o transe do povo é perpétuo na república das bananas, dilacerados ora pelo populismo, ora pelo conservadorismo, o povo miserável é a corda que rasga, são os famintos de comida, política e professias; até mesmo o poeta idealista sucumbe diante da ardilosa politica. terra em transe é um retrato da politica latino-americana e do destino de um povo imolado pelas convulsões megalomaníacas de seus líderes... a palavra transe normalmente está ligada a um acontecimento transcendental, é abordada como um fenômeno religioso, mas aqui ela aparece apenas como estado de alienação, medo e inconsciência; corrupção, poder e messianismo são eixos temáticos frequentes nos ensaios poético-políticos de glauber rocha; o lirismo e as atuações são impecáveis, porém o desenvolvimento não linear da narrativa torna o enredo um pouco confuso
a prodigiosa trilogia do silêncio de ingmar bergman é dirigida por essa tirânica política do não-dito, pelos labirintos sinitros dessa mudez que não é de serenidade, mas de profunda e pesada aflição; através de um espelho, luz de inverno e silêncio estão conectados por uma perturbação mais ou menos pascaliana, seus personagens são cativos de um sentimento inefável diante do silêncio desses espaços infinitos; não exatamente um drama em relação ao vazio do cosmos, mas dessa condição de esvaziamento da linguagem e a ruína da comunicabilidade... tystnaden condensa brilhantemente todos esses elementos que tornam seus personagens tão miseráveis e incapazes de diálogo vivo; seus relacionamentos acontecem sempre por meio de simulacros; as duas irmãs e o garoto parecem que morrem pelas palavras que não pronunciam e pelas confissões eternamente guardadas
the great satan é uma riquíssima coletânea de mídias em vhs, desde trasheiras perdidas até programas religiosos dos anos 90 recheados de muito pânico satânico; todos esses conteúdos foram arranjados em um fluxo diabólico-vertiginoso que perverte suas semânticas originais de modo a fazer surgir uma nova narratividade... uma história luciférica, uma apologética do obscuro; o fato de ser uma composição com recortes muito rápidos faz com que o filme se torne uma marcha insana de satanismo e ocultismo, uma sucessão demoníaca e frenética; aprender sobre o senhor das trevas me deu uma terrível dor de cabeça, não recomendo assistir caso tenha problemas com enxaqueca
den skyldige é uma obra descomplicada e acessível, é desses filmes onde tudo acontece numa paisagem fixa e numa só cadência narrativa; essa simplicidade não é sinônimo de pobreza, mas de clareza e despojamento... é tão singelo e rico como ouvir a uma partida de futebol pelo rádio, nos permite fantasiar os acontecimentos e nos envolver intimamente com os fatos assim como o personagem principal, que se vê atravessado pelos dilemas e destinos do caso; a trama é costurada pelas ligações e somos colocados na mesma posição do policial, reféns das chamadas telefônicas e desse "outro lado" que nunca é visto, mas sempre cogitado
levei muito muito tempo para puxar um fôlego e assistir a esse prestigiado longa-metragem do glauber rocha; eu estava me preparando para uma cerimônia de alegorias de difícil acesso e muitas abstrações, mas então lembrei da materialidade, solidez e crueza social do cinema novo... em deus e o diabo na terra do sol, glaubão reproduz com preto e branco, teatralidade e muito barroco a miserabilidade do povo enquanto massa desamparada e desesperançada a mercê dos duelos políticos dos poderosos e sofrendo das cicatrizes de seus embates; deus ou diabo... burgueses, religiosos fervorosos ou cangaceiros vingativos, personagens de um eterno conflito na terra do sol, promessas vazias para um povo esvaziado
uma maravilha do cinema nacional! a atmosfera das obras do cinema novo é quase sempre barulhenta; os filmes berram e gemem como se doessem. em os fuzis esse frenesi sonoro acontece através dos cantos litúrgicos de fé de um povo massacrado pela fome e oprimido pelos fuzis de soldados que prometem aquele fetiche positivista da ordem. a cantoria religiosa é tema e prece diante dos desesperos da seca e das forças militares maliciosas
gostei bastante! um olhar muito jovial e uma investigação interessante dentro do campo da cultura mágica dos filmes adaptados de Harry Potter e dos mitos escritos; essa proposta de um casamento entre o mundo fantástico-mitológico que banha a cultura e o mundo natural é uma possibilidade de conciliação única e genuinamente orgânica; a história dos animais fantásticos e a história natural parece que sempre integraram o mesmo aspecto de uma única imanência cri-ativa... a suposta transcendência desvairada que essas figuras nos transmitem pode ser só um julgamento moderno e apressado de uma íntima relação com a natureza mediada por todas as suas belezas, terrores e espantos
e como transborda de lirismo essa singelíssima obra do wim wenders! muito mais do que cair na implacabilidade do tempo ou voluntariar-se aos terrores do devir, os anjos monocromáticos e inchados de eternidade buscam preencher seus afetos gelados e suas poesias celestes com calor humano, sentir a carne, as lágrimas, o frio, a chuva, o amor e as tristezas da materialidade. ah! e como há tristezas, especialmente numa berlim tétrica e arrasada... por isso essa incomunicabilidade entre anjos e gente revela também um abismo, que faz com que o anjo deseje a experiência lúgubre e humana da aflição, das noites e do amor. apesar de ser um pouquinho cansativo, o filme-poesia do wenders fornece algumas belíssimas visões poéticas acerca da condição humana
documentário com uma narrativa biográfica imensamente mais espirituosa, teatral e viva, se livrando, assim, daquele tradicional desfile de dados cadavéricos que se costuma encarar nas leituras biográficas padrões. as cenas e as personagens reanimam os impulsos poéticos e violentamente joviais — quase luciferianos — do inquieto rimbaud. exaustivamente selvagem e de espírito migratório como ave, buscava sempre a brisa de novos ares... a obra resgata, de maneira espetaculosa, toda essa juventude lírica, os abatimentos, as agruras e a insubmissão de um jovem poeta errante fugindo de tudo para poder encontrar outros tantos "tudos" por aí, até porque "ninguém é sério aos 17 anos"! rimbaud teve a rebeldia explosiva de um outsider, poeta que deu cor às vogais e fez do exílio um método existencial
a coberta que moacir usava pra se "proteger" do mundo a se entregar e se deixar seduzir pelos seus misticismos, suas visões e sugestões mais inconscientes parece ser um ritual importante nesse parto de simbolismos e criaturas que transam com suas próprias formas criando essas interessantes novidades figurativas. apesar de tantos impedimentos e distâncias, ele tem uma expressão maravilhosa da nudez, de anjos, animais, esoterismos, vaginas e erotismos. ah! e nada mais justo e artístico do que cuspir todas aquelas figuras satânicas pra fora só pra ver a forma que tomam... moacir tem um folclorismo interno muito vivo! conhecer as suas obras e sua simplicidade foi uma grata descoberta. arte brasileiríssima
um diamante do cinema nacional... o amor dito através do não-dito! é um filminho atravessado por silêncios, culpa, negações e rachaduras morais meio bergmanianas... os olhares que constatam a paixão ilícita, a agonia que amaldiçoa a própria consciência, o padre emudecido em horror e virando as costas, os personagens sofrendo em uma quietude melancólica, todas essas pistas se transformam em linguagem, no idioma que berra as angústias internas. a obra parece comunicar a dualidade que existe entre a concretização de um amor profano e as garras moralizantes de uma pequena comunidade inquisidora. as cidades pequenas são sempre mais cruéis, e a escolha do padre como figura no dilema moral é certeira
uma coleção de paisagens desérticas, tapetes de areia intermináveis, uma porção considerável de silêncios e um personagem buscando evitar seu destino e fugir do tédio atroz da própria vida. antonioni arranjou grande parte dos ingredientes necessários para expressar uma imagem poética de solidão, de enfado e de fuga da realidade. a atuação do nicholson é pontual e maravilhosa, sublime ver ele representando um sujeito em processo de aniquilação da demoníaca e aterrorizante subjetividade, esquivando-se de todos os horrores que circulam o "eu", a vida social, as pressões externas e internas, o trabalho, o amor e toda a "areia" que entra no sapato e se acumula lá dentro... sempre que eu começava a pensar que o personagem havia finalmente se desligado dos terrores da existência pretérita, o presente-cárcere retornava intacto, voltava a mesmíssima sensação implacável e singular de estar sempre contemporâneo de si mesmo, intocável e intacto... bobo fui eu em pensar que a geografia poderia ter algum efeito reparador de longo prazo sobre a tristeza e o descontentamento
o progresso da trama é bastante simples e até meio sumário, sem grandes inovações de narrativa, nem plots geniais, o que faz com que a primeira parte da obra exija uma paciência de elefante, justamente na medida em que é um enredo ordinário. porém, a metade final reserva uma representação do inferno que faz tudo valer a pena. nobuo nakagawa leva a câmera até as mais diversas "alas" subterrâneas e nos apresenta uma visão dantesca e intrigante do inferno. a coletânea de pecados, a confusão, a penumbra hostil, a pele arrancada, os ossos expostos, os gritos de desacolhimento e os dissabores desse subsolo tenebroso, tudo isso condensa uma vista funesta do inferno imaginado através dos elementos da cultura japonesa
uma peça-obra-odisseia sobre os labirintos obscuros e marginais da velada e eternamente ficcional "virginalidade" de uma cidade florida e sossegada e de um jovem simples representados numa suposta nessa fachada de pureza e ordem. uma investigação que termina gerando uma iluminação às avessas, uma peregrinação periférica por entre a textura-doçura do veludo azul que encobre subterrâneos de desvios, loucuras e fetichismos... gosto muito desse universo teatral lynchiano cheinho de imagens-obsessões-violências que vão surgindo em forma de fragmentos na face cândida de um lugar tranquilo que se assenta sobre um subsolo de perversidade, taras e aflições. me fez ter ainda mais vontade de descobrir todas as nuances das subliminaridades e sentidos nas obras do grande david lynch
quem sabe finis hominis seja, e com muita razão, a obra mais distinta e mais cheia de semânticas heréticas de todos os trabalhos do mojica. o filme é todinho recortado por cenas que denotam um certo deboche-blasfêmia das crenças, dos costumes e da mentalidade da sociedade da época. o diretor se diverte através de episódicas e pontuais visões de profanidades e paganismos: a nudez inicial já coloca o profeta fora do mundo, em uma posição pagã diante da moralidade fingida e das hipocrisias ontológicas de quem vive "dentro" do mundo, atolado nas convenções irrefletidas e irremediáveis da vida comunitária. até mesmo a equivalência entre a profecia e a loucura vale alguma meditação sobre os conceitos que ergueram quase todas as sociedades. ninguém confessa que é um canalha ou um imoral, é justamente a dissimulação a grande marca da vida social
a caracterização áspera dos personagens como pessoas ordinariamente comuns e, portanto, nem heróis sem defeitos, tampouco vilões malignos; uma história tão poética quanto crua e real capaz de desvelar todas as suas feridas sociais, desejos profundos e carências existenciais. acredito que essa é a maior virtude do realismo cinematográfico! o triângulo amoroso é inteirinho construído, tijolo por tijolo, com as inseguranças e angústias de cada um, e uma equivalência justificada das agonias de todos. isso é válido justamente na impossibilidade de encontrar culpados indiscutíveis nas pequenas tragédias que acontecem durante a trama e de extrair uma moral (todo mundo tem razão no que faz ou deixa de fazer)
essa obra honrosa e caprichosa de benjamin christensen é um tesouro para todos os admiradores e interessados em temáticas como bruxaria, feitiçaria, paganismo, satanismo e outros esoterismos medievais; mas além da galeria de temas pagãos e de imagens profanas, há também uma cuidadosa montagem híbrida entre o que poderia se chamar de documental e uma perspectiva de horror; mesmo no esbanjar de tamanho didatismo histórico e artístico do filme, há espaço para a reconstrução de uma atmosfera teatral que reconte e reposicione todas as particularidades cerimoniosas e morais da época da caça às bruxas; outra coisa a se notar na mensagem carimbada no discurso da obra são as questões de fé e as superstições como espécies de "biologias" irrevogáveis do ser humano; temos uma vocação sobrenatural e desesperada e demonológica diante do absurdo do desconhecido
ao passo que os tentáculos da guerra do vietnã invadem todos os espaços e todos os cantos possíveis, até mesmo um suposto paraíso bucólico, surgem diversos tipos de aniquilamentos e ruínas: o primeiro e mais notável é a destruição material causada pelas bombas e pelos tiros; logo depois, bergman nos faz perceber uma segunda categoria de devastação que é existencial e traumática; é extremamente nítida a decadência do casal de músicos diante dos abusos da guerra, de suas lógicas perversas de estabelecimento de um bode expiatório, da binarização política e das loucuras cometidas pelo poder; o fato de serem ambos artistas comunica muito sentimentalismo bergmaniano em relação ao desmantelamento da arte perante os impulsos bélicos; é uma baita obra sobre o processo de desumanização pelo absurdo da pólvora e das ideologias!
como não se identificar e não sentir uma intensa aproximação e comunhão existencial com as personagens bergmanianas? como criar uma imagem cinematográfica sobre o amor sem acrescentar todos os episódios de paixão incendiária, de rachaduras presentes nas relações humanas, de afetos confusos e de desilusões cósmicas e fatais? quase todos os atores da filmografia de bergman atravessam essas peregrinações angustiosas e transmitem toda a crueza barulhenta e silenciosa dos encontros humanos; essa espécie de irmandade emocional que se sente em simetria com os amores e terrores das moças e, de maneira geral, com a própria obra do bergman, é que faz dele um diretor de potentes meditações existencialistas
bergman foi sempre certeiro e visceral em selecionar temáticas verdadeiramente fatais e arrebatadoras, todas as confusões cosmológicas e existenciais, todos os abalos de fé e cutuca até mesmo na maior das feridas humanas, ferida aberta e incurável: a necessidade de crer; nesse filminho relativamente simples e lacônico, ingmar bergman novamente recolhe e projeta essa aspecto da incurabilidade da existência, ser biologicamente inclinado à fé, possuir uma fome metafísica por ficções e semânticas, mas "ouvir" o implacável silêncio divino; os seres humanos são tagarelas e cobiçosos, porém o cosmos é mudo e impassível! nada mais simbólico ao declínio da fé do que uma missa rezada em numa temporada fria e com tantas apatias
lindo! lindo! amargo! bergman é o mestre no retrato das dores impenetráveis, dos martírios invisíveis, das ansiedades arbitrárias e dos dramas sem espetáculo; nesta obra dolorosa e incomunicavelmente solitária, ingmar bergman, assim como sinto e interpreto, amontoa todo seu minucioso trabalho acerca das rachaduras da alma humana e de um deus omisso numa história sobre distância, loucura, degradação e solidão; foi inevitável não sentir o imenso desabrigo e maldição que é a consciência: ela é capaz de criar uma teoria sobre a existência e obrigar-nos a viver dentro desse delírio teorético; como se aproximar do outro, se cada um vive sob o jugo deste demiurgo perverso e implacável chamado consciência? a mente é uma criadora de calvários!
"é terrível ver a sua própria confusão e não entendê-la"... queria eu abrir a minha cabeça ao meio, catar cada pensamento e atirar aos cachorros, pena não conseguir encontrar nada que não seja infelicidade imaterial
meu deus! o preto e branco e os tremores da alma bergmanianos são coisas de outro mundo! eu tenho uma profunda simpatia por essa temática do silêncio divino, e que ingmar bergman manuseia com tanto primor e beleza; a quietude de deus ou, usando termos mais laicos e pagãos, a mudez do cosmos, a mudez das plantas, o silêncio das pedras, dos carvalhos e das nuvens... tudo isso indica a solidão galáctica que rasga o ser humano e que é materializada na imagem do cristão, um angustioso largado e abandonado por entre as inexpressividades das coisas, a grandeza calada e inexprimível do mundo e a vileza de tudo: o bergman, em "a fonte da donzela", está muito próximo do silêncio pascaliano, que é, em parte, essa porta impenetrável dos céus e o caráter hediondo e sublime da existência
o sétimo selo é provavelmente o trabalho mais celebrado e prestigiado de ingmar bergman, e o é com todos os méritos e justiças possíveis; bergman mesclou uma dose matematicamente perfeita de beleza e aflição nessa meditação poética sobre a onipresença da morte e a solidão metafísica do homem; a morte é um terror justamente na medida em que ela é exata e exotérica, é a exatidão e o democratismo da morte que nos oprime existencialmente; as nuvens silenciosas, o quietismo de deus e a morte transformada em fato, acontecimento e ferida pela peste são trabalhadas aqui como simbologias cinematográficas da angústia atemporal do ser humano e do medo terrível da finitude da vida; ingmar bergman fez cinema barroco!
eu tenho uma calorosa admiração pela abordagem intimista e visceral do cinema de bergman; acredito que seja justamente essa visão individualizadora que tanto me fascina em pedacinho de personagem bergmaniano... não são os fatos dados e as casuais exterioridades que acabam por afetar o estado de espírito, mas sim as lembranças indesejáveis, o passado irrevogável, o futuro inefável, os ressentimentos vulcânicos, a mudez ou o grito, e todos os outros tantos tipos de solidões, precariedades e carências que nossa "pessoalidade" for capaz de estampar sobre nós; essa é também a beleza presente em gritos e sussurros (1972), uma obra coberta de silêncio e de agruras íntimas... a obra de ingmar bergman comunica todos os aspectos incuráveis da vida humana, sem a qual sequer poderíamos chamá-la de existência. como eu queria guardar a paleta de cores desse filme num potinho
Terra em Transe
4.1 286 Assista Agorao transe do povo é perpétuo na república das bananas, dilacerados ora pelo populismo, ora pelo conservadorismo, o povo miserável é a corda que rasga, são os famintos de comida, política e professias; até mesmo o poeta idealista sucumbe diante da ardilosa politica. terra em transe é um retrato da politica latino-americana e do destino de um povo imolado pelas convulsões megalomaníacas de seus líderes... a palavra transe normalmente está ligada a um acontecimento transcendental, é abordada como um fenômeno religioso, mas aqui ela aparece apenas como estado de alienação, medo e inconsciência; corrupção, poder e messianismo são eixos temáticos frequentes nos ensaios poético-políticos de glauber rocha; o lirismo e as atuações são impecáveis, porém o desenvolvimento não linear da narrativa torna o enredo um pouco confuso
O Silêncio
4.1 110a prodigiosa trilogia do silêncio de ingmar bergman é dirigida por essa tirânica política do não-dito, pelos labirintos sinitros dessa mudez que não é de serenidade, mas de profunda e pesada aflição; através de um espelho, luz de inverno e silêncio estão conectados por uma perturbação mais ou menos pascaliana, seus personagens são cativos de um sentimento inefável diante do silêncio desses espaços infinitos; não exatamente um drama em relação ao vazio do cosmos, mas dessa condição de esvaziamento da linguagem e a ruína da comunicabilidade... tystnaden condensa brilhantemente todos esses elementos que tornam seus personagens tão miseráveis e incapazes de diálogo vivo; seus relacionamentos acontecem sempre por meio de simulacros; as duas irmãs e o garoto parecem que morrem pelas palavras que não pronunciam e pelas confissões eternamente guardadas
The Great Satan
4.0 2the great satan é uma riquíssima coletânea de mídias em vhs, desde trasheiras perdidas até programas religiosos dos anos 90 recheados de muito pânico satânico; todos esses conteúdos foram arranjados em um fluxo diabólico-vertiginoso que perverte suas semânticas originais de modo a fazer surgir uma nova narratividade... uma história luciférica, uma apologética do obscuro; o fato de ser uma composição com recortes muito rápidos faz com que o filme se torne uma marcha insana de satanismo e ocultismo, uma sucessão demoníaca e frenética; aprender sobre o senhor das trevas me deu uma terrível dor de cabeça, não recomendo assistir caso tenha problemas com enxaqueca
Culpa
3.9 355 Assista Agoraden skyldige é uma obra descomplicada e acessível, é desses filmes onde tudo acontece numa paisagem fixa e numa só cadência narrativa; essa simplicidade não é sinônimo de pobreza, mas de clareza e despojamento... é tão singelo e rico como ouvir a uma partida de futebol pelo rádio, nos permite fantasiar os acontecimentos e nos envolver intimamente com os fatos assim como o personagem principal, que se vê atravessado pelos dilemas e destinos do caso; a trama é costurada pelas ligações e somos colocados na mesma posição do policial, reféns das chamadas telefônicas e desse "outro lado" que nunca é visto, mas sempre cogitado
Deus e o Diabo na Terra do Sol
4.1 426 Assista Agoralevei muito muito tempo para puxar um fôlego e assistir a esse prestigiado longa-metragem do glauber rocha; eu estava me preparando para uma cerimônia de alegorias de difícil acesso e muitas abstrações, mas então lembrei da materialidade, solidez e crueza social do cinema novo... em deus e o diabo na terra do sol, glaubão reproduz com preto e branco, teatralidade e muito barroco a miserabilidade do povo enquanto massa desamparada e desesperançada a mercê dos duelos políticos dos poderosos e sofrendo das cicatrizes de seus embates; deus ou diabo... burgueses, religiosos fervorosos ou cangaceiros vingativos, personagens de um eterno conflito na terra do sol, promessas vazias para um povo esvaziado
Os Fuzis
4.1 71uma maravilha do cinema nacional! a atmosfera das obras do cinema novo é quase sempre barulhenta; os filmes berram e gemem como se doessem. em os fuzis esse frenesi sonoro acontece através dos cantos litúrgicos de fé de um povo massacrado pela fome e oprimido pelos fuzis de soldados que prometem aquele fetiche positivista da ordem. a cantoria religiosa é tema e prece diante dos desesperos da seca e das forças militares maliciosas
Animais Fantásticos: Uma História Natural
3.5 5 Assista Agoragostei bastante! um olhar muito jovial e uma investigação interessante dentro do campo da cultura mágica dos filmes adaptados de Harry Potter e dos mitos escritos; essa proposta de um casamento entre o mundo fantástico-mitológico que banha a cultura e o mundo natural é uma possibilidade de conciliação única e genuinamente orgânica; a história dos animais fantásticos e a história natural parece que sempre integraram o mesmo aspecto de uma única imanência cri-ativa... a suposta transcendência desvairada que essas figuras nos transmitem pode ser só um julgamento moderno e apressado de uma íntima relação com a natureza mediada por todas as suas belezas, terrores e espantos
Asas do Desejo
4.3 493 Assista Agorae como transborda de lirismo essa singelíssima obra do wim wenders! muito mais do que cair na implacabilidade do tempo ou voluntariar-se aos terrores do devir, os anjos monocromáticos e inchados de eternidade buscam preencher seus afetos gelados e suas poesias celestes com calor humano, sentir a carne, as lágrimas, o frio, a chuva, o amor e as tristezas da materialidade. ah! e como há tristezas, especialmente numa berlim tétrica e arrasada... por isso essa incomunicabilidade entre anjos e gente revela também um abismo, que faz com que o anjo deseje a experiência lúgubre e humana da aflição, das noites e do amor. apesar de ser um pouquinho cansativo, o filme-poesia do wenders fornece algumas belíssimas visões poéticas acerca da condição humana
Arthur Rimbaud: Uma Biografia
4.0 5documentário com uma narrativa biográfica imensamente mais espirituosa, teatral e viva, se livrando, assim, daquele tradicional desfile de dados cadavéricos que se costuma encarar nas leituras biográficas padrões. as cenas e as personagens reanimam os impulsos poéticos e violentamente joviais — quase luciferianos — do inquieto rimbaud. exaustivamente selvagem e de espírito migratório como ave, buscava sempre a brisa de novos ares... a obra resgata, de maneira espetaculosa, toda essa juventude lírica, os abatimentos, as agruras e a insubmissão de um jovem poeta errante fugindo de tudo para poder encontrar outros tantos "tudos" por aí, até porque "ninguém é sério aos 17 anos"! rimbaud teve a rebeldia explosiva de um outsider, poeta que deu cor às vogais e fez do exílio um método existencial
Moacir Arte Bruta
4.1 6 Assista Agoraa coberta que moacir usava pra se "proteger" do mundo a se entregar e se deixar seduzir pelos seus misticismos, suas visões e sugestões mais inconscientes parece ser um ritual importante nesse parto de simbolismos e criaturas que transam com suas próprias formas criando essas interessantes novidades figurativas. apesar de tantos impedimentos e distâncias, ele tem uma expressão maravilhosa da nudez, de anjos, animais, esoterismos, vaginas e erotismos. ah! e nada mais justo e artístico do que cuspir todas aquelas figuras satânicas pra fora só pra ver a forma que tomam... moacir tem um folclorismo interno muito vivo! conhecer as suas obras e sua simplicidade foi uma grata descoberta. arte brasileiríssima
O Padre e a Moça
3.9 51um diamante do cinema nacional... o amor dito através do não-dito! é um filminho atravessado por silêncios, culpa, negações e rachaduras morais meio bergmanianas... os olhares que constatam a paixão ilícita, a agonia que amaldiçoa a própria consciência, o padre emudecido em horror e virando as costas, os personagens sofrendo em uma quietude melancólica, todas essas pistas se transformam em linguagem, no idioma que berra as angústias internas. a obra parece comunicar a dualidade que existe entre a concretização de um amor profano e as garras moralizantes de uma pequena comunidade inquisidora. as cidades pequenas são sempre mais cruéis, e a escolha do padre como figura no dilema moral é certeira
Profissão: Repórter
4.0 90uma coleção de paisagens desérticas, tapetes de areia intermináveis, uma porção considerável de silêncios e um personagem buscando evitar seu destino e fugir do tédio atroz da própria vida. antonioni arranjou grande parte dos ingredientes necessários para expressar uma imagem poética de solidão, de enfado e de fuga da realidade. a atuação do nicholson é pontual e maravilhosa, sublime ver ele representando um sujeito em processo de aniquilação da demoníaca e aterrorizante subjetividade, esquivando-se de todos os horrores que circulam o "eu", a vida social, as pressões externas e internas, o trabalho, o amor e toda a "areia" que entra no sapato e se acumula lá dentro... sempre que eu começava a pensar que o personagem havia finalmente se desligado dos terrores da existência pretérita, o presente-cárcere retornava intacto, voltava a mesmíssima sensação implacável e singular de estar sempre contemporâneo de si mesmo, intocável e intacto... bobo fui eu em pensar que a geografia poderia ter algum efeito reparador de longo prazo sobre a tristeza e o descontentamento
Inferno
3.5 36o progresso da trama é bastante simples e até meio sumário, sem grandes inovações de narrativa, nem plots geniais, o que faz com que a primeira parte da obra exija uma paciência de elefante, justamente na medida em que é um enredo ordinário. porém, a metade final reserva uma representação do inferno que faz tudo valer a pena. nobuo nakagawa leva a câmera até as mais diversas "alas" subterrâneas e nos apresenta uma visão dantesca e intrigante do inferno. a coletânea de pecados, a confusão, a penumbra hostil, a pele arrancada, os ossos expostos, os gritos de desacolhimento e os dissabores desse subsolo tenebroso, tudo isso condensa uma vista funesta do inferno imaginado através dos elementos da cultura japonesa
Veludo Azul
3.9 776 Assista Agorauma peça-obra-odisseia sobre os labirintos obscuros e marginais da velada e eternamente ficcional "virginalidade" de uma cidade florida e sossegada e de um jovem simples representados numa suposta nessa fachada de pureza e ordem. uma investigação que termina gerando uma iluminação às avessas, uma peregrinação periférica por entre a textura-doçura do veludo azul que encobre subterrâneos de desvios, loucuras e fetichismos... gosto muito desse universo teatral lynchiano cheinho de imagens-obsessões-violências que vão surgindo em forma de fragmentos na face cândida de um lugar tranquilo que se assenta sobre um subsolo de perversidade, taras e aflições. me fez ter ainda mais vontade de descobrir todas as nuances das subliminaridades e sentidos nas obras do grande david lynch
Finis Hominis: O Fim do Homem
3.5 33 Assista Agoraquem sabe finis hominis seja, e com muita razão, a obra mais distinta e mais cheia de semânticas heréticas de todos os trabalhos do mojica. o filme é todinho recortado por cenas que denotam um certo deboche-blasfêmia das crenças, dos costumes e da mentalidade da sociedade da época. o diretor se diverte através de episódicas e pontuais visões de profanidades e paganismos: a nudez inicial já coloca o profeta fora do mundo, em uma posição pagã diante da moralidade fingida e das hipocrisias ontológicas de quem vive "dentro" do mundo, atolado nas convenções irrefletidas e irremediáveis da vida comunitária. até mesmo a equivalência entre a profecia e a loucura vale alguma meditação sobre os conceitos que ergueram quase todas as sociedades. ninguém confessa que é um canalha ou um imoral, é justamente a dissimulação a grande marca da vida social
A Cadela
3.9 29a caracterização áspera dos personagens como pessoas ordinariamente comuns e, portanto, nem heróis sem defeitos, tampouco vilões malignos; uma história tão poética quanto crua e real capaz de desvelar todas as suas feridas sociais, desejos profundos e carências existenciais. acredito que essa é a maior virtude do realismo cinematográfico! o triângulo amoroso é inteirinho construído, tijolo por tijolo, com as inseguranças e angústias de cada um, e uma equivalência justificada das agonias de todos. isso é válido justamente na impossibilidade de encontrar culpados indiscutíveis nas pequenas tragédias que acontecem durante a trama e de extrair uma moral (todo mundo tem razão no que faz ou deixa de fazer)
Haxan: A Feitiçaria Através dos Tempos
4.2 183 Assista Agoraessa obra honrosa e caprichosa de benjamin christensen é um tesouro para todos os admiradores e interessados em temáticas como bruxaria, feitiçaria, paganismo, satanismo e outros esoterismos medievais; mas além da galeria de temas pagãos e de imagens profanas, há também uma cuidadosa montagem híbrida entre o que poderia se chamar de documental e uma perspectiva de horror; mesmo no esbanjar de tamanho didatismo histórico e artístico do filme, há espaço para a reconstrução de uma atmosfera teatral que reconte e reposicione todas as particularidades cerimoniosas e morais da época da caça às bruxas; outra coisa a se notar na mensagem carimbada no discurso da obra são as questões de fé e as superstições como espécies de "biologias" irrevogáveis do ser humano; temos uma vocação sobrenatural e desesperada e demonológica diante do absurdo do desconhecido
Vergonha
4.3 118ao passo que os tentáculos da guerra do vietnã invadem todos os espaços e todos os cantos possíveis, até mesmo um suposto paraíso bucólico, surgem diversos tipos de aniquilamentos e ruínas: o primeiro e mais notável é a destruição material causada pelas bombas e pelos tiros; logo depois, bergman nos faz perceber uma segunda categoria de devastação que é existencial e traumática; é extremamente nítida a decadência do casal de músicos diante dos abusos da guerra, de suas lógicas perversas de estabelecimento de um bode expiatório, da binarização política e das loucuras cometidas pelo poder; o fato de serem ambos artistas comunica muito sentimentalismo bergmaniano em relação ao desmantelamento da arte perante os impulsos bélicos; é uma baita obra sobre o processo de desumanização pelo absurdo da pólvora e das ideologias!
Sonhos de Mulheres
3.9 28como não se identificar e não sentir uma intensa aproximação e comunhão existencial com as personagens bergmanianas? como criar uma imagem cinematográfica sobre o amor sem acrescentar todos os episódios de paixão incendiária, de rachaduras presentes nas relações humanas, de afetos confusos e de desilusões cósmicas e fatais? quase todos os atores da filmografia de bergman atravessam essas peregrinações angustiosas e transmitem toda a crueza barulhenta e silenciosa dos encontros humanos; essa espécie de irmandade emocional que se sente em simetria com os amores e terrores das moças e, de maneira geral, com a própria obra do bergman, é que faz dele um diretor de potentes meditações existencialistas
Luz de Inverno
4.3 173bergman foi sempre certeiro e visceral em selecionar temáticas verdadeiramente fatais e arrebatadoras, todas as confusões cosmológicas e existenciais, todos os abalos de fé e cutuca até mesmo na maior das feridas humanas, ferida aberta e incurável: a necessidade de crer; nesse filminho relativamente simples e lacônico, ingmar bergman novamente recolhe e projeta essa aspecto da incurabilidade da existência, ser biologicamente inclinado à fé, possuir uma fome metafísica por ficções e semânticas, mas "ouvir" o implacável silêncio divino; os seres humanos são tagarelas e cobiçosos, porém o cosmos é mudo e impassível! nada mais simbólico ao declínio da fé do que uma missa rezada em numa temporada fria e com tantas apatias
Através de um Espelho
4.3 249lindo! lindo! amargo! bergman é o mestre no retrato das dores impenetráveis, dos martírios invisíveis, das ansiedades arbitrárias e dos dramas sem espetáculo; nesta obra dolorosa e incomunicavelmente solitária, ingmar bergman, assim como sinto e interpreto, amontoa todo seu minucioso trabalho acerca das rachaduras da alma humana e de um deus omisso numa história sobre distância, loucura, degradação e solidão; foi inevitável não sentir o imenso desabrigo e maldição que é a consciência: ela é capaz de criar uma teoria sobre a existência e obrigar-nos a viver dentro desse delírio teorético; como se aproximar do outro, se cada um vive sob o jugo deste demiurgo perverso e implacável chamado consciência? a mente é uma criadora de calvários!
"é terrível ver a sua própria confusão e não entendê-la"... queria eu abrir a minha cabeça ao meio, catar cada pensamento e atirar aos cachorros, pena não conseguir encontrar nada que não seja infelicidade imaterial
A Fonte da Donzela
4.3 219 Assista Agorameu deus! o preto e branco e os tremores da alma bergmanianos são coisas de outro mundo! eu tenho uma profunda simpatia por essa temática do silêncio divino, e que ingmar bergman manuseia com tanto primor e beleza; a quietude de deus ou, usando termos mais laicos e pagãos, a mudez do cosmos, a mudez das plantas, o silêncio das pedras, dos carvalhos e das nuvens... tudo isso indica a solidão galáctica que rasga o ser humano e que é materializada na imagem do cristão, um angustioso largado e abandonado por entre as inexpressividades das coisas, a grandeza calada e inexprimível do mundo e a vileza de tudo: o bergman, em "a fonte da donzela", está muito próximo do silêncio pascaliano, que é, em parte, essa porta impenetrável dos céus e o caráter hediondo e sublime da existência
O Sétimo Selo
4.4 1,0Ko sétimo selo é provavelmente o trabalho mais celebrado e prestigiado de ingmar bergman, e o é com todos os méritos e justiças possíveis; bergman mesclou uma dose matematicamente perfeita de beleza e aflição nessa meditação poética sobre a onipresença da morte e a solidão metafísica do homem; a morte é um terror justamente na medida em que ela é exata e exotérica, é a exatidão e o democratismo da morte que nos oprime existencialmente; as nuvens silenciosas, o quietismo de deus e a morte transformada em fato, acontecimento e ferida pela peste são trabalhadas aqui como simbologias cinematográficas da angústia atemporal do ser humano e do medo terrível da finitude da vida; ingmar bergman fez cinema barroco!
Gritos e Sussurros
4.3 472eu tenho uma calorosa admiração pela abordagem intimista e visceral do cinema de bergman; acredito que seja justamente essa visão individualizadora que tanto me fascina em pedacinho de personagem bergmaniano... não são os fatos dados e as casuais exterioridades que acabam por afetar o estado de espírito, mas sim as lembranças indesejáveis, o passado irrevogável, o futuro inefável, os ressentimentos vulcânicos, a mudez ou o grito, e todos os outros tantos tipos de solidões, precariedades e carências que nossa "pessoalidade" for capaz de estampar sobre nós; essa é também a beleza presente em gritos e sussurros (1972), uma obra coberta de silêncio e de agruras íntimas... a obra de ingmar bergman comunica todos os aspectos incuráveis da vida humana, sem a qual sequer poderíamos chamá-la de existência. como eu queria guardar a paleta de cores desse filme num potinho