apesar de uma pequena deficiência técnica normal para um trabalho de abertura, desde o seu primeiro longa-metragem, bergman já se mostrava um moralista bastante competente na sua tarefa de estabelece uma unidade fundamental entre cinema e existência; chamo-o de moralista no sentido de quem investiga pormenorizadamente a mentalidade de uma época, mesmo que, nesse caso, o diretor consiga empregar um estudo muitíssimo mais generalizado acerca da própria condição humana enquanto espécie; nesse filme inaugurativo de ingmar bergman, os temas do terror da solidão, os dramas do orgulho e do desejo humano e as relações interpessoais esvaziadas de sentido estão todos comprimidos num contraste transparentíssimo entre a ingenuidade pacata e sensível do interior e a petulância cínica e dessensibilizada da cidade grande; todos os sofrimentos e ganâncias surgem como que numa análise bergmaniana dessas duas humanidades quase conflitantes
longe de ser uma das grandes obras do cinema bergmaniano, mas ainda potente enquanto obra quase inaugural de sua carreira e um exemplar prudente do neorrealismo e dos cinemas sociais por aí; a feição amistosamente rude de um bur(r)ocrata é um das coisas mais enfadonhas e chatas do cosmos conhecido; até mesmo o amor, essa selvageria anárquica, precisa ser domada e apaziguada pelas oficializações, pelos papéis carimbados e pelos departamentos de autenticações; bergman, por incontáveis vezes, nos faz lembrar das tramas e dramas absurdistas e kafkianas... ele recorda-nos desse processo de burocratização da realidade, de uma coleção de hipocrisias e tensões sociais que se camuflam nos discursos e nas formalizações destes homens públicos que se escondem nas cavernas mais profundas e ardilosas da burocracia
o quadro de magritte pendurado na parede do cubículo é simbolicamente poderoso ao tipo de "morte social", de neutralidade e de profunda solidão que vivencia o rapaz parisiense de 25 anos e 29 dentes e 3 pares de meia... conota um pouquinho do ato de olhar-se no espelho e de não retornar identidade nenhuma; essa obra do cinema francês é um ensaio triste ao abatimento existencial-ideológico-social... estar sozinho e ser sozinho são posições diferentes, e uma das possibilidades que o filme pinta é justamente a de podermos traçar essa linha, apontar essa divisão limítrofe cujo passo a frente leva a uma tremenda inércia e letargia, em suma, um estudo poético acerca da solidão e do anonimato; em alguns momentos, essa espécie de recusa e dissociação chega até mesmo a lembrar a náusea sartriana; enfim, existem algumas ótimas meditações bem pós-modernas neste filmezinho anos 70 preto e branco sobre todos esses desassossegos entre a nossa solidão e os caminhos do mundo; uma conclusão é possível: há de se rever a solidão!
o emaranhado indeciso de estilos narrativos e a lentidão no desenvolvimento da temática me fizeram entrar na obra com um certo atraso de interpretação... enquanto isso, eu ficava admirando o silêncio quase performático do max von sydow; entendo que esse atrito milenar entre questões de fé e questões de razão devam justificar e encorpar um tipo de defesa da arte para o bergman, já que a arte é imensamente mais próxima do "extra-científico", da mágica, do esoterismo, do fantástico e de tantas outras formas de ocultismos criativos... acredito até que a mudez, característica tão instintivamente bergmaniana, seja um tipo de escárnio direcionado para a megalomania verborrágica da ciência e para todas as formas de censuras que partem desse pedestal de monopólio do conhecimento humano
medo e desejo é considerado um filme-cadáver dentro da atraente e vasta coleção cinematográfica da carreira de kubrick; confesso que não entendo o motivo do próprio diretor nutrir uma enorme vergonha e desonra por esse filme; tudo bem, se trata de um média-metragem e parece ter sido montado e dirigido com baixíssimo orçamento; porém, estas condições materiais e situacionais estão distantes de apagar a grandiosidade reflexiva acerca dos males psicológicos da guerra, dos afetos rudes e confusos, das alucinações auditivas e visuais dos soldados e de todas as terríveis fricções morais do campo de batalha; gostei muito da ambientação e dos temas que o stanley kubrick já selecionava como pautas prediletas: os desgostos da guerra e da loucura... enfim, essa obra é a nata do que se poderia chamar de "as fronteiras da sanidade no melhor estilo kubrickiano"
edgard navarro realizou uma belíssima e experimental colagem de abstrações tropicalistas e conotações trágicas de um anti-herói marginal em uma terra ainda mais marginalizada... a espécie de beleza daqui se ergue através do lixo, dos escombros estéticos e de toda a feiura e os flagelos urbanos que se escondem por baixo da ponte; o herói alucinado é um morador de rua mais humano do que nunca, ele é atravessado por todas as mazelas de um povo martirizado e pelos fatalismos de um amor, ora carnal, ora celestial, que fatalmente termina em uma punheta triste; impossível não trazer à mente o ninho mais underground desse brasilzão projetado no cinema de glauber rocha e do sganzerla... uma categoria de cinema que trabalha com tudo que for considerado suburbano, debilitante e sujo pelo "status quo"... suas obras são, portanto, a projeção de imagens pelas periferias
considero a filmografia completa do bergman um catálogo caprichado e incensurável de um cinema existencial, e psicologicamente visceral e catártico; quando uso o termo 'existencial', estou recordando daquela configuração angustiosa dum "ser-aí" heideggeriano, naquela unidade aflitiva de ser e mundo; mesmo na montagem de terror, o grande mestre sueco ainda consegue fazer aparecer suas digitais existencialistas e suas intenções de desvelar esses trâmites e tensões entre consciência e mundo... embates que, através das lentes bergmanianas, se mostram em toda as suas potências depressivas e atrozes: desde o artista atravessando uma escassez criativa e uma certa inquietação depressiva; os "outros" agindo como diabos atormentadores e um constrangimento que acaba por debilitar a relação do casal... essa obra tem ainda toda uma atmosfera gótica expressionista, que homem genial!
um terror-suspense bastante sereno e quieto, e com isso quero poder expressar que há uma certa beleza nessa mansidão do filme, mas também um pouquinho de teimosia de enredo; a história é totalmente freudiana às avessas, ela exercita algum psicologismo na relação mãe-filho que termina por oferecer uma corporeidade de suspense interessantíssima e potencialmente instigante para a trama... enfim, não é completamente ruim, seria uma tremenda injustiça não elencar seus acertos: a maravilhosa fotografia setentista, o gato branco fofinho e as tomadas sinuosas que penetram no labirinto verde são, na maior parte das vezes, visões verdadeiramente recompensadoras e gratificantes
a precariedade induzida (ou não), o amadorismo e o exagero presentes em toda boa e genuína trasheira oitentista é simplesmente impagável; massacre do microondas é a caricatura matemática do burlesco, um riso do grotesco, é verdadeiramente um kitsch cinematográfico; não é difícil agrupar uma porção de coisas ordinárias e fajutas nesse filminho: o sangue e todas as partes do corpo cortadas, o fato do homem usar um pedaço de pão para sufocar as vítimas, a motivação de seus crimes, atrizes pornográficas com atuações primitivas, um microfone que rouba a cena aqui e ali... é tudo tão fodidamente postiço! no entanto, é uma injustiça colossal rejeitar e classificar esse filme como "bom" ou "ruim", já que sua estética sensacionalista é uma proposição de ruptura com esses conceitos; além disso, basta uma pequeno esforço pra perceber algum pingo de crítica ao modo de vida tipicamente burguês, desiludido e desgastado pela propaganda e pela promessa de uma vida plena e feliz, enfim, a tragédia utópica da vida citadina e média
consigo apontar duas situações mais ou menos galantes e politicamente subversivas, e que considero atributos bacanas presentes nesta obra do cinema do mestre jean renoir: a metanarratividade, que anuncia sua presença logo de início, mas que acabamos até por nos esquecer devido à coleção de movimentos soberbos entre as cenas e suas variadas profundidades relacionais; outra grande situação-chave, acontecimento metafísico, cobertor narrativo-filosófico é a tal da crítica política; quantas genuínas denúncias da miserabilidade das relações de trabalho, da surdez proposital oferecida ao "precariado" e das infinitas canalhices dissimuladas por parte do chefe e de sua megalomania fudida e típica do homem de negócios; homem de algum negócio...um negócio por aí, mas que ostenta um ar de altivez de merda, que é estupidamente visível quando o senhor batala está próximo ao artista supostamente ingênuo, infantil, divagante e insuficientemente adulto
eu acho um barato toda história que é transmitida através da voz de um narrador, de uma espécie de locutor que torna pública todas as entrelinhas da trama, que guia o espectador através de um inventário do presente, mas também tecendo alguma poética ao futuro; impossível não contrastar andré com edward norton como narrador em fight club; o intimismo desse tipo de abordagem é excepcional e me agrada muitíssimo; a minha grande e fundamental interrogação era: o homem que copiava o quê? o enredo engendrou belíssimas curvas de narrativa e plots impecáveis para atribuir uma resposta à minha humilde e curiosa pergunta subentendida e velada no título da obra; é incrível como todo o elenco conseguiu incorporar espiritualmente as minúcias do sotaque porto-alegrense, a atuação é assustadoramente fiel, me fez sentir ainda mais pertencente ao drama e próximo da "expressão" das personagens; enfim, isso aqui é um clássico do cinema nacional!
é inevitável acabar se sentindo temporalmente perdido e frustrado nesse fortíssimo e nauseoso desfile de cenas folclóricas, de profusão de vislumbres mito-poéticos, de certos elogios patrióticos e da coleção de dissabores que a guerra e as invasões amarguram: em resumo, zvenigora é um grande mosaico milenar! a obra esbanja um tipo de riqueza imagética muito elegante, o que me fez esquecer imediatamente todo o modus operandi paradigmático das clássicas obras propagandistas soviéticas; zvenigora é um filme de uma fotomontagem ímpar, é onírica, fragmentadíssima, faz intercâmbios entre fantasia e realismo; nesse caso, a ucrânia fez de seu fatalismo geográfico e de sua história de sanguinolência, uma poética cinematográfica de estima das suas tradições e de seus projetos civilizatórios; uma obra de cunho publicitário? pode ser que sim, mas com uma espirituosidade singular
eu acho um charme cada minuciosidade da montagem cinematográfica do kuleshov, há uma sedução em todo o canto em que a câmera direciona o olhar; quão potente e fecundo é o tal do efeito kuleshov, tudo acaba por transbordar de expressividade, há um eterno choque imediato entre a consciência e os objetos, essa associação entre o olhar que investiga o mundo e os objetos, inventam e fundam estados de espírito e juízos... kuleshov fez fenomenologia! isso atribui uma grande força persuasiva à fotografia dessa obra preciosa; o autor introduziu uma eloquente pedagogia cinematográfica! que obra luxuosamente verbosa, apesar de ser muda rs; há uma série de imagens fixas na minha cabeça, algumas cenas penetrantes inoculadas através de uma profunda maestria técnica
não sei comunicar com exatidão se era eu que estava com um espírito mais sereno e mais acentuadamente democrático, ou se a sublime e solene procissão eisensteiniana de imagens documentais colaborou para uma verdadeira experiência catártica e arrebatadora, já que se trata de uma obra de 1929, e com longas 2h de duração; sou apenas um calouro dentro do cinema soviético, mas não é difícil fazer evidente a presença de um tom propagandista-ideológico nas obras dessa época; aqui, uma comunidade agrícola é socializada através de um heroísmo de liderança e pelos ideais e motes do partido; há um drama que se manifesta nos close-ups dos sorrisos e das feições dos trabalhadores, assim como nas tensões burocráticas que perpassam as decisões comunitárias; se trata de atribuir uma estética cinematográfica ao poderio da coletivização e ao alcance do imaginário comunista; a semiótica do "velho" e do "novo" acentua princípios como o progressismo e o rompimento com o velho regime, elementos importantes nesse cenário revolucionário
elevado, grandioso e aflitivo! A composição da obra são os passos de uma tragédia oftalmológica, é composta por confissões e peregrinações poéticas; um diagnóstico maravilhosamente lírico da decadência do próprio corpo e dos flagelos terríveis do hiv; blue é um como um epílogo existencial de derek jarman, um compêndio de dramas da sexualidade, da afetividade e da morte; a "monocromaticidade" e a "azulidade" infinita permitem ao espectador uma divagação e um mergulho nos sons, no pranto e na belíssima música composta por simon fischer turner; blue, azul, blau, bleu ou blu... não importa, a grafia continua sendo linda em todas as linguagens
mário peixoto foi um intelectual pujante e epopéico, um homem que esteve atento aos círculos vanguardistas da europa da década de 20; sendo assim, é admirável notar as sugestões surrealistas e expressionistas que vão e voltam em "limite"; essa obra faz como que um batismo de novos ângulos, um parto de óticas inéditas e de poéticas de percepção; é preciso revê-lo inúmeras vezes até que todos os lirismos geográficos sejam percebidos; a narrativa é morosa e lenta como uma dor de cabeça leve; em algumas cenas a câmera insiste em brincar de fazer cosmogonias e fixa o olhar exaustivamente em objetos e cenas naturais, perfurando o enredo letárgico e deixando o espectador em uma ânsia confusa e hermética; confesso que minha experiência foi a de ler um poeminha fatalista num barquinho que balança e que desperta uma tremenda sensação de desamparo, solidão e desistência... o passado dos personagens invoca uma existência irremediavelmente perdida e vulnerável; as angústias se cruzam numa claustrofobia marítima... tudo volta ao barquinho perdido, a soma de todos os desesperos e desilusões; a estética fotográfica realmente embala e agrada os olhos no desenlace tristonho dos dramas individuais
não posso deixar de notar a magnificencia e a prodigalidade das obras tchecas desta época em representar o período entre guerras e o pós-guerra; em o cremador, as filmagens estão longe de possuir um caráter caricatural, tudo é bruto, cruel como uma doença degenerativa, real, acima de tudo; a câmera persegue o personagem principal, quase como num transbordar de insanidade; cada cena era como uma acentuação da fetichização do discurso nazista, aqui muito bem compreendido como uma esquizofrenia ideológica, uma patologia social temperada com um tipo de discurso messiânico de salvação e pureza; o trabalho de cremar cadáveres torna-se um dever político-religioso; enfim, esse pequeno experimento tcheco é suficiente para mostrar a epilepsia irracional e a sensualidade do ideário nazista, assim como a fácil corrupção do homem de "bem" e devidamente "culto"
essa obra é tão introspectiva e íntima como um sussuro ao pé do ouvido, reflexiva ao ponto onde torna-se impossível não ser abatido por uma ensimesmação absoluta; a velhice deve ser triste e solitária, e a impressão que se tem é a anulação de todos os anos passados; mais próximos da morte do que dos anos de jovialidade, uns até mesmo invocam a iminência da morte, num ato de desespero gracioso, e festejam dionisiacamente as simplicidades de uma vida rural e bonançosa; o documento é tão belo quanto ter uma farta desilusão desfeita; a senilidade deve fazer cair tanta esperança até sobrar alguma coisa de metafísica, digo, não além do físico, mas mais duramente físico; os testemunhos dos entrevistados mostram que a vida coleciona pequenezas... não há mistério, mistério é haver mistério; uns esqueceram, outros nunca souberam, outro ainda é visto falando sobre a gravidade lunar e acerca das estrelas longínquas; ou então, num gesto mais ou menos resignado, um senhor aprecia a última e quieta presença de um cigarro e de um gato: achei muito bonito todos esses atos e discursos amenos
o cinema político-surrealista-existencialista da new wave tcheca me encanta muitíssimo; satírico, bonito e contudente! em a festa e os convidados, a crítica ao autoritarismo, ao populismo dos regimes fechados e ao intelectualismo aliado às politicas de controle e perseguição política é clara como a luz da manhã; em um grande banquete ditatorial, qualquer picnic é subversão... pra ser mais preciso, qualquer picnic, unidade primeira e mais fundamental, é suplantado pela lógica massificante do banquete; essa obra desenha, em 1 hora de duração, a sociedade-cárcere das políticas autocráticas e a forma como as individualidades são engolidas e incorporadas por este enorme leviatã soberano e sádico devorador de sujeitos-sujeitados e sem nome
"o sono da razão produz monstros", uma pintura de francisco goya e a primeira imagem que o filme estampa na tela; se trata de um homem adormecido, deitado sobre seus próprios braços e acompanhado, num fundo pouco iluminado, de criaturas noturnas, monstros medonhos que incitam os horrores das superstições imponderadas e nefastas; a razão hibernada produz todas as obscuridades e as histerias religiosas que esse filme exercita com tanta proficiência: o terror da ignorância, a covardia e a corruptibilidade do poder, e claro, todos os atos funestos da qual foram vítimas as mulheres acusadas de bruxaria; bodes expiatórios de uma época lúgubre e de uma cultura ortodoxa e obscurantista
o enredo é tão descomplicado e literal que pode até mesmo impressionar o virtuosismo com que foi executado; são 68 minutos de uma fuga absurdamente silenciosa, de desespero verdadeiramente humano, tão demasiadamente humano como os calos nos pés que fogem e a fome que desvitaliza; todo esse desfile de aflições é escrito sob um tempo pendular, num tipo de atemporalidade que nunca se resolve; se trata de uma narratividade às avessas, esse "antitempo" que perdura entre passado presente (?) e futuro faz transbordar dubiedades, numa negação de fechamento; ah! que deboche faustoso foi representar os soldados nazistas como velhos caducos que já não sabem mais como segurar um rifle
há ruínas e violência por todos os lados, todo pedaço de madeira, concreto e humanidade são apenas nostalgias difusas; essa obra de arte é uma poética do existir, mesmo que seja por entre o lixo e a pólvora; dois rapazes e uma garota judia, todos órfãos apátridos e num triangulo amoroso meio hippie, restauram um tipo de delírio de infância, "re-experimentam" a existência aniquilada pelos homens da razão... é preciso delirar todos os dias um pouquinho mais, quem sabe eu seja mais feliz sendo um desvairado assim; um filme sobre a degeneração do espírito e da jovialidade pela guerra, da aniquilação bélica da beleza.. desaprender tudo e voltar a ser criança, desaprender tudo e instaurar uma filosofia da tolice.. a vida adulta é uma amargura
um teatro muito bem fotografado, teatralmente fragmentado e recortado, conservando sua fidelidade com os atos da obra de brecht; teatralidade inflada de lirismo na órbita da atuação de fassbinder; queria muito me afundar na língua alemã e vasculhar o dito e o não-dito em cada linha de poema e em cada canto de prazer; quanto mistério carrega em si baal! deus fecundador, cria-dor, homem-desobediência e, acima de tudo, homem; parece haver um companheirismo erótico embrenhado na relação e poesia de baal e ekart, poesia etílica, poesia de amor, poesia de ódio, poesia luxuriosa; cada cena que começava transmitia a impressão de uma ressaca de contracultura, paganismo e rudeza... o pós-guerra foi combustível pra poetas sujos e para a espiritualidade agressiva desse baal faminto, irascível e flamejante como a natureza
nada poderia ser tão experimental e ininteligível como essa hipótese em prosa triste de um passeio sensitivo-solipsista de descartes por meio deste grande absurdo tropical; um espírito reto-torto perambulando na multidão de outros, num monólogo íntimo-público e desvairado, por uma maré arbitrária de visões, calor e ofensas naturais; ah! o fracasso da lógica, a queda do império do bom senso europeu, todas as certezas matemáticas feitas em farelos num dia de sol e batuque... limpidez tautológica e racional morta e sem vida sobre um solo vivo e pernambucano; caminhar e descolonizar o pensamento; se toda cabeça pensasse e pesasse o mundo inteiro duma só vez... que belíssimo colapso seria! não quero mais ter razão acerca de nada
Crise
3.5 37apesar de uma pequena deficiência técnica normal para um trabalho de abertura, desde o seu primeiro longa-metragem, bergman já se mostrava um moralista bastante competente na sua tarefa de estabelece uma unidade fundamental entre cinema e existência; chamo-o de moralista no sentido de quem investiga pormenorizadamente a mentalidade de uma época, mesmo que, nesse caso, o diretor consiga empregar um estudo muitíssimo mais generalizado acerca da própria condição humana enquanto espécie; nesse filme inaugurativo de ingmar bergman, os temas do terror da solidão, os dramas do orgulho e do desejo humano e as relações interpessoais esvaziadas de sentido estão todos comprimidos num contraste transparentíssimo entre a ingenuidade pacata e sensível do interior e a petulância cínica e dessensibilizada da cidade grande; todos os sofrimentos e ganâncias surgem como que numa análise bergmaniana dessas duas humanidades quase conflitantes
Chove Sobre Nosso Amor
3.7 30longe de ser uma das grandes obras do cinema bergmaniano, mas ainda potente enquanto obra quase inaugural de sua carreira e um exemplar prudente do neorrealismo e dos cinemas sociais por aí; a feição amistosamente rude de um bur(r)ocrata é um das coisas mais enfadonhas e chatas do cosmos conhecido; até mesmo o amor, essa selvageria anárquica, precisa ser domada e apaziguada pelas oficializações, pelos papéis carimbados e pelos departamentos de autenticações; bergman, por incontáveis vezes, nos faz lembrar das tramas e dramas absurdistas e kafkianas... ele recorda-nos desse processo de burocratização da realidade, de uma coleção de hipocrisias e tensões sociais que se camuflam nos discursos e nas formalizações destes homens públicos que se escondem nas cavernas mais profundas e ardilosas da burocracia
Um Homem que Dorme
4.4 195o quadro de magritte pendurado na parede do cubículo é simbolicamente poderoso ao tipo de "morte social", de neutralidade e de profunda solidão que vivencia o rapaz parisiense de 25 anos e 29 dentes e 3 pares de meia... conota um pouquinho do ato de olhar-se no espelho e de não retornar identidade nenhuma; essa obra do cinema francês é um ensaio triste ao abatimento existencial-ideológico-social... estar sozinho e ser sozinho são posições diferentes, e uma das possibilidades que o filme pinta é justamente a de podermos traçar essa linha, apontar essa divisão limítrofe cujo passo a frente leva a uma tremenda inércia e letargia, em suma, um estudo poético acerca da solidão e do anonimato; em alguns momentos, essa espécie de recusa e dissociação chega até mesmo a lembrar a náusea sartriana; enfim, existem algumas ótimas meditações bem pós-modernas neste filmezinho anos 70 preto e branco sobre todos esses desassossegos entre a nossa solidão e os caminhos do mundo; uma conclusão é possível: há de se rever a solidão!
O Rosto
3.9 46 Assista Agorao emaranhado indeciso de estilos narrativos e a lentidão no desenvolvimento da temática me fizeram entrar na obra com um certo atraso de interpretação... enquanto isso, eu ficava admirando o silêncio quase performático do max von sydow; entendo que esse atrito milenar entre questões de fé e questões de razão devam justificar e encorpar um tipo de defesa da arte para o bergman, já que a arte é imensamente mais próxima do "extra-científico", da mágica, do esoterismo, do fantástico e de tantas outras formas de ocultismos criativos... acredito até que a mudez, característica tão instintivamente bergmaniana, seja um tipo de escárnio direcionado para a megalomania verborrágica da ciência e para todas as formas de censuras que partem desse pedestal de monopólio do conhecimento humano
Medo e Desejo
2.9 93 Assista Agoramedo e desejo é considerado um filme-cadáver dentro da atraente e vasta coleção cinematográfica da carreira de kubrick; confesso que não entendo o motivo do próprio diretor nutrir uma enorme vergonha e desonra por esse filme; tudo bem, se trata de um média-metragem e parece ter sido montado e dirigido com baixíssimo orçamento; porém, estas condições materiais e situacionais estão distantes de apagar a grandiosidade reflexiva acerca dos males psicológicos da guerra, dos afetos rudes e confusos, das alucinações auditivas e visuais dos soldados e de todas as terríveis fricções morais do campo de batalha; gostei muito da ambientação e dos temas que o stanley kubrick já selecionava como pautas prediletas: os desgostos da guerra e da loucura... enfim, essa obra é a nata do que se poderia chamar de "as fronteiras da sanidade no melhor estilo kubrickiano"
SuperOutro
4.0 41edgard navarro realizou uma belíssima e experimental colagem de abstrações tropicalistas e conotações trágicas de um anti-herói marginal em uma terra ainda mais marginalizada... a espécie de beleza daqui se ergue através do lixo, dos escombros estéticos e de toda a feiura e os flagelos urbanos que se escondem por baixo da ponte; o herói alucinado é um morador de rua mais humano do que nunca, ele é atravessado por todas as mazelas de um povo martirizado e pelos fatalismos de um amor, ora carnal, ora celestial, que fatalmente termina em uma punheta triste; impossível não trazer à mente o ninho mais underground desse brasilzão projetado no cinema de glauber rocha e do sganzerla... uma categoria de cinema que trabalha com tudo que for considerado suburbano, debilitante e sujo pelo "status quo"... suas obras são, portanto, a projeção de imagens pelas periferias
A Hora do Lobo
4.2 308considero a filmografia completa do bergman um catálogo caprichado e incensurável de um cinema existencial, e psicologicamente visceral e catártico; quando uso o termo 'existencial', estou recordando daquela configuração angustiosa dum "ser-aí" heideggeriano, naquela unidade aflitiva de ser e mundo; mesmo na montagem de terror, o grande mestre sueco ainda consegue fazer aparecer suas digitais existencialistas e suas intenções de desvelar esses trâmites e tensões entre consciência e mundo... embates que, através das lentes bergmanianas, se mostram em toda as suas potências depressivas e atrozes: desde o artista atravessando uma escassez criativa e uma certa inquietação depressiva; os "outros" agindo como diabos atormentadores e um constrangimento que acaba por debilitar a relação do casal... essa obra tem ainda toda uma atmosfera gótica expressionista, que homem genial!
O Cemitério
2.8 6um terror-suspense bastante sereno e quieto, e com isso quero poder expressar que há uma certa beleza nessa mansidão do filme, mas também um pouquinho de teimosia de enredo; a história é totalmente freudiana às avessas, ela exercita algum psicologismo na relação mãe-filho que termina por oferecer uma corporeidade de suspense interessantíssima e potencialmente instigante para a trama... enfim, não é completamente ruim, seria uma tremenda injustiça não elencar seus acertos: a maravilhosa fotografia setentista, o gato branco fofinho e as tomadas sinuosas que penetram no labirinto verde são, na maior parte das vezes, visões verdadeiramente recompensadoras e gratificantes
Massacre do Microondas
2.2 57a precariedade induzida (ou não), o amadorismo e o exagero presentes em toda boa e genuína trasheira oitentista é simplesmente impagável; massacre do microondas é a caricatura matemática do burlesco, um riso do grotesco, é verdadeiramente um kitsch cinematográfico; não é difícil agrupar uma porção de coisas ordinárias e fajutas nesse filminho: o sangue e todas as partes do corpo cortadas, o fato do homem usar um pedaço de pão para sufocar as vítimas, a motivação de seus crimes, atrizes pornográficas com atuações primitivas, um microfone que rouba a cena aqui e ali... é tudo tão fodidamente postiço! no entanto, é uma injustiça colossal rejeitar e classificar esse filme como "bom" ou "ruim", já que sua estética sensacionalista é uma proposição de ruptura com esses conceitos; além disso, basta uma pequeno esforço pra perceber algum pingo de crítica ao modo de vida tipicamente burguês, desiludido e desgastado pela propaganda e pela promessa de uma vida plena e feliz, enfim, a tragédia utópica da vida citadina e média
O Crime do Sr. Lange
3.6 8consigo apontar duas situações mais ou menos galantes e politicamente subversivas, e que considero atributos bacanas presentes nesta obra do cinema do mestre jean renoir: a metanarratividade, que anuncia sua presença logo de início, mas que acabamos até por nos esquecer devido à coleção de movimentos soberbos entre as cenas e suas variadas profundidades relacionais; outra grande situação-chave, acontecimento metafísico, cobertor narrativo-filosófico é a tal da crítica política; quantas genuínas denúncias da miserabilidade das relações de trabalho, da surdez proposital oferecida ao "precariado" e das infinitas canalhices dissimuladas por parte do chefe e de sua megalomania fudida e típica do homem de negócios; homem de algum negócio...um negócio por aí, mas que ostenta um ar de altivez de merda, que é estupidamente visível quando o senhor batala está próximo ao artista supostamente ingênuo, infantil, divagante e insuficientemente adulto
O Homem Que Copiava
3.5 901 Assista Agoraeu acho um barato toda história que é transmitida através da voz de um narrador, de uma espécie de locutor que torna pública todas as entrelinhas da trama, que guia o espectador através de um inventário do presente, mas também tecendo alguma poética ao futuro; impossível não contrastar andré com edward norton como narrador em fight club; o intimismo desse tipo de abordagem é excepcional e me agrada muitíssimo; a minha grande e fundamental interrogação era: o homem que copiava o quê? o enredo engendrou belíssimas curvas de narrativa e plots impecáveis para atribuir uma resposta à minha humilde e curiosa pergunta subentendida e velada no título da obra; é incrível como todo o elenco conseguiu incorporar espiritualmente as minúcias do sotaque porto-alegrense, a atuação é assustadoramente fiel, me fez sentir ainda mais pertencente ao drama e próximo da "expressão" das personagens; enfim, isso aqui é um clássico do cinema nacional!
A Montanha Do Tesouro
3.7 4é inevitável acabar se sentindo temporalmente perdido e frustrado nesse fortíssimo e nauseoso desfile de cenas folclóricas, de profusão de vislumbres mito-poéticos, de certos elogios patrióticos e da coleção de dissabores que a guerra e as invasões amarguram: em resumo, zvenigora é um grande mosaico milenar! a obra esbanja um tipo de riqueza imagética muito elegante, o que me fez esquecer imediatamente todo o modus operandi paradigmático das clássicas obras propagandistas soviéticas; zvenigora é um filme de uma fotomontagem ímpar, é onírica, fragmentadíssima, faz intercâmbios entre fantasia e realismo; nesse caso, a ucrânia fez de seu fatalismo geográfico e de sua história de sanguinolência, uma poética cinematográfica de estima das suas tradições e de seus projetos civilizatórios; uma obra de cunho publicitário? pode ser que sim, mas com uma espirituosidade singular
Pela Lei
4.2 6eu acho um charme cada minuciosidade da montagem cinematográfica do kuleshov, há uma sedução em todo o canto em que a câmera direciona o olhar; quão potente e fecundo é o tal do efeito kuleshov, tudo acaba por transbordar de expressividade, há um eterno choque imediato entre a consciência e os objetos, essa associação entre o olhar que investiga o mundo e os objetos, inventam e fundam estados de espírito e juízos... kuleshov fez fenomenologia! isso atribui uma grande força persuasiva à fotografia dessa obra preciosa; o autor introduziu uma eloquente pedagogia cinematográfica! que obra luxuosamente verbosa, apesar de ser muda rs; há uma série de imagens fixas na minha cabeça, algumas cenas penetrantes inoculadas através de uma profunda maestria técnica
A Linha Geral - O Velho e o Novo
4.2 13 Assista Agoranão sei comunicar com exatidão se era eu que estava com um espírito mais sereno e mais acentuadamente democrático, ou se a sublime e solene procissão eisensteiniana de imagens documentais colaborou para uma verdadeira experiência catártica e arrebatadora, já que se trata de uma obra de 1929, e com longas 2h de duração; sou apenas um calouro dentro do cinema soviético, mas não é difícil fazer evidente a presença de um tom propagandista-ideológico nas obras dessa época; aqui, uma comunidade agrícola é socializada através de um heroísmo de liderança e pelos ideais e motes do partido; há um drama que se manifesta nos close-ups dos sorrisos e das feições dos trabalhadores, assim como nas tensões burocráticas que perpassam as decisões comunitárias; se trata de atribuir uma estética cinematográfica ao poderio da coletivização e ao alcance do imaginário comunista; a semiótica do "velho" e do "novo" acentua princípios como o progressismo e o rompimento com o velho regime, elementos importantes nesse cenário revolucionário
Blue
4.4 35elevado, grandioso e aflitivo! A composição da obra são os passos de uma tragédia oftalmológica, é composta por confissões e peregrinações poéticas; um diagnóstico maravilhosamente lírico da decadência do próprio corpo e dos flagelos terríveis do hiv; blue é um como um epílogo existencial de derek jarman, um compêndio de dramas da sexualidade, da afetividade e da morte; a "monocromaticidade" e a "azulidade" infinita permitem ao espectador uma divagação e um mergulho nos sons, no pranto e na belíssima música composta por simon fischer turner; blue, azul, blau, bleu ou blu... não importa, a grafia continua sendo linda em todas as linguagens
Limite
4.0 168 Assista Agoramário peixoto foi um intelectual pujante e epopéico, um homem que esteve atento aos círculos vanguardistas da europa da década de 20; sendo assim, é admirável notar as sugestões surrealistas e expressionistas que vão e voltam em "limite"; essa obra faz como que um batismo de novos ângulos, um parto de óticas inéditas e de poéticas de percepção; é preciso revê-lo inúmeras vezes até que todos os lirismos geográficos sejam percebidos; a narrativa é morosa e lenta como uma dor de cabeça leve; em algumas cenas a câmera insiste em brincar de fazer cosmogonias e fixa o olhar exaustivamente em objetos e cenas naturais, perfurando o enredo letárgico e deixando o espectador em uma ânsia confusa e hermética; confesso que minha experiência foi a de ler um poeminha fatalista num barquinho que balança e que desperta uma tremenda sensação de desamparo, solidão e desistência... o passado dos personagens invoca uma existência irremediavelmente perdida e vulnerável; as angústias se cruzam numa claustrofobia marítima... tudo volta ao barquinho perdido, a soma de todos os desesperos e desilusões; a estética fotográfica realmente embala e agrada os olhos no desenlace tristonho dos dramas individuais
O Cremador
4.2 51 Assista Agoranão posso deixar de notar a magnificencia e a prodigalidade das obras tchecas desta época em representar o período entre guerras e o pós-guerra; em o cremador, as filmagens estão longe de possuir um caráter caricatural, tudo é bruto, cruel como uma doença degenerativa, real, acima de tudo; a câmera persegue o personagem principal, quase como num transbordar de insanidade; cada cena era como uma acentuação da fetichização do discurso nazista, aqui muito bem compreendido como uma esquizofrenia ideológica, uma patologia social temperada com um tipo de discurso messiânico de salvação e pureza; o trabalho de cremar cadáveres torna-se um dever político-religioso; enfim, esse pequeno experimento tcheco é suficiente para mostrar a epilepsia irracional e a sensualidade do ideário nazista, assim como a fácil corrupção do homem de "bem" e devidamente "culto"
Imagens do Velho Mundo
4.6 12 Assista Agoraessa obra é tão introspectiva e íntima como um sussuro ao pé do ouvido, reflexiva ao ponto onde torna-se impossível não ser abatido por uma ensimesmação absoluta; a velhice deve ser triste e solitária, e a impressão que se tem é a anulação de todos os anos passados; mais próximos da morte do que dos anos de jovialidade, uns até mesmo invocam a iminência da morte, num ato de desespero gracioso, e festejam dionisiacamente as simplicidades de uma vida rural e bonançosa; o documento é tão belo quanto ter uma farta desilusão desfeita; a senilidade deve fazer cair tanta esperança até sobrar alguma coisa de metafísica, digo, não além do físico, mas mais duramente físico; os testemunhos dos entrevistados mostram que a vida coleciona pequenezas... não há mistério, mistério é haver mistério; uns esqueceram, outros nunca souberam, outro ainda é visto falando sobre a gravidade lunar e acerca das estrelas longínquas; ou então, num gesto mais ou menos resignado, um senhor aprecia a última e quieta presença de um cigarro e de um gato: achei muito bonito todos esses atos e discursos amenos
A Festa E Os Convidados
3.9 13 Assista Agorao cinema político-surrealista-existencialista da new wave tcheca me encanta muitíssimo; satírico, bonito e contudente! em a festa e os convidados, a crítica ao autoritarismo, ao populismo dos regimes fechados e ao intelectualismo aliado às politicas de controle e perseguição política é clara como a luz da manhã; em um grande banquete ditatorial, qualquer picnic é subversão... pra ser mais preciso, qualquer picnic, unidade primeira e mais fundamental, é suplantado pela lógica massificante do banquete; essa obra desenha, em 1 hora de duração, a sociedade-cárcere das políticas autocráticas e a forma como as individualidades são engolidas e incorporadas por este enorme leviatã soberano e sádico devorador de sujeitos-sujeitados e sem nome
O Martelo das Bruxas
4.1 28"o sono da razão produz monstros", uma pintura de francisco goya e a primeira imagem que o filme estampa na tela; se trata de um homem adormecido, deitado sobre seus próprios braços e acompanhado, num fundo pouco iluminado, de criaturas noturnas, monstros medonhos que incitam os horrores das superstições imponderadas e nefastas; a razão hibernada produz todas as obscuridades e as histerias religiosas que esse filme exercita com tanta proficiência: o terror da ignorância, a covardia e a corruptibilidade do poder, e claro, todos os atos funestos da qual foram vítimas as mulheres acusadas de bruxaria; bodes expiatórios de uma época lúgubre e de uma cultura ortodoxa e obscurantista
Diamantes da Noite
3.9 10o enredo é tão descomplicado e literal que pode até mesmo impressionar o virtuosismo com que foi executado; são 68 minutos de uma fuga absurdamente silenciosa, de desespero verdadeiramente humano, tão demasiadamente humano como os calos nos pés que fogem e a fome que desvitaliza; todo esse desfile de aflições é escrito sob um tempo pendular, num tipo de atemporalidade que nunca se resolve; se trata de uma narratividade às avessas, esse "antitempo" que perdura entre passado presente (?) e futuro faz transbordar dubiedades, numa negação de fechamento; ah! que deboche faustoso foi representar os soldados nazistas como velhos caducos que já não sabem mais como segurar um rifle
Pássaros, Órfãos e Tolos
4.3 39há ruínas e violência por todos os lados, todo pedaço de madeira, concreto e humanidade são apenas nostalgias difusas; essa obra de arte é uma poética do existir, mesmo que seja por entre o lixo e a pólvora; dois rapazes e uma garota judia, todos órfãos apátridos e num triangulo amoroso meio hippie, restauram um tipo de delírio de infância, "re-experimentam" a existência aniquilada pelos homens da razão... é preciso delirar todos os dias um pouquinho mais, quem sabe eu seja mais feliz sendo um desvairado assim; um filme sobre a degeneração do espírito e da jovialidade pela guerra, da aniquilação bélica da beleza.. desaprender tudo e voltar a ser criança, desaprender tudo e instaurar uma filosofia da tolice.. a vida adulta é uma amargura
as vantagens de ser bobo
Baal
3.6 10um teatro muito bem fotografado, teatralmente fragmentado e recortado, conservando sua fidelidade com os atos da obra de brecht; teatralidade inflada de lirismo na órbita da atuação de fassbinder; queria muito me afundar na língua alemã e vasculhar o dito e o não-dito em cada linha de poema e em cada canto de prazer; quanto mistério carrega em si baal! deus fecundador, cria-dor, homem-desobediência e, acima de tudo, homem; parece haver um companheirismo erótico embrenhado na relação e poesia de baal e ekart, poesia etílica, poesia de amor, poesia de ódio, poesia luxuriosa; cada cena que começava transmitia a impressão de uma ressaca de contracultura, paganismo e rudeza... o pós-guerra foi combustível pra poetas sujos e para a espiritualidade agressiva desse baal faminto, irascível e flamejante como a natureza
Ex isto
3.6 44nada poderia ser tão experimental e ininteligível como essa hipótese em prosa triste de um passeio sensitivo-solipsista de descartes por meio deste grande absurdo tropical; um espírito reto-torto perambulando na multidão de outros, num monólogo íntimo-público e desvairado, por uma maré arbitrária de visões, calor e ofensas naturais; ah! o fracasso da lógica, a queda do império do bom senso europeu, todas as certezas matemáticas feitas em farelos num dia de sol e batuque... limpidez tautológica e racional morta e sem vida sobre um solo vivo e pernambucano; caminhar e descolonizar o pensamento; se toda cabeça pensasse e pesasse o mundo inteiro duma só vez... que belíssimo colapso seria! não quero mais ter razão acerca de nada