ora pelo populismo, ora pelo conservadorismo, o povo miserável é a corda que rasga, são os famintos de comida, política e professias; até mesmo o poeta idealista sucumbe diante da ardilosa politica. terra em transe é um retrato da politica latino-americana e do destino de um povo imolado pelas convulsões megalomaníacas de seus líderes... a palavra transe normalmente está ligada a um acontecimento transcendental, é abordada como um fenômeno religioso, mas aqui ela aparece apenas como estado de alienação, medo e inconsciência; corrupção, poder e messianismo são eixos temáticos frequentes nos ensaios poético-políticos de glauber rocha; o lirismo e as atuações são impecáveis, porém o desenvolvimento não linear da narrativa torna o enredo um pouco confuso
a prodigiosa trilogia do silêncio de ingmar bergman é dirigida por essa tirânica política do não-dito, pelos labirintos sinitros dessa mudez que não é de serenidade, mas de profunda e pesada aflição; através de um espelho, luz de inverno e silêncio estão conectados por uma perturbação mais ou menos pascaliana, seus personagens são cativos de um sentimento inefável diante do silêncio desses espaços infinitos; não exatamente um drama em relação ao vazio do cosmos, mas dessa condição de esvaziamento da linguagem e a ruína da comunicabilidade... tystnaden condensa brilhantemente todos esses elementos que tornam seus personagens tão miseráveis e incapazes de diálogo vivo; seus relacionamentos acontecem sempre por meio de simulacros; as duas irmãs e o garoto parecem que morrem pelas palavras que não pronunciam e pelas confissões eternamente guardadas
lavra dor é um curta-metragem sessentista com uma organização poética muito instigante acerca da reforma agrária; a montagem estética não é lá tão poderosa, mas é digno de um comentário o filme em negativo e os altos contrastes que estão lá para anunciar as agruras da vida campesina e a forte dicotomia camponês-fazendeiro. a sua linguagem é revolucionária, seu discurso permite revelar a tez abatida dos trabalhadores rurais e a dureza da realidade pastoril em uma época de trevas políticas; é uma fotografia do povo e ao mesmo tempo ferramenta para sua própria emancipação. o poema-praxis de chamie surge como um mantra que busca destruir o concreto dos concretistas, estabelecer novas semânticas com uma abordagem mais social e brincar com a "fisionomia" das palavras
the great satan é uma riquíssima coletânea de mídias em vhs, desde trasheiras perdidas até programas religiosos dos anos 90 recheados de muito pânico satânico; todos esses conteúdos foram arranjados em um fluxo diabólico-vertiginoso que perverte suas semânticas originais de modo a fazer surgir uma nova narratividade... uma história luciférica, uma apologética do obscuro; o fato de ser uma composição com recortes muito rápidos faz com que o filme se torne uma marcha insana de satanismo e ocultismo, uma sucessão demoníaca e frenética; aprender sobre o senhor das trevas me deu uma terrível dor de cabeça, não recomendo assistir caso tenha problemas com enxaqueca
tudo o que envolve o diabo e seus arquétipos luciferianos me agrada! nesse curta francês do início do século passado, o anjo banido aparece bem vestido e disposto a se divertir com tudo o que as ruas parisienses podem oferecer para um lúcifer enfadado; tenho a plena certeza de que satã visitou os últimos poetas simbolistas, ofereceu-lhes haxixe e apontou-lhes as direções com seu bom e velho jeito mefistofélico de ser e seduzir. acho muito elegante esse véu cor de vinho que cobre a tela, embeleza a fotografia e potencializa a graciosidade dessa peça infernal
o mestre švankmajer nos apresenta três breves contos sobre nós mesmos; a comida e a maneira como nos relacionamos com ela é uma temática muito espirituosa para manifestar o grotesco da condição antropofágica da qual somos vítimas; as personagens se revelam feras! quando apertei o play eu já esperava uma antologia de críticas agudas, muita lucidez e discernimento... a obra é inconfundível, são aquelas célebres alegorias surrealistas feitas em stop motion pelas quais o diretor tcheco é amplamente conhecido; o primeiro conto me pareceu uma expressão inteligente da mecanização, precarização e massificação ligadas ao ato de comer; o segundo ato aparenta ser mais astuto e direto, compreendi como classismo e reprodução de ideologia; o último conto flerta ainda mais com a antropofagia e nos ensina que um pouco de tempero já pode disfarçar o absurdo de devorar a si mesmo, é fácil aniquiliar-se a depender dos rumos políticos de uma nação
é tão único e brilhante quanto rock lee vs gaara ao som de linkin park rsrs... um baita anime! hoje conheci o senhor kurosaka e essa obra me pareceu ser um apropriado cartão de visitas para apresentar-me a um diretor que está visceralmente filiado aos costumes da arte contemporânea e do experimentalismo; mochibei tem a duração ideal para ser exatamente o que é, nem curto demais para não ter substância, nem muito longo para se perder e se desligar de sua própria ideia; vejo uma figura que amaldiçoa a si mesmo, maldizendo-se e castigando-se, vítima de seu maior carrasco, o eu-mesmo. esse traço sujo e impolido da animação é algo que acompanha muitíssimo bem um horror surreal e bizarro feito no japão; a única forma de se preparar para esse curta é assistindo-o! por fim eu preciso dizer uma coisa, lá vai... nossa, é literalmente eu, sério mesmo, muito eu depois de qualquer interação social
sublime e formidável! é uma belíssima animação aquarelada! julgando somente o zelo técnico e o capricho artístico esse curtinha já é um delicioso deleite aos olhos. tango, da forma como interpreto, parece ser uma manifestação das transgressões e vícios do humano, uma história sobre feras e seus pecados, um breve conto sobre poluição, miséria e morte... inexorável condição humana que explora, esgota e degrada; comunica também o destino trágico que sempre nos reserva o odioso mecanismo do messianismo e dos mitos; a jornada dos povos e a marcha da história estão repletas desse nefasto devir... são tantos fatalismos que nos condenam!
tudo nesse curta me lembrava foucault; todos os desenhos, os escritos e as cenas de profunda e inefável alienação... tudo parece comunicar uma sabedoria obscura e impenetrável, um caos ainda não decifrado
"A loucura fascina porque é um saber. É saber, de início, porque todas essas figuras absurdas são, na realidade, elementos de um saber difícil, fechado, esotérico. Este saber, tão inacessível e temível, o Louco o detêm em sua parvoíce inocente. Enquanto o homem racional e sábio percebe apenas algumas figuras fragmentárias, e por isso mesmo mais inquietantes, o Louco o carrega inteiro em uma esfera intacta: essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está cheia de um saber invisível"
den skyldige é uma obra descomplicada e acessível, é desses filmes onde tudo acontece numa paisagem fixa e numa só cadência narrativa; essa simplicidade não é sinônimo de pobreza, mas de clareza e despojamento... é tão singelo e rico como ouvir a uma partida de futebol pelo rádio, nos permite fantasiar os acontecimentos e nos envolver intimamente com os fatos assim como o personagem principal, que se vê atravessado pelos dilemas e destinos do caso; a trama é costurada pelas ligações e somos colocados na mesma posição do policial, reféns das chamadas telefônicas e desse "outro lado" que nunca é visto, mas sempre cogitado
levei muito muito tempo para puxar um fôlego e assistir a esse prestigiado longa-metragem do glauber rocha; eu estava me preparando para uma cerimônia de alegorias de difícil acesso e muitas abstrações, mas então lembrei da materialidade, solidez e crueza social do cinema novo... em deus e o diabo na terra do sol, glaubão reproduz com preto e branco, teatralidade e muito barroco a miserabilidade do povo enquanto massa desamparada e desesperançada a mercê dos duelos políticos dos poderosos e sofrendo das cicatrizes de seus embates; deus ou diabo... burgueses, religiosos fervorosos ou cangaceiros vingativos, personagens de um eterno conflito na terra do sol, promessas vazias para um povo esvaziado
um homem aprendendo a morrer! normalmente o problema da morte não é um fato devidamente refletido; digo mais, é por causa dela que a vida é tão repleta de distrações, passatempos e divertimentos; cronenberg resgata brilhantemente o tabu primordial, abre a ferida primeira e nos mostra que morrer é difícil... enfrentar a mortalidade, se deitar ao lado do próprio corpo pálido, vazio e esgotado e aceitá-lo em toda a dimensão de seu não-ser é uma dura tarefa
uma maravilha do cinema nacional! a atmosfera das obras do cinema novo é quase sempre barulhenta; os filmes berram e gemem como se doessem. em os fuzis esse frenesi sonoro acontece através dos cantos litúrgicos de fé de um povo massacrado pela fome e oprimido pelos fuzis de soldados que prometem aquele fetiche positivista da ordem. a cantoria religiosa é tema e prece diante dos desesperos da seca e das forças militares maliciosas
estava torcendo para que nunca chegassem em lugar nenhum! o retrato de um tédio geracional precisa de um motor, necessita da velocidade que deforma um presente esvaziado. o carro faz com que as paisagens artificiais passem e não se fixem pelos vidros do automóvel... a identidade e todos os desejos de uma juventude sessentista marginal são igualmente fugidias, tal como o chão que corre e fica para trás; há uma tensão permanente entre passado e presente, e a montagem sganzerliana parece imitar as ansiedades da adolescência brasileira dos anos sessenta. a câmera percorre a cidade sem saber onde chegar, mas conservando o movimento e a ânsia pela novidade, nem que seja uma tragédia, sei lá... uma peste bubônica (risos)
gostei bastante! um olhar muito jovial e uma investigação interessante dentro do campo da cultura mágica dos filmes adaptados de Harry Potter e dos mitos escritos; essa proposta de um casamento entre o mundo fantástico-mitológico que banha a cultura e o mundo natural é uma possibilidade de conciliação única e genuinamente orgânica; a história dos animais fantásticos e a história natural parece que sempre integraram o mesmo aspecto de uma única imanência cri-ativa... a suposta transcendência desvairada que essas figuras nos transmitem pode ser só um julgamento moderno e apressado de uma íntima relação com a natureza mediada por todas as suas belezas, terrores e espantos
e como transborda de lirismo essa singelíssima obra do wim wenders! muito mais do que cair na implacabilidade do tempo ou voluntariar-se aos terrores do devir, os anjos monocromáticos e inchados de eternidade buscam preencher seus afetos gelados e suas poesias celestes com calor humano, sentir a carne, as lágrimas, o frio, a chuva, o amor e as tristezas da materialidade. ah! e como há tristezas, especialmente numa berlim tétrica e arrasada... por isso essa incomunicabilidade entre anjos e gente revela também um abismo, que faz com que o anjo deseje a experiência lúgubre e humana da aflição, das noites e do amor. apesar de ser um pouquinho cansativo, o filme-poesia do wenders fornece algumas belíssimas visões poéticas acerca da condição humana
farnese é um poeta das sucatas! artista dos troços e destroços! suas obras são pedaços de um poema fatal sobre o descartável e sobre os restos medíocres que se transfiguram através das forças recicladoras do inutilizável! fazer arte a partir dos entulhos do ex-mundo. escandalizar a morbidez da matéria... um barato total essas colagens que erguem, ao final, um monumento aos escombros e ao lixo... metáfora ao caos pós-guerra inflada de pessimismo, desilusão e amargura. um carinha bastante idiossincrático, já está entre meus favoritos
documentário com uma narrativa biográfica imensamente mais espirituosa, teatral e viva, se livrando, assim, daquele tradicional desfile de dados cadavéricos que se costuma encarar nas leituras biográficas padrões. as cenas e as personagens reanimam os impulsos poéticos e violentamente joviais — quase luciferianos — do inquieto rimbaud. exaustivamente selvagem e de espírito migratório como ave, buscava sempre a brisa de novos ares... a obra resgata, de maneira espetaculosa, toda essa juventude lírica, os abatimentos, as agruras e a insubmissão de um jovem poeta errante fugindo de tudo para poder encontrar outros tantos "tudos" por aí, até porque "ninguém é sério aos 17 anos"! rimbaud teve a rebeldia explosiva de um outsider, poeta que deu cor às vogais e fez do exílio um método existencial
a coberta que moacir usava pra se "proteger" do mundo a se entregar e se deixar seduzir pelos seus misticismos, suas visões e sugestões mais inconscientes parece ser um ritual importante nesse parto de simbolismos e criaturas que transam com suas próprias formas criando essas interessantes novidades figurativas. apesar de tantos impedimentos e distâncias, ele tem uma expressão maravilhosa da nudez, de anjos, animais, esoterismos, vaginas e erotismos. ah! e nada mais justo e artístico do que cuspir todas aquelas figuras satânicas pra fora só pra ver a forma que tomam... moacir tem um folclorismo interno muito vivo! conhecer as suas obras e sua simplicidade foi uma grata descoberta. arte brasileiríssima
um diamante do cinema nacional... o amor dito através do não-dito! é um filminho atravessado por silêncios, culpa, negações e rachaduras morais meio bergmanianas... os olhares que constatam a paixão ilícita, a agonia que amaldiçoa a própria consciência, o padre emudecido em horror e virando as costas, os personagens sofrendo em uma quietude melancólica, todas essas pistas se transformam em linguagem, no idioma que berra as angústias internas. a obra parece comunicar a dualidade que existe entre a concretização de um amor profano e as garras moralizantes de uma pequena comunidade inquisidora. as cidades pequenas são sempre mais cruéis, e a escolha do padre como figura no dilema moral é certeira
bonito trabalho documental de um kubrick jovem e já suficientemente lúcido para apontar ângulos únicos com a câmera e competente para construir um ambiente onde o tempo é "estudado" vertiginosamente durante esse dia-lentidão que esconde a noite da luta. a verdadeira luta é a passagem nauseante das horas de um dia que é guardião de ansiedades, rituais e cotidianidades. é como se a espera do boxeador fosse a própria imagem de um ringue sangrento, e a luta propriamente dita, um paraíso terapêutico de suspensão de uma temporalidade que acossava... as filmagens direcionadas ao cotidiano do lutador também quebram uma certa expectativa que costuma desumanizar os lutadores. todas essas ambiguidades têm um grande relevo nesse curta-metragem
eu fico muito feliz quando descubro artistas como nabuhiro, porque é muito bonito poder percorrer essas obras repletas de esoterismos e cenários meio esfíngicos. é tão hermético e assustadoramente imagético como algumas obras do kurt kren e do brakage, o ponto em comum é que todas produzem uma dança frenética de frames que parecem que possuem vida própria, cada frame poderia ser estudado isoladamente. qualquer pause revela um recorte lindíssimo... nesse trabalho nabuhiro parece brincar de representar fragmentos da visão frenética e psicodélica de um corvo. por mais abstrato e arbitrário que essa forma de fazer cinema possa parecer, existem muitos afetos acontecendo durante os quatro minutos de filmagem, não é difícil encontrar aqui confusão, mistério, sonolência, dissociação ou medo
me lembra das vezes que eu brincava de desenhar folhas secas desse jeito, riscando um papel com giz de cera e vendo as "cicatrizes" e as singularidades da folha aparecendo por cima... amo todos os esforços colocados nesses projetos de abstracionismos artesanais!! muito pertinentes para quando as figuras cansam ou são insuficientes por si só. a composição de traços e formatos vermelhos é mágica e hipnótica! mágica porque os tonzinhos de vermelho somem e reaparecem de um jeito musical e lisérgico; e hipnótica porque é acompanhada por esse som-transe que faz tudo ficar meio cerimonial e psicótico-narcótico. é como observar fogos de artifício no céu noturno e captar não muito mais do que algumas ligeiras centelhas dissolvidas feito memórias. a libélula e as suas metamorfoses acerejadas não demoram até se transformarem em esquecimentos, um desmanche abstrato logo atrás de outro, uma memória do vermelho
uma coleção de paisagens desérticas, tapetes de areia intermináveis, uma porção considerável de silêncios e um personagem buscando evitar seu destino e fugir do tédio atroz da própria vida. antonioni arranjou grande parte dos ingredientes necessários para expressar uma imagem poética de solidão, de enfado e de fuga da realidade. a atuação do nicholson é pontual e maravilhosa, sublime ver ele representando um sujeito em processo de aniquilação da demoníaca e aterrorizante subjetividade, esquivando-se de todos os horrores que circulam o "eu", a vida social, as pressões externas e internas, o trabalho, o amor e toda a "areia" que entra no sapato e se acumula lá dentro... sempre que eu começava a pensar que o personagem havia finalmente se desligado dos terrores da existência pretérita, o presente-cárcere retornava intacto, voltava a mesmíssima sensação implacável e singular de estar sempre contemporâneo de si mesmo, intocável e intacto... bobo fui eu em pensar que a geografia poderia ter algum efeito reparador de longo prazo sobre a tristeza e o descontentamento
Terra em Transe
4.1 286 Assista Agorao transe do povo é perpétuo na república das bananas, dilacerados ora pelo populismo, ora pelo conservadorismo, o povo miserável é a corda que rasga, são os famintos de comida, política e professias; até mesmo o poeta idealista sucumbe diante da ardilosa politica. terra em transe é um retrato da politica latino-americana e do destino de um povo imolado pelas convulsões megalomaníacas de seus líderes... a palavra transe normalmente está ligada a um acontecimento transcendental, é abordada como um fenômeno religioso, mas aqui ela aparece apenas como estado de alienação, medo e inconsciência; corrupção, poder e messianismo são eixos temáticos frequentes nos ensaios poético-políticos de glauber rocha; o lirismo e as atuações são impecáveis, porém o desenvolvimento não linear da narrativa torna o enredo um pouco confuso
O Silêncio
4.1 110a prodigiosa trilogia do silêncio de ingmar bergman é dirigida por essa tirânica política do não-dito, pelos labirintos sinitros dessa mudez que não é de serenidade, mas de profunda e pesada aflição; através de um espelho, luz de inverno e silêncio estão conectados por uma perturbação mais ou menos pascaliana, seus personagens são cativos de um sentimento inefável diante do silêncio desses espaços infinitos; não exatamente um drama em relação ao vazio do cosmos, mas dessa condição de esvaziamento da linguagem e a ruína da comunicabilidade... tystnaden condensa brilhantemente todos esses elementos que tornam seus personagens tão miseráveis e incapazes de diálogo vivo; seus relacionamentos acontecem sempre por meio de simulacros; as duas irmãs e o garoto parecem que morrem pelas palavras que não pronunciam e pelas confissões eternamente guardadas
Lavra Dor
3.8 4lavra dor é um curta-metragem sessentista com uma organização poética muito instigante acerca da reforma agrária; a montagem estética não é lá tão poderosa, mas é digno de um comentário o filme em negativo e os altos contrastes que estão lá para anunciar as agruras da vida campesina e a forte dicotomia camponês-fazendeiro. a sua linguagem é revolucionária, seu discurso permite revelar a tez abatida dos trabalhadores rurais e a dureza da realidade pastoril em uma época de trevas políticas; é uma fotografia do povo e ao mesmo tempo ferramenta para sua própria emancipação. o poema-praxis de chamie surge como um mantra que busca destruir o concreto dos concretistas, estabelecer novas semânticas com uma abordagem mais social e brincar com a "fisionomia" das palavras
The Great Satan
4.0 2the great satan é uma riquíssima coletânea de mídias em vhs, desde trasheiras perdidas até programas religiosos dos anos 90 recheados de muito pânico satânico; todos esses conteúdos foram arranjados em um fluxo diabólico-vertiginoso que perverte suas semânticas originais de modo a fazer surgir uma nova narratividade... uma história luciférica, uma apologética do obscuro; o fato de ser uma composição com recortes muito rápidos faz com que o filme se torne uma marcha insana de satanismo e ocultismo, uma sucessão demoníaca e frenética; aprender sobre o senhor das trevas me deu uma terrível dor de cabeça, não recomendo assistir caso tenha problemas com enxaqueca
Satan Fait la Noce
4.5 2tudo o que envolve o diabo e seus arquétipos luciferianos me agrada! nesse curta francês do início do século passado, o anjo banido aparece bem vestido e disposto a se divertir com tudo o que as ruas parisienses podem oferecer para um lúcifer enfadado; tenho a plena certeza de que satã visitou os últimos poetas simbolistas, ofereceu-lhes haxixe e apontou-lhes as direções com seu bom e velho jeito mefistofélico de ser e seduzir. acho muito elegante esse véu cor de vinho que cobre a tela, embeleza a fotografia e potencializa a graciosidade dessa peça infernal
Comida
4.5 78o mestre švankmajer nos apresenta três breves contos sobre nós mesmos; a comida e a maneira como nos relacionamos com ela é uma temática muito espirituosa para manifestar o grotesco da condição antropofágica da qual somos vítimas; as personagens se revelam feras! quando apertei o play eu já esperava uma antologia de críticas agudas, muita lucidez e discernimento... a obra é inconfundível, são aquelas célebres alegorias surrealistas feitas em stop motion pelas quais o diretor tcheco é amplamente conhecido; o primeiro conto me pareceu uma expressão inteligente da mecanização, precarização e massificação ligadas ao ato de comer; o segundo ato aparenta ser mais astuto e direto, compreendi como classismo e reprodução de ideologia; o último conto flerta ainda mais com a antropofagia e nos ensina que um pouco de tempero já pode disfarçar o absurdo de devorar a si mesmo, é fácil aniquiliar-se a depender dos rumos políticos de uma nação
Mochibei
3.5 1é tão único e brilhante quanto rock lee vs gaara ao som de linkin park rsrs... um baita anime! hoje conheci o senhor kurosaka e essa obra me pareceu ser um apropriado cartão de visitas para apresentar-me a um diretor que está visceralmente filiado aos costumes da arte contemporânea e do experimentalismo; mochibei tem a duração ideal para ser exatamente o que é, nem curto demais para não ter substância, nem muito longo para se perder e se desligar de sua própria ideia; vejo uma figura que amaldiçoa a si mesmo, maldizendo-se e castigando-se, vítima de seu maior carrasco, o eu-mesmo. esse traço sujo e impolido da animação é algo que acompanha muitíssimo bem um horror surreal e bizarro feito no japão; a única forma de se preparar para esse curta é assistindo-o! por fim eu preciso dizer uma coisa, lá vai... nossa, é literalmente eu, sério mesmo, muito eu depois de qualquer interação social
Tango
4.2 2sublime e formidável! é uma belíssima animação aquarelada! julgando somente o zelo técnico e o capricho artístico esse curtinha já é um delicioso deleite aos olhos. tango, da forma como interpreto, parece ser uma manifestação das transgressões e vícios do humano, uma história sobre feras e seus pecados, um breve conto sobre poluição, miséria e morte... inexorável condição humana que explora, esgota e degrada; comunica também o destino trágico que sempre nos reserva o odioso mecanismo do messianismo e dos mitos; a jornada dos povos e a marcha da história estão repletas desse nefasto devir... são tantos fatalismos que nos condenam!
Jaime
4.1 1tudo nesse curta me lembrava foucault; todos os desenhos, os escritos e as cenas de profunda e inefável alienação... tudo parece comunicar uma sabedoria obscura e impenetrável, um caos ainda não decifrado
"A loucura fascina porque é um saber. É saber, de início, porque todas essas figuras absurdas são, na realidade, elementos de um saber difícil, fechado, esotérico. Este saber, tão inacessível e temível, o Louco o detêm em sua parvoíce inocente. Enquanto o homem racional e sábio percebe apenas algumas figuras fragmentárias, e por isso mesmo mais inquietantes, o Louco o carrega inteiro em uma esfera intacta: essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está cheia de um saber invisível"
Culpa
3.9 355 Assista Agoraden skyldige é uma obra descomplicada e acessível, é desses filmes onde tudo acontece numa paisagem fixa e numa só cadência narrativa; essa simplicidade não é sinônimo de pobreza, mas de clareza e despojamento... é tão singelo e rico como ouvir a uma partida de futebol pelo rádio, nos permite fantasiar os acontecimentos e nos envolver intimamente com os fatos assim como o personagem principal, que se vê atravessado pelos dilemas e destinos do caso; a trama é costurada pelas ligações e somos colocados na mesma posição do policial, reféns das chamadas telefônicas e desse "outro lado" que nunca é visto, mas sempre cogitado
Deus e o Diabo na Terra do Sol
4.1 428 Assista Agoralevei muito muito tempo para puxar um fôlego e assistir a esse prestigiado longa-metragem do glauber rocha; eu estava me preparando para uma cerimônia de alegorias de difícil acesso e muitas abstrações, mas então lembrei da materialidade, solidez e crueza social do cinema novo... em deus e o diabo na terra do sol, glaubão reproduz com preto e branco, teatralidade e muito barroco a miserabilidade do povo enquanto massa desamparada e desesperançada a mercê dos duelos políticos dos poderosos e sofrendo das cicatrizes de seus embates; deus ou diabo... burgueses, religiosos fervorosos ou cangaceiros vingativos, personagens de um eterno conflito na terra do sol, promessas vazias para um povo esvaziado
The Death of David Cronenberg
4.0 4um homem aprendendo a morrer! normalmente o problema da morte não é um fato devidamente refletido; digo mais, é por causa dela que a vida é tão repleta de distrações, passatempos e divertimentos; cronenberg resgata brilhantemente o tabu primordial, abre a ferida primeira e nos mostra que morrer é difícil... enfrentar a mortalidade, se deitar ao lado do próprio corpo pálido, vazio e esgotado e aceitá-lo em toda a dimensão de seu não-ser é uma dura tarefa
Os Fuzis
4.1 72uma maravilha do cinema nacional! a atmosfera das obras do cinema novo é quase sempre barulhenta; os filmes berram e gemem como se doessem. em os fuzis esse frenesi sonoro acontece através dos cantos litúrgicos de fé de um povo massacrado pela fome e oprimido pelos fuzis de soldados que prometem aquele fetiche positivista da ordem. a cantoria religiosa é tema e prece diante dos desesperos da seca e das forças militares maliciosas
Olho por Olho
3.7 7estava torcendo para que nunca chegassem em lugar nenhum! o retrato de um tédio geracional precisa de um motor, necessita da velocidade que deforma um presente esvaziado. o carro faz com que as paisagens artificiais passem e não se fixem pelos vidros do automóvel... a identidade e todos os desejos de uma juventude sessentista marginal são igualmente fugidias, tal como o chão que corre e fica para trás; há uma tensão permanente entre passado e presente, e a montagem sganzerliana parece imitar as ansiedades da adolescência brasileira dos anos sessenta. a câmera percorre a cidade sem saber onde chegar, mas conservando o movimento e a ânsia pela novidade, nem que seja uma tragédia, sei lá... uma peste bubônica (risos)
Animais Fantásticos: Uma História Natural
3.5 5 Assista Agoragostei bastante! um olhar muito jovial e uma investigação interessante dentro do campo da cultura mágica dos filmes adaptados de Harry Potter e dos mitos escritos; essa proposta de um casamento entre o mundo fantástico-mitológico que banha a cultura e o mundo natural é uma possibilidade de conciliação única e genuinamente orgânica; a história dos animais fantásticos e a história natural parece que sempre integraram o mesmo aspecto de uma única imanência cri-ativa... a suposta transcendência desvairada que essas figuras nos transmitem pode ser só um julgamento moderno e apressado de uma íntima relação com a natureza mediada por todas as suas belezas, terrores e espantos
Asas do Desejo
4.3 493 Assista Agorae como transborda de lirismo essa singelíssima obra do wim wenders! muito mais do que cair na implacabilidade do tempo ou voluntariar-se aos terrores do devir, os anjos monocromáticos e inchados de eternidade buscam preencher seus afetos gelados e suas poesias celestes com calor humano, sentir a carne, as lágrimas, o frio, a chuva, o amor e as tristezas da materialidade. ah! e como há tristezas, especialmente numa berlim tétrica e arrasada... por isso essa incomunicabilidade entre anjos e gente revela também um abismo, que faz com que o anjo deseje a experiência lúgubre e humana da aflição, das noites e do amor. apesar de ser um pouquinho cansativo, o filme-poesia do wenders fornece algumas belíssimas visões poéticas acerca da condição humana
Farnese
4.2 7farnese é um poeta das sucatas! artista dos troços e destroços! suas obras são pedaços de um poema fatal sobre o descartável e sobre os restos medíocres que se transfiguram através das forças recicladoras do inutilizável! fazer arte a partir dos entulhos do ex-mundo. escandalizar a morbidez da matéria... um barato total essas colagens que erguem, ao final, um monumento aos escombros e ao lixo... metáfora ao caos pós-guerra inflada de pessimismo, desilusão e amargura. um carinha bastante idiossincrático, já está entre meus favoritos
Arthur Rimbaud: Uma Biografia
4.0 5documentário com uma narrativa biográfica imensamente mais espirituosa, teatral e viva, se livrando, assim, daquele tradicional desfile de dados cadavéricos que se costuma encarar nas leituras biográficas padrões. as cenas e as personagens reanimam os impulsos poéticos e violentamente joviais — quase luciferianos — do inquieto rimbaud. exaustivamente selvagem e de espírito migratório como ave, buscava sempre a brisa de novos ares... a obra resgata, de maneira espetaculosa, toda essa juventude lírica, os abatimentos, as agruras e a insubmissão de um jovem poeta errante fugindo de tudo para poder encontrar outros tantos "tudos" por aí, até porque "ninguém é sério aos 17 anos"! rimbaud teve a rebeldia explosiva de um outsider, poeta que deu cor às vogais e fez do exílio um método existencial
Moacir Arte Bruta
4.1 6 Assista Agoraa coberta que moacir usava pra se "proteger" do mundo a se entregar e se deixar seduzir pelos seus misticismos, suas visões e sugestões mais inconscientes parece ser um ritual importante nesse parto de simbolismos e criaturas que transam com suas próprias formas criando essas interessantes novidades figurativas. apesar de tantos impedimentos e distâncias, ele tem uma expressão maravilhosa da nudez, de anjos, animais, esoterismos, vaginas e erotismos. ah! e nada mais justo e artístico do que cuspir todas aquelas figuras satânicas pra fora só pra ver a forma que tomam... moacir tem um folclorismo interno muito vivo! conhecer as suas obras e sua simplicidade foi uma grata descoberta. arte brasileiríssima
O Padre e a Moça
3.9 51um diamante do cinema nacional... o amor dito através do não-dito! é um filminho atravessado por silêncios, culpa, negações e rachaduras morais meio bergmanianas... os olhares que constatam a paixão ilícita, a agonia que amaldiçoa a própria consciência, o padre emudecido em horror e virando as costas, os personagens sofrendo em uma quietude melancólica, todas essas pistas se transformam em linguagem, no idioma que berra as angústias internas. a obra parece comunicar a dualidade que existe entre a concretização de um amor profano e as garras moralizantes de uma pequena comunidade inquisidora. as cidades pequenas são sempre mais cruéis, e a escolha do padre como figura no dilema moral é certeira
O Dia da Luta
3.1 28bonito trabalho documental de um kubrick jovem e já suficientemente lúcido para apontar ângulos únicos com a câmera e competente para construir um ambiente onde o tempo é "estudado" vertiginosamente durante esse dia-lentidão que esconde a noite da luta. a verdadeira luta é a passagem nauseante das horas de um dia que é guardião de ansiedades, rituais e cotidianidades. é como se a espera do boxeador fosse a própria imagem de um ringue sangrento, e a luta propriamente dita, um paraíso terapêutico de suspensão de uma temporalidade que acossava... as filmagens direcionadas ao cotidiano do lutador também quebram uma certa expectativa que costuma desumanizar os lutadores. todas essas ambiguidades têm um grande relevo nesse curta-metragem
Crow
3.8 2eu fico muito feliz quando descubro artistas como nabuhiro, porque é muito bonito poder percorrer essas obras repletas de esoterismos e cenários meio esfíngicos. é tão hermético e assustadoramente imagético como algumas obras do kurt kren e do brakage, o ponto em comum é que todas produzem uma dança frenética de frames que parecem que possuem vida própria, cada frame poderia ser estudado isoladamente. qualquer pause revela um recorte lindíssimo... nesse trabalho nabuhiro parece brincar de representar fragmentos da visão frenética e psicodélica de um corvo. por mais abstrato e arbitrário que essa forma de fazer cinema possa parecer, existem muitos afetos acontecendo durante os quatro minutos de filmagem, não é difícil encontrar aqui confusão, mistério, sonolência, dissociação ou medo
Memory of Red
3.5 2me lembra das vezes que eu brincava de desenhar folhas secas desse jeito, riscando um papel com giz de cera e vendo as "cicatrizes" e as singularidades da folha aparecendo por cima... amo todos os esforços colocados nesses projetos de abstracionismos artesanais!! muito pertinentes para quando as figuras cansam ou são insuficientes por si só. a composição de traços e formatos vermelhos é mágica e hipnótica! mágica porque os tonzinhos de vermelho somem e reaparecem de um jeito musical e lisérgico; e hipnótica porque é acompanhada por esse som-transe que faz tudo ficar meio cerimonial e psicótico-narcótico. é como observar fogos de artifício no céu noturno e captar não muito mais do que algumas ligeiras centelhas dissolvidas feito memórias. a libélula e as suas metamorfoses acerejadas não demoram até se transformarem em esquecimentos, um desmanche abstrato logo atrás de outro, uma memória do vermelho
Profissão: Repórter
4.0 90uma coleção de paisagens desérticas, tapetes de areia intermináveis, uma porção considerável de silêncios e um personagem buscando evitar seu destino e fugir do tédio atroz da própria vida. antonioni arranjou grande parte dos ingredientes necessários para expressar uma imagem poética de solidão, de enfado e de fuga da realidade. a atuação do nicholson é pontual e maravilhosa, sublime ver ele representando um sujeito em processo de aniquilação da demoníaca e aterrorizante subjetividade, esquivando-se de todos os horrores que circulam o "eu", a vida social, as pressões externas e internas, o trabalho, o amor e toda a "areia" que entra no sapato e se acumula lá dentro... sempre que eu começava a pensar que o personagem havia finalmente se desligado dos terrores da existência pretérita, o presente-cárcere retornava intacto, voltava a mesmíssima sensação implacável e singular de estar sempre contemporâneo de si mesmo, intocável e intacto... bobo fui eu em pensar que a geografia poderia ter algum efeito reparador de longo prazo sobre a tristeza e o descontentamento