Melhor que o primeiro filme, que era bem tolinho, e só. Tem o defeito de prosseguir com aquele discurso patético e profundamente ideológico de que os EUA são uma potência militar preocupada com a promoção da paz.
Filme fraquíssimo, com sérios problemas de execução e direção, atores perdidos e desperdiçados (especialmente Kathy Bates). Enfim, uma tremenda perda de tempo com 3 horas de duração.
Sem dúvida, o filme Meu Pai (The Father, 2020), é um dos melhores do ano e, ao meu ver, também do século, pois toca numa questão que é humanamente universal, e o faz com inegável apuro estético e domínio da linguagem cinematográfica. O modo como o diretor e roteirista Florian Zeller conta a história de Anthony (Anthony Hopkins), um homem de idade avançada e em processo de perda de memoria, é, a um só tempo, sensível e profundo, tocante e devastador.
“Sinto que estou perdendo minhas folhas, meus galhos”, diz Anthony num determinado momento, numa fala tão poética quanto desoladora, para expressar sua condição. Ao final, não há como sair ileso. Confesso que chorei copiosamente quando o filme terminou.
A narrativa não se contenta e contar a experiência de seu protagonista por fora, nos colocando como expectadores passivos de sua realidade. Ao contrário, direção e roteiro optam por entrar totalmente na mente de Anthony, propiciando a quem assiste uma imersão sem igual, de modo que passamos a não apenas partilhar, mas vivenciar com o protagonista a sua angústia e sua confusão.
Para isso, contribuem a formidável montagem/edição das cenas, que misturam brilhantemente as memórias de Anthony; bem como a cenografia, com objetos que ajudam a compor o labirinto de uma mente obliterada pelo tempo. A assombrosa atuação de Hopkins, por seu turno, é digna de todas as láureas e aplausos. Aliás, Zeller escreveu o roteiro do filme para que ele fosse protagonizado Hopkins e, por este motivo, o protagonista leva o nome dele.
Por fim, Meu Pai (The Father) é um excelente filme para debatermos sobre envelhecimento, etarismo, politicas públicas voltadas para a "terceira idade", e refletirmos sobre como nossa sociedade trata os idosos. Aliás, pra ser visto na mesma toada que o documentário chileno El Agente Topo, que injustamente não levou o Oscar este ano, e filmes como Make Way for Tomorrow, Umberto D., The Trip to Bountiful, The Wales of August, Driving Miss Daisy, Fried Green Tomatoes e Amour.
Ótimo filme, muito ousado para a época, por colocar uma criança como vilã da história, questionando o estereótipo da pureza infantil, tão caro ao cinema hollywoodiano.
Contudo, o final moralizante prejudica a obra, ao usar literalmente de um "deus ex-machina" para redimir a mãe do infanticídio e deixar a lição de que, no final, há sempre o "castigo divino".
Recomendo outro ótimo filme que também faz essa provocação: Infâmia (The Children's Hour, 1961), dirigido por Willian Wyler e protagonizado pelas excelentes Audrey Hepburn, Shirley McLaine e Faye Bainter
O cinema de David Cronenberg, é como uma autópsia ou uma dissecação: versa, invariavelmente, sobre o que há por debaixo dessa “humana” pele que vestimos. É um cinema que escalpela, para revelar, de modo explícito, da carne crua do animal que somos. A visão que Cronenberg tem deste animal é a seguinte: trata-se de uma besta-fera, latejando dentro da cada um de nós, sedenta de sangue, faminta por carne, ávida por sexo. Além disso, em todos os filmes do Cronenberg, seus personagens estão escondendo algo de si que, ao longo da trama, passarão por uma transformação ou metamorfose na qual eles deixarão de ser o que aparentavam para se tornar ou revelar o que - ou quem - realmente são.
Se em Marcas da Violencia (A History of Violence, 2005), ele apresenta um protagonista, Tom Stall (Viggo Mortensen), que, debaixo da superfície de um pacato pai de família do interior, esconde um passado violento; em Senhores do Crime (Eastern Promisses, 2007), ele apresenta um personagem diamentralmente oposto, Nikolai (também interpretado por Viggo Mortensen), um capanga de máfia que por trás de sua aparente violencia e brutalidade, esconde uma outra faceta.
Em Crash - Estranhos Prazeres (Crash, 1996), do diretor nos apresenta James Ballard (James Spader), um homem bem casado e com uma vida aparentemente ''normal'' que, após se envolver em um acidente automobílistico, acaba descobrindo e se entregando a fetiches sexuais um tanto perigosos. Já em Madame Butterfly (M. Butterfly, 1993), temos Rene Gallimard (Jeremy Irons), um diplomada francês a serviço em Pequim que se apaixona pela cantora Song Liling, mas ela também guarda um segredo.
Neste filme A Mosca ele leva esse pressuposto até o limite para mostrar como o ser humano, quando desprovido daquilo que o humaniza, se limita a um animal, sujeito a instintos e necessidades básicas. O cientista brilhante, Seth Brundie (Jeff Goldblum), que inventa uma máquina de teletransporte mas que, por causa de um acidente em uma experiencia na qual ele se colocou como cobaia, vai aos poucos se tornando uma mosca gigante, talvez seja o Cronenberg mais explícito.
O que nos distingue dos demais animais? Tal como um lobo ou um cão, um tigre ou um gato, uma águia ou uma mosca, somos um amontoado de células vivas, guiados por instintos básicos sobrevivência e reprodução. Assim como eles, nós, enquanto seres vivos, temos necessidades básicas: fome e sede (nutrição), sexo (reprodução), sono (descanso) e agressividade (competição ou colaboração). Porém, ao contrário deles, temos consciência dessas necessidades e somos capazes de planejar a satisfação delas, bem como de refletir sobre elas, produzindo meios de, por exemplo, produzir e trocar alimentos (economia), de administrar e regular conflitos (política), e de representar simbolicamente esses processos (cultura).
Diferentemente deles, também somos capazes de modificar a natureza ao nosso redor, por meio do trabalho (uma atividade econômica) e da técnica (um conhecimento cultural), valendo-nos da conjunção entre “um polegar opositor e um telencéfalo altamente desenvolvido”. Por meio da combinação dessas habilidades, nos afastamos da natureza e fomos, ainda que precariamente, domesticando nosso animal interior, tornando-nos seres históricos (que produzem registros ou marcas no tempo) e geográficos (que produzem registros ou marcas no espaço). No tempo histórico e no espaço geográfico, estabelecemos relações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Assim como lobos, leões, abelhas, cupins, sardinhas, golfinhos, baleias e gaivotas, somos animais sociais. A sociabilidade não é um traço distintivo humano. Porém, cultura, economia e política são. Sem cultura, economia e política, não somos humanos, mas meros animais entregues à barbárie. A humanidade não é natural, mas essencialmente histórica e geográfica. Ser humano é uma condição resultante de um processo, que ocorre socialmente, ao logo da vida de cada um de nós, de “humanização”, isto é, de recebimento e absorção de comportamentos sociais, hábitos e conhecimentos culturais, habilidades econômicas e posições políticas. Nos humanizamos, portanto, na medida em que, inseridos numa sociedade, recebemos cultura, realizamos atividades econômicas e participamos da vida política.
O ser humano é o único animal que possui política. A política é a dimensão da realidade humana na qual inserem-se as relações de poder e a resolução de conflitos, seja entre um ser humano e outro ser humano, seja entre um grupo de seres humanos e outro grupo. É nesta dimensão que residem as leis e normas, cuja função é determinar o que pode e o que não pode ser feito, bem como as penas e sanções a serem impostas àqueles que as infringem.
Seth: - Você tem que sair agora e nunca mais voltar aqui. Você já ouviu falar em política de insetos? Nem eu. Os insetos não têm política. Eles são muito brutais. Sem compaixão, sem compromisso. Não podemos confiar no inseto. Eu gostaria de me tornar o primeiro político de insetos. Sabe, eu gostaria, mas... eu tenho medo... Veronica: - Eu não sei o que você está tentando dizer! Seth: - Estou dizendo... Estou dizendo que eu sou um inseto que sonhava que era homem e adorava. Mas agora o sonho acabou... e o inseto está acordado. Veronica: - Não, não, Seth... Seth: - Estou dizendo... Vou te machucar se você ficar.
Seth é um personagem que representa um excesso de humanização: um cientista brilhante, extremamente culto e inteligente, autodidata, mas com determinadas habilidades sociais, ligadas ao instinto básico da sexualidade, pouco desenvolvidas. Sua dificuldade em, por meio do flerte, seduzir Verônica, o leva a expor o seu segredo para atraí-la ao seu apartamento. Verônica (Geena Davis), é uma jornalista que, na trama elaborada por Cronenberg, cumpre o papel de descobrir os mistérios que Seth guarda. É ela a primeira pessoa à qual ele revela seu experimento. Ao entrar em seu esconderijo-laboratório, acaba por despertar nele, por meio do apelo à sexualidade, o animal escondido por trás de sua pele humana. Porém, assim como acaba sendo, num primeiro momento, convencida a guardar esse segredo, em vez de publicá-los na revista onde trabalha, comprometendo-se a só fazê-lo quando o experimento de teletransportar um ser vivo for realizado com sucesso. Movido por um instinto agressivo de provar-se e afirmar-se enquanto macho, o desejo de Seth por Verônica leva-o a arriscar-se, colocando-se como cobaia em sua própria experiência de teletransporte. É ela também primeira pessoa a perceber que algo errado aconteceu quando Seth se teletransportou. Neste momento, assim como aquele segredo, Verônica perceberá que carrega também uma outra coisa, fruto dessa relação com Seth: um filho, que ela não sabe se foi gerado antes ou depois da fusão do DNA de Seth com o da mosca. O medo de estar carregando uma aberração dentro de si, leva Verônica a optar pelo aborto e esse fato levará Seth, já transformado em “Brundlefly”, a sequestrar Verônica, movido por um instinto de reprodução, ou seja, de preservar sua prole.
Brundlefly, ao final, enquanto um Seth que foi "desumanizado", revela-se um cara "família acima de tudo", anti-abortista, crítico do "politicamente correto" e da "igualdade de gênero", e ferrenho defensor da justiça com as próprias mãos.
Um filme lindo, daqueles que aquecem nosso coração e enternecem nossa alma!
Harvey Cheyne Jr. (Freddie Bartholomew) é literalmente um "filhinho de papai" e, como tal, é mimado, arrogante, manipulador e prepotente. Certo dia, um providencial acidente o faz cair na rede do português Manuel (Spencer Tracy), um pescador que trabalha no veleiro "We're Here" (Estamos Aqui), de Gloucester, Massachusetts, cuja tripulação é liderada pelo Capitão Disko (Lionel Barrymore). Contra sua vontade, Harvey passará 3 meses nesse pesqueiro, longe das mordomias e regalias às quais estava habituado na mansão de seu pai, o magnata Frank Burton Cheyne (Melvyn Douglas).
Durante essa jornada inesperada, ele acabará passando por experiências que moldarão e mudarão seu caráter, especialmente na companhia de Manuel, que acabará por, temporariamente (mas de modo que ele nunca o esquecerá), ocupando o papel de figura paterna que, mesmo quando Harvey vivia com seu pai, era inócua.
O filme, dirigido por Victor Flemming (de E o vento Levou e O Mágico de Oz), é uma pérola da cinematografia estadunidense da década de 1930, e seus méritos vão além da relação entre o Harvey e Manuel. O filme explora de maneira brilhante os personagens secundários, de modo que, ao terminar a sessão, também nos recordamos deles com carinho. Mérito que cabe também ao grande elenco, como o lendário Lyonel Barrymore, que entrega um capitão Drisko cheio de nuances, que só não rouba a cena para si quando aparece, pelo fato de os seus companheiros de cena estarem tão inspirados quando ele. As disputas que ele trava com o Capitão Walt Cushman (Oscar O'Shea), chefe do pesqueiro Jennie Cushman, são deliciosamente hilárias.
Além disso, a rotina dentro de um barco pesqueiro na década de 1920 (quando a história se passa), é desenvolvida de modo bastante complexo e verossímil. A hierarquia, as tarefas cotidianas, a camaradagem, as técnicas de pescaria, os inconvenientes da vida no mar, enfim, tudo é mostrado com bastante apuro. Só outro filme, ao meu ver, conseguiu este feito: Mestre dos Mares (Master and Commander, 2003), de Peter Weir. As qualidades técnicas são tambem indiscutíveis: nas cenas em alto mar, fica difícil discernir o que foi grava em estúdio ou não, dado o realismo da direção de Flemming. Há ainda o menino prodígio Mickey Rooney, interpretando o garoto Dan, filho do capitão Disko, John Carradine ( que trabalhou como John Ford em No Tempo das Diligências, O Homem que Matou o Facínora e As Vinhas da Ira) como o marujo "Long Jack", e Charley Grapewin como o Tio Salters.
Acima de tudo, a solidez da atuação da dupla central, Freddie Bartholomew e Spencer Tracy, encanta-nos e convence-nos, de modo, que, ao final, é impossível não deixar cair uma lágrima pela linda amizade que nasceu entre os dois, e torcer para que, no "céu dos marujos", Manuel esteja pescando junto com seu pai, guardando um lugar para Harvey, quando o momento chegar. Terminamos com a certeza de que aquele menino mimado se tornará um homem melhor, por causa de tudo o que, coma medida certa de ternura e austeridade, Manoel e tripulação do "We're Here" lhe ensinaram.
Quem ainda não assistiu, assista, e aproveite para ver também O Exorcista (1973), Poltergeist (1982), No Limite da Realidade (1983) e O Corvo (1994)., para depois assistir à minissérie documental "Cursed Films", do Shudder, serviço de streaming da AMC focado em horror. A minissérie enfoca esses 5 filmes e os acontecimentos bizarros ligados à sua realização, fazendo que passassem à história como amaldiçoados.
Por exemplo, quando em 1982, o filme “Poltergeist” estreou, foi quase ofuscado pelo assassinato da atriz Dominique Dunne, após ter sido estrangulada por seu ex-namorado, John Thomas Sweeney, insatisfeito com o fim do namoro. No filme, ela interpretava a jovem Dana, uma das filhas da família que é perseguida por espíritos de outro mundo.
Durante as filmagens deste A Profecia (The Omen, 1976), por exemplo, dois aviões diferentes que transportam pessoas associadas ao filmes foram atingidos por raios, além de um acidente de avião, um acidente de carro e um bombardeio do IRA terem acontecido próximo dos locais onde a produção acontecia. O mais trágico, no entanto, aconteceu a um membro da equipe de produção, que sofreu um acidente fatal e sua namorada foi decapitada - tal como acontece a um personagem do filme.
Prologue "Something Scary": 4.5/5 Time Out: 5/5 Kick the Can: 1.5/5 It's a Good Life: 2.5/5 Nightmare at 20,000 Feet: 4.5/5 Epilogue "Even Scarier": 4/5
Uma pena ver uma história linda dessas contada de modo tão convencional e amador. A trilha sonora é, pra mim, o maior defeito. Não que ela seja uma trilha ruim, mas a escolha por composições orquestrais, com características clássicas, confere ao filme uma atmosfera colonizada.
É um trilha branca, europeizada, como se fosse feita para e pelos donos de escravos, em vez de para e pelos negros que lutam por sua liberdade e contra a escravidão. Uma trilha que destoa da história da qual ela deveria funcionar com uma alma, que inspira e lhe anima. Fosse uma trilha nos moldes daquela composta por Alberto Iglesias para o filme O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, 2005), por exemplo, o efeito seria outro, proporcionando ao filme maior autenticidade. O roteiro, esquemático, se ancora em alguns clichés que fazem com que a narrativa se torne previsível em alguns momentos. Outro problema, já apontado por outros cinéfilos, está em algumas atuações, como a de Janelle Monáe, engessadas por um formalismo que beira o teatral.
Felizmente, a atuação de Cynthia Erivo e canção "StandUp", composta por ela e que encerra o filme, são grandes o bastante para elevá-lo um pouco acima da mediocridade. Com justiça, ambas respondem pelas únicas indicações ao Oscar que o filme recebeu, muito embora, ao meu ver, a cenografia e os figurinos também merecessem indicações.
Muitos têm dito que esse é filme cuja única qualidade é a atuação de Jennifer Lopez. De fato, a atuação de JLo é o coração do filme e ela rouba todas as cenas em que aparece. Concordo que ela fui injustiçada ao ser esnobada no Oscar deste ano, onde merecia uma indicação como Melhor Atriz Coadjuvante. Porém, o filme tem outras qualidades e são justamente por causa destas qualidades - não dos defeitos - que ele acabou ficando de fora do Oscar.
É possivel traçar um paralelo entre este As Golpistas (Hustlers, 2019) e outro filme recente: O Escândalo (Bombshell, 2019), dirigido por Jay Roach. Ambos trazem mulheres como protagonistas, focam na questão do modo como as mulheres, numa sociedade machista e patriarcal, são vítimas de abusos, e tentam fazer uma espécie de reparação histórica, retratando diferentes formas de reação das mulheres à esta realidade dominada por homens, na qual são tratadas, muitas vezes, como meros objetos de prazer. Contudo, as semelhanças terminam aí.
Se os dois filmes se irmanam com relação aos temas que abordam, por outro lado, eles se opõem no modo como esses temas são abordados. Essa divergência é mais acentuada no modo como os roteiros inserem essas histórias no contexto mais amplo, histórico, econômico e social. Em O Escândalo esse pano de fundo é apenas esboçado, quando o roteiro aborda o contexto das eleições presidenciais de 2016 nos EUA, por meio do conflito entre a jornalista Megyn Kelly (Charlize Theron) e o então candidato Donald Trump, sem, contudo, explicitar o modo como esse contexto influi na vida das personagens.
Em As Golpistas, ao contrário, essa inserção da narrativa num contexto maior é desenvolvido de modo mais satisfatório, mostrando os impactos da crise de econômica de 2018 na vida das personagens, além de, por meio do estabelecimento dessa relação entre o que passa no plano restrito das vidas de cada personagem com o plano mais amplo, histórico, econômico e social, o filme de Lorene Scafaria faz uma crítica à essa sociedade machista e patriarcal, que sustenta e é sustentada pelo sistema econômico capitalista - aliás, sobra espaço para uma crítica ao sistema também.
"...E então tem os filhos da puta no topo: presidentes, investidores, bancários, empresários, acionistas, assassinos de aluguel, vindo direto da cena do crime para o clube. Mas não pela frente. Esses caras não querem virar notícia. Eles entram pelos fundos. E não saem enquanto não gastarem de 10 a 15 mil por noite. E nunca se dão mal. Porque todos estão dispostos a cobrir os rastros deles. Pois no fundo, todos querem o que eles têm. Todos querem estar no topo, onde não há consequências."
Ao final, enquanto O Escândalo oferece uma catarse, com o vilão sendo punido e as heroínas sendo justiçadas, este As Golpistas é mais sóbrio e mais pessimista. Seu roteiro não entrega, ao final, um desfecho moralizante e reconfortante que restabeleça a fé dos espectadores no sistema. Pelo contrário, ele deixa muito claro quem de fato de ganha e quem de fato perde e que, infelizmente, os verdadeiros vilões seguem impunes, pagando de mocinhos, enquanto as vítimas seguem sendo exploradas, abusadas e injustiçadas.
"Esta cidade... esse país inteiro é um clube de strip. Tem pessoas jogando o dinheiro enquanto outras dançam."
Existem filmes que habitam uma intersecção entre o documentário e a ficção, entre a captura de cenas espontâneas de um determinado cotidiano e a sua encenação. Este Honeyland é um deles, e isso fica evidenciado pelo fato de, este ano, ele ter emplacado duas indicações ao Oscar: uma como Melhor Filme Internacional, outra como Melhor Documentário. Realizado na Macedônia, a menor das nações balcânicas surgidas após a dissolução da Iugoslávia, por esta peculiaridade de sua forma, ele se irmana à outras obras, como o mongol Camelos Também Choram (2003), dirigido por Byambasuren Davaa e Luigi Falorni.
Mas, se colocarmos esses dois fascinantes filmes em paralelo, veremos outras semelhanças. Ambos se passam em rincões rurais e isolados, onde o modo de vida primitivo conferem à narrativa um tom de passado, como se aquela realidade e aqueles personagens não pertencessem à este tempo, como se pertencessem a um passado distante e superado. Ambos se passam em aldeias rurais, enfocadas como uma se fossem pedaço de um passado que tivessem sido ali encapsulado. Em ambos, um modo de vida próximo ao tribal, em dado momento se vê ameaçado pela iminência de um modo de vida globalizado, que se introduz naquela cápsula como se viesse de outro mundo. Um invasor sedento e faminto que a tudo devora de corrompe.
Em essência, ambos o documentários (ou filmes?) falam das mesmas coisas: o conflito entre o velho e o novo, a inevitabilidade da mudança, a resiliência/resistência ante o invasor. Se em Camelos também Choram, o filhote de camelo rejeitado pela mãe figura como um símbolo de uma "modernidade" à qual os pastores nômades mongóis criadores resistem ingressar, temendo a perda sua identidade e sua territorialidade, em Honeyland o impacto da presença da família nômade de criadores de gado na vida da solitária criadora de abelhas Hatidze Muratova (que tira seu sustento produzindo mel de maneira sustentável, valendo-se de técnicas ancestrais transmitidas de geração em geração), também simboliza essa "modernidade".
"O que distingue uma época econômica de outra, é menos aquilo que se produziu do que a forma como foi produzido." — Karl Marx
No entanto, o que é essa tal "modernidade", senão um eufemismo criado para ocultar as relações de produção no sistema capitalista, segundo as quais o lucro deve ser priorizado sobre todas as outras coisas, não importando o resultado de sua busca inconsequente para a vida das pessoas ou para o meio ambiente?
"A classe capitalista rasgou o véu sentimental da família, reduzindo as relações familiares a meras relações monetárias." — Karl Marx
Em Honeyland, essa crítica ao sistema econômico vigente, fica muito clara quando nos damos conta de que todo o equilíbrio entre o ser humano (Hatidze) e o ambiente (as abelhas), é quebrado quando a regra segundo a qual nunca se deve extrair todo o mel das colmeias, é desrespeitada em nome da lógica do consumismo. E assim, modos de vida tradicionais, saberes locais e técnicas seculares são pulverizados pela "mão invisível do mercado".
Na minha opinião, essa é a melhor adaptação cinematográfica do clássico romance de Luisa May Alcott. A primeira qualidade está no roteiro, brilhantemente escrito por Greta Gerwig, que opta por não seguir uma narrativa linear, nem por ser uma transposição literal do livro para as telas. As escolhas que Greta faz, enquanto diretora e roteirista, para (re)contar a história das 4 irmãs Marsh, só elevam a qualidade desta que é a 8º adaptação para o cinema de Little Women.
As primeiras versões cinematográficas do livro foram feitas ainda no tempo do cinema mudo: em 1917, sob a direção de Alexander Butler e em 1918, sob a direção de Harley Knoles. O primeira versão falada foi a adaptação de 1933, que no Brasil se chamou "Quatro Irmãs", dirigida pelo notável George Cukor (À Meia Luz, Núpcias de Escândalo e My Fair Lady), protagonizada por Katharine Hepburn. Em 1949 foi a vez de Mervyn LeRoy filmar a sua versão da história, protagonizada por June Allyson, tendo Elizabeth Taylor (Quem tem medo de Virginia Wolf), Janet Leigh (Psicose) e Mary Astor (Relíquia Macabra) no elenco. No Brasil, foi lançada com o título de "Quatro Destinos".
As 3 últimas versões cinematográficas de Little Women foram dirigidas por mulheres. Em 1994, foi a vez da australiana Gillian Armstrong filmar a sua versão, que teve Winona Ryder - então uma estrela em ascensão - como protagonista, amparada por um elenco de nomes então já consagrados, como Susan Sarandon (Thelma e Louise, O Cliente) e Gabriel Byrne (Os Suspeitos), e outros que despontavam com estrelas igualmente promissoras, como Claire Danes, Kirsten Dunst e Christian Bale. O filme teve 3 indicações ao Oscar em 1995, incluindo Melhor Atriz para Winona (segunda e última indicação de sua carreira). Em 2018, a diretora Clare Niederpruem dirigiu outra adaptação, desta vez trazendo a história, que se passa no século XIX, durante a Guerra de Secessão norte-americana, para os tempos atuais. Sua versão não agradou nem ao público nem aos críticos e passou despercebida. Muitos nunca ouviram falar dela.
Um ano depois, Greta Gerwig lançou a sua versão. Ela acerta em muitos pontos, que distinguem sua obra das demais e a eleva, fazendo com que deixe de ser apenas mais uma versão batida de uma história já conhecida. Ela injeta um novo ar ao optar por uma narrativa não-linear, que vai e vem no tempo, costurando habilidosamente momentos da história passados em diferentes épocas.
Primeiramente, o filme começa com Amy March (numa interpretação magnética de Florence Pugh, que rouba quase todas as cenas em que aparece), a caçula das quatro adoráveis mulheres, encontrando Theodore "Laurie" Laurence (Timothée Chalamet), durante sua viagem a Paris na companhia da Tia March (Meryl Streep, divertidamente irritante). Esse encontro serve de mote para o roteiro voltar no tempo, para contar como Laurie conheceu as irmãs March.
Outra cena, na qual Josephine "Jo" March (Saoirse Ronan, irretocável) e o professor Friedrich Bhaer (Louis Garrel) estão dançando num pub em Nova York, é o gancho que permite outra volta no tempo. Desta vez para contar como Jo e Laurie se conheceram e se tornaram amigos. Assim o roteiro vai alinhavando, por meio de elementos da narrativa, esses diferentes momentos, aparentemente desconectados pelo tempo, mostrando que, na verdade, eles estão todos entrelaçados.
A maior qualidade do filme, no entanto, é mostrar Jo, a protagonista da história, como um alter-ego de Alcott, a autora do livro. Esse ligação, que pode ser evidente para alguns, pelo fato da personagem ser uma aspirante a escritora, nunca foi explorado de modo tão inteligente e tão perspicaz como no roteiro escrito por Greta Gerwig. Evidenciando esse parelelo entre autora e personagem, Gerwig traz à tona questões sobre desigualdade de gênero, especialmente no que tange às dificuldades que as mulheres enfrentam, pela pressão social de corresponder aos papéis de mão e esposa, quando tentam conquistar sua independência financeira dedicando-se a uma profissão. Também questiona a dificuldade que mulheres enfrentam para serem reconhecidas e valorizadas enquanto profissionais (como escritoras, pintoras, diretoras, roteiristas), numa mercado dominado por homens. Sobre isso, duas cenas são precisas e exemplares em trazer essas questões à tona: o diálogo entre Laurie e Amy em Paris, dentro do estúdio onde ela estuda pintura, quando ela decide que não é suficientemente talentosa para para ser uma "pintora genial", e a conversa final entre Jo o chefe da editora (Tracy Letts) para o qual ela leva seus manuscritos, esperando que sejam publicados.
Sem fazer do filme um panfleto feminista, mas, também, sem fugir à responsabilidade de questionar as manifestações do machismo - tão presentes na sociedade atual quanto naquela do século XIX, uma vez que a secular nefasta instituição do patriarcado, infelizmente, ainda está longe de ser devidamente destruída -, ela coloca em relevo o modo como o cinema e a literatura ainda insistem em criar narrativas que retratam a mulher dentro de estereótipos arcaicos, nos quais ela é sempre descrita como alguém que precisa atender a determinados "fatos sociais", como casar-se, ter filhos, etc., para ser aceita e respeitada pela sociedade. São questionamentos que o cinema deve fazer, pois é ilusão pensar que não fazê-lo é optar pela neutralidade.
A neutralidade é uma ilusão, um engodo. Quem se diz neutro tem lado: o lado do mais forte, o lado hegemônico. No que tange à opressão de gênero, ou seja, ao machismo, a opção pela neutralidade favorece os homens e silencia as mulheres. Felizmente, essa defeito o filme não tem. Se tivesse, não faria jus à uma obra imortal, escrita por uma mulher, sobre 4 mulheres, lutando para sobreviver, para ter sua individualidade e sua voz respeitadas, numa época que seres humanos (negros) ainda eram escravizados e tratados como mercadoria por homens brancos, e na qual a vida das mulheres estava condicionada à vontade dos homens.
A metáfora bíblica ficou muito clara pra mim na cena que faz referência a Caim e Abel. O Filme é uma alegoria que funciona pra quem acredita em deus. Não é o meu caso, felizmente.
Este é um filme sobre contradições. Este é um filme sobre o conflito entre movimento e estagnação, entre transmutação e permanência, entre progresso e conservação. Por isso, este é um filme profundamente dialético e, como toda dialética, ao final, produzir-se-há necessariamente uma síntese. Deste modo, este é um filme não apenas sobre conflito, mas, principalmente, sobre a construção de consensos, que superem as contradições pre-existentes - sem extingui-las, no entanto.
Para compreendê-lo, é preciso entender o que é dialética. Para fazê-lo, voltemos a um tempo antes de Cristo, da igreja católica, do Vaticano e do cinema: a Grécia Antiga, nos primórdios da filosofia. Um tempo que a oposição entre a fé e razão, o crer e o duvidar, o mithos e logos, se materializava no nascimento daquilo que seria conhecido como Filosofia. Na Grécia Antiga, a dialética era a “arte do diálogo”, mas não apenas do simples diálogo, e sim do diálogo por meio do qual uma tese é demonstrada e defendida por meio de argumentos racionais. Para Aristóteles, o fundador da dialética foi o filósofo Zenon, um pré-socrático nascido também em Eléia, terra de Parmênides e Xenófanes. Sócrates filosofava dialogando com seus discípulas enquanto caminhavam, peripateticamente, pelas ruas de Atenas. O textos filosóficos de Platão são todos em forma de diálogos.
Uma das principais questões filosóficas que os primeiros filósofos, hoje denominados pré-socráticos, procuravam responder, era a contradição entre movimento e estagnação, entre transmutação e permanência. Se a permanência é verdadeira, como explicar as mudanças que percebemos no estado das coisas, como o envelhecimento, por exemplo? Seria a mudança uma ilusão? Se a mudança é verdadeira, como podemos manter alguma certeza? Se tudo muda, a verdade que detínhamos ontem pode ter validade hoje? Seria a permanência uma ilusão?
No filme, o cardeal Jorge Maria Bergoglio (Jontahan Pryce), futuro Papa Francisco, encontra-se com o Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) em sua residência de verão. É pertinente dizer que esse encontro nunca acontece de verdade, mas o roteiro inspirado de Anthony McCarten, toma uma licença poética para imaginar como ele poderia ter sido. durante a longa conversa que eles travam naqueles suntuosos jardins, Bergoglio diz: “Nossa Igreja... está indo por um caminho com o qual não consigo compactuar ou não está indo para lugar algum, num momento que pede mudança”. A tensão entre os dois personagens se dará essencialmente no campo da oposição entre a necessidade de mudar ou de não-mudar.
Parmênides, nascido por volta de 515 a.C., na cidade de Eleia, região da Magna Grécia (atualmente sul da Itália), tomou a defesa da permanência e da imobilidade, dando continuidade à filosofia da Escola Eleata, fundada por Xenófanes, aprofundando a teoria sobre uma unidade que sustentaria toda a criação. Para eles, o movimento era apenas uma aparência que engana os nossos sentidos. Segundo Parmênides, “o ser é imutável porque se mudasse poderia vir a ser e então seria e não seria ao mesmo tempo”.
Por outro lado, o filósofo Heráclito, nascido na cidade de Éfeso em 540 a.C., tomou a defesa da mudança e transformação. Para ele, o mundo e a natureza estão em constante movimento. "Nada é permanente, exceto a mudança", dizia ele. Tudo muda o tempo todo, e o fluxo perpétuo (movimento constante) é a principal característica da natureza: "Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras". Heráclito é como aquela voz feminina sintética no relógio de Bento XVI que, no filme, diz a todo momento: “Don’t stop. Keep moving!”. Mais adiante, enquanto os dois papas conversam nos jardins da residência de verão, Francisco fala sobre as opiniões que tinha sobre temas como homossexualidade no tempo que era líder dos jesuítas. Em certo momento ele diz “Eu mudei”, ao que Bento XVI discorda, dizendo “Você fez concessões”. Francisco discorda, mas Bento XVI reafirma seu argumento dizendo que “Mudança é concessão”. Francisco discorda novamente dizendo que a vida que é mudança. Esse diálogo remete claramente à essa questão filosófica primordial e os papas parecem encarnar os dois filósofos pré-socráticos.
O pensamento de ambos os filósofos inspiraria Platão, possivelmente o primeiro filósofo "pós-socrático", a tentar resolver o problema. Para isso, ele formulou a teoria do Mundo dos Sentidos e do Mundo das Ideias. De acordo com Platão, o Mundo dos Sentidos é o mundo da matéria, do corpo, dos homens. Em suma, é o mundo das coisas concretas, acessíveis pelos sentidos, como visão, tato e olfato. Como tal, este mundo encarna a mudança e a transformação, pois as coisas, assim como os homens, estão destinadas a mudar, a ter a sua forma alterada, a ter seu corpo corrompido pelo tempo. Por isso, este mundo é imperfeito e finito, onde os seres estão condenados ao envelhecimento, à corrupção e ao pecado. Neste mundo nada é perfeito. Tudo não passa de uma sombra ou reflexo das ideias. Mas elas habitam, imutáveis, perfeitas e incorruptíveis, um outro mundo. O Mundo das Ideias é o lar das essências, que ensejam a permanência e a imobilidade, acessíveis somente por meio da razão. Elas não morrem, não mudam, não envelhecem nem são corrompidas. São eternas. As coisas, existentes no Mundo dos Sentidos, seriam cópias imperfeitas e finitas dessas ideias perfeitas e imutáveis.
Mas este pensamento, além de ideológico (porque produz uma hierarquia entre os dois mundos que é expressão da divisão social do trabalho numa sociedade marcada pelo escravismo, como a da Grécia Antiga), não supera a contradição entre movimento e imobilidade, entre mudança e permanência. Se, por um lado, aparenta eliminar a contradição ao aceitar a existência de ambos, por outro, mantém a oposição entre eles e inventa um outro mundo, metafísico, o Mundo das Ideias, para justificar e alocar a existência da imobilidade e da permanência. No “mundo real”, o mundo onde pessoas como Heráclito e Parmênides, Sócrates e Platão, os papas Francisco e Bento XVI, os atores Jonathan Pryce e Anthony Hopkins, o diretor Fernando Meirelles e o roteirista Anthony McCarten, você e eu, existimos, só haveria mudança, movimento e transformação.
Essa forma de pensar platônica, que coloca as ideias como superiores às coisas concretas - e até mais reais do que elas - e que subestima o "mundo sensível" por causa de sua inerente contradição e mutabilidade, é o que chamamos de Metafísica. A metafísica valoriza a ideia abstrata sobre a coisa concreta. Por isso, via de regra, os metafísicos tendem a ser conservadores. Eles temem a mudança e a contradição, pois são incapazes de compreendê-las e aceitá-las.
Essa dualidade do platonismo influenciaria, mais tarde, pensadores cristãos, como Santo Agostinho, em suas tentativas de embasar racionalmente os dogmas da Igreja Católica. Sua teoria da Cidade dos Homens e da Cidade de Deus, exposta em sua obra “De Civitate Dei”, é claramente decalcada na teoria dos mundos platônica. “Fecerunt itaque civitates duas amores duo : terrenam scilicet, amor sui usque ad contemptum Dei; cœlestem vero, amor Dei usque ad contemptum sui.” (“Dois amores fazem duas cidades: uma é terrestre, obra do amor de si até ao desprezo de Deus; a outra, celeste, obra do amor de Deus até ao desprezo de si.”)
Aristóteles, nascido no ano de 343 a.C., na Macedônia, discordava de Platão. Segundo ele, o Mundo das Ideias é uma cópia daquilo que os nossos sentidos percebem. Para tentar resolver o conflito entre mudança e permanência, ele formula os conceitos de “Ato” e “Potência”. Por “ato”, Aristóteles queria expressar a forma que uma coisa determinada possui, concretamente, em um momento determinado. A “potência”, por sua vez, refere-se à aquilo que algo pode vir a ser, a algo que pode vir a ser, vir a existir, embora não o seja – ainda – num determinado momento. Ato e potência coexistem em tudo o que existe.
“Chamo, por exemplo, construtor quem tem a capacidade construir, vidente quem tem a capacidade de ver, e visível o que pode ser visto. O mesmo vale para tudo o mais. De modo que a noção de ato, necessariamente, precede o conceito de potência e o conhecimento do ato precede o conhecimento da potência.” (Aristóteles, Metafísica, IX, 1049)
O filósofo seria aquele que consegue enxergar a realidade como ato e como potência, simultaneamente, ou seja, que é capaz de enxergar não apenas o que é, mas também o que pode vir a ser. O pensamento aristotélico supera a oposição entre movimento (potência) e permanência (ato) ao eliminar a crença de que as coisas, ao mudarem, deixariam de ser o que são, já que considera a mudança como intrínseca ao próprio ser e às próprias coisas.
A partir de Aristóteles, ao longo dos séculos seguintes, a Dialética teve seu sentido ampliado, passando a significar também o modo de pensar a realidade que leva em conta as contradições à ela inerentes. Pensar dialeticamente implica aceitar que a realidade está em constante transformação. Como disse outro filósofo, o francês Michel de Montaigne (1533-1592), nos seus Ensaios: "Todas as coisas estão sujeitas a passar de uma mudança a outra; a razão, buscando nelas uma subsistência real, só pode frustrar-se, pois nada pode apreender de permanente, já que tudo está começando a ser - e absolutamente ainda não é - ou então já começando a morrer antes de ter sido". O pensar dialético é aquele que encara a realidade em quanto "processo", no sentido de algo inacabado, que se faz, se desfaz e se refaz, ininterruptamente, em vez de algo pronto, dado, acabado.
É belíssima a cena onde o jovem padra Jorge Maria Bergoglio caminha solitário e reflexivo entre uma densa e leitosa bruma, uma espessa e pálida névoa que parece um prenúncio da famosa fumaça branca que anuncia a escolha de um novo papa. É como se Bergoglio, enquanto "ato", estivesse envolto no signo da "potência" que ele carrega, que é o vir-a-ser o futuro Papa Francisco. Uma cena absolutamente rica de significado!
Por fim, retomemos aquele debate inicial entre os dois Papas, no começo do filme, quando o “heraclítico", "aristotélico” e progressista Papa Francisco defende a mudança e o “parmenídico”, "platônico" e conservador Papa Bento XVI defende a imobilidade: - Nada é estático na natureza, nem no universo, nem mesmo Deus. - Deus não muda. - Muda, sim. Ele evolui. - E onde O encontramos, se Ele está sempre mudando? - No caminho.
Ao final, vemos que nem o Papa Bento XVI é tão retrógrado, imutável e conservador, nem Francisco é tão moderno, dinâmico e progressista. Isso porque a própria renuncia de Bento XVI se daria porque ele entende a necessidade de mudança, mas não se veria apto a realizá-la. Do mesmo modo, Francisco, que defende esta mudança desde o início, mostra-se resistente à ideia de ser um agente dela. Há um pouco de cada um no outro - e essa contradição é perfeitamente dialética. Aliás, há uma imagem que expressa perfeitamente essa característica da dialética: o Tao, ou Yin-Yang. Nele, temos uma esfera, com duas metades, uma branca e outra preta. Porém, dentro da metade branca há um pequeno pontinho preto, e na metade preta, um pontinho branco.
"Mais tarde perceberás. Não fizeste como eu? Tu também saíste fora do comum... Tiveste essa coragem. Destruíste uma vida... a tua (é tudo a mesma coisa!). Pode viver em espírito e compreensão, mas terminarás no Mercado de Feno..."
"Como os anos passam depressa! Que fizeste durante esse tempo? Chegaste realmente a viver ou não? Que frio faz neste mundo, basta que passem mais uns anos para que chegue a espantosa solidão, a trémula velhice que traz consigo a tristeza e a dor. O teu mundo fantástico há de perder então as suas cores, murcharão e morrerão os teus sonhos, e como as folhas amarelas que tombam das árvores, também eles se desprenderão de ti."
"Eu ando pelo mundo Prestando atenção em cores Que não sei o nome Cores de Almodóvar Cores de Frida Kahlo, cores..."
Esta estrofe da famosa canção "Esquadros", composta por Adriana Calcanhotto, diz muito sobre o cinema de Almodóvar: ele tem cores, muita cores, cores fortes, cores que nos marcam, que por vezes incomodam, por vezes enternecem. Mas, sem dúvida, distinguem sua filmografia.
"Eu ando pelo mundo divertindo gente Chorando ao telefone..."
Neste seu último filme, um outro traço vai se evidenciando. Não propriamente um traço específico dos filmes do espanhol, mas principalmente da sua vida: uma vida onde as cores talvez sejam como pílulas, como drogas que anestesiam a dor, que fazem esquecer os sofrimentos. Uma vida muito parecida com a de Frida Kahlo, cujas cores também permeia a canção de Calcanhotto. Em Dolor y Gloria, as feridas e cicatrizes de Almodóvar são expostas, tal como num daqueles quadros de Frida, por meio do qual ela se retrava partida, ferida, rasgada. Logo em na cena que abre filme, vemos Banderas imerso numa piscina. Um close da câmera revela uma grande cicatriz nas costas, ao longo da linha da coluna cervical, indicando uma cirurgia - uma referência à cirurgia que Almodóvar fez, anos atrás.
"Transito entre dois lados De um lado Eu gosto de opostos..."
Como o mestre Fellini fez em sua obra-máxima, o clássico Oito e Meio (Otto i Mezzo, 1963), neste filme, Almodóvar cria sua própria obra-prima, tão autobiográfica quanto metalinguística. É um filme reflexivo em todos os sentidos. Seja a reflexão do homem Almodóvar que se dobra sobre si mesmo, passando sua vida em revista; seja a reflexão do cineasta Almodóvar, que, num roteiro redondo, como um "Ouroboros", passa em revista a sua própria obra.
Como em A Lei do Desejo (La ley del Deseo, 1987), neste Dolor y Gloria, temos um diretor de homossexual. Enquanto, no primeiro filme, o ator Eusebio Poncela interpreta o diretor de teatro Pablo Quintero, no segundo, temos Salvador Mallo, um cineasta interpretado por Antonio Banderas (estupendo!). Em La Ley del Deseo, o protagonista dirige o monólogo "A Voz Humana", de Jean Cocteau, enquanto escreve um roteiro para um filme. Em Dolor y Gloria, o protagonista está às voltas com uma exibição especial de um de seus primeiros filmes, intitulado "Sabor" (claramente, uma referência a La Ley del Deseo). Em Dolor y Gloria, o fictício filme Sabor havia sido protagonizado por Alberto Crespo ( interpretado Asier Etxeandia), que, após um desentendimento, rompeu relações com o diretor Salvador Mallo ficou cerca de 3 décadas. Isso de fato acontenceu, entre o ator Eusebio Poncela, protagonista de A Lei do Desejo, que ficou 32 anos sem falar com Almodóvar.
"Pela janela do quarto pela janela do carro Pela tela, pela janela Quem é ela? Quem é ela? Eu vejo tudo enquadrado Remoto controle..."
Amodóvar relembra a própria infância, algo que já fizera em A Má Educação (La Mala Educación, 2004), mas, desta vez, sem focar exclusivamente em sua passagem pelo seminário católico - e suas consequências. Agora ele concentra-se mais em sua relação com a mãe durante o tempo em que viveram entre as brancas paredes do vilarejo espanhol na região de La Mancha.
Lá, como no filme, o pequeno Almodóvar começou a escrever as cartas para os vizinhos, em sua maioria analfabetos. Nesta parte, que entrecorta o filme, cuja narrativa rejeita a linearidade, o protagonista é interpretado pelo carismático Asier Flores. Com ele, uma das cenas mais importantes do filme se desenrolará, quando ele desmaia diante do "primeiro desejo" (El primer deseo). Esse, aliás, é o título do filme que tirará Salvador da depressão e da melancolia, possibilitando que ele retome sua carreira. Essa é também uma referência à produtora El Deseo, que Almodóvar fundou em 1986 com seu irmão Agustín.
Muitos tem criticado o filme, alegando que, ao contrário dos grandes filmes do diretor, este carece de clímax. Porém, considerando que, com este filme, o objetivo de Almodóvar seja fazer um retrato sóbrio (apesar de não muito fiel) da sua própria vida, em vez de uma mera alegoria, cabe perguntar: na vida real, existe um clímax para fechar cada cena, para nos presentar com uma catarse ou para revelar algum sentido oculto?
"Eu ando pelo mundo E meus amigos, cadê? Minha alegria, meu cansaço Meu amor cadê, cadê você? Eu acordei Não tem ninguém ao lado..."
Ou a vida é uma sucessão breves e efêmeras alegrias, de fugazes gozos e glórias, que pontuam um oceano de does, de tédios, de erros e de arrependimentos, onde, no final, descobrimo-nos sozinhos e nossas angústias, sendo a arte, o amor e os vícios as únicas fugas, as únicas escapatórias, os sentidos, meras quimeras que inventamos para nos ajudar a suportar a difícil jornada?
Ao final, o filme se irmana a outras duas jóias lançadas em 2019 (O Irlandês e Dois Papas), em sua sóbria reflexão sobre a inevitabilidade do fim, do envelhecimento, e a necessidade de pensar no que fizemos, no que vivemos, no que deixamos e o que podemos ainda fazer que o tempo que nos resta.
Em 1925, a pequena cidade de Nome, no Alasca, foi vitimada por uma epidemia de difteria. Pelo menos 5 crianças morreram e outras tantas ficaram internadas, em quarentena, no hospital da cidade, esperando por um lote de vacinas de que pudesse salvá-las. A salvação, no entanto, estava a cerca de 1.000 quilômetros, na cidade Nenana.
Infelizmente, na mesma semana que o surto epidêmico ameaçava a cidade como uma praga bíblica, uma tempestade severa atingia a região, impossibilitando que as vacinas fossem transportadas por meio avião. Isolada, acima do Círculo Polar Ártico, longe de rodovias ou ferrovias, o único meio de transporte que poderia salvá-los eram o trenós puxados por matilhas de cães da raça Husky Siberiano.
Essa história teve um final feliz e se tornou famosa ao longo das décadas que se seguiram, tendo, inclusive, sido transformada em um filme de animação, lançado em 1995, pelo estúdio Universal. Tal como fez com alguns de seus filmes de animação mais famosos, incluindo o Rei Leão, Dumbo e A Dama e o Vagabundo (cujas versões em CGI foram lançadas em 2019), a Disney resolveu, este ano, recontar essa história. Porém, diferentemente dos remakes supracitados, no caso desse belíssimo filme Togo, a opção pela refilmagem se justifica não pela sanha de fazer uso de tecnologias modernas que emulam o mundo real, mas sim, pela necessidade premente de ser corrigir uma injustiça histórica.
Isto porque os nomes que passaram à posteridade como heróis, isto é, o cão Balto e seu condutor Gunnar Kaasen, não correspondem aos verdadeiros heróis dessa história. Eles apenas tiveram a sorte de fazer parte da equipe que chegou com as antitoxinas até a remota cidade de Nome. Contudo, durante a maior parte dos 1.000 km que separam as duas cidades, a viagem foi feita pelo "musher" (condutor) Leonhard Seppala (esplendidamente interpretado por Willem Dafoe) e a matilha liderada pelo seu bravo cão Togo, que na ocasião já contava com a idade de 12 anos.
Dafoe, aliás, é um daqueles atores que só ficam melhores com o tempo.Tal é o domínio que ele demonstra de sua arte e a plenitude com que a realiza, entregando-se a cada papel com a mesma medida de suavidade e intensidade, que acaba destacando-se mesmo onde o espaço que lhe cabe é exíguo. Não é, claro, o caso deste filme, onde ele tem espaço suficiente para nos deleitar, entregando mais uma atuação rica de nuances, daquelas que enchem a tela e os corações.
O filme conta essa fascinante história com a medida certa de ação e tensão, de ternura e sensibilidade. A narrativa não linear permeia a fatídica corrida de Seppala, Togo e sua matilha por entre a fria e cortante nevasca entre cumes e desfiladeiros cobertos de neve, com os momentos doces e ensolados de quando Togo era um filhote endiabrado que deixava seu dono ensandecido. Merecem destaque a fotografia de Ericson Core, a edição de Martin Pensa e a trilha sonora de Mark Isham.
Togo não entrou para história como herói, mesmo tendo sido-o verdadeiramente. Assim como no clássico "O Homem que Matou o Fascínora" (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), do mestre John Ford, os jornais imprimiram a lenda, dando notoriedade a um falso herói. Conta-se que Togo recebeu seu nome em homenagem ao um navegador que, assim como ele, fora subestimado em razão de seu diminuto tamanho. Tal como Seppala, morreu praticamente no anonimato, sem foto nos jornais ou monumentos em sua honra. Antes de de morrer, todavia, se tornou um procriador, dando origem a uma linhagem de huskys que ficou conhecida como "Siberianos Seppala" e que passou a ser disputada como ouro por criadores de cães e mushers de todo o mundo.
Balto, por seu turno, foi assim nomeado em homenagem ao explorador Samuel Balto. Em 1926, uma estátua foi erguida em Nova Iorque para homenageá-lo. Após sua morte, teve seu corpo empalhado e hoje encontra-se em exposição no Museu de Ciências naturais de Cleveland.
Vale pela crítica às injustas sociais que a desigualdade econômica inevitavelmente acarreta, na qual as minorias privilegiadas que compõem as elites exploram impiedosamente as massas de trabalhadores pobres e explorados. O filme ressalta a máxima segundo a qual, onde não há opções de lazer e cultura, a violência se transforma em espetáculo. Mas essa rinha humana que existe desde antes dos gladiadores e do coliseu já foi melhor explorada, com mais profundidade e complexidade, em filmes como A Noite dos Desesperados (They shoot horses, don't they?, 1969), Spartacus (1960), Salò ou os 120 dias de Sodoma (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975), Gladiador (2001) e até mesmo 12 anos de Escravidão (12 years a slave, 2014).
A Janela é tão Indiscreta quanto o próprio cinema, porque olha a vida íntima de personagens que, alheios à presença do espectador, lhe revelam seu íntimo. Essa, aliás, é a essência do cinema de Hitchcock: o olhar indiscreto. Cinema, para ele, é o voyerismo transformado em arte. Por isso, em Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), L.B. Jeffries (James Stewart) espia os seus vizinhos e, do mesmo modo que seu olhar é como o olhar do espectador, a sua janela é também como uma tela de cinema. Espia como Norman Bates (Anthony Perkins) espiaria, mais tarde, a bela Marion Crane (Janet Leigh) em Psicose (Psycho, 1960). Espia, da janela, como a mãe de Norman o espiava, no mesmo filme. Essa janela faz o que o cinema de Hitchcock sempre fez: exibe a vida quotidiana e íntima de seus personagens, desvendando seus segredos, seus traumas e seus pecados. Nela transcorre a "vida como ela é", em sua dialética de amor e ódio, traição e cumplicidade, movimento e imobilidade, nascimento e morte, segurança e perigo, ação e monotonia, limite e superação, criação e destruição.
Na janela, da esquerda para a direita, vemos: um homem e uma mulher, recém-casados, fazendo amor incansavelmente em sua lua de mel; à direita deles, num prédio de 2 andares, uma mulher mais velha e sozinha que, numa rotina monótona, alterna as horas entre banhos de sol no quintal e suas esculturas de barro abstratas; acima dela, outra mulher, mais jovem, que, numa rotina movimentada, alterna suas horas entre as aulas de dança e o flerte de homens; ao lado delas, num prédio maior, com 3 andares, há um um casal que dorme na varanda dos fundos por causa do calor, cujo cachorrinho agitado sobe e desce num elevador improvisado; abaixo deles, outro casal, cuja mulher enferma está paralisada em uma cama, limitada às paredes de seu quarto; abaixo deles, outra mulher mais velha e solitária, apelidada de "miss lonely heart". À direita da tela-janela, um compositor que, em crise criativa, tenta terminar uma música. Há também assassinato, traição e pessoas correndo perigos.
L.B. Jeffries, imóvel nos limites de seu apartamento, sente um misto de amor e ódio pela bela e rica Lisa Carol Fremont (Grace Kelly). Ama sua beleza, mas odeia seu modo de vida, que ele considera fútil,encenado e artificial. Por isso recusa o casamento e as ofertas para trabalhar como fotógrafo de revistas de moda. Ela repudia a ideia de passar os dias na rotina monótona de fotografar pessoas em poses planejadas, escondidas sob pesada maquiagem, sob iluminação artificial, num pano de fundo fictício, nos limites de um estúdio. Interessa-lhe olhar/fotografar/ver o real em toda a sua ação, em todo o seu risco, em todo o seu movimento. Tal qual Hitchcock (ou como o espectador de cinema), Jeffries quer fixar em sua película e em sua retina imagens vivas e cruas do amor e da morte, da criação e da destruição. Jeffrey, assim como Hitch, vê a vida como ela é: pessoas se amando, se odiando, se enganando, sofrendo, matando, criando, destruindo. A vida está cheia de tudo isso, e o cinema oferece ao expectador a satisfação do seus desejos voyeurísticos.
L.B. Jeffries resiste às investidas de Lisa, porque a considera monótona, artificial, fútil, "certinha demais". Para ele, as vidas íntimas que se desenrolam na sua tela-janela são mais interessantes, em sua crueza íntima e privada. Somente quando Lisa, saindo dos limites confortáveis da vida aristocrática que ela leva (e daquele apartamento), entrando no filme-vida que se desenrola na tela-janela de Jeffries, é que ele passa a interessar-se por ela. É preciso que ela, atraída pelo possível assassinato de uma mulher pelo marido, arrisque-se a entrar no filme-vida que Jeffries assiste, para que ela passe de fato a ser enxergada e desejada pelos olhos dele. Ela deixa de figurar-lhe como personagem, para ser vista como pessoa. Abandona seu véu de artificialidade, adquirindo realidade aos seus olhos. Deixa de ser, tanto para Jeffries quanto para o espectador, uma distração que impede a fruição do filme-vida, imobilizando a ação, e passa a ser motivo de atração, catalizadora de atenção e geradora de ação, dentro do filme.
É então que Jeffries supera a tensão dialética de amor e ódio, desejo e repulsa, que sente por Lisa, e passa a amá-la e desejá-la. Isso fica muito claro no modo como ele a olha quando ela retorna ao seu apartamento, logo após a primeira incursão dela dentro do filme-vida que se desenrola na tela-janela. É aí, quando o amor supera o ódio, que outra tensão começa a se desvendar: a do marido infiel que teria matado a esposa doente e imóvel, do amor que virou ódio, do desejo que virou repulsa.
Então, pela mesma porta pela qual o amor e o desejo entraram nos olhos de Jeffries na forma da bela Lisa, depois que ela entrou naquela tela-janela, é que, saindo daquela tela-janela, a repulsa, o ódio e a morte entraram no apartamento de Jeffries, na forma do marido assassino. Mas ambos, o marido assassino e a mulher objeto de desejo, morte e vida, ódio e amor, cumprem na vida e no olho de Jeffries, o papel que cumprem nos olhos e na vida do expectador de cinema: sua função é deslocar-nos do lugar-comum, confortável, limitado e imóvel. A janela indiscreta, a tela de cinema e a vida são meras projeções, uma da outra - e mesmo pode ser dito sobre o personagem, o expectador e cada pessoa "real".
Esta é obra-prima de Yorgos Lanthimos. Não senti falta de nenhum dos elementos característicos de sua filmografia: a fotografia que abusa da grande angular, de planos longos e dos jogos de luz e sombra, os diálogos ferinos, a opção por explorar o ridículo e o bizarro em algumas cenas, a trilha sonora dissonante e perturbadora, o tema sempre recorrente da impossibilidade de se controlar o "destino" (será que a tal liberdade existe mesmo?) e - o mais importante - a tensão da disputa de poder e manipulação entre os personagens (opressões e repressões sociais).
Elogiar as soberbas atuações de Olivia Colman, Rachel Weiss e Emma Stone é, como dizem "chover no molhado". Elogiar as soberbas atuações de Olivia Colman, Rachel Weiss e Emma Stone é, como dizem "chover no molhado". Assim como o clássico Malvada (All About Eve, 1951), A Favorita tem mulheres como protagonistas e é torno delas que tudo na história gira. Os homens é que são os coadjuvantes num jogo no qual as mulheres é jogam os dados em busca de um prêmio: o poder. Para isso, elas precisam ascender socialmente, isto é, galgar degraus cada vez mais elevados na escada que hierarquiza homens e mulheres.
Porém, como tenho visto muitas pessoas dizendo que este filme fala sobre empoderamento feminino e sororidade entre mulheres que, unidas, superam a opressão, decidi dedicar minha resenha à exploração e análise deste ponto de vista. Será que esta interpretação possui base que a sustente? Vejamos...
O filme dirigido pelo cineasta grego Yorgos Lanthimos enfoca um trio de mulheres: a Rainha Ana (Olivia Colman), Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone). Entre elas a relação varia entre a luta pelo poder e pela ascensão social e econômica, ou pela manutenção do poder e do status social e econômico adquiridos. O pano de fundo onde esse jogo de interesses se desenrola é uma Inglaterra que ainda guarda resquícios medievais, com uma sociedade dividida em classes altamente desiguais e hierarquizadas, nas quais os trabalhadores, na condição de servos, não possuem os mesmos direitos que as elites que constituem a nobreza.
Temos aqui a opressão de classe, na qual as classes trabalhadoras desprovidas de direitos sustentam, por meio da exploração de seu trabalho, os privilégios das elites. Os que tudo produzem vivem na miséria ou na penúria, impedidos de usufruir do fruto de seu trabalho, que é apropriado pelas elites, que não trabalham e vivem na opulência. No filme isso fica muito claro nas cenas que mostram os servos do castelo dormindo amontoados no chão frio dos porões do castelo, sem agasalhos, enquanto os nobres dispõem de imensos quartos com enormes camas, cheias de edredons, cobertores e travesseiros.
A mulher também ocupa uma posição de inferioridade em relação aos homens nessa sociedade, independentemente da classe a qual pertençam. Abigail, por exemplo, nasceu em uma família rica de donos de terras ligados à nobreza, mas caiu na desgraça depois que seu pai, um jogador inveterado, perdeu tudo em apostas e jogos de carteado, chegando inclusive a apostar a própria filha que, em consequência disso, sofreu diversos abusos. Por seu turno, Ana, mesmo sendo rainha, não é livre como um homem em sua posição social seria. Ela paga o preço por sei feia, por não ter dado a luz a um herdeiro (todos morreram no parto ou com poucos dias de vida) e por ser mulher. Mesmo sendo rainha, é obrigada a se manter em um casamento de fachada e ocultar sua bissexualidade. Sua vida está subordinada aos interesses da corte, à moralidade católica vigente e aos protocolos reais.
Temos aqui a opressão de gênero, na qual as mulheres são, por meio do matrimônio, transformadas em propriedade privada dos homens, como reprodutora do patrimônio de seu marido, por meio dos filhos. A condição social da mulher está condicionada à condição social do homem (pai, irmão, maridos) à qual ela está subordinada. Quanto mais baixa é a condição socioeconômica de uma mulher, mais submissa é a mulher, mais miserável é a sua condição e mais escassos são os seus meios para, de algum modo. se emancipar e se "empoderar". Esse fato deu origem à divisão sexual do trabalho, que já existia de as tribos nômades de caçadores-coletores e antecedeu a divisão social do trabalho, que começou a aparecer no Crescente Fértil por volta do oitavo milênio antes de Cristo a partir da invenção da agricultura, do Estado e da escrita.. Marx diz: "A exploração do homem pelo homem começou com a exploração da mulher pelo homem."
Aqui, se tomarmos o termo "empoderar" em seu real sentido, que é o de "ganhar poder", veremos que esse poder é, inevitavelmente, poder sobre o "outro", quando se trata de relações estabelecidas dentro de uma sociedade desigual economicamente. Mesmo para ter poder sobre si, ela precisa ter poder sobre outro, pois seu empoderamento depende de sua ascensão dentro de uma sociedade na qual estar "por cima" é sempre estar "por cima de alguém", ou seja, na posição de opressor, enquanto que "estar por baixo" é sempre "estar abaixo de alguém", portanto, na posição de oprimido.
La Boetie, em O Discurso da Servidão Voluntária, questiona o porquê da existência de tiranos, ao longo da história. A resposta que ele encontra é a seguinte: a existência do tirano é possível porque há abaixo dele centenas de mini-tiranos, numa hierarquia que é excludente na proporção em que é ascendente, formando uma pirâmide. Cada classe tiranizando a logo abaixo dela, com exceção da última classe, que contudo, é a que mais suporta o peso da tirania.
Karl Marx, posteriormente, nos mostrou que o poder que hierarquiza os tiranos tem origem econômico pois todo poder é poder de algo concreto (como um homem) sobre algo concreto (outro homem, ou riquezas). Mostrou-nos, por isso que a classe que sustenta toda essa opressão é a classe que produz riquezas. Esta classe não é outra senão a classe trabalhadora, pois é o trabalho que produz riqueza ao transformar a matéria em algo que satisfaça uma necessidade ou desejo humano. A classe trabalhadora é, contudo, historicamente, a classe que é a base das pirâmide social. Essa pirâmide hierarquiza homens dando mais poder aos de cima que aos de baixo porque, primeiro, os de cima possuem mais riquezas que os de baixo. A isso Marx dá o nome de opressão, que é a pressão econômica de uma classe sobre a outra, que se desdobra em opressões sociais e políticas.
O que coloca mulheres em situação de submissão aos homens é a necessidade de sobrevivência (que é uma necessidade econômica), posto que, na sociedade inglesa, até o século XX, proibia mulheres de ter propriedades (vejam, por exemplo, as personagens de Razão e Sensibilidade que são forçadas e ir morar de favor na casa de parentes após a morte do pai), e portanto, de possuir os meios (meios de produção aqui inclusos) para sua subsistência. Para sobreviver, uma mulher adulta precisava escolher entre casar-se com um homem, prostituir-se ou tornar-se freira. No caso de Abigail, que de moça bem nascida no seio da elite aristocrática, cai até a condição de servidão feudal, a opressão de gênero que caracteriza a sociedade patriarcal é bastante vívida e, quando mais baixo ela desceu nos estames dessa sociedade hierarquizada, maior era o peso de opressão.
Para Abigail livrar-se a opressão à qual encontra-se submetida, ela precisa ascender dentro daquela sociedade estamentada. Para isso, ela precisa aproximar-se daqueles que ocupam posições superiores na pirâmide social. Para isso, ela precisa trapacear, enganar, fazer conchavos, e passar a perna em muita gente, deixando os seus possíveis concorrentes pra trás. Voltando a La Boetie, temos aqui a pequena aspirante a tirana, cujo desejo de ascensão social e econômica é necessariamente um desejo de tirania, pois é um poder sobre algo (riquezas) e sobre alguém (tornar-se nobre é tornar-se dono de servos, por exemplo). Na ausência de direitos humanos universais que garantam a todos condições mínimas de dignidade humana, o objetivo para os que se encontram em posições de inferioridade é a busca pela ascensão social e econômica que lhe permita usufruir dos privilégios exclusivos às elites.
Engana-se quem acredita que este filme trata do empoderamento feminino ou da sororidade entre mulheres oprimidas. Tal interpretação resulta da projeção acrítica das perspectivas atuais sobre um filme que retrata uma realidade passada. É o reflexo da crença do feminismo burguês de que a luta pela emancipação feminina resume-se à luta de cada mulher pela ascensão econômica, ignorando que ascender socialmente dentro de uma sociedade economicamente desigual é necessariamente subir em cima de outros, ou seja, tornar-se opressor dos que estão em posições inferiores na pirâmide social.
Abigail, para ascender socialmente, precisou passar por cima de todos os que estavam em sua caminho, incluindo Sarah, que de sua ama, passa à sua aliada de em seguida à sua rival, na medida em que ela vai galgando mais e mais degraus nesta escada que se afunila na medida que nos aproximamos de seu topo. Sarah, cada vez mais sedenta de poder, tiranizava a rainha Ana de todos os modos possíveis, enganando-a para governar em seu lugar, fazendo-a assinar ordens de guerra sem lê-las, mantendo-a presa e alienada em seu quarto, usurpando-lhe o poder de modo sorrateiro. Ana, por seu turno, ao perceber a opressão à qual está submetida, entende que precisa oprimir para não ser oprimida, e passa e jogar tanto com Abigail quanto com Sarah, tentando tirar o maior proveito da disputa entre as duas.
A cena final exprime exatamente a aceitação de condição de tirana, por parte de Ana, como quem diz "nessa cabaré sou eu quem manda!". Ao acordar com Abigail pisoteando um de seus coelhos, ela levanta-se irada de sua cama, coloca Abigail aos seus pés, apoia-se com força nos ombros dela enquanto a obriga a fazer massagens em sua perna. Seu intuito é deixar claro que, ali, nenhuma pessoa naquela corte está acima dela e somente a ele cabe o privilégio de tiranizar os demais. Abigail, como o ato de Ana deixa claro, é apenas mais um coelho naquele quarto e Ana é quem tem o poder sobre todos ali. O desejo de ascensão social é necessariamente um desejo de tiranizar, de oprimir, mesmo que o sujeito não entenda isso. Aliás, não entender isso é parte da alienação à qual estamos todos submetidos, que é a imposição da ideologia da classe dominante, por meio da qual ela procura convencer os oprimidos a aceitar o status quo. Não há sororidade, mas competição entre mulheres que galgam posições de opressão em uma sociedade marcada pelas desigualdades. Há empoderamento, mas não no sentido emancipatório, e sim no sentido de ter poder sobre os demais.
Portanto, para destruir a tirania é preciso destruir no indivíduo o desejo de ascensão social, que só beneficia a ele, substituindo-o pelo desejo da transformação social, que beneficia a todos. Como se faz isso? Paulo Freire responde: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor". Uma educação libertadora é aquela que denuncia as opressões de gênero de de classe e que constrói meios para sua erradicação.
A direita reacionária brasileira, "encabeçada" por acéfalos como Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Kim Kataguiri, Nando Moura, insistem em difamar um herói como Marighella e trata-lo como terrorista, ao passo que exaltam torturadores Ustra e louvam Estados terroristas como Israel e os EUA, estes sim responsáveis por genocídios e outras barbaridades
Marighella e Che não torturaram ninguém, nem desapareceram com nenhum corpo. Marighella e Che não mataram porque essa era sua profissão, como Ustra.
Che e Marighella não eram funcionários do terror, como Ustra, não trabalhavam para a repressão, nem em prol da manutenção de um regime opressor. Che e Marighella eram homens comuns, civis, que se tornaram revolucionários, que foram levados a pegar em armas por viver em um regime opressor e por decidir lutar contra a opressão.
Marighella nunca torturou ninguém nem sumiu com seus corpos. Lutava contra a opressão do povo pelos lacaios do imperialismo norte-americano. Lutava contra a opressão do trabalhador pela classe dominante: a burguesia.
Ustra é digno da lata de lixo da história. Era um lacaio dos interesses do norte. Torturou, matou e sumiu com os corpos de guerrilheiros e militantes que lutavam contra a ditadura no Brasil, além de civis que apenas manifestavam discordância com o regime repressor. Nunca lutou por nada. Apenas fazia o trabalho sujo em nome da manutenção de um status quo injusto.
Em um regime de exceção, como foi a ditadura, as noções do que são crime e de qual é o papel da justiça são distorcidas em nome da defesa cega do regime e da repressão aos dissidentes. Terroristas foram os deputados que declararam a cadeira presidencial vazia quando Jango estava viajando. Terroristas eram os jornais da época que associavam Jango à uma ameaça comunista.
Terrorista era a parcela branca, burguesa, conservadora, cristã e reacionária da sociedade que foi às ruas pedindo intervenção militar, em 64 e em 2015. Terrorista, por fim, foram os militares que tomaram o poder e instauraram o terror por 21 anos. Comparar Marighella e Ustra é prova de ignorância histórica e desonestidade intelectual.
Portanto, não confunda a luta do oprimido, com a fúria do opressor. Não tente igualar um revolucionário a um reacionário. O revolucionário luta pela liberdade, enquanto o reacionário se opõe vigorosamente à ela. Um revolucionário está disposto a sacrificar a própria vida em nome dela, enquanto o reacionário está disposto à sacrificar a vida de outros para não concede-la a ninguém.
Tentam acusar os comunistas de hoje de incoerência, alegando que eles não poderiam usar tênis, celulares e e computadores, pois tais coisas seriam dádivas só possíveis graças ao capitalismo. Estão equivocados. Quem cria, inventa e produz coisas são os trabalhadores, explorados pela burguesia detentora dos meios de produção. Só o que o Capitalismo produz de seu são as desigualdades, a pobreza, a marginalidade, a exclusão. São essas desigualdades que Marighella lutou para combater mas foi impedido pelos agentes da burguesa internacional, isto é, a CIA e outros orgãos das grandes potências capitalistas que, como tem sido provado pelos documentos vazados por Snowden e Assange, estiveram, por exemplo, por trás do golpe no Brasil, em 1964, ou no Chile em 1973, que derrubou Allende o colocou Pinochet no poder.
Esse esforço por difamar a imagem de Marighella e outros comunistas é parte do projeto muito bem pensador e elaborado pela burguesia para manter o status quo, ou seja, as coisas como estão, e afastar qualquer possível revolução lhe usurpe os meios de produção que lhe permitem explorar, mantando o posto de classe dominante e exploradora.
Se a classe trabalhadora tudo produz, à ela tudo pertence!
Viva Marighella, que lutou como herói contra o militarismo canalha e autoritário e contra as elites fascistas e desprovidas de ética. Matou foi pouco! Viva Marighella! Morte aos inimigos da classe trabalhadora e defensores das burguesias de rapina que nos saqueiam e exploram!
Eu achei o filme lindo. As duas maiores qualidades do filme são o som e a fotografia. Parabéns aos responsáveis pela edição e pela mixagem de som, pois o trabalho que eles fizerem foi extraordinário. Na cena do lançamento da missão Gemini, os efeitos sonoros são incrivelmente precisos. Dá realmente a sensação de que você está ali dentro daquela cápsula.
Se você prestar atenção dá pra ouvir tudo: explosões do combustíveis dentro dos motores de combustão, os parafusos e a fuzelagem rangendo com a pressão, o assovios do foguete literalmente cortando o ar em alta velocidade... tudo. Assistir o filme num ambiente silencioso no qual não haja distração alguma é o mais indicado - aliás, esse seria o certo em tratando de assistir qualquer filme.
A fotografia é outro espetáculo. Nas cenas dentro das cápsulas a câmera treme, gira, rodopia, e transmite toda a sensação de desconforto e claustrofobia que o ambiente e a situação reais propiciariam. Na cenas dos astronautas na superfície lunar, os planos escuros e aparentemente infinitos também fazem com que sintamo-nos na Lua.
Neste ponto, o som entra- e sai - coroando a cena: seja no silêncio quase absoluto da cena em que Armstrong coloca o pé na lua, seja na trilha sonora belíssima que Justin Hurwitz compôs para emoldurar a cena em que Armstrong caminha naquela arei fina e imóvel, como quem se dirige ao nada. Muito significativa, ela expressa uma outra caminhada, mais subjetiva, que o personagem faz durante o filme, que a jornada rumo à entender a morte e a perda como partes indeléveis da realidade, contra as quais é inútil lutar.
O que importa é o presente, o agora, e o que fazemos dele. O passado já passou. O futuro não existe, a não ser que o façamos. E ao fazê-lo, ele se torna presente e, logo em seguida, passado. Somos feitos de poeira de estrelas. Aquela mesma poeira que cobre a superfície lunar na qual Amstrong deixou não apenas suas pegadas.
Uma coisa é o assunto que o filme pretende abordar. Outra é como essa abordagem é feita por meio do cinema. Considerando-se o tema, este Fast Food Nation poderia ser um excelente filme. Contudo, ao optar por acompanhar diferentes núcleos de personagens, com diferentes arcos narrativos, o ritmo do filme fica comprometido e alguns histórias ficam mal desenvolvidas.
Richard Linklater é um grande cineasta e eu sou profundamente encantado tanto com a trilogia Before, quanto com Boyhood, todos filmes excepcionais. Contudo, no que tange à realização, este Fast Food Nation deixa a desejar. Por exemplo, no entrecho protagonizado por Greg Kinnear, ao qual o roteiro não dá uma conclusão satisfatória.
Enfim, um filme que poderia ter sido melhor, mas resulta apenas mediano.
Pig: A Vingança
3.5 305Esse filme é um misto de John Wick, com aquele pano de fundo de uma subcultura urbana e secreta, à qual poucos tem acesso, com Rattaouille.
Top Gun: Maverick
4.1 1,1K Assista AgoraMelhor que o primeiro filme, que era bem tolinho, e só. Tem o defeito de prosseguir com aquele discurso patético e profundamente ideológico de que os EUA são uma potência militar preocupada com a promoção da paz.
Brincando nos Campos do Senhor
3.7 40 Assista AgoraFilme fraquíssimo, com sérios problemas de execução e direção, atores perdidos e desperdiçados (especialmente Kathy Bates). Enfim, uma tremenda perda de tempo com 3 horas de duração.
Meu Pai
4.4 1,2K Assista AgoraSem dúvida, o filme Meu Pai (The Father, 2020), é um dos melhores do ano e, ao meu ver, também do século, pois toca numa questão que é humanamente universal, e o faz com inegável apuro estético e domínio da linguagem cinematográfica. O modo como o diretor e roteirista Florian Zeller conta a história de Anthony (Anthony Hopkins), um homem de idade avançada e em processo de perda de memoria, é, a um só tempo, sensível e profundo, tocante e devastador.
“Sinto que estou perdendo minhas folhas, meus galhos”, diz Anthony num determinado momento, numa fala tão poética quanto desoladora, para expressar sua condição. Ao final, não há como sair ileso. Confesso que chorei copiosamente quando o filme terminou.
A narrativa não se contenta e contar a experiência de seu protagonista por fora, nos colocando como expectadores passivos de sua realidade. Ao contrário, direção e roteiro optam por entrar totalmente na mente de Anthony, propiciando a quem assiste uma imersão sem igual, de modo que passamos a não apenas partilhar, mas vivenciar com o protagonista a sua angústia e sua confusão.
Para isso, contribuem a formidável montagem/edição das cenas, que misturam brilhantemente as memórias de Anthony; bem como a cenografia, com objetos que ajudam a compor o labirinto de uma mente obliterada pelo tempo. A assombrosa atuação de Hopkins, por seu turno, é digna de todas as láureas e aplausos. Aliás, Zeller escreveu o roteiro do filme para que ele fosse protagonizado Hopkins e, por este motivo, o protagonista leva o nome dele.
Por fim, Meu Pai (The Father) é um excelente filme para debatermos sobre envelhecimento, etarismo, politicas públicas voltadas para a "terceira idade", e refletirmos sobre como nossa sociedade trata os idosos. Aliás, pra ser visto na mesma toada que o documentário chileno El Agente Topo, que injustamente não levou o Oscar este ano, e filmes como Make Way for Tomorrow, Umberto D., The Trip to Bountiful, The Wales of August, Driving Miss Daisy, Fried Green Tomatoes e Amour.
Tara Maldita
4.0 225Ótimo filme, muito ousado para a época, por colocar uma criança como vilã da história, questionando o estereótipo da pureza infantil, tão caro ao cinema hollywoodiano.
Contudo, o final moralizante prejudica a obra, ao usar literalmente de um "deus ex-machina" para redimir a mãe do infanticídio e deixar a lição de que, no final, há sempre o "castigo divino".
Recomendo outro ótimo filme que também faz essa provocação: Infâmia (The Children's Hour, 1961), dirigido por Willian Wyler e protagonizado pelas excelentes Audrey Hepburn, Shirley McLaine e Faye Bainter
A Mosca
3.7 1,1KO cinema de David Cronenberg, é como uma autópsia ou uma dissecação: versa, invariavelmente, sobre o que há por debaixo dessa “humana” pele que vestimos. É um cinema que escalpela, para revelar, de modo explícito, da carne crua do animal que somos. A visão que Cronenberg tem deste animal é a seguinte: trata-se de uma besta-fera, latejando dentro da cada um de nós, sedenta de sangue, faminta por carne, ávida por sexo. Além disso, em todos os filmes do Cronenberg, seus personagens estão escondendo algo de si que, ao longo da trama, passarão por uma transformação ou metamorfose na qual eles deixarão de ser o que aparentavam para se tornar ou revelar o que - ou quem - realmente são.
Se em Marcas da Violencia (A History of Violence, 2005), ele apresenta um protagonista, Tom Stall (Viggo Mortensen), que, debaixo da superfície de um pacato pai de família do interior, esconde um passado violento; em Senhores do Crime (Eastern Promisses, 2007), ele apresenta um personagem diamentralmente oposto, Nikolai (também interpretado por Viggo Mortensen), um capanga de máfia que por trás de sua aparente violencia e brutalidade, esconde uma outra faceta.
Em Crash - Estranhos Prazeres (Crash, 1996), do diretor nos apresenta James Ballard (James Spader), um homem bem casado e com uma vida aparentemente ''normal'' que, após se envolver em um acidente automobílistico, acaba descobrindo e se entregando a fetiches sexuais um tanto perigosos. Já em Madame Butterfly (M. Butterfly, 1993), temos Rene Gallimard (Jeremy Irons), um diplomada francês a serviço em Pequim que se apaixona pela cantora Song Liling, mas ela também guarda um segredo.
Neste filme A Mosca ele leva esse pressuposto até o limite para mostrar como o ser humano, quando desprovido daquilo que o humaniza, se limita a um animal, sujeito a instintos e necessidades básicas. O cientista brilhante, Seth Brundie (Jeff Goldblum), que inventa uma máquina de teletransporte mas que, por causa de um acidente em uma experiencia na qual ele se colocou como cobaia, vai aos poucos se tornando uma mosca gigante, talvez seja o Cronenberg mais explícito.
O que nos distingue dos demais animais? Tal como um lobo ou um cão, um tigre ou um gato, uma águia ou uma mosca, somos um amontoado de células vivas, guiados por instintos básicos sobrevivência e reprodução. Assim como eles, nós, enquanto seres vivos, temos necessidades básicas: fome e sede (nutrição), sexo (reprodução), sono (descanso) e agressividade (competição ou colaboração). Porém, ao contrário deles, temos consciência dessas necessidades e somos capazes de planejar a satisfação delas, bem como de refletir sobre elas, produzindo meios de, por exemplo, produzir e trocar alimentos (economia), de administrar e regular conflitos (política), e de representar simbolicamente esses processos (cultura).
Diferentemente deles, também somos capazes de modificar a natureza ao nosso redor, por meio do trabalho (uma atividade econômica) e da técnica (um conhecimento cultural), valendo-nos da conjunção entre “um polegar opositor e um telencéfalo altamente desenvolvido”. Por meio da combinação dessas habilidades, nos afastamos da natureza e fomos, ainda que precariamente, domesticando nosso animal interior, tornando-nos seres históricos (que produzem registros ou marcas no tempo) e geográficos (que produzem registros ou marcas no espaço). No tempo histórico e no espaço geográfico, estabelecemos relações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Assim como lobos, leões, abelhas, cupins, sardinhas, golfinhos, baleias e gaivotas, somos animais sociais. A sociabilidade não é um traço distintivo humano. Porém, cultura, economia e política são. Sem cultura, economia e política, não somos humanos, mas meros animais entregues à barbárie. A humanidade não é natural, mas essencialmente histórica e geográfica. Ser humano é uma condição resultante de um processo, que ocorre socialmente, ao logo da vida de cada um de nós, de “humanização”, isto é, de recebimento e absorção de comportamentos sociais, hábitos e conhecimentos culturais, habilidades econômicas e posições políticas. Nos humanizamos, portanto, na medida em que, inseridos numa sociedade, recebemos cultura, realizamos atividades econômicas e participamos da vida política.
O ser humano é o único animal que possui política. A política é a dimensão da realidade humana na qual inserem-se as relações de poder e a resolução de conflitos, seja entre um ser humano e outro ser humano, seja entre um grupo de seres humanos e outro grupo. É nesta dimensão que residem as leis e normas, cuja função é determinar o que pode e o que não pode ser feito, bem como as penas e sanções a serem impostas àqueles que as infringem.
Seth: - Você tem que sair agora e nunca mais voltar aqui. Você já ouviu falar em política de insetos? Nem eu. Os insetos não têm política. Eles são muito brutais. Sem compaixão, sem compromisso. Não podemos confiar no inseto. Eu gostaria de me tornar o primeiro político de insetos. Sabe, eu gostaria, mas... eu tenho medo...
Veronica: - Eu não sei o que você está tentando dizer!
Seth: - Estou dizendo... Estou dizendo que eu sou um inseto que sonhava que era homem e adorava. Mas agora o sonho acabou... e o inseto está acordado.
Veronica: - Não, não, Seth...
Seth: - Estou dizendo... Vou te machucar se você ficar.
Seth é um personagem que representa um excesso de humanização: um cientista brilhante, extremamente culto e inteligente, autodidata, mas com determinadas habilidades sociais, ligadas ao instinto básico da sexualidade, pouco desenvolvidas. Sua dificuldade em, por meio do flerte, seduzir Verônica, o leva a expor o seu segredo para atraí-la ao seu apartamento. Verônica (Geena Davis), é uma jornalista que, na trama elaborada por Cronenberg, cumpre o papel de descobrir os mistérios que Seth guarda. É ela a primeira pessoa à qual ele revela seu experimento. Ao entrar em seu esconderijo-laboratório, acaba por despertar nele, por meio do apelo à sexualidade, o animal escondido por trás de sua pele humana. Porém, assim como acaba sendo, num primeiro momento, convencida a guardar esse segredo, em vez de publicá-los na revista onde trabalha, comprometendo-se a só fazê-lo quando o experimento de teletransportar um ser vivo for realizado com sucesso. Movido por um instinto agressivo de provar-se e afirmar-se enquanto macho, o desejo de Seth por Verônica leva-o a arriscar-se, colocando-se como cobaia em sua própria experiência de teletransporte. É ela também primeira pessoa a perceber que algo errado aconteceu quando Seth se teletransportou. Neste momento, assim como aquele segredo, Verônica perceberá que carrega também uma outra coisa, fruto dessa relação com Seth: um filho, que ela não sabe se foi gerado antes ou depois da fusão do DNA de Seth com o da mosca. O medo de estar carregando uma aberração dentro de si, leva Verônica a optar pelo aborto e esse fato levará Seth, já transformado em “Brundlefly”, a sequestrar Verônica, movido por um instinto de reprodução, ou seja, de preservar sua prole.
Brundlefly, ao final, enquanto um Seth que foi "desumanizado", revela-se um cara "família acima de tudo", anti-abortista, crítico do "politicamente correto" e da "igualdade de gênero", e ferrenho defensor da justiça com as próprias mãos.
Marujo Intrépido
4.1 24Um filme lindo, daqueles que aquecem nosso coração e enternecem nossa alma!
Harvey Cheyne Jr. (Freddie Bartholomew) é literalmente um "filhinho de papai" e, como tal, é mimado, arrogante, manipulador e prepotente. Certo dia, um providencial acidente o faz cair na rede do português Manuel (Spencer Tracy), um pescador que trabalha no veleiro "We're Here" (Estamos Aqui), de Gloucester, Massachusetts, cuja tripulação é liderada pelo Capitão Disko (Lionel Barrymore). Contra sua vontade, Harvey passará 3 meses nesse pesqueiro, longe das mordomias e regalias às quais estava habituado na mansão de seu pai, o magnata Frank Burton Cheyne (Melvyn Douglas).
Durante essa jornada inesperada, ele acabará passando por experiências que moldarão e mudarão seu caráter, especialmente na companhia de Manuel, que acabará por, temporariamente (mas de modo que ele nunca o esquecerá), ocupando o papel de figura paterna que, mesmo quando Harvey vivia com seu pai, era inócua.
O filme, dirigido por Victor Flemming (de E o vento Levou e O Mágico de Oz), é uma pérola da cinematografia estadunidense da década de 1930, e seus méritos vão além da relação entre o Harvey e Manuel. O filme explora de maneira brilhante os personagens secundários, de modo que, ao terminar a sessão, também nos recordamos deles com carinho. Mérito que cabe também ao grande elenco, como o lendário Lyonel Barrymore, que entrega um capitão Drisko cheio de nuances, que só não rouba a cena para si quando aparece, pelo fato de os seus companheiros de cena estarem tão inspirados quando ele. As disputas que ele trava com o Capitão Walt Cushman (Oscar O'Shea), chefe do pesqueiro Jennie Cushman, são deliciosamente hilárias.
Além disso, a rotina dentro de um barco pesqueiro na década de 1920 (quando a história se passa), é desenvolvida de modo bastante complexo e verossímil. A hierarquia, as tarefas cotidianas, a camaradagem, as técnicas de pescaria, os inconvenientes da vida no mar, enfim, tudo é mostrado com bastante apuro. Só outro filme, ao meu ver, conseguiu este feito: Mestre dos Mares (Master and Commander, 2003), de Peter Weir. As qualidades técnicas são tambem indiscutíveis: nas cenas em alto mar, fica difícil discernir o que foi grava em estúdio ou não, dado o realismo da direção de Flemming. Há ainda o menino prodígio Mickey Rooney, interpretando o garoto Dan, filho do capitão Disko, John Carradine ( que trabalhou como John Ford em No Tempo das Diligências, O Homem que Matou o Facínora e As Vinhas da Ira) como o marujo "Long Jack", e Charley Grapewin como o Tio Salters.
Acima de tudo, a solidez da atuação da dupla central, Freddie Bartholomew e Spencer Tracy, encanta-nos e convence-nos, de modo, que, ao final, é impossível não deixar cair uma lágrima pela linda amizade que nasceu entre os dois, e torcer para que, no "céu dos marujos", Manuel esteja pescando junto com seu pai, guardando um lugar para Harvey, quando o momento chegar. Terminamos com a certeza de que aquele menino mimado se tornará um homem melhor, por causa de tudo o que, coma medida certa de ternura e austeridade, Manoel e tripulação do "We're Here" lhe ensinaram.
A Profecia
3.9 592 Assista AgoraQuem ainda não assistiu, assista, e aproveite para ver também O Exorcista (1973), Poltergeist (1982), No Limite da Realidade (1983) e O Corvo (1994)., para depois assistir à minissérie documental "Cursed Films", do Shudder, serviço de streaming da AMC focado em horror. A minissérie enfoca esses 5 filmes e os acontecimentos bizarros ligados à sua realização, fazendo que passassem à história como amaldiçoados.
Por exemplo, quando em 1982, o filme “Poltergeist” estreou, foi quase ofuscado pelo assassinato da atriz Dominique Dunne, após ter sido estrangulada por seu ex-namorado, John Thomas Sweeney, insatisfeito com o fim do namoro. No filme, ela interpretava a jovem Dana, uma das filhas da família que é perseguida por espíritos de outro mundo.
Durante as filmagens deste A Profecia (The Omen, 1976), por exemplo, dois aviões diferentes que transportam pessoas associadas ao filmes foram atingidos por raios, além de um acidente de avião, um acidente de carro e um bombardeio do IRA terem acontecido próximo dos locais onde a produção acontecia. O mais trágico, no entanto, aconteceu a um membro da equipe de produção, que sofreu um acidente fatal e sua namorada foi decapitada - tal como acontece a um personagem do filme.
No Limite da Realidade
3.6 176 Assista AgoraPrologue "Something Scary": 4.5/5
Time Out: 5/5
Kick the Can: 1.5/5
It's a Good Life: 2.5/5
Nightmare at 20,000 Feet: 4.5/5
Epilogue "Even Scarier": 4/5
Harriet: O Caminho Para a Liberdade
3.7 217 Assista AgoraUma pena ver uma história linda dessas contada de modo tão convencional e amador. A trilha sonora é, pra mim, o maior defeito. Não que ela seja uma trilha ruim, mas a escolha por composições orquestrais, com características clássicas, confere ao filme uma atmosfera colonizada.
É um trilha branca, europeizada, como se fosse feita para e pelos donos de escravos, em vez de para e pelos negros que lutam por sua liberdade e contra a escravidão. Uma trilha que destoa da história da qual ela deveria funcionar com uma alma, que inspira e lhe anima. Fosse uma trilha nos moldes daquela composta por Alberto Iglesias para o filme O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, 2005), por exemplo, o efeito seria outro, proporcionando ao filme maior autenticidade. O roteiro, esquemático, se ancora em alguns clichés que fazem com que a narrativa se torne previsível em alguns momentos. Outro problema, já apontado por outros cinéfilos, está em algumas atuações, como a de Janelle Monáe, engessadas por um formalismo que beira o teatral.
Felizmente, a atuação de Cynthia Erivo e canção "StandUp", composta por ela e que encerra o filme, são grandes o bastante para elevá-lo um pouco acima da mediocridade. Com justiça, ambas respondem pelas únicas indicações ao Oscar que o filme recebeu, muito embora, ao meu ver, a cenografia e os figurinos também merecessem indicações.
As Golpistas
3.5 538 Assista AgoraMuitos têm dito que esse é filme cuja única qualidade é a atuação de Jennifer Lopez. De fato, a atuação de JLo é o coração do filme e ela rouba todas as cenas em que aparece. Concordo que ela fui injustiçada ao ser esnobada no Oscar deste ano, onde merecia uma indicação como Melhor Atriz Coadjuvante. Porém, o filme tem outras qualidades e são justamente por causa destas qualidades - não dos defeitos - que ele acabou ficando de fora do Oscar.
É possivel traçar um paralelo entre este As Golpistas (Hustlers, 2019) e outro filme recente: O Escândalo (Bombshell, 2019), dirigido por Jay Roach. Ambos trazem mulheres como protagonistas, focam na questão do modo como as mulheres, numa sociedade machista e patriarcal, são vítimas de abusos, e tentam fazer uma espécie de reparação histórica, retratando diferentes formas de reação das mulheres à esta realidade dominada por homens, na qual são tratadas, muitas vezes, como meros objetos de prazer. Contudo, as semelhanças terminam aí.
Se os dois filmes se irmanam com relação aos temas que abordam, por outro lado, eles se opõem no modo como esses temas são abordados. Essa divergência é mais acentuada no modo como os roteiros inserem essas histórias no contexto mais amplo, histórico, econômico e social. Em O Escândalo esse pano de fundo é apenas esboçado, quando o roteiro aborda o contexto das eleições presidenciais de 2016 nos EUA, por meio do conflito entre a jornalista Megyn Kelly (Charlize Theron) e o então candidato Donald Trump, sem, contudo, explicitar o modo como esse contexto influi na vida das personagens.
Em As Golpistas, ao contrário, essa inserção da narrativa num contexto maior é desenvolvido de modo mais satisfatório, mostrando os impactos da crise de econômica de 2018 na vida das personagens, além de, por meio do estabelecimento dessa relação entre o que passa no plano restrito das vidas de cada personagem com o plano mais amplo, histórico, econômico e social, o filme de Lorene Scafaria faz uma crítica à essa sociedade machista e patriarcal, que sustenta e é sustentada pelo sistema econômico capitalista - aliás, sobra espaço para uma crítica ao sistema também.
"...E então tem os filhos da puta no topo: presidentes, investidores, bancários, empresários, acionistas, assassinos de aluguel, vindo direto da cena do crime para o clube. Mas não pela frente. Esses caras não querem virar notícia. Eles entram pelos fundos. E não saem enquanto não gastarem de 10 a 15 mil por noite. E nunca se dão mal. Porque todos estão dispostos a cobrir os rastros deles. Pois no fundo, todos querem o que eles têm. Todos querem estar no topo, onde não há consequências."
Ao final, enquanto O Escândalo oferece uma catarse, com o vilão sendo punido e as heroínas sendo justiçadas, este As Golpistas é mais sóbrio e mais pessimista. Seu roteiro não entrega, ao final, um desfecho moralizante e reconfortante que restabeleça a fé dos espectadores no sistema. Pelo contrário, ele deixa muito claro quem de fato de ganha e quem de fato perde e que, infelizmente, os verdadeiros vilões seguem impunes, pagando de mocinhos, enquanto as vítimas seguem sendo exploradas, abusadas e injustiçadas.
"Esta cidade... esse país inteiro é um clube de strip. Tem pessoas jogando o dinheiro enquanto outras dançam."
Honeyland
4.1 153Existem filmes que habitam uma intersecção entre o documentário e a ficção, entre a captura de cenas espontâneas de um determinado cotidiano e a sua encenação. Este Honeyland é um deles, e isso fica evidenciado pelo fato de, este ano, ele ter emplacado duas indicações ao Oscar: uma como Melhor Filme Internacional, outra como Melhor Documentário. Realizado na Macedônia, a menor das nações balcânicas surgidas após a dissolução da Iugoslávia, por esta peculiaridade de sua forma, ele se irmana à outras obras, como o mongol Camelos Também Choram (2003), dirigido por Byambasuren Davaa e Luigi Falorni.
Mas, se colocarmos esses dois fascinantes filmes em paralelo, veremos outras semelhanças. Ambos se passam em rincões rurais e isolados, onde o modo de vida primitivo conferem à narrativa um tom de passado, como se aquela realidade e aqueles personagens não pertencessem à este tempo, como se pertencessem a um passado distante e superado. Ambos se passam em aldeias rurais, enfocadas como uma se fossem pedaço de um passado que tivessem sido ali encapsulado. Em ambos, um modo de vida próximo ao tribal, em dado momento se vê ameaçado pela iminência de um modo de vida globalizado, que se introduz naquela cápsula como se viesse de outro mundo. Um invasor sedento e faminto que a tudo devora de corrompe.
Em essência, ambos o documentários (ou filmes?) falam das mesmas coisas: o conflito entre o velho e o novo, a inevitabilidade da mudança, a resiliência/resistência ante o invasor. Se em Camelos também Choram, o filhote de camelo rejeitado pela mãe figura como um símbolo de uma "modernidade" à qual os pastores nômades mongóis criadores resistem ingressar, temendo a perda sua identidade e sua territorialidade, em Honeyland o impacto da presença da família nômade de criadores de gado na vida da solitária criadora de abelhas Hatidze Muratova (que tira seu sustento produzindo mel de maneira sustentável, valendo-se de técnicas ancestrais transmitidas de geração em geração), também simboliza essa "modernidade".
"O que distingue uma época econômica de outra, é menos aquilo que se produziu do que a forma como foi produzido." — Karl Marx
No entanto, o que é essa tal "modernidade", senão um eufemismo criado para ocultar as relações de produção no sistema capitalista, segundo as quais o lucro deve ser priorizado sobre todas as outras coisas, não importando o resultado de sua busca inconsequente para a vida das pessoas ou para o meio ambiente?
"A classe capitalista rasgou o véu sentimental da família, reduzindo as relações familiares a meras relações monetárias." — Karl Marx
Em Honeyland, essa crítica ao sistema econômico vigente, fica muito clara quando nos damos conta de que todo o equilíbrio entre o ser humano (Hatidze) e o ambiente (as abelhas), é quebrado quando a regra segundo a qual nunca se deve extrair todo o mel das colmeias, é desrespeitada em nome da lógica do consumismo. E assim, modos de vida tradicionais, saberes locais e técnicas seculares são pulverizados pela "mão invisível do mercado".
Adoráveis Mulheres
4.0 975 Assista AgoraNa minha opinião, essa é a melhor adaptação cinematográfica do clássico romance de Luisa May Alcott. A primeira qualidade está no roteiro, brilhantemente escrito por Greta Gerwig, que opta por não seguir uma narrativa linear, nem por ser uma transposição literal do livro para as telas. As escolhas que Greta faz, enquanto diretora e roteirista, para (re)contar a história das 4 irmãs Marsh, só elevam a qualidade desta que é a 8º adaptação para o cinema de Little Women.
As primeiras versões cinematográficas do livro foram feitas ainda no tempo do cinema mudo: em 1917, sob a direção de Alexander Butler e em 1918, sob a direção de Harley Knoles. O primeira versão falada foi a adaptação de 1933, que no Brasil se chamou "Quatro Irmãs", dirigida pelo notável George Cukor (À Meia Luz, Núpcias de Escândalo e My Fair Lady), protagonizada por Katharine Hepburn. Em 1949 foi a vez de Mervyn LeRoy filmar a sua versão da história, protagonizada por June Allyson, tendo Elizabeth Taylor (Quem tem medo de Virginia Wolf), Janet Leigh (Psicose) e Mary Astor (Relíquia Macabra) no elenco. No Brasil, foi lançada com o título de "Quatro Destinos".
As 3 últimas versões cinematográficas de Little Women foram dirigidas por mulheres. Em 1994, foi a vez da australiana Gillian Armstrong filmar a sua versão, que teve Winona Ryder - então uma estrela em ascensão - como protagonista, amparada por um elenco de nomes então já consagrados, como Susan Sarandon (Thelma e Louise, O Cliente) e Gabriel Byrne (Os Suspeitos), e outros que despontavam com estrelas igualmente promissoras, como Claire Danes, Kirsten Dunst e Christian Bale. O filme teve 3 indicações ao Oscar em 1995, incluindo Melhor Atriz para Winona (segunda e última indicação de sua carreira). Em 2018, a diretora Clare Niederpruem dirigiu outra adaptação, desta vez trazendo a história, que se passa no século XIX, durante a Guerra de Secessão norte-americana, para os tempos atuais. Sua versão não agradou nem ao público nem aos críticos e passou despercebida. Muitos nunca ouviram falar dela.
Um ano depois, Greta Gerwig lançou a sua versão. Ela acerta em muitos pontos, que distinguem sua obra das demais e a eleva, fazendo com que deixe de ser apenas mais uma versão batida de uma história já conhecida. Ela injeta um novo ar ao optar por uma narrativa não-linear, que vai e vem no tempo, costurando habilidosamente momentos da história passados em diferentes épocas.
Primeiramente, o filme começa com Amy March (numa interpretação magnética de Florence Pugh, que rouba quase todas as cenas em que aparece), a caçula das quatro adoráveis mulheres, encontrando Theodore "Laurie" Laurence (Timothée Chalamet), durante sua viagem a Paris na companhia da Tia March (Meryl Streep, divertidamente irritante). Esse encontro serve de mote para o roteiro voltar no tempo, para contar como Laurie conheceu as irmãs March.
Outra cena, na qual Josephine "Jo" March (Saoirse Ronan, irretocável) e o professor Friedrich Bhaer (Louis Garrel) estão dançando num pub em Nova York, é o gancho que permite outra volta no tempo. Desta vez para contar como Jo e Laurie se conheceram e se tornaram amigos. Assim o roteiro vai alinhavando, por meio de elementos da narrativa, esses diferentes momentos, aparentemente desconectados pelo tempo, mostrando que, na verdade, eles estão todos entrelaçados.
A maior qualidade do filme, no entanto, é mostrar Jo, a protagonista da história, como um alter-ego de Alcott, a autora do livro. Esse ligação, que pode ser evidente para alguns, pelo fato da personagem ser uma aspirante a escritora, nunca foi explorado de modo tão inteligente e tão perspicaz como no roteiro escrito por Greta Gerwig. Evidenciando esse parelelo entre autora e personagem, Gerwig traz à tona questões sobre desigualdade de gênero, especialmente no que tange às dificuldades que as mulheres enfrentam, pela pressão social de corresponder aos papéis de mão e esposa, quando tentam conquistar sua independência financeira dedicando-se a uma profissão. Também questiona a dificuldade que mulheres enfrentam para serem reconhecidas e valorizadas enquanto profissionais (como escritoras, pintoras, diretoras, roteiristas), numa mercado dominado por homens. Sobre isso, duas cenas são precisas e exemplares em trazer essas questões à tona: o diálogo entre Laurie e Amy em Paris, dentro do estúdio onde ela estuda pintura, quando ela decide que não é suficientemente talentosa para para ser uma "pintora genial", e a conversa final entre Jo o chefe da editora (Tracy Letts) para o qual ela leva seus manuscritos, esperando que sejam publicados.
Sem fazer do filme um panfleto feminista, mas, também, sem fugir à responsabilidade de questionar as manifestações do machismo - tão presentes na sociedade atual quanto naquela do século XIX, uma vez que a secular nefasta instituição do patriarcado, infelizmente, ainda está longe de ser devidamente destruída -, ela coloca em relevo o modo como o cinema e a literatura ainda insistem em criar narrativas que retratam a mulher dentro de estereótipos arcaicos, nos quais ela é sempre descrita como alguém que precisa atender a determinados "fatos sociais", como casar-se, ter filhos, etc., para ser aceita e respeitada pela sociedade. São questionamentos que o cinema deve fazer, pois é ilusão pensar que não fazê-lo é optar pela neutralidade.
A neutralidade é uma ilusão, um engodo. Quem se diz neutro tem lado: o lado do mais forte, o lado hegemônico. No que tange à opressão de gênero, ou seja, ao machismo, a opção pela neutralidade favorece os homens e silencia as mulheres. Felizmente, essa defeito o filme não tem. Se tivesse, não faria jus à uma obra imortal, escrita por uma mulher, sobre 4 mulheres, lutando para sobreviver, para ter sua individualidade e sua voz respeitadas, numa época que seres humanos (negros) ainda eram escravizados e tratados como mercadoria por homens brancos, e na qual a vida das mulheres estava condicionada à vontade dos homens.
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraA metáfora bíblica ficou muito clara pra mim na cena que faz referência a Caim e Abel. O Filme é uma alegoria que funciona pra quem acredita em deus. Não é o meu caso, felizmente.
Dois Papas
4.1 962 Assista AgoraEste é um filme sobre contradições. Este é um filme sobre o conflito entre movimento e estagnação, entre transmutação e permanência, entre progresso e conservação. Por isso, este é um filme profundamente dialético e, como toda dialética, ao final, produzir-se-há necessariamente uma síntese. Deste modo, este é um filme não apenas sobre conflito, mas, principalmente, sobre a construção de consensos, que superem as contradições pre-existentes - sem extingui-las, no entanto.
Para compreendê-lo, é preciso entender o que é dialética. Para fazê-lo, voltemos a um tempo antes de Cristo, da igreja católica, do Vaticano e do cinema: a Grécia Antiga, nos primórdios da filosofia. Um tempo que a oposição entre a fé e razão, o crer e o duvidar, o mithos e logos, se materializava no nascimento daquilo que seria conhecido como Filosofia. Na Grécia Antiga, a dialética era a “arte do diálogo”, mas não apenas do simples diálogo, e sim do diálogo por meio do qual uma tese é demonstrada e defendida por meio de argumentos racionais. Para Aristóteles, o fundador da dialética foi o filósofo Zenon, um pré-socrático nascido também em Eléia, terra de Parmênides e Xenófanes. Sócrates filosofava dialogando com seus discípulas enquanto caminhavam, peripateticamente, pelas ruas de Atenas. O textos filosóficos de Platão são todos em forma de diálogos.
Uma das principais questões filosóficas que os primeiros filósofos, hoje denominados pré-socráticos, procuravam responder, era a contradição entre movimento e estagnação, entre transmutação e permanência. Se a permanência é verdadeira, como explicar as mudanças que percebemos no estado das coisas, como o envelhecimento, por exemplo? Seria a mudança uma ilusão? Se a mudança é verdadeira, como podemos manter alguma certeza? Se tudo muda, a verdade que detínhamos ontem pode ter validade hoje? Seria a permanência uma ilusão?
No filme, o cardeal Jorge Maria Bergoglio (Jontahan Pryce), futuro Papa Francisco, encontra-se com o Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) em sua residência de verão. É pertinente dizer que esse encontro nunca acontece de verdade, mas o roteiro inspirado de Anthony McCarten, toma uma licença poética para imaginar como ele poderia ter sido. durante a longa conversa que eles travam naqueles suntuosos jardins, Bergoglio diz: “Nossa Igreja... está indo por um caminho com o qual não consigo compactuar ou não está indo para lugar algum, num momento que pede mudança”. A tensão entre os dois personagens se dará essencialmente no campo da oposição entre a necessidade de mudar ou de não-mudar.
Parmênides, nascido por volta de 515 a.C., na cidade de Eleia, região da Magna Grécia (atualmente sul da Itália), tomou a defesa da permanência e da imobilidade, dando continuidade à filosofia da Escola Eleata, fundada por Xenófanes, aprofundando a teoria sobre uma unidade que sustentaria toda a criação. Para eles, o movimento era apenas uma aparência que engana os nossos sentidos. Segundo Parmênides, “o ser é imutável porque se mudasse poderia vir a ser e então seria e não seria ao mesmo tempo”.
Por outro lado, o filósofo Heráclito, nascido na cidade de Éfeso em 540 a.C., tomou a defesa da mudança e transformação. Para ele, o mundo e a natureza estão em constante movimento. "Nada é permanente, exceto a mudança", dizia ele. Tudo muda o tempo todo, e o fluxo perpétuo (movimento constante) é a principal característica da natureza: "Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras". Heráclito é como aquela voz feminina sintética no relógio de Bento XVI que, no filme, diz a todo momento: “Don’t stop. Keep moving!”. Mais adiante, enquanto os dois papas conversam nos jardins da residência de verão, Francisco fala sobre as opiniões que tinha sobre temas como homossexualidade no tempo que era líder dos jesuítas. Em certo momento ele diz “Eu mudei”, ao que Bento XVI discorda, dizendo “Você fez concessões”. Francisco discorda, mas Bento XVI reafirma seu argumento dizendo que “Mudança é concessão”. Francisco discorda novamente dizendo que a vida que é mudança. Esse diálogo remete claramente à essa questão filosófica primordial e os papas parecem encarnar os dois filósofos pré-socráticos.
O pensamento de ambos os filósofos inspiraria Platão, possivelmente o primeiro filósofo "pós-socrático", a tentar resolver o problema. Para isso, ele formulou a teoria do Mundo dos Sentidos e do Mundo das Ideias. De acordo com Platão, o Mundo dos Sentidos é o mundo da matéria, do corpo, dos homens. Em suma, é o mundo das coisas concretas, acessíveis pelos sentidos, como visão, tato e olfato. Como tal, este mundo encarna a mudança e a transformação, pois as coisas, assim como os homens, estão destinadas a mudar, a ter a sua forma alterada, a ter seu corpo corrompido pelo tempo. Por isso, este mundo é imperfeito e finito, onde os seres estão condenados ao envelhecimento, à corrupção e ao pecado. Neste mundo nada é perfeito. Tudo não passa de uma sombra ou reflexo das ideias. Mas elas habitam, imutáveis, perfeitas e incorruptíveis, um outro mundo. O Mundo das Ideias é o lar das essências, que ensejam a permanência e a imobilidade, acessíveis somente por meio da razão. Elas não morrem, não mudam, não envelhecem nem são corrompidas. São eternas. As coisas, existentes no Mundo dos Sentidos, seriam cópias imperfeitas e finitas dessas ideias perfeitas e imutáveis.
Mas este pensamento, além de ideológico (porque produz uma hierarquia entre os dois mundos que é expressão da divisão social do trabalho numa sociedade marcada pelo escravismo, como a da Grécia Antiga), não supera a contradição entre movimento e imobilidade, entre mudança e permanência. Se, por um lado, aparenta eliminar a contradição ao aceitar a existência de ambos, por outro, mantém a oposição entre eles e inventa um outro mundo, metafísico, o Mundo das Ideias, para justificar e alocar a existência da imobilidade e da permanência. No “mundo real”, o mundo onde pessoas como Heráclito e Parmênides, Sócrates e Platão, os papas Francisco e Bento XVI, os atores Jonathan Pryce e Anthony Hopkins, o diretor Fernando Meirelles e o roteirista Anthony McCarten, você e eu, existimos, só haveria mudança, movimento e transformação.
Essa forma de pensar platônica, que coloca as ideias como superiores às coisas concretas - e até mais reais do que elas - e que subestima o "mundo sensível" por causa de sua inerente contradição e mutabilidade, é o que chamamos de Metafísica. A metafísica valoriza a ideia abstrata sobre a coisa concreta. Por isso, via de regra, os metafísicos tendem a ser conservadores. Eles temem a mudança e a contradição, pois são incapazes de compreendê-las e aceitá-las.
Essa dualidade do platonismo influenciaria, mais tarde, pensadores cristãos, como Santo Agostinho, em suas tentativas de embasar racionalmente os dogmas da Igreja Católica. Sua teoria da Cidade dos Homens e da Cidade de Deus, exposta em sua obra “De Civitate Dei”, é claramente decalcada na teoria dos mundos platônica. “Fecerunt itaque civitates duas amores duo : terrenam scilicet, amor sui usque ad contemptum Dei; cœlestem vero, amor Dei usque ad contemptum sui.” (“Dois amores fazem duas cidades: uma é terrestre, obra do amor de si até ao desprezo de Deus; a outra, celeste, obra do amor de Deus até ao desprezo de si.”)
Aristóteles, nascido no ano de 343 a.C., na Macedônia, discordava de Platão. Segundo ele, o Mundo das Ideias é uma cópia daquilo que os nossos sentidos percebem. Para tentar resolver o conflito entre mudança e permanência, ele formula os conceitos de “Ato” e “Potência”. Por “ato”, Aristóteles queria expressar a forma que uma coisa determinada possui, concretamente, em um momento determinado. A “potência”, por sua vez, refere-se à aquilo que algo pode vir a ser, a algo que pode vir a ser, vir a existir, embora não o seja – ainda – num determinado momento. Ato e potência coexistem em tudo o que existe.
“Chamo, por exemplo, construtor quem tem a capacidade construir, vidente quem tem a capacidade de ver, e visível o que pode ser visto. O mesmo vale para tudo o mais. De modo que a noção de ato, necessariamente, precede o conceito de potência e o conhecimento do ato precede o conhecimento da potência.” (Aristóteles, Metafísica, IX, 1049)
O filósofo seria aquele que consegue enxergar a realidade como ato e como potência, simultaneamente, ou seja, que é capaz de enxergar não apenas o que é, mas também o que pode vir a ser. O pensamento aristotélico supera a oposição entre movimento (potência) e permanência (ato) ao eliminar a crença de que as coisas, ao mudarem, deixariam de ser o que são, já que considera a mudança como intrínseca ao próprio ser e às próprias coisas.
A partir de Aristóteles, ao longo dos séculos seguintes, a Dialética teve seu sentido ampliado, passando a significar também o modo de pensar a realidade que leva em conta as contradições à ela inerentes. Pensar dialeticamente implica aceitar que a realidade está em constante transformação. Como disse outro filósofo, o francês Michel de Montaigne (1533-1592), nos seus Ensaios: "Todas as coisas estão sujeitas a passar de uma mudança a outra; a razão, buscando nelas uma subsistência real, só pode frustrar-se, pois nada pode apreender de permanente, já que tudo está começando a ser - e absolutamente ainda não é - ou então já começando a morrer antes de ter sido". O pensar dialético é aquele que encara a realidade em quanto "processo", no sentido de algo inacabado, que se faz, se desfaz e se refaz, ininterruptamente, em vez de algo pronto, dado, acabado.
É belíssima a cena onde o jovem padra Jorge Maria Bergoglio caminha solitário e reflexivo entre uma densa e leitosa bruma, uma espessa e pálida névoa que parece um prenúncio da famosa fumaça branca que anuncia a escolha de um novo papa. É como se Bergoglio, enquanto "ato", estivesse envolto no signo da "potência" que ele carrega, que é o vir-a-ser o futuro Papa Francisco. Uma cena absolutamente rica de significado!
Por fim, retomemos aquele debate inicial entre os dois Papas, no começo do filme, quando o “heraclítico", "aristotélico” e progressista Papa Francisco defende a mudança e o “parmenídico”, "platônico" e conservador Papa Bento XVI defende a imobilidade:
- Nada é estático na natureza, nem no universo, nem mesmo Deus.
- Deus não muda.
- Muda, sim. Ele evolui.
- E onde O encontramos, se Ele está sempre mudando?
- No caminho.
Ao final, vemos que nem o Papa Bento XVI é tão retrógrado, imutável e conservador, nem Francisco é tão moderno, dinâmico e progressista. Isso porque a própria renuncia de Bento XVI se daria porque ele entende a necessidade de mudança, mas não se veria apto a realizá-la. Do mesmo modo, Francisco, que defende esta mudança desde o início, mostra-se resistente à ideia de ser um agente dela. Há um pouco de cada um no outro - e essa contradição é perfeitamente dialética. Aliás, há uma imagem que expressa perfeitamente essa característica da dialética: o Tao, ou Yin-Yang. Nele, temos uma esfera, com duas metades, uma branca e outra preta. Porém, dentro da metade branca há um pequeno pontinho preto, e na metade preta, um pontinho branco.
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O Irlandês
4.0 1,5K Assista Agora"Mais tarde perceberás. Não fizeste como eu? Tu também saíste fora do comum... Tiveste essa coragem. Destruíste uma vida... a tua (é tudo a mesma coisa!). Pode viver em espírito e compreensão, mas terminarás no Mercado de Feno..."
"Como os anos passam depressa!
Que fizeste durante esse tempo?
Chegaste realmente a viver ou não?
Que frio faz neste mundo, basta que passem mais uns anos para que chegue a espantosa solidão, a trémula velhice que traz consigo a tristeza e a dor. O teu mundo fantástico há de perder então as suas cores, murcharão e morrerão os teus sonhos, e como as folhas amarelas que tombam das árvores, também eles se desprenderão de ti."
(DOSTOIEVSKI, Fiódor. Crime e Castigo)
Dor e Glória
4.2 619 Assista Agora"Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores..."
Esta estrofe da famosa canção "Esquadros", composta por Adriana Calcanhotto, diz muito sobre o cinema de Almodóvar: ele tem cores, muita cores, cores fortes, cores que nos marcam, que por vezes incomodam, por vezes enternecem. Mas, sem dúvida, distinguem sua filmografia.
"Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone..."
Neste seu último filme, um outro traço vai se evidenciando. Não propriamente um traço específico dos filmes do espanhol, mas principalmente da sua vida: uma vida onde as cores talvez sejam como pílulas, como drogas que anestesiam a dor, que fazem esquecer os sofrimentos. Uma vida muito parecida com a de Frida Kahlo, cujas cores também permeia a canção de Calcanhotto. Em Dolor y Gloria, as feridas e cicatrizes de Almodóvar são expostas, tal como num daqueles quadros de Frida, por meio do qual ela se retrava partida, ferida, rasgada. Logo em na cena que abre filme, vemos Banderas imerso numa piscina. Um close da câmera revela uma grande cicatriz nas costas, ao longo da linha da coluna cervical, indicando uma cirurgia - uma referência à cirurgia que Almodóvar fez, anos atrás.
"Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos..."
Como o mestre Fellini fez em sua obra-máxima, o clássico Oito e Meio (Otto i Mezzo, 1963), neste filme, Almodóvar cria sua própria obra-prima, tão autobiográfica quanto metalinguística. É um filme reflexivo em todos os sentidos. Seja a reflexão do homem Almodóvar que se dobra sobre si mesmo, passando sua vida em revista; seja a reflexão do cineasta Almodóvar, que, num roteiro redondo, como um "Ouroboros", passa em revista a sua própria obra.
Como em A Lei do Desejo (La ley del Deseo, 1987), neste Dolor y Gloria, temos um diretor de homossexual. Enquanto, no primeiro filme, o ator Eusebio Poncela interpreta o diretor de teatro Pablo Quintero, no segundo, temos Salvador Mallo, um cineasta interpretado por Antonio Banderas (estupendo!). Em La Ley del Deseo, o protagonista dirige o monólogo "A Voz Humana", de Jean Cocteau, enquanto escreve um roteiro para um filme. Em Dolor y Gloria, o protagonista está às voltas com uma exibição especial de um de seus primeiros filmes, intitulado "Sabor" (claramente, uma referência a La Ley del Deseo). Em Dolor y Gloria, o fictício filme Sabor havia sido protagonizado por Alberto Crespo ( interpretado Asier Etxeandia), que, após um desentendimento, rompeu relações com o diretor Salvador Mallo ficou cerca de 3 décadas. Isso de fato acontenceu, entre o ator Eusebio Poncela, protagonista de A Lei do Desejo, que ficou 32 anos sem falar com Almodóvar.
"Pela janela do quarto pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle..."
Amodóvar relembra a própria infância, algo que já fizera em A Má Educação (La Mala Educación, 2004), mas, desta vez, sem focar exclusivamente em sua passagem pelo seminário católico - e suas consequências. Agora ele concentra-se mais em sua relação com a mãe durante o tempo em que viveram entre as brancas paredes do vilarejo espanhol na região de La Mancha.
Lá, como no filme, o pequeno Almodóvar começou a escrever as cartas para os vizinhos, em sua maioria analfabetos. Nesta parte, que entrecorta o filme, cuja narrativa rejeita a linearidade, o protagonista é interpretado pelo carismático Asier Flores. Com ele, uma das cenas mais importantes do filme se desenrolará, quando ele desmaia diante do "primeiro desejo" (El primer deseo). Esse, aliás, é o título do filme que tirará Salvador da depressão e da melancolia, possibilitando que ele retome sua carreira. Essa é também uma referência à produtora El Deseo, que Almodóvar fundou em 1986 com seu irmão Agustín.
Muitos tem criticado o filme, alegando que, ao contrário dos grandes filmes do diretor, este carece de clímax. Porém, considerando que, com este filme, o objetivo de Almodóvar seja fazer um retrato sóbrio (apesar de não muito fiel) da sua própria vida, em vez de uma mera alegoria, cabe perguntar: na vida real, existe um clímax para fechar cada cena, para nos presentar com uma catarse ou para revelar algum sentido oculto?
"Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê, cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado..."
Ou a vida é uma sucessão breves e efêmeras alegrias, de fugazes gozos e glórias, que pontuam um oceano de does, de tédios, de erros e de arrependimentos, onde, no final, descobrimo-nos sozinhos e nossas angústias, sendo a arte, o amor e os vícios as únicas fugas, as únicas escapatórias, os sentidos, meras quimeras que inventamos para nos ajudar a suportar a difícil jornada?
Ao final, o filme se irmana a outras duas jóias lançadas em 2019 (O Irlandês e Dois Papas), em sua sóbria reflexão sobre a inevitabilidade do fim, do envelhecimento, e a necessidade de pensar no que fizemos, no que vivemos, no que deixamos e o que podemos ainda fazer que o tempo que nos resta.
Togo
4.1 169 Assista AgoraEm 1925, a pequena cidade de Nome, no Alasca, foi vitimada por uma epidemia de difteria. Pelo menos 5 crianças morreram e outras tantas ficaram internadas, em quarentena, no hospital da cidade, esperando por um lote de vacinas de que pudesse salvá-las. A salvação, no entanto, estava a cerca de 1.000 quilômetros, na cidade Nenana.
Infelizmente, na mesma semana que o surto epidêmico ameaçava a cidade como uma praga bíblica, uma tempestade severa atingia a região, impossibilitando que as vacinas fossem transportadas por meio avião. Isolada, acima do Círculo Polar Ártico, longe de rodovias ou ferrovias, o único meio de transporte que poderia salvá-los eram o trenós puxados por matilhas de cães da raça Husky Siberiano.
Essa história teve um final feliz e se tornou famosa ao longo das décadas que se seguiram, tendo, inclusive, sido transformada em um filme de animação, lançado em 1995, pelo estúdio Universal. Tal como fez com alguns de seus filmes de animação mais famosos, incluindo o Rei Leão, Dumbo e A Dama e o Vagabundo (cujas versões em CGI foram lançadas em 2019), a Disney resolveu, este ano, recontar essa história. Porém, diferentemente dos remakes supracitados, no caso desse belíssimo filme Togo, a opção pela refilmagem se justifica não pela sanha de fazer uso de tecnologias modernas que emulam o mundo real, mas sim, pela necessidade premente de ser corrigir uma injustiça histórica.
Isto porque os nomes que passaram à posteridade como heróis, isto é, o cão Balto e seu condutor Gunnar Kaasen, não correspondem aos verdadeiros heróis dessa história. Eles apenas tiveram a sorte de fazer parte da equipe que chegou com as antitoxinas até a remota cidade de Nome. Contudo, durante a maior parte dos 1.000 km que separam as duas cidades, a viagem foi feita pelo "musher" (condutor) Leonhard Seppala (esplendidamente interpretado por Willem Dafoe) e a matilha liderada pelo seu bravo cão Togo, que na ocasião já contava com a idade de 12 anos.
Dafoe, aliás, é um daqueles atores que só ficam melhores com o tempo.Tal é o domínio que ele demonstra de sua arte e a plenitude com que a realiza, entregando-se a cada papel com a mesma medida de suavidade e intensidade, que acaba destacando-se mesmo onde o espaço que lhe cabe é exíguo. Não é, claro, o caso deste filme, onde ele tem espaço suficiente para nos deleitar, entregando mais uma atuação rica de nuances, daquelas que enchem a tela e os corações.
O filme conta essa fascinante história com a medida certa de ação e tensão, de ternura e sensibilidade. A narrativa não linear permeia a fatídica corrida de Seppala, Togo e sua matilha por entre a fria e cortante nevasca entre cumes e desfiladeiros cobertos de neve, com os momentos doces e ensolados de quando Togo era um filhote endiabrado que deixava seu dono ensandecido. Merecem destaque a fotografia de Ericson Core, a edição de Martin Pensa e a trilha sonora de Mark Isham.
Togo não entrou para história como herói, mesmo tendo sido-o verdadeiramente. Assim como no clássico "O Homem que Matou o Fascínora" (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), do mestre John Ford, os jornais imprimiram a lenda, dando notoriedade a um falso herói. Conta-se que Togo recebeu seu nome em homenagem ao um navegador que, assim como ele, fora subestimado em razão de seu diminuto tamanho. Tal como Seppala, morreu praticamente no anonimato, sem foto nos jornais ou monumentos em sua honra. Antes de de morrer, todavia, se tornou um procriador, dando origem a uma linhagem de huskys que ficou conhecida como "Siberianos Seppala" e que passou a ser disputada como ouro por criadores de cães e mushers de todo o mundo.
Balto, por seu turno, foi assim nomeado em homenagem ao explorador Samuel Balto. Em 1926, uma estátua foi erguida em Nova Iorque para homenageá-lo. Após sua morte, teve seu corpo empalhado e hoje encontra-se em exposição no Museu de Ciências naturais de Cleveland.
Jogos Vorazes
3.8 5,0K Assista AgoraVale pela crítica às injustas sociais que a desigualdade econômica inevitavelmente acarreta, na qual as minorias privilegiadas que compõem as elites exploram impiedosamente as massas de trabalhadores pobres e explorados. O filme ressalta a máxima segundo a qual, onde não há opções de lazer e cultura, a violência se transforma em espetáculo. Mas essa rinha humana que existe desde antes dos gladiadores e do coliseu já foi melhor explorada, com mais profundidade e complexidade, em filmes como A Noite dos Desesperados (They shoot horses, don't they?, 1969), Spartacus (1960), Salò ou os 120 dias de Sodoma (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975), Gladiador (2001) e até mesmo 12 anos de Escravidão (12 years a slave, 2014).
Janela Indiscreta
4.3 1,2K Assista AgoraA Janela é tão Indiscreta quanto o próprio cinema, porque olha a vida íntima de personagens que, alheios à presença do espectador, lhe revelam seu íntimo. Essa, aliás, é a essência do cinema de Hitchcock: o olhar indiscreto. Cinema, para ele, é o voyerismo transformado em arte. Por isso, em Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), L.B. Jeffries (James Stewart) espia os seus vizinhos e, do mesmo modo que seu olhar é como o olhar do espectador, a sua janela é também como uma tela de cinema. Espia como Norman Bates (Anthony Perkins) espiaria, mais tarde, a bela Marion Crane (Janet Leigh) em Psicose (Psycho, 1960). Espia, da janela, como a mãe de Norman o espiava, no mesmo filme. Essa janela faz o que o cinema de Hitchcock sempre fez: exibe a vida quotidiana e íntima de seus personagens, desvendando seus segredos, seus traumas e seus pecados. Nela transcorre a "vida como ela é", em sua dialética de amor e ódio, traição e cumplicidade, movimento e imobilidade, nascimento e morte, segurança e perigo, ação e monotonia, limite e superação, criação e destruição.
Na janela, da esquerda para a direita, vemos: um homem e uma mulher, recém-casados, fazendo amor incansavelmente em sua lua de mel; à direita deles, num prédio de 2 andares, uma mulher mais velha e sozinha que, numa rotina monótona, alterna as horas entre banhos de sol no quintal e suas esculturas de barro abstratas; acima dela, outra mulher, mais jovem, que, numa rotina movimentada, alterna suas horas entre as aulas de dança e o flerte de homens; ao lado delas, num prédio maior, com 3 andares, há um um casal que dorme na varanda dos fundos por causa do calor, cujo cachorrinho agitado sobe e desce num elevador improvisado; abaixo deles, outro casal, cuja mulher enferma está paralisada em uma cama, limitada às paredes de seu quarto; abaixo deles, outra mulher mais velha e solitária, apelidada de "miss lonely heart". À direita da tela-janela, um compositor que, em crise criativa, tenta terminar uma música. Há também assassinato, traição e pessoas correndo perigos.
L.B. Jeffries, imóvel nos limites de seu apartamento, sente um misto de amor e ódio pela bela e rica Lisa Carol Fremont (Grace Kelly). Ama sua beleza, mas odeia seu modo de vida, que ele considera fútil,encenado e artificial. Por isso recusa o casamento e as ofertas para trabalhar como fotógrafo de revistas de moda. Ela repudia a ideia de passar os dias na rotina monótona de fotografar pessoas em poses planejadas, escondidas sob pesada maquiagem, sob iluminação artificial, num pano de fundo fictício, nos limites de um estúdio. Interessa-lhe olhar/fotografar/ver o real em toda a sua ação, em todo o seu risco, em todo o seu movimento. Tal qual Hitchcock (ou como o espectador de cinema), Jeffries quer fixar em sua película e em sua retina imagens vivas e cruas do amor e da morte, da criação e da destruição. Jeffrey, assim como Hitch, vê a vida como ela é: pessoas se amando, se odiando, se enganando, sofrendo, matando, criando, destruindo. A vida está cheia de tudo isso, e o cinema oferece ao expectador a satisfação do seus desejos voyeurísticos.
L.B. Jeffries resiste às investidas de Lisa, porque a considera monótona, artificial, fútil, "certinha demais". Para ele, as vidas íntimas que se desenrolam na sua tela-janela são mais interessantes, em sua crueza íntima e privada. Somente quando Lisa, saindo dos limites confortáveis da vida aristocrática que ela leva (e daquele apartamento), entrando no filme-vida que se desenrola na tela-janela de Jeffries, é que ele passa a interessar-se por ela. É preciso que ela, atraída pelo possível assassinato de uma mulher pelo marido, arrisque-se a entrar no filme-vida que Jeffries assiste, para que ela passe de fato a ser enxergada e desejada pelos olhos dele. Ela deixa de figurar-lhe como personagem, para ser vista como pessoa. Abandona seu véu de artificialidade, adquirindo realidade aos seus olhos. Deixa de ser, tanto para Jeffries quanto para o espectador, uma distração que impede a fruição do filme-vida, imobilizando a ação, e passa a ser motivo de atração, catalizadora de atenção e geradora de ação, dentro do filme.
É então que Jeffries supera a tensão dialética de amor e ódio, desejo e repulsa, que sente por Lisa, e passa a amá-la e desejá-la. Isso fica muito claro no modo como ele a olha quando ela retorna ao seu apartamento, logo após a primeira incursão dela dentro do filme-vida que se desenrola na tela-janela. É aí, quando o amor supera o ódio, que outra tensão começa a se desvendar: a do marido infiel que teria matado a esposa doente e imóvel, do amor que virou ódio, do desejo que virou repulsa.
Então, pela mesma porta pela qual o amor e o desejo entraram nos olhos de Jeffries na forma da bela Lisa, depois que ela entrou naquela tela-janela, é que, saindo daquela tela-janela, a repulsa, o ódio e a morte entraram no apartamento de Jeffries, na forma do marido assassino. Mas ambos, o marido assassino e a mulher objeto de desejo, morte e vida, ódio e amor, cumprem na vida e no olho de Jeffries, o papel que cumprem nos olhos e na vida do expectador de cinema: sua função é deslocar-nos do lugar-comum, confortável, limitado e imóvel. A janela indiscreta, a tela de cinema e a vida são meras projeções, uma da outra - e mesmo pode ser dito sobre o personagem, o expectador e cada pessoa "real".
A Favorita
3.9 1,2K Assista AgoraEsta é obra-prima de Yorgos Lanthimos. Não senti falta de nenhum dos elementos característicos de sua filmografia: a fotografia que abusa da grande angular, de planos longos e dos jogos de luz e sombra, os diálogos ferinos, a opção por explorar o ridículo e o bizarro em algumas cenas, a trilha sonora dissonante e perturbadora, o tema sempre recorrente da impossibilidade de se controlar o "destino" (será que a tal liberdade existe mesmo?) e - o mais importante - a tensão da disputa de poder e manipulação entre os personagens (opressões e repressões sociais).
Elogiar as soberbas atuações de Olivia Colman, Rachel Weiss e Emma Stone é, como dizem "chover no molhado". Elogiar as soberbas atuações de Olivia Colman, Rachel Weiss e Emma Stone é, como dizem "chover no molhado". Assim como o clássico Malvada (All About Eve, 1951), A Favorita tem mulheres como protagonistas e é torno delas que tudo na história gira. Os homens é que são os coadjuvantes num jogo no qual as mulheres é jogam os dados em busca de um prêmio: o poder. Para isso, elas precisam ascender socialmente, isto é, galgar degraus cada vez mais elevados na escada que hierarquiza homens e mulheres.
Porém, como tenho visto muitas pessoas dizendo que este filme fala sobre empoderamento feminino e sororidade entre mulheres que, unidas, superam a opressão, decidi dedicar minha resenha à exploração e análise deste ponto de vista. Será que esta interpretação possui base que a sustente? Vejamos...
O filme dirigido pelo cineasta grego Yorgos Lanthimos enfoca um trio de mulheres: a Rainha Ana (Olivia Colman), Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone). Entre elas a relação varia entre a luta pelo poder e pela ascensão social e econômica, ou pela manutenção do poder e do status social e econômico adquiridos. O pano de fundo onde esse jogo de interesses se desenrola é uma Inglaterra que ainda guarda resquícios medievais, com uma sociedade dividida em classes altamente desiguais e hierarquizadas, nas quais os trabalhadores, na condição de servos, não possuem os mesmos direitos que as elites que constituem a nobreza.
Temos aqui a opressão de classe, na qual as classes trabalhadoras desprovidas de direitos sustentam, por meio da exploração de seu trabalho, os privilégios das elites. Os que tudo produzem vivem na miséria ou na penúria, impedidos de usufruir do fruto de seu trabalho, que é apropriado pelas elites, que não trabalham e vivem na opulência. No filme isso fica muito claro nas cenas que mostram os servos do castelo dormindo amontoados no chão frio dos porões do castelo, sem agasalhos, enquanto os nobres dispõem de imensos quartos com enormes camas, cheias de edredons, cobertores e travesseiros.
A mulher também ocupa uma posição de inferioridade em relação aos homens nessa sociedade, independentemente da classe a qual pertençam. Abigail, por exemplo, nasceu em uma família rica de donos de terras ligados à nobreza, mas caiu na desgraça depois que seu pai, um jogador inveterado, perdeu tudo em apostas e jogos de carteado, chegando inclusive a apostar a própria filha que, em consequência disso, sofreu diversos abusos. Por seu turno, Ana, mesmo sendo rainha, não é livre como um homem em sua posição social seria. Ela paga o preço por sei feia, por não ter dado a luz a um herdeiro (todos morreram no parto ou com poucos dias de vida) e por ser mulher. Mesmo sendo rainha, é obrigada a se manter em um casamento de fachada e ocultar sua bissexualidade. Sua vida está subordinada aos interesses da corte, à moralidade católica vigente e aos protocolos reais.
Temos aqui a opressão de gênero, na qual as mulheres são, por meio do matrimônio, transformadas em propriedade privada dos homens, como reprodutora do patrimônio de seu marido, por meio dos filhos. A condição social da mulher está condicionada à condição social do homem (pai, irmão, maridos) à qual ela está subordinada. Quanto mais baixa é a condição socioeconômica de uma mulher, mais submissa é a mulher, mais miserável é a sua condição e mais escassos são os seus meios para, de algum modo. se emancipar e se "empoderar". Esse fato deu origem à divisão sexual do trabalho, que já existia de as tribos nômades de caçadores-coletores e antecedeu a divisão social do trabalho, que começou a aparecer no Crescente Fértil por volta do oitavo milênio antes de Cristo a partir da invenção da agricultura, do Estado e da escrita.. Marx diz: "A exploração do homem pelo homem começou com a exploração da mulher pelo homem."
Aqui, se tomarmos o termo "empoderar" em seu real sentido, que é o de "ganhar poder", veremos que esse poder é, inevitavelmente, poder sobre o "outro", quando se trata de relações estabelecidas dentro de uma sociedade desigual economicamente. Mesmo para ter poder sobre si, ela precisa ter poder sobre outro, pois seu empoderamento depende de sua ascensão dentro de uma sociedade na qual estar "por cima" é sempre estar "por cima de alguém", ou seja, na posição de opressor, enquanto que "estar por baixo" é sempre "estar abaixo de alguém", portanto, na posição de oprimido.
La Boetie, em O Discurso da Servidão Voluntária, questiona o porquê da existência de tiranos, ao longo da história. A resposta que ele encontra é a seguinte: a existência do tirano é possível porque há abaixo dele centenas de mini-tiranos, numa hierarquia que é excludente na proporção em que é ascendente, formando uma pirâmide. Cada classe tiranizando a logo abaixo dela, com exceção da última classe, que contudo, é a que mais suporta o peso da tirania.
Karl Marx, posteriormente, nos mostrou que o poder que hierarquiza os tiranos tem origem econômico pois todo poder é poder de algo concreto (como um homem) sobre algo concreto (outro homem, ou riquezas). Mostrou-nos, por isso que a classe que sustenta toda essa opressão é a classe que produz riquezas. Esta classe não é outra senão a classe trabalhadora, pois é o trabalho que produz riqueza ao transformar a matéria em algo que satisfaça uma necessidade ou desejo humano. A classe trabalhadora é, contudo, historicamente, a classe que é a base das pirâmide social. Essa pirâmide hierarquiza homens dando mais poder aos de cima que aos de baixo porque, primeiro, os de cima possuem mais riquezas que os de baixo. A isso Marx dá o nome de opressão, que é a pressão econômica de uma classe sobre a outra, que se desdobra em opressões sociais e políticas.
O que coloca mulheres em situação de submissão aos homens é a necessidade de sobrevivência (que é uma necessidade econômica), posto que, na sociedade inglesa, até o século XX, proibia mulheres de ter propriedades (vejam, por exemplo, as personagens de Razão e Sensibilidade que são forçadas e ir morar de favor na casa de parentes após a morte do pai), e portanto, de possuir os meios (meios de produção aqui inclusos) para sua subsistência. Para sobreviver, uma mulher adulta precisava escolher entre casar-se com um homem, prostituir-se ou tornar-se freira. No caso de Abigail, que de moça bem nascida no seio da elite aristocrática, cai até a condição de servidão feudal, a opressão de gênero que caracteriza a sociedade patriarcal é bastante vívida e, quando mais baixo ela desceu nos estames dessa sociedade hierarquizada, maior era o peso de opressão.
Para Abigail livrar-se a opressão à qual encontra-se submetida, ela precisa ascender dentro daquela sociedade estamentada. Para isso, ela precisa aproximar-se daqueles que ocupam posições superiores na pirâmide social. Para isso, ela precisa trapacear, enganar, fazer conchavos, e passar a perna em muita gente, deixando os seus possíveis concorrentes pra trás. Voltando a La Boetie, temos aqui a pequena aspirante a tirana, cujo desejo de ascensão social e econômica é necessariamente um desejo de tirania, pois é um poder sobre algo (riquezas) e sobre alguém (tornar-se nobre é tornar-se dono de servos, por exemplo). Na ausência de direitos humanos universais que garantam a todos condições mínimas de dignidade humana, o objetivo para os que se encontram em posições de inferioridade é a busca pela ascensão social e econômica que lhe permita usufruir dos privilégios exclusivos às elites.
Engana-se quem acredita que este filme trata do empoderamento feminino ou da sororidade entre mulheres oprimidas. Tal interpretação resulta da projeção acrítica das perspectivas atuais sobre um filme que retrata uma realidade passada. É o reflexo da crença do feminismo burguês de que a luta pela emancipação feminina resume-se à luta de cada mulher pela ascensão econômica, ignorando que ascender socialmente dentro de uma sociedade economicamente desigual é necessariamente subir em cima de outros, ou seja, tornar-se opressor dos que estão em posições inferiores na pirâmide social.
Abigail, para ascender socialmente, precisou passar por cima de todos os que estavam em sua caminho, incluindo Sarah, que de sua ama, passa à sua aliada de em seguida à sua rival, na medida em que ela vai galgando mais e mais degraus nesta escada que se afunila na medida que nos aproximamos de seu topo. Sarah, cada vez mais sedenta de poder, tiranizava a rainha Ana de todos os modos possíveis, enganando-a para governar em seu lugar, fazendo-a assinar ordens de guerra sem lê-las, mantendo-a presa e alienada em seu quarto, usurpando-lhe o poder de modo sorrateiro. Ana, por seu turno, ao perceber a opressão à qual está submetida, entende que precisa oprimir para não ser oprimida, e passa e jogar tanto com Abigail quanto com Sarah, tentando tirar o maior proveito da disputa entre as duas.
A cena final exprime exatamente a aceitação de condição de tirana, por parte de Ana, como quem diz "nessa cabaré sou eu quem manda!". Ao acordar com Abigail pisoteando um de seus coelhos, ela levanta-se irada de sua cama, coloca Abigail aos seus pés, apoia-se com força nos ombros dela enquanto a obriga a fazer massagens em sua perna. Seu intuito é deixar claro que, ali, nenhuma pessoa naquela corte está acima dela e somente a ele cabe o privilégio de tiranizar os demais. Abigail, como o ato de Ana deixa claro, é apenas mais um coelho naquele quarto e Ana é quem tem o poder sobre todos ali. O desejo de ascensão social é necessariamente um desejo de tiranizar, de oprimir, mesmo que o sujeito não entenda isso. Aliás, não entender isso é parte da alienação à qual estamos todos submetidos, que é a imposição da ideologia da classe dominante, por meio da qual ela procura convencer os oprimidos a aceitar o status quo. Não há sororidade, mas competição entre mulheres que galgam posições de opressão em uma sociedade marcada pelas desigualdades. Há empoderamento, mas não no sentido emancipatório, e sim no sentido de ter poder sobre os demais.
Portanto, para destruir a tirania é preciso destruir no indivíduo o desejo de ascensão social, que só beneficia a ele, substituindo-o pelo desejo da transformação social, que beneficia a todos. Como se faz isso? Paulo Freire responde: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor". Uma educação libertadora é aquela que denuncia as opressões de gênero de de classe e que constrói meios para sua erradicação.
Marighella
3.9 1,1K Assista AgoraA direita reacionária brasileira, "encabeçada" por acéfalos como Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Kim Kataguiri, Nando Moura, insistem em difamar um herói como Marighella e trata-lo como terrorista, ao passo que exaltam torturadores Ustra e louvam Estados terroristas como Israel e os EUA, estes sim responsáveis por genocídios e outras barbaridades
Marighella e Che não torturaram ninguém, nem desapareceram com nenhum corpo. Marighella e Che não mataram porque essa era sua profissão, como Ustra.
Che e Marighella não eram funcionários do terror, como Ustra, não trabalhavam para a repressão, nem em prol da manutenção de um regime opressor. Che e Marighella eram homens comuns, civis, que se tornaram revolucionários, que foram levados a pegar em armas por viver em um regime opressor e por decidir lutar contra a opressão.
Marighella nunca torturou ninguém nem sumiu com seus corpos. Lutava contra a opressão do povo pelos lacaios do imperialismo norte-americano. Lutava contra a opressão do trabalhador pela classe dominante: a burguesia.
Ustra é digno da lata de lixo da história. Era um lacaio dos interesses do norte. Torturou, matou e sumiu com os corpos de guerrilheiros e militantes que lutavam contra a ditadura no Brasil, além de civis que apenas manifestavam discordância com o regime repressor. Nunca lutou por nada. Apenas fazia o trabalho sujo em nome da manutenção de um status quo injusto.
Em um regime de exceção, como foi a ditadura, as noções do que são crime e de qual é o papel da justiça são distorcidas em nome da defesa cega do regime e da repressão aos dissidentes. Terroristas foram os deputados que declararam a cadeira presidencial vazia quando Jango estava viajando. Terroristas eram os jornais da época que associavam Jango à uma ameaça comunista.
Terrorista era a parcela branca, burguesa, conservadora, cristã e reacionária da sociedade que foi às ruas pedindo intervenção militar, em 64 e em 2015. Terrorista, por fim, foram os militares que tomaram o poder e instauraram o terror por 21 anos. Comparar Marighella e Ustra é prova de ignorância histórica e desonestidade intelectual.
Portanto, não confunda a luta do oprimido, com a fúria do opressor. Não tente igualar um revolucionário a um reacionário. O revolucionário luta pela liberdade, enquanto o reacionário se opõe vigorosamente à ela. Um revolucionário está disposto a sacrificar a própria vida em nome dela, enquanto o reacionário está disposto à sacrificar a vida de outros para não concede-la a ninguém.
Tentam acusar os comunistas de hoje de incoerência, alegando que eles não poderiam usar tênis, celulares e e computadores, pois tais coisas seriam dádivas só possíveis graças ao capitalismo. Estão equivocados. Quem cria, inventa e produz coisas são os trabalhadores, explorados pela burguesia detentora dos meios de produção. Só o que o Capitalismo produz de seu são as desigualdades, a pobreza, a marginalidade, a exclusão. São essas desigualdades que Marighella lutou para combater mas foi impedido pelos agentes da burguesa internacional, isto é, a CIA e outros orgãos das grandes potências capitalistas que, como tem sido provado pelos documentos vazados por Snowden e Assange, estiveram, por exemplo, por trás do golpe no Brasil, em 1964, ou no Chile em 1973, que derrubou Allende o colocou Pinochet no poder.
Esse esforço por difamar a imagem de Marighella e outros comunistas é parte do projeto muito bem pensador e elaborado pela burguesia para manter o status quo, ou seja, as coisas como estão, e afastar qualquer possível revolução lhe usurpe os meios de produção que lhe permitem explorar, mantando o posto de classe dominante e exploradora.
Se a classe trabalhadora tudo produz, à ela tudo pertence!
Viva Marighella, que lutou como herói contra o militarismo canalha e autoritário e contra as elites fascistas e desprovidas de ética. Matou foi pouco! Viva Marighella! Morte aos inimigos da classe trabalhadora e defensores das burguesias de rapina que nos saqueiam e exploram!
O Primeiro Homem
3.6 649 Assista AgoraEu achei o filme lindo. As duas maiores qualidades do filme são o som e a fotografia. Parabéns aos responsáveis pela edição e pela mixagem de som, pois o trabalho que eles fizerem foi extraordinário. Na cena do lançamento da missão Gemini, os efeitos sonoros são incrivelmente precisos. Dá realmente a sensação de que você está ali dentro daquela cápsula.
Se você prestar atenção dá pra ouvir tudo: explosões do combustíveis dentro dos motores de combustão, os parafusos e a fuzelagem rangendo com a pressão, o assovios do foguete literalmente cortando o ar em alta velocidade... tudo. Assistir o filme num ambiente silencioso no qual não haja distração alguma é o mais indicado - aliás, esse seria o certo em tratando de assistir qualquer filme.
A fotografia é outro espetáculo. Nas cenas dentro das cápsulas a câmera treme, gira, rodopia, e transmite toda a sensação de desconforto e claustrofobia que o ambiente e a situação reais propiciariam. Na cenas dos astronautas na superfície lunar, os planos escuros e aparentemente infinitos também fazem com que sintamo-nos na Lua.
Neste ponto, o som entra- e sai - coroando a cena: seja no silêncio quase absoluto da cena em que Armstrong coloca o pé na lua, seja na trilha sonora belíssima que Justin Hurwitz compôs para emoldurar a cena em que Armstrong caminha naquela arei fina e imóvel, como quem se dirige ao nada. Muito significativa, ela expressa uma outra caminhada, mais subjetiva, que o personagem faz durante o filme, que a jornada rumo à entender a morte e a perda como partes indeléveis da realidade, contra as quais é inútil lutar.
O que importa é o presente, o agora, e o que fazemos dele. O passado já passou. O futuro não existe, a não ser que o façamos. E ao fazê-lo, ele se torna presente e, logo em seguida, passado. Somos feitos de poeira de estrelas. Aquela mesma poeira que cobre a superfície lunar na qual Amstrong deixou não apenas suas pegadas.
Nação Fast Food: Uma Rede de Corrupção
3.1 212 Assista AgoraUma coisa é o assunto que o filme pretende abordar. Outra é como essa abordagem é feita por meio do cinema. Considerando-se o tema, este Fast Food Nation poderia ser um excelente filme. Contudo, ao optar por acompanhar diferentes núcleos de personagens, com diferentes arcos narrativos, o ritmo do filme fica comprometido e alguns histórias ficam mal desenvolvidas.
Richard Linklater é um grande cineasta e eu sou profundamente encantado tanto com a trilogia Before, quanto com Boyhood, todos filmes excepcionais. Contudo, no que tange à realização, este Fast Food Nation deixa a desejar. Por exemplo, no entrecho protagonizado por Greg Kinnear, ao qual o roteiro não dá uma conclusão satisfatória.
Enfim, um filme que poderia ter sido melhor, mas resulta apenas mediano.