Pensando em como é dos últimos filmes que conseguem se aproveitar da autoridade que a existência da fotografia traz pro mundo como recurso para desenvolver a veracidade que suas imagens contam. No limiar dessa explosão das câmeras digitais e da popularização das câmeras dentro do nosso cotidiano, Bruxa de Blair existe no único momento histórico que poderia existir, o filme é a inauguração de um subgênero, mas também conta um pouco sobre o fim de um uso da imagem que não é mais possível hoje em dia.
Um filme que deve muito a dificuldade em acessar informações sobre ele para convencer o espectador, mas precisa ainda mais carregar em si imagens que tenham o poder de convencer o público de seu realismo. E com o excesso de imagens e informações no nosso dia a dia crescendo paralelamente com a facilidade de se filmar e criar suas próprias imagens, é impossível pensar um filme hoje que tenha sua força motriz no convencimento pela imagem de maneira "pura" e primitiva. Há quem acredite na força que a imagem carrega e faça seu filme com essa consciência, mas dificilmente com a inocência que aqui parece existir. Como o Maneirismo que vem com a consciência de uma longa existência do Cinema anterior a ele e o leva a repensar a maneira de encenar pois tudo teria sido feito anteriormente, um Found Footage atual ou qualquer filme com uma abordagem mais realista da imagem carrega em si, inevitavelmente, a necessidade de uma descrença que aqui ainda não era necessária. Um filme que sela esse esgotamento do poder da imagem e faz isso criando um subgênero que é dependente de algo que estava findando no momento. Talvez isso explique tanto porque o Found Footage já nasce morto e com poucos a reproduzirem tão bem quanto aqui.
E é daí que não tem como não pensar em Shyamalan quando falamos disso. É dos que realmente acreditam no que filma e mostra, constrói suas imagens e as encena com a crença no que aquilo em tela pode nos impactar e tem dois de seus melhores filmes dialogando diretamente com essa questão. Primeiro com "A Visita", repensando justamente o esgotamento do subgênero, conciliando o formalismo da mise-en-scène com a ideia do found footage (que muito se sustenta pela proposta de encenação primitiva e pela falta de um autor por trás daquelas cenas). E com "Glass", onde o diretor conta a história de um herói que planeja um meio de recuperar o poder dessas imagens e conseguir provar ao mundo a existência de heróis em uma sociedade desgastada de tantas informações e descrente de tudo que vê. E como que fechando um círculo, a ação se concretiza chegando a celulares e TVs do mundo inteiro, bombardeando o mundo de mais informação. Porém informações estas ele consegue pelas câmeras de segurança do hospital, que naquele Universo, ainda carregam em si a autoridade fotográfica.
O que Adam Wingard fez em The Guest e agora com o que vi em You're Next já o colocam na prateleira de diretores mais divertidos que tenho para assistir. Fiquei até surpreso ao sair tão empolgado do filme e ver várias notas medianas aqui de pessoas que na minha cabeça iriam amar o filme.
Mas enfim, é inacreditável como passando por alguns reviews negativos na Internet as pessoas prefiram supostos personagens mais bem desenvolvidos, plots mais elaborados e motivos mais interessantes no twist do filme do que um diretor que olha para um subgênero e monta tudo que tem vontade em volta das batidas que formam essa história. Ao meu ver, You're Next aposta na superficialidade de alguns pontos que pro grande público se convencionaram a ser analisados como a força motriz de uma obra, para que haja ainda mais espaço e interesse no que realmente importa aqui: Usar o Slasher e o Home Invasion para construir as cenas que alguém criativo e apaixonado por esse Cinema sempre tiveram a fim de fazer.
Basicamente não interessa se ela foi na escola de sobrevivência, se o plano pela herança era bom ou se o casal tinha química, quando o diretor elabora cenas como a da câmera fotográfica, da linha no pescoço e do liquidificador. E além desses momentos mais pontuais e visualmente estimulantes, o que Wingard faz no filme inteiro já vale muito mais que roteiros "amarradinhos". Sua encenação sustenta um filme de 90 minutos que pouco abaixa de ritmo depois que o surto começa; sua câmera na mão balançando próximo aos personagens desestabiliza qualquer segurança espacial que aquela casa poderia ter e justamente na negação dessa geografia mais estudada que ele faz com que essa casa seja totalmente vulnerável e que o perigo venha de qualquer lugar. O modo como ele trabalha o som, tanto da trilha quanto do coral de gritos de susto e de dor que dão o tom do filme são diferenciais difíceis de se verem presentes no Slasher. Tanto quanto o que entrega visualmente, a sucessão de gritos e berros que as personagens soltam em todos os cômodos eleva o terror que o filme busca.
É um puro e divertido exercício de gênero sem pretensão de ser nada mais que isso, por que não precisa ir além para ser algo relevante. O jeito de repensar a Final Girl, o humor para brincar com algumas convenções do gênero (o filme abre com o assassino matando o casal broxa) e as propostas visuais e sonoras que Wingard minuto a minuto entrega pra gente é o estímulo primordial que se pode tirar do gênero.
Que as pessoas se libertem mais desse olhar formulaico de buscar convenções do que seria um grande filme e se deem mais liberdade pra aproveitar exercícios cinematográficos que não buscam deixar sublinhados mensagens complexas, mas entreguem uma ideia nova, autoral e criativa do que se pode construir utilizando as batidas que formam um filme.
A premissa é questionável e politicamente ambígua (apesar de eu entender mais como um filme sobre a Era Trump antes do próprio Trump, onde há esse EUA refundado no Expurgo, que cresce na base da violência e defende o porte de armas e o God Bless America, que não se incomoda com o aniquilamento institucionalizado dos pobres e negros, mas logo entra em choque quando essa violência chega na classe média), mas funciona bem demais como dispositivo para acionar o terror do Home Invasion.
Nitidamente DeMonaco tem suas limitações e é muito melhor construindo uma atmosfera e estabelecendo as regras do jogo do que as resolvendo, a tensão que constrói enquanto a casa ainda está intacta é bem melhor que a resolução encenada em violências que não parecem ter impacto algum.
Filme que me parece servir para o próprio DeMonaco entender o que teria de bom e de péssimo para se aproveitar nas sequências que vieram, já que os outros filmes da franquia se sujam bem mais nas possibilidades estéticas e estilizadas que o Expurgo proporciona. Personagens, armamentos, fantasias e uma estilização que traz mais o poder pela imagem mesmo do que qualquer tentativa de comentário político que nem o próprio diretor consegue estabelecer direito o que quer transmitir. Gostando ou não da premissa, é inegável que ela garante várias óticas diferentes de personagens a serem observados, peça chave para a franquia. É um terror que pode ser construído por quem fica preso em casa, por quem sai na rua para "caçar", por quem é caçado, entre diversas outras ideias que podem vir derivadas desse dispositivo.
É pra isso aqui que eu vejo filmes há quase 10 anos.
Dentro da minha imaginação, eu associo o Cinema de Terror com experiências muito específicas que nunca vivenciei, mas na minha cabeça fazem todo sentido quando comparadas ao que sinto com os filmes que mais me empolgam. O Slasher, nessas minhas ideias, é parecido com a sensação de dirigir sozinho de noite em uma estrada vazia enquanto ouve o rádio ou passar a noite em sua casa em um dia que caiu a energia elétrica. Tentando entender o porquê eu acho que são sensações que se equilibram muito na linha tênue entre o perigo do desconhecido e a liberdade e curiosidade do instante vivido. Tudo isso pra dizer que "Alone in the Dark" me levou diretamente para esse compartimento da minha mente onde o mix entre perigo e liberdade do instante me deixa em estado de graça e se conecta com meu gênero e subgênero favorito.
O filme de Sholder na simplicidade de sua premissa e na estética padrão do gênero pra época evocam e concretizam sensações de perigoso iminente e de vivência total do momento presente, tudo que um filme precisa acionar em mim. Nem tanto tempo assim depois do sucesso de Halloween, o filme já experimenta algumas subversões, enquanto se aproveita de outras batidas que o garantem no gênero. O subúrbio com o perigo próximo e anunciado, as personagens no limite necessário de superficialidade e o cenário está pronto para bons minutos de assassinatos e "home invasion". Já os assassinos, não atuam como forças da natureza inumanas e moralistas, mesmo que assassinando um casal que transa, nunca há a moral típica do Slasher presente aqui. Suas motivações e a relação entre eles é trabalhada previamente e o foco está muito mais neles como pessoas - e é isso que o doutor prega, assim como o diretor prega ao gênero ao retratá-los assim - e não é mais necessário uma "Final Girl" quando a família e sua proximidade são mais interessantes que uma adolescente gritando e esperando a polícia enquanto quase morre. Ao olhar a família como um todo e humanizar o perigo que vem do lado de fora, "Alone in the Dark" encontra um perigo mais realista e menos impossível de enfrentar. Quando o filme se concentra nas pessoas dentro da casa e abandona de suas câmeras a ação dos 4 assassinos do lado de fora, o inesperado ganha muito mais força e a sensação do terror atinge seu ápice aqui. É muito incrível o nível de incerteza do que e como acontecerá a invasão na casa da família protagonista. E se o filme arrisca rapidamente uma relação com o perigo das armas nucleares, é pra trazer ao espectador essa mesma preocupação e incerteza do que pode acontecer para a vivência dos personagens rodeados de assassinos. Se nos EUA da Guerra Fria, a ansiedade em viver sob o risco de armas nucleares sendo disparadas a qualquer momento era facilmente reconhecível, Sholder busca esta mesma ansiedade com o próximo segundo de seu filme ao trancar os personagens todos em uma casa e não nos mostrar os passos dos assassinos que os procuram.
Mas isso, pra mim, pouco importa. O que vale é a certeza que me vem ao final de que passarei ainda muitos anos experimentando Slashers e terrores no geral sempre na busca pela próxima sensação de estar dirigindo sozinho de noite ou de estar entre o perigo e o instante.
"Inside Man" é Spike Lee exercitando o que talvez seja sua maior qualidade como diretor: entender as bases da linguagem do gênero em que trabalha, pouco subverter elas, mas sim inserir sua tese, seu olhar sutilmente no meio deste padrão de cinema americano - fazendo com que continue conversando com um cinema pipoca ao mesmo tempo que deixa sua assinatura e planta a semente do questionamento que sempre visou deixar ali.
Aqui, em específico, o principal exercício é com os estereótipos, do filme de assalto e das etnias vistas pela lente do cinema americano. Com o gênero, Lee faz questão de intensificar estereótipos dos mais clássicos desse tipo de filme, como se essa extrapolação servisse para despistar o espectador mais desatento, enquanto o diretor insere sua tese racial. Para pensar estes clichês de heist, "Inside Man" tem as tradicionais ligações de negociação entre policial e assaltante, tem um vilão genérico e caricato, mas que convence simplesmente por não esperarmos nada demais dele, além de ter uma pinta meio personagem de Agatha Christie que o deixa mais divertido que o padrão. Lee busca os olhares canastrões de seus assaltantes, suas reações ao encontrarem uma joia ou ao bolarem mais uma etapa do plano; nesses momentos, a trilha sobe e os close ups intensificam momentos chave que o gênero já assimilou para si. Desse modo, por mais que Lee esteja fazendo um anti-heist, um filme de assalto que no final não entrega assalto nenhum, que em nenhum momento ultrapassa a linha da expectativa, ele jamais rompe com as convenções mais básicas, essencial para manter uma ligação com um cinema de entretenimento típico do cinema de seu país.
Já ao trabalhar as etnias dentro desse cinema, Lee inverte papéis durante toda sua história. O negro investiga o branco assaltante, o homem com traços árabes é refém, o judeu é um dos suspeitos e a albanesa é quem ajuda a avançar em certo momento da resolução do crime. A mulher branca - Judie Foster - que aparenta experiência e confiança, no final se mostrou inútil e incapaz de conter as intenções de uma dupla que por mais que inimigas se junta por um motivo em comum. A questão racial é óbvia e constante no cinema do diretor e aqui, como em diversos de seus longas, ele trabalha a relação dos estereótipos de raça com sua representação no cinema de massa. Principalmente ao pensar nesse filme de 2006, quando o entretenimento americano já está a todo vapor reproduzindo racismo e preconceito pós-11/9.
Borat está sempre buscando o limiar entre o encenado e o real - abusa dessa dúvida para tentar consolidar sua proposta, pois ao mesmo tempo que especulamos se aquela pessoa e aquele diálogo são espontâneos ou roteirizados, já estamos sendo impactados pelo que o filme propõe: o absurdo, mais do que no diálogo e pessoas em si, está na possibilidade de algo tão repugnante poder ser real no nosso 2020. O enquadramento supõe que a cena possa ser ensaiada, a naturalidade leva o momento para um tom mais realista, de câmera escondida - Borat é basicamente uma sequência de esquetes neste sentido ligadas por arcos, aí sim transparentes em sua encenação, que não interessam e não impactam.
Poderia ser interessante se saísse alguma força dessas esquetes que flutuam entre o captar o lado sombrio da sociedade e encenar o que sabemos que pode ser real, entretanto já chegamos em um nível de consciência dos problemas apresentados nos EUA de Trump ou no Brasil de Bolsonaro que instigar os cidadãos a exercitar seus absurdos já não revela choque nenhum. Sabemos dos problemas que existem, revela-los já não basta; e quando o filme tenta ir além destas revelações, soa tosco, superficial e nada caótico. E nunca, nunca mesmo, engraçado.
O isolamento e o encontro do horror nos espaços domésticos que viraram prisão do dia a dia. Dos primeiros filmes dos muitos que virão contextualizados na pandemia, "Host" localiza seus medos nos cenários e nos objetos que tomaram a vida dos personagens presos em casa pelo lockdown, traz o terror de dentro das casas e das pessoas e ignora completamente o outro terror que está acontecendo do lado de fora, no mundo. Um filme de pandemia que mal fala da pandemia, o mínimo necessário pra se contextualizar historicamente. Infelizmente o desktop horror acaba sendo mais uma escolha situacional, que permite o encontro devido ao distanciamento, do que uma escolha formal que é explorada em seu máximo. Mesmo que as ideias de filtros e fundos de tela do zoom acabem sendo utilizadas de maneira bem criativa, as limitações e oportunidades que o gênero abre pra serem trabalhadas são bem pouco aproveitadas aqui, o foco em cada câmera como bem desejar, funcionando como close ups e cortes é muito prático e limitador dentro de um gênero que tem como maior recurso as infinitas possibilidades de uma tela de computador. Ainda estou na espera de um autor que disseque o máximo das possibilidades de um desktop horror, indo além dos horrores vindos da queda de internet, defeitos de som e profundidade de campo de uma webcam.
Já que o próximo demorará mais 6 anos pra sair, vou aproveitar a página desse filme pro review do projeto como um todo. A Up Series surge com uma premissa até que fraca pro modo como pensava em sustentar sua tese.
A proposta era analisar as opções e caminhos de vida de pessoas comuns da Inglaterra que perteciam a classes sociais diferentes e, por isso, analisaríamos como cada classe possibilita vidas diferentes e também se há mobilidade de classes na Inglaterra dos anos 60 em diante. Arrisco a dizer que com o passar dos anos, os próprios criadores entenderam que a dinâmica de voltar a cada 7 anos para fazer algumas perguntas e pontuar como estava a vida de seus participantes não era o modo mais efetivo de obter as nuances das diferenças de classe, pois há na vida uma infinitude de escolhas e dificuldades que o projeto não consegue captar por existirem na elipse entre um filme e outro. Justamente nessa fraqueza que a série encontra um olhar e uma análise muito mais instigante e que sustenta tudo até essa edição 56 anos depois. Nicholas, um dos participantes, parece ser dos únicos que realmente entendem porque as pessoas se interessam pela proposta. É claro que criamos vínculos com alguns deles, temos nosso preferidos e alguns que soam indiferentes, mas o que mais fisga nosso olhar é a simples passagem do tempo. É o corte seco entre um plano do filme anterior e a "revelação" de como está o entrevistado nos dias atuais. O "choque" que a passagem do tempo traz na montagem chega a ser tão revelador quanto as perguntas feitas por Michael depois que a câmera nos apresenta ao entrevistado da vez. A força da Up Series está em contar histórias banais, talvez parecidas com as nossas, ou não, mas que captam a simples existência de pessoas. Está mais distante de um voyeur e mais próximo de um Boyhood talvez. O filme ganha ao evidenciar o tempo da maneira mais simples possível: a comparação de planos de épocas diferentes.
Não interessa tanto se a personagem rica se rebelou e depois voltou a vida de alto padrão ou se o jovem do campo virou doutor em Física e se mudou, o que dá força a Up Series é encontrar pessoas que se disponibilizam a serem "cobaias" do simples registro de seus envelhecimentos, "cobaias" de uma curiosidade quase que inexplicável que temos pela vida alheia. As perguntas de Apted reforçam como o interesse é muito mais pelo banal e comum do que pelo específico de cada pessoa. Pouco se pergunta sobre suas opiniões políticas ou assuntos datados do momento presente, o interesse se direciona muito mais a questionamentos de "você quer ter filhos?", "seus pais já morreram?", "você está ficando doente?" etc. pois são vivências quase que inerentes a vida de qualquer pessoa de nossa sociedade e é justamente as mudanças de opiniões, os acasos e as surpresas que nos atraem. É voltando a vidas comuns que lembramos de tudo que já sabemos, mas que vistos periodicamente nos forçam a enfrentar: você envelhece e o acaso sempre vence.
Por fim, uma pena o formato ser tão quadrado e encaixado para funcionar como programa de TV. Tantas as possibilidades que um projeto duradouro desse carrega, mas a necessidade em sempre voltar aos programas anteriores e seguir a mesma fórmula por mais de 50 anos é um tanto quanto frustrante.
O filme inicia registrando um trabalhador ferido sendo carregado pelos seus colegas na Etiópia e ao adentrar a caverna na qual esses trabalhadores atuam, encontra-se uma pedra de beleza inigualável. As câmeras dos Safdie a penetram e acompanhamos uma pequena viagem mística por dentro do objeto, com formas abstratas, cores e sons que nos remetem a algo onírico e sensorial. Ao “sair” pelo outro lado, caímos de cara com um aparelho médico de ponta, que examina o personagem de Adam Sandler em uma colonoscopia. Mais que uma rápida e poderosa conexão entre as duas realidades que acabam sendo comparadas pela montagem e suas condições de desenvolvimento divergentes, esse mergulho pela pedra - que seria o ponto central do filme - me remete a uma escolha tão poderosa quanto a orelha em Blue Velvet de Lynch. O filme de Lynch começa observando um típico subúrbio americano no qual tudo parece comum e estável, um homem regando o jardim em mais um retrato normal do american dream; entretanto, Lynch logo acha uma orelha decepada no meio da grama e, ao passar por dentro dela, também passa por um “portal” que o leva ao submundo assombroso do restante do filme, o qual desmonta esse certo otimismo retratado no início do seu filme. Aqui, o efeito é parecido: mergulhar pela pedra e encontrar do outro lado Adam Sandler, é o portal que os Safdie precisaram passar para entrar de vez na realidade nervosa que o protagonista vive, desmontando, assim como Lynch, ideais da sua época durante as próximas horas.
Howard Ratner vive às custas de um dinheiro que não existe. Sua rotina é a pura especulação, pois a cada item que adquire o personagem não poupa tempo em penhorar para ter mais dinheiro em mãos e usar isso para outros investimentos, sem nunca sair desse ciclo frenético de nunca ter, mas sempre esperar ter múltiplas quantias desse valor nos próximos minutos. Ao encomendar a tal pedra etíope que em sua cabeça vale milhões de reais, Ratner acredita ter encontrado seu pote de ouro, ainda mais quando Kevin Garnett fica maravilhado por ela e acredita que tira dela forças para melhorar seu desempenho nas finais do basquete. A ironia dessa relação de crença entre Kevin e a Black Mamba é encontrar esta mesma iniciativa em Ratner, só que com o dinheiro - ou melhor, com a ideia de dinheiro. O filme dos Safdie capta esse capitalismo financeiro desenfreado dos day traders, do mito do enriquecimento fácil com investimentos e da especulação financeira após uma das suas maiores crises. Ratner nunca chega a usufruir do dinheiro que ganha, mas sua crença de que ficará rico e de que seus investimentos valerão a pena é tão subjetiva quanto a crença do jogador de basquete com seu desempenho melhorado por ter uma pedra em mãos. Os diretores comparam, silenciosamente, durante seu filme, uma mística mais pura e tradicional de nossa história como sociedade com uma nova mística contemporânea: a do capital, das ações, do não visto, do não materializável caráter do dinheiro. Quase que absurdamente, a mística primitiva parece mais palpável do que a de hoje.
A especulação é a peça motriz desse cenário capitalista e dessa Nova York que produz todos os interesses que os Safdie articulam em seus filmes. A vida de judeus nova iorquinos rodeados por um pulsar de culturas, hábitos e ritmos é materializado no que os diretores exprimem em tela. Ao filmar uma biografia de seus pais e deles quando crianças, de uma drogada que interpreta a si mesma, de ladrões e agora de agiotas, os Safdie estudam a relação de pessoas comuns com o capitalismo do século 21, mas também sempre estudam a relação deles com a geografia que os permeia - a Nova York na qual cresceram. Esse frenesi que mistura povos, que nunca dorme e que estimula uma vida de correria eterna - de geração a geração - está também expresso em cada plano de Uncut Gems. Seus personagens falam, mas ninguém ouve um ao outro, suas conversas são sempre rápidas e todos parecem atrasados para o próximo compromisso. A hiperatividade das ações de Ratner ditam o ritmo do filme e angustiam qualquer um que acompanhe esse confronto do protagonista versus a lógica. Sabemos o buraco que o personagem de Adam Sandler está se enfiando e é justamente essa percepção que temos, mas ele não, que gera parte da ansiedade que Uncut Gems proporciona. Nunca me saiu da cabeça, desde que vi o filme lá pelos dias em que foi lançado, o modo como ele dialoga com a música trap, em sua forma e em sua estética.
Esse gênero do hip hop nascido na Atlanta da década de 90 e lapidado até seu auge atual, na música ocidental, é a expressão máxima da juventude dessa etapa do capitalismo, cantada junto de uma ansiedade latente em cima de um beat tão hiperativo quanto a montagem dos Safdie. São músicas que defendem uma ostentação do consumo e da necessidade de se portar itens de valor com um beat que desafia o rapper a se fazer entender, de tão rápido que as palavras vêm e vão. Hoje, não há nada que absorva tão bem o ambiente urbano caótico que nossa geração cresce quanto esse nicho do rap. O que seria Uncut Gems se não essas próprias regras do trap no Cinema? A mesma mentalidade do jovem trapper que fala de tatuagens, roupas e jóias enquanto se embaralha na correria do seu meio é o ~mindset que conduz Ratner a cada plano na busca pelo próximo cifrão, enquanto também se perde na agilidade das suas ações que não o permitem raciocinar. São artes que brotam do mesmo substrato, frutos de um ideal hedonista e instantâneo, onde tudo está no agora, onde se opta pelo risco incalculável, onde “cisnes negros” são cada vez mais comuns, e com isso a sensação de imprevisibilidade nos faz largar qualquer tentativa de previsão ou estabilidade; artes que refletem uma agilidade das relações que se materializam na forma de palavras ou de planos.
Por fim, os irmãos compilam essa enxurrada de símbolos dos seus Estados Unidos em uma estética que porta as mesmas bases que o tema que buscam dissecar. A estética de Uncut Gems é tão especulativa e urgente quanto a rotina que move Ratner. Seus planos mal terminam antes do outro começar, as expressões são mostradas tão rapidamente que quase não absorvemos o que cada personagem sente, e, se tivesse um tempo mais longo para apreciar cada momento que filmam, perderíamos a próxima dúzia de planos que não aguentam a agitação que atua naqueles locais. A trilha é tão mística quanto as crenças de Kevin e de Howard, as cores que vemos fluindo por dentro das pedras só carrega essa sensorialidade tão importante por que o que ouvimos nos ajuda a embarcar nessa levada. É dos filmes que mais concretizam um modus operandi de toda uma geração e de um sistema econômico. Se os Safdie iniciam seu filme observando a Etiópia, é porque toda a ganância e ostentação que vemos depois têm suas raízes na rotina daqueles trabalhadores fraturados e ostensivamente explorados por potências que nunca os contataram. Não se restringe aos temas, está tudo na linguagem que os irmãos articulam em cada peça do seu filme. Místico.
Cinema especulativo que sempre estuda uma saída, uma solução, mas nunca a acha na prática. Penso que essa seja a característica dos filmes dos Safdie que mais os coloquem como motores de adrenalina e ansiedade, seus personagens vivem a mil por hora, mas sempre correm sem meta, sem ter onde chegar e com pouquíssima probabilidade de terminar em um final satisfatório. Nessa Nova York do capitalismo falido e tardio, os diretores observam os desajustados que sem nada a perder arriscam suas últimas fichas no risco com chances infinitesimais de dar certo. A protagonista de Heaven Knows What corre pela cidade em busca de drogas e distância dos seus problemas, mas parece andar em círculos; Pattison, em ritmo frenético, busca uma fuga impossível, passando por diversas doses de otimismo ao achar uma suposta solução para seus problemas; Sandler vive na base da especulação e do incerto, suas finanças são colocadas a mando de apostas e empréstimos que nunca dão o retorno que colocaria um ponto final nessa vida. O fetiche das cidades oitentistas, marcadas pelos neon e regidos pelo pop sintético, é reproduzido só que sem o glamour, essa estética, trazida para o contemporâneo, é ressignificada, hoje dialoga muito mais com o trap, por exemplo, do que com a aura daquela época. É a estética que conversa com a rapidez, com o dinheiro fácil, com os riscos em busca da riqueza e das drogas sintéticas como estímulo. Isso dita uma vida agitada e gananciosa que mascara a falência dos meios a sua volta e a sua posição de primeiro alvo desse sistema falido. É o anúncio do fracasso sistêmico em frente a holofotes de neons vibrantes e ritmados por batidas 180bpm ou algo assim.
O capitalismo é tão decadente que o MacGuffin é uma garrafa PET cheia de ácido. Isso é absurdamente genial.
Muito mais um mumblecore de Alex Ross Perry, Noah Baumbach ou outro desse cinema indie americano recente do que se imagina quando pensamos no cinema dos Safdie hoje em dia. Os filmes dos irmãos tem duas óticas principais que eles abordam quando estudam essa Nova York que cresceram: a correria e agressividade urbana contemporânea e a ingenuidade apaixonada de quem cresceu lá e admira muito essa cidade que pulsa por estímulos criativos e pessoas das mais diversas formações. Recentemente eles parecem ter encontrado mais inspiração e potencial em discutir esse frenesi moderno, a velocidade como as coisas acontecem e o modo como captar isso através das câmeras, por vezes montando freneticamente seu filme(Uncut Gems), por vezes recusando o corte, mas compilando muitas informações em pouco tempo para reproduzir a mesma ideia de ritmo acelerado(Good Time). Entretanto, nesse começo de carreira, seja nesse longa, seja em alguns de seus curtas disponíveis, os Safdie evidenciam esse outro prisma de NY deixado um pouco de lado na filmografia recente.
Essa estética(?) mumblecore condiz com uma perspectiva "vazia" de se viver, de buscar o interesse nas situações sem motivos evidentes, em acompanhar personagens que se sujeitam a seus estímulos e não pensam muito antes de agir. Personagens que preferem experimentar e até burlar leis para atingir vontades que surgem em seus interiores. O mumblecore, que aproveita de uma autenticidade, do improviso, da sensação de naturalidade e ausência de formalismo, se encaixa muito bem nessa visão que "The Pleasure of Being Robbed" quer chegar ao captar Nova York. Eleonore é crível em suas atitudes, pois consegue passar - pelo seu modo de olhar o mundo e se comportar e interagir com as outras pessoas - a vulnerabilidade que a faz ceder a impulsos cleptomaníacos de seu interior. Essa impulsividade é totalmente exposta em tela pelo modo como a unidade que o mumblecore e seus efeitos já citados ajudam a criar. É muito comum assistir a um desses filmes indies americanos com essa pegada e sair em dúvida se o diretor realmente concretiza algo em tela, ou se ele somente utiliza dessa estética em alta para propor algo que soe como sugestivo, mas que não possui muito a dizer. É uma linha tênue entre trazer ao mundo uma visão leve e despretensiosa do que se filma e buscar tanto essa falta de pretensão e acabar vazio de sensações. E é isso que mais me chama atenção no filme dos Safdie, é dos usos dessa estética que mais fazem sentido dentro do que é proposto. Eleonore parece verdadeiramente interessante e convincente, sua relação com o espaço e com o que vale a pena ser vivido é preenchido pela forma como os Safdie filmam - a distância do que é filmado e o zoom como meios de simular quase que uma câmera escondida que propõe uma observação distante e verdadeira da personagem, o uso de não atores etc.
A perspectiva de facinação pela cidade está em todos seus filmes; impossível ver isso aqui e imaginar o que eles se tornariam, mas já dá pra sacar interesses que caminham com eles até hoje e provavelmente por mais muito tempo. Dos cinemas que mais entendem a atualidade e entregam isso em forma de filme.
Filme que capta muito bem o que já vinha sendo o principal interesse dos Safdie desde seus primeiros curtas, principalmente em "John's Gone", que é o desconforto, o estresse inerente a vida urbana e corrida dessa Nova York "pós moderna" - o que chegaria em seu ápice em Uncut Gems. Interessante também entender o filme como um relato pessoal dos irmãos com seu pai e tirar daí o background de onde ambos vieram, justificando o tipo de personagem no qual eles se interessam em seus filmes. Assim, tanto em forma, quanto em temas, "Daddy Longlegs" já é absurdamente autoral e possui o que mais marca o cinema dos irmãos. A fotografia suja, a câmera na mão e os close-ups são fundamentais pra potencializar o ambiente que o filme se passa, suas lentes absorvem a crueza e o desespero daqueles locais e personagens, dando espaço para as expressões de pânico que a vida vai proporcionando pro protagonista e localizando eles no meio dessa correria e mal estar da cidade contemporânea. Curioso de perceber também como os Safdie sempre que podem se aproveitam de um momento mais onírico, aqui o mosquito, em Uncut Gems a mística da pedra por exemplo, pra intensificar o que vem se passando na mente do personagem. A fixação de Adam Sandler pelo potencial comercial da joia, a loucura de Lenny com a distância dos filhos etc. Por fim, os Safdie tem um cinema muito consolidado já, em ideias e em mise en scene, buscam a cada filme trabalhar uma nuance de Nova York: a família, o crime, o mercado, a especulação, o frenesi moderno, os junkies; e articulam daí sempre uma posição muito forte pela linguagem, cada filme tem um espírito muito próprio, aqui o modo cuidadoso como representa o pai, na sua dualidade de defeitos absurdos e carinho genuíno pelos dois filhos, é bem peculiar do cinema que entregam.
"E se acabou no chão feito um pacote flácido Agonizou no meio do passeio público Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego"
O que a música de Chico e Arábia têm em comum é a dualidade entre um protagonista comum, facilmente reconhecido, e que busca uma vida normal, sem pretensões, sustentado pelo amor padrão de filhos, namorada, esposa e afim; e a realidade crua da luta de classes e o papel descartável do trabalhador na máquina do capital. Em Construção, a desumanização da morte do operário, tratada apenas como um obstáculo na rotina de quem passava pelo local rumo a suas atividades incomoda porque nos acende a mesma luz que Cristiano captou, quase como uma epifania, no fim do filme. Primeiro, a criação da simpatia pelo personagem; depois a tomada de consciência de seu papel descartável e nosso incômodo com tal realidade; por fim, nossa própria ascensão de consciência e identificação na mesma posição social de Cristiano. Uchoa não busca o ódio de classe e a tomada dos meios de produção como saída, embora o assunto de greves e sindicatos perpassarem o filme, mas justamente a sensação de injustiça entre a vida cotidiana e a repentina lembrança de nosso lugar nessa roda. Mais dolorido que a própria diferença de classe, é recordar que por trás de cada proletário tem uma vivência muito única e interessante de se conhecer, mas que diariamente é massacrada e tirada de qualquer individualidade. A despersonalização que o trabalho causa, o mito de trabalho como algo que enobrece posto em ruínas.
Dissecação da autoridade, da imagem e do discurso. O contraponto entre o que fala os médicos e o que sente as "pacientes". O excesso de imagens que tira qualquer poder de comprovação, não há mais poder no que vemos, tudo é volátil e manipulável. A conspiração está em tudo. Retroalimentação do vídeo ensaio nessa aventura de concretizar o que foi sentido pelo que viu, mas não se pode acreditar.
As feridas que a autora sente na pele são dignas de uma ideia de Cronenberg.
Anotações que tinha feito da primeira vez que vi e não coloquei em lugar nenhum, dessa vez gostei menos do que da primeira, mas foi mais culpa minha:
-Jornada de aceitação de um luto, de se autoconhecer e aceitar a partida de alguém, começar a trilhar seu próprio caminho e cortar o cordão que liga os dois para que seja possível recomeçar.
-Sociedade que só admite pessoas frias, que não se alteram em nenhum tipo de situação, que mede cada reação química dentro do corpo humano e transforma o ser em uma máquina que segue algoritmos. Sociedade que acaba renegando as emoções e o que nos faz humanos, entra em confronto com nosso eu mais primitivo (o primata, a ira) e por isso gera tanta destruição a quem está em volta.
-Sociedade arrogante que esqueceu de seus princípios e do que seria mais importante a ela em troca de uma busca por conhecimento que mais afasta do que aproxima. A arrogância humana nunca contente com seu estado faz com que menosprezemos nossos filhos, mulher, família em busca de uma resposta que não existe. Quase um Shyamalan, a exaltação de valores tipicamente americanos, cristãos e ocidentais que estariam em degradação em uma sociedade secular, humanista e científica.
-Jornada de autoconhecimento, ir até suas profundezas para finalmente curar feridas e se sentir disposto a começar a viver sua vida. às vezes é necessário mexermos no nosso eu mais interior para arrumar a casa e conseguir dar um start na nossa vida independente. o scifi como um psicólogo.
-Scifi é isso também né, transformar um problema tão interno e pessoal em uma jornada pelo espaço, pelo conhecimento; fazer das nossas barreiras humanas as barreiras do impossível, dos limites que nosso conhecimento encontra.
Gosto como o filme em nenhum momento precisa levantar verbalmente a questão que dá o título. A câmera de Queirós observa, relata detalhes da vida desses 3 cidadãos comuns da Ceilândia e esse cotidiano é o que interessa, sem uma pose de objeto de estudo, sem uma tentativa de distanciamento entre câmera e quem é filmado; Adirley encontra intimidade e harmonia com quem filma, há conversa entre os lados e captar o ordinário nos leva a responder o que seu filme questiona sem verborragia. Não é preciso nem filmar o "outro lado", não é necessário a oposição com moradores da Brasília do plano piloto para causar choque e evidenciar a desigualdade. Queirós filma o que conhece, o que está acostumado e a realidade daquela periferia diz por si só. O interesse pelo processo de expulsão dos moradores para o periférico, o sonho distante de entrar para a política para buscar justiça e o dia a dia de alguém que tenta algum sucesso financeiro em meio as dificuldades. Sem precisar perguntar, o diretor nos dá a resposta.
Na tentativa de fazer da oralidade e da crença nas histórias que ouvimos o mote de The Vast of Night, Patterson quase se recusa a propor algo pela sua encenação. Tudo que o diretor filma se limita meramente a sua função narrativa, mas não há nada que concretize uma unidade estética em seu filme. O mais sintomático pra mim, é claro, são as cenas dos relatos dos personagens secundários; não há nada ali que tente dar peso ao que ouvimos, seja a tela em preto, seja o close up no rosto da senhora durante toda sua história. Essa recusa em usar do visual para propor uma ideia pode parecer uma visão apaixonada por histórias, mas não por Cinema. Shyamalan nunca precisou dessa transgressão cinematográfica para passar sua fé e paixão pelo que ouvimos, pelo contrário, sua encenação eleva cada pedaço de sua filmografia a níveis superiores. Só escrevendo isso aqui já me vem a cabeça diversos planos de Sinais e Dama na Água, por exemplo. E sabemos como o homem ama histórias.
A montagem que deveria salientar o frenesi do momento assustador em que vivem não encontra um ritmo adequado e acaba oscilando ao decorrer do filme; o neon e o perfil de subúrbio do local, típicos de Spielberg, King e tudo que Patterson bebe como referência, simplesmente não funcionam, pois o diretor não filma nada que exercite essa ideia e trabalhe com o espaço tão rico que tinha em mãos. O senso de emergência parece não deixar que o diretor explore aquela comunidade, as pessoas e o perigo em que estão passando. As constantes remodelações de expectativas que se alteravam a cada informação que recebiam não tem tempo nem capacidade de serem trabalhadas. É a falta de soluções visuais que o diretor possui para propor sua ideia em imagens que deixa o filme com a sensação de que sabemos onde ele quer chegar, até porque suas referências são visíveis, mas que não concretiza nada além de um pastiche de terror Twilight Zone com carinha de pipoca oitentista. Talvez Patterson tenha tanto amor pelos relatos e contos orais que se recusou a fazer de seu filme...um filme.
Dado tudo isso, arrisco a dizer que isso aqui se daria muito melhor em outra mídia, um podcast talvez? É a resposta mais óbvia. A proposta é interessante e as únicas coisas que valem algo aqui são realmente o clima que o relato de Bill pode trazer. O cara filma em seu clímax uma nave espacial e consegue fazer isso sem entregar um pingo de tesão. Se a invasão alienígena simboliza de alguma forma o apagamento do rádio e seus restos como fósseis de uma época passada com a chegada da TV (como ele precisa tanto enfatizar), o diretor perdeu a chance de despertar qualquer interesse de seus espectadores pelo que ele tenta homenagear.
Utopia do encontro às avessas. Enquanto essa mitologia clássica do Cinema se concentra na consciente efemeridade da relação entre duas pessoas e busca a intensidade desse momento e as marcas que essa brevidade deixa na vida de cada um, como Encontros e Desencontros, Comrades, Desencanto, Carol, entre outros; Vida Invisível se assemelha mais a Retrato de uma Jovem Em Chamas mesmo que neste ainda haja tempo para viver o amor impossível, pois é na imposição social que despedaça as oportunidades na vida daquelas mulheres que o filme encontra sua força motriz. Os primeiros se concentram no pequeno momento juntos, os últimos na longa vida sem a possibilidade de celebrar a união.
O filme vai além de uma visão feminista que denuncia um Brasil conservador da década de 50 e que obviamente traz as discussão para os dias atuais. Aïnouz defende em sua mise-en-scène uma ligação subjetiva entre as irmãs, um laço nunca rompido que conecta ambas durante suas existências, há entre elas uma conexão irracional e muito além do palpável que gera toda a dramaticidade de Vida Invisível. Ao montar paralelamente os acontecimentos na vida de Eurídice e Guida, o filme valida esta semelhança que independe dos desafios diferentes que cada uma encontra, mesmo que frutos do mesmo patriarcado, pois é a força pela procura e pela manutenção das memórias que dá vida a cada uma dessas histórias. Em "Retrato", a memória é o local protegido onde o casal do filme encontra a possibilidade de preservar seu amor em um universo que não aceita sua natureza. Aqui, a memória e o exercício de cultivá-la por meio de cartas é o hábito que perpetua esse laço que o filme acredita existir, essa ligação familiar e muito além disso. E claro, o Mito de Orfeu encontra na memória da última olhada, daquela virada pra trás, o combustível para continuar em frente. É optar pelo passageiro, no caso de Orfeu que tinha essa escolha, mas guardá-lo para sempre dentro de si. O principal do filme é isso, é a potência que essa conexão carrega as duas vida a frente e a crença eterna que um dia o encontro há de chegar.
Por fim, também é muito fácil lembrar do cinema de Todd Haynes ao ver "Vida Invisível", principalmente "Carol", mas com uma premissa que já se encontrava em "Far From Heaven". É o resgate de um Cinema Clássico, do melodrama e da Utopia do Encontro, de dialogar com as regras dessa tragédia, com o formalismo do período e ressignificá-lo em seus filmes. Haynes entrega em Carol uma possibilidade de burlar o trágico que suas inspirações concretizavam, "Vida Invisível" segue a tradição à risca. E vai além, leva a impossibilidade tão a sério que nem a efemeridade dos encontros em restaurantes/cafés típico de "Carol" e de sua base "Desencanto", Aïnouz permite. O desfecho com Montenegro não é só um show off de surpreender o público com a tão conhecida atriz, nem de abusar da possibilidade de poder tê-la em cena. Fernanda carrega ali na sua gigante atuação uma vida inteira que Carol Duarte desenvolveu nas mais de 2h de filme. Aïnouz, para mensurar o peso que sua história gera em sua personagem principal, entrega a bagagem para alguém do mesmo peso, para que possa carregar.
Totalmente compreensível o apreço de Bazin por "Kon-Tiki". Filme que carrega em suas imagens (ou na falta delas) a dificuldade e os perigos da travessia. Pertence a esse interesse científico e etnográfico do pós segunda guerra nos filmes reportagem, mas que também abre margem para a articulação do autor que vivenciou a aventura. Não é um vídeo do Telecurso 2000 te ensinando sobre a relevância dos ventos e marés para as viagens pré-históricas, é o relato, narrado e filmado, do inacreditável feito de seus autores, utilizando da credibilidade das suas imagens para validar seu discurso, e da montagem de suas gravações para transpor suas memórias.
Mon Oncle e Parasita - Comédias de costumes que opõem as classes sociais
Que filme incrível em sintetizar toda sua tese na arquitetura e nos ambientes em que suas cenas se localizam. A vivacidade, a agitação e a integração entre os moradores do bairro em que Hulot mora, apresentado tão bem quanto a vila de "Carrossel da Esperança", já denotam toda a estrutura e as características principais que dominam aquele local. Enquanto isso, a casa burguesa é tomada por aparelhos nada funcionais, mergulhados em um ambiente frio e pouco acolhedor que ao ser revelado aos poucos por Tati demonstra e reforça a ideia de uma casa pouco confortável, mas montada pelos seus donos para ser um objeto de poder e exposição para os outros que a veem. Diversos aparelhos desta casa são símbolos de uma inovação brega e pouco efetiva que a família rica implementa em seu lar, seja na intenção de automatizar os processos domésticos, seja para significar luxo. Mas nenhum é tão enfatizado e trabalhado por Tati quanto o chafariz de peixe na entrada da casa. Objeto de cuidados especiais dos donos, a fonte de água é ligada por eles sempre que alguém toca o seu interfone, na expectativa de poder esbanjar este aparelho para quem entrar na casa; porém, caso a pessoa seja algum funcionário ou membro de uma classe abaixo da família, o chafariz é logo desligado pois não há o interesse em impressionar esse tipo de pessoa.
Tão representativo e cínico a esta posição burguesa de gastar dinheiro na necessidade de impressionar seus conhecidos que compartilham da mesma situação financeira, o diretor faz a escolha perfeita em materializar toda essa dinâmica em um objeto como um chafariz. Um aparelho inútil, sem função evidente que somente possui como "benefício" um embelezamento do ambiente em que se encontra, um mero artefato que reproduz, ao existir, a mensagem de que seu dono tem dinheiro suficiente para ter algo sem função embelezando sua casa. Mas Tati vai ainda mais além, pois ao desvendar aquela casa, ele já deixa evidente a falta de coerência e beleza nos objetos que compõem os cômodos, revelando uma falta de noção estética daquela família que empilha objetos somente na intenção de se mostrarem ricos, mesmo que não haja senso estético nenhum na mistura entre eles. Assim, essa dinâmica de oposição entre dois ambientes totalmente diferentes, tanto no visual quanto no comportamental de seus membros consolidam os palcos pelos quais o personagem de Tati vai interagir com toda sua inocência e ali notabilizar as diferenças de comportamento de cada classe social.
E nesse uso de uma comédia de costumes para rivalizar e comparar duas classes sociais distintas utilizando da casa como signo primordial dessa disparidade, fica impossível não lembrar de "Parasita", pelo menos até a virada dramática do filme coreano. No filme de Tati há, ainda mais que uma comédia de costumes, uma herança das comédias de Chaplin, Keaton e outros mais interessadas nas gags de humor físico, mas que ainda assim, ao filmar os hábitos de cada classe, acaba por construir seu humor nesses costumes. Por se levar mais a sério, a casa de "Parasita" acaba sendo quase que o oposto de "Mon Oncle", um ambiente totalmente funcional e luxuoso que justamente pela sua beleza e tamanho acaba por significar a discrepância com a realidade dos pobres, mas que também materializa o mal caráter burguês em sua construção. O filme de 1958 aproveita da feiura da residência, um ambiente que me lembra muito a casa do escritor de "Laranja Mecânica", para começar a tecer suas ironias e piadas com a burrice da família burguesa, vide a cena do carro na garagem. E isso também é algo que concilia os dois filmes, retratar o quão limitadas são aquelas pessoas e deixar isto claro quando elas interagem com os mais pobres, seja a família principal de "Parasita", seja Hulot em "Mon Oncle"; em ambos isto e a posição de classe burguesa como pouco produtiva, mas sim acumuladora de capital ficam clara por meio de suas conversas e ações com os de baixo. São os representantes dos pobres se safando de problemas com os ricos ao usarem da sua inteligência e são cenas como a do conserto do chafariz feito pelo empregado do dono da casa que reforçam essa lógica.
Por fim, assim como Joon Ho conseguiu alcançar em seu filme, Tati também trabalha sua ideia de maneira tão assertiva por meio do ambiente que cria para posicionar seus personagens, extraindo muito mais subtexto daí do que qualquer diálogo que pudesse ser dito em tela. Cada casa desses dois filmes exprimem o modo de agir das classes que as possuem e essa discrepância vista em tela já deixa ao espectador tudo que precisa para ser concluído. Além de que, Tati e Ho, exercitam seus gêneros de escolha dentro desse pano de fundo sem nunca deixar que esse lado crítico seja mais importante que as convenções que os gêneros buscam possibilitar: o suspense e terror em "Parasita" e o humor físico e ingênuo que Hulot encontra em cada ambiente que passa. E é nesse equilíbrio tão bem orquestrado que ambos filmes resistirão ao tempo como obras gigantescas que são.
Melville aqui e em The Samourai abre o filme com frases que já premeditam muito do que vai acontecer em cena. Dado a ideia da convergência dos homens dentro do tal círculo vermelho, o filme todo se torna a iminência do encontro entre as partes opostas: o trio de ladrões e o policial. "Le Cercle Rouge" sustenta todas as escolhas de Melville que fazem dos seus filmes de gangster ter toda essa elegância, formal e visualmente. Seus personagens possuem um estilo muito intimidador e ao mesmo tempo elegante e desejável, são meio que um Tyler Durden de sobretudo e chapéu, seguros em alguns ideais de gangue e que encontram parceiros na sintonia de uma camaradagem que se justifica nas ações de um para o outro, salvando a vida do parceiro sem nenhum motivo aparente, somente por ambos fazerem parte do mesmo mundo. A frieza e concentração com que executam seus atos e o entrosamento que desenvolvem tão rapidamente consolidam o nível de ameaça ou de profissionalismo que aqueles caras tem no ramo. A inteligência e capacidade do atirador de elite, o modo como os policiais tratam Vogel e a habilidade do protagonista para despistar nas paradas policiais funcionam justamente como demonstração de como eles são bons no que fazem. Tão bons que por muito tempo acreditamos que dessa vez, nesse filme, Melville dará um final de sucesso para os ladrões; só que sempre, nos acréscimos, esse desvio natural do homem pelo crime, tão martelado durante o filme, tomarecebe sua punição em um ato tão amador para ladrões tão experientes. É justamente nessa confiança demasiada que nossos personagens colocam em outros do seu meio que vem o erro, se com o atirador de elite a recomendação deu certa, na segunda vez a polícia ganhou se dia. Fica aquela sensação de: quase foi dessa vez.
Um típico filme de Wilder, todas as características que marcaram os filmes do diretor são possíveis de serem pensadas nesse filme. Personagens corruptos que burlam leis ou morais americanas em busca de sucesso financeiro ou sexual, necessitando sustentar a mentira que inaugura o filme até o seu fim. Wilder, primoroso ao trabalhar esse cenário sempre, leva seus personagens ao limite do esforço para que não caiam em contradição e segurem a verdade para si; porém geralmente a redenção vem ao final em um lapso de arrependimento e lucidez moral.
Com um humor muito mais controlado do que em seus dois filmes anteriores, a parceria entre Wilder e Lemmon volta a funcionar como nos seus melhores filmes, há o equilíbrio entre a leveza que Lemmon consegue trazer as cenas ao cantarolar e dançar na cadeira de rodas com a seriedade do caso judicial tratado por Gingrich que ganha o mesmo tom que Wilder sustenta durante boa parte do "Testemunha de Acusação". É possível encontrar a relação e a subversão da ideia que Hitchcock trabalha em "Janela Indiscreta" em "The Fortune Cookie". Se no clássico de 1954 o personagem de Stewart, ao ficar imobilizado na cadeira de rodas, observava os vizinhos da janela, aqui é Lemmon que, em repouso pelo seu acidente, fica em observação pelos detetives do outro lado da rua. Em Janela, o voyeurismo do protagonista se liga à nossa passividade como espectador, característica primordial do Cinema, e nosso interesse por histórias e vidas alheias enquanto meros observadores daquela realidade sem poder de interferência. Em Fortune, Lemmon que é observado pelo detetive, pelos advogados, pela lei e pela moral; cabe a ele manipular a imagem que entrega a quem o assiste. Lemmon deixa de ser o passivo que observa vidas alheias para ser o diretor e editor da sua própria história, aqui ele ganha a vantagem de decidir o seu futuro e dos outros personagens à sua volta, resta a ele optar entre sustentar a farsa e aguentar os interesseiros que se aproximam ou expor os verdadeiros vilões e salvar a carreira de seu amigo sem peso na consciência. Se Janela é sobre o espectador, Fortune é sobre cada cidadão comum nos momentos longe da tela, moldando seu próprio filme.
A Bruxa de Blair
3.1 1,6KPensando em como é dos últimos filmes que conseguem se aproveitar da autoridade que a existência da fotografia traz pro mundo como recurso para desenvolver a veracidade que suas imagens contam. No limiar dessa explosão das câmeras digitais e da popularização das câmeras dentro do nosso cotidiano, Bruxa de Blair existe no único momento histórico que poderia existir, o filme é a inauguração de um subgênero, mas também conta um pouco sobre o fim de um uso da imagem que não é mais possível hoje em dia.
Um filme que deve muito a dificuldade em acessar informações sobre ele para convencer o espectador, mas precisa ainda mais carregar em si imagens que tenham o poder de convencer o público de seu realismo. E com o excesso de imagens e informações no nosso dia a dia crescendo paralelamente com a facilidade de se filmar e criar suas próprias imagens, é impossível pensar um filme hoje que tenha sua força motriz no convencimento pela imagem de maneira "pura" e primitiva. Há quem acredite na força que a imagem carrega e faça seu filme com essa consciência, mas dificilmente com a inocência que aqui parece existir. Como o Maneirismo que vem com a consciência de uma longa existência do Cinema anterior a ele e o leva a repensar a maneira de encenar pois tudo teria sido feito anteriormente, um Found Footage atual ou qualquer filme com uma abordagem mais realista da imagem carrega em si, inevitavelmente, a necessidade de uma descrença que aqui ainda não era necessária. Um filme que sela esse esgotamento do poder da imagem e faz isso criando um subgênero que é dependente de algo que estava findando no momento. Talvez isso explique tanto porque o Found Footage já nasce morto e com poucos a reproduzirem tão bem quanto aqui.
E é daí que não tem como não pensar em Shyamalan quando falamos disso. É dos que realmente acreditam no que filma e mostra, constrói suas imagens e as encena com a crença no que aquilo em tela pode nos impactar e tem dois de seus melhores filmes dialogando diretamente com essa questão. Primeiro com "A Visita", repensando justamente o esgotamento do subgênero, conciliando o formalismo da mise-en-scène com a ideia do found footage (que muito se sustenta pela proposta de encenação primitiva e pela falta de um autor por trás daquelas cenas). E com "Glass", onde o diretor conta a história de um herói que planeja um meio de recuperar o poder dessas imagens e conseguir provar ao mundo a existência de heróis em uma sociedade desgastada de tantas informações e descrente de tudo que vê. E como que fechando um círculo, a ação se concretiza chegando a celulares e TVs do mundo inteiro, bombardeando o mundo de mais informação. Porém informações estas ele consegue pelas câmeras de segurança do hospital, que naquele Universo, ainda carregam em si a autoridade fotográfica.
Você é o Próximo
3.2 1,5K Assista AgoraO que Adam Wingard fez em The Guest e agora com o que vi em You're Next já o colocam na prateleira de diretores mais divertidos que tenho para assistir. Fiquei até surpreso ao sair tão empolgado do filme e ver várias notas medianas aqui de pessoas que na minha cabeça iriam amar o filme.
Mas enfim, é inacreditável como passando por alguns reviews negativos na Internet as pessoas prefiram supostos personagens mais bem desenvolvidos, plots mais elaborados e motivos mais interessantes no twist do filme do que um diretor que olha para um subgênero e monta tudo que tem vontade em volta das batidas que formam essa história. Ao meu ver, You're Next aposta na superficialidade de alguns pontos que pro grande público se convencionaram a ser analisados como a força motriz de uma obra, para que haja ainda mais espaço e interesse no que realmente importa aqui: Usar o Slasher e o Home Invasion para construir as cenas que alguém criativo e apaixonado por esse Cinema sempre tiveram a fim de fazer.
Basicamente não interessa se ela foi na escola de sobrevivência, se o plano pela herança era bom ou se o casal tinha química, quando o diretor elabora cenas como a da câmera fotográfica, da linha no pescoço e do liquidificador. E além desses momentos mais pontuais e visualmente estimulantes, o que Wingard faz no filme inteiro já vale muito mais que roteiros "amarradinhos". Sua encenação sustenta um filme de 90 minutos que pouco abaixa de ritmo depois que o surto começa; sua câmera na mão balançando próximo aos personagens desestabiliza qualquer segurança espacial que aquela casa poderia ter e justamente na negação dessa geografia mais estudada que ele faz com que essa casa seja totalmente vulnerável e que o perigo venha de qualquer lugar. O modo como ele trabalha o som, tanto da trilha quanto do coral de gritos de susto e de dor que dão o tom do filme são diferenciais difíceis de se verem presentes no Slasher. Tanto quanto o que entrega visualmente, a sucessão de gritos e berros que as personagens soltam em todos os cômodos eleva o terror que o filme busca.
É um puro e divertido exercício de gênero sem pretensão de ser nada mais que isso, por que não precisa ir além para ser algo relevante. O jeito de repensar a Final Girl, o humor para brincar com algumas convenções do gênero (o filme abre com o assassino matando o casal broxa) e as propostas visuais e sonoras que Wingard minuto a minuto entrega pra gente é o estímulo primordial que se pode tirar do gênero.
Que as pessoas se libertem mais desse olhar formulaico de buscar convenções do que seria um grande filme e se deem mais liberdade pra aproveitar exercícios cinematográficos que não buscam deixar sublinhados mensagens complexas, mas entreguem uma ideia nova, autoral e criativa do que se pode construir utilizando as batidas que formam um filme.
Uma Noite de Crime
3.2 2,2K Assista AgoraA premissa é questionável e politicamente ambígua (apesar de eu entender mais como um filme sobre a Era Trump antes do próprio Trump, onde há esse EUA refundado no Expurgo, que cresce na base da violência e defende o porte de armas e o God Bless America, que não se incomoda com o aniquilamento institucionalizado dos pobres e negros, mas logo entra em choque quando essa violência chega na classe média), mas funciona bem demais como dispositivo para acionar o terror do Home Invasion.
Nitidamente DeMonaco tem suas limitações e é muito melhor construindo uma atmosfera e estabelecendo as regras do jogo do que as resolvendo, a tensão que constrói enquanto a casa ainda está intacta é bem melhor que a resolução encenada em violências que não parecem ter impacto algum.
Filme que me parece servir para o próprio DeMonaco entender o que teria de bom e de péssimo para se aproveitar nas sequências que vieram, já que os outros filmes da franquia se sujam bem mais nas possibilidades estéticas e estilizadas que o Expurgo proporciona. Personagens, armamentos, fantasias e uma estilização que traz mais o poder pela imagem mesmo do que qualquer tentativa de comentário político que nem o próprio diretor consegue estabelecer direito o que quer transmitir. Gostando ou não da premissa, é inegável que ela garante várias óticas diferentes de personagens a serem observados, peça chave para a franquia. É um terror que pode ser construído por quem fica preso em casa, por quem sai na rua para "caçar", por quem é caçado, entre diversas outras ideias que podem vir derivadas desse dispositivo.
Noite de Pânico
3.0 47É pra isso aqui que eu vejo filmes há quase 10 anos.
Dentro da minha imaginação, eu associo o Cinema de Terror com experiências muito específicas que nunca vivenciei, mas na minha cabeça fazem todo sentido quando comparadas ao que sinto com os filmes que mais me empolgam. O Slasher, nessas minhas ideias, é parecido com a sensação de dirigir sozinho de noite em uma estrada vazia enquanto ouve o rádio ou passar a noite em sua casa em um dia que caiu a energia elétrica. Tentando entender o porquê eu acho que são sensações que se equilibram muito na linha tênue entre o perigo do desconhecido e a liberdade e curiosidade do instante vivido. Tudo isso pra dizer que "Alone in the Dark" me levou diretamente para esse compartimento da minha mente onde o mix entre perigo e liberdade do instante me deixa em estado de graça e se conecta com meu gênero e subgênero favorito.
O filme de Sholder na simplicidade de sua premissa e na estética padrão do gênero pra época evocam e concretizam sensações de perigoso iminente e de vivência total do momento presente, tudo que um filme precisa acionar em mim. Nem tanto tempo assim depois do sucesso de Halloween, o filme já experimenta algumas subversões, enquanto se aproveita de outras batidas que o garantem no gênero. O subúrbio com o perigo próximo e anunciado, as personagens no limite necessário de superficialidade e o cenário está pronto para bons minutos de assassinatos e "home invasion". Já os assassinos, não atuam como forças da natureza inumanas e moralistas, mesmo que assassinando um casal que transa, nunca há a moral típica do Slasher presente aqui. Suas motivações e a relação entre eles é trabalhada previamente e o foco está muito mais neles como pessoas - e é isso que o doutor prega, assim como o diretor prega ao gênero ao retratá-los assim - e não é mais necessário uma "Final Girl" quando a família e sua proximidade são mais interessantes que uma adolescente gritando e esperando a polícia enquanto quase morre. Ao olhar a família como um todo e humanizar o perigo que vem do lado de fora, "Alone in the Dark" encontra um perigo mais realista e menos impossível de enfrentar. Quando o filme se concentra nas pessoas dentro da casa e abandona de suas câmeras a ação dos 4 assassinos do lado de fora, o inesperado ganha muito mais força e a sensação do terror atinge seu ápice aqui. É muito incrível o nível de incerteza do que e como acontecerá a invasão na casa da família protagonista. E se o filme arrisca rapidamente uma relação com o perigo das armas nucleares, é pra trazer ao espectador essa mesma preocupação e incerteza do que pode acontecer para a vivência dos personagens rodeados de assassinos. Se nos EUA da Guerra Fria, a ansiedade em viver sob o risco de armas nucleares sendo disparadas a qualquer momento era facilmente reconhecível, Sholder busca esta mesma ansiedade com o próximo segundo de seu filme ao trancar os personagens todos em uma casa e não nos mostrar os passos dos assassinos que os procuram.
Mas isso, pra mim, pouco importa. O que vale é a certeza que me vem ao final de que passarei ainda muitos anos experimentando Slashers e terrores no geral sempre na busca pela próxima sensação de estar dirigindo sozinho de noite ou de estar entre o perigo e o instante.
O Plano Perfeito
3.8 658 Assista Agora"Inside Man" é Spike Lee exercitando o que talvez seja sua maior qualidade como diretor: entender as bases da linguagem do gênero em que trabalha, pouco subverter elas, mas sim inserir sua tese, seu olhar sutilmente no meio deste padrão de cinema americano - fazendo com que continue conversando com um cinema pipoca ao mesmo tempo que deixa sua assinatura e planta a semente do questionamento que sempre visou deixar ali.
Aqui, em específico, o principal exercício é com os estereótipos, do filme de assalto e das etnias vistas pela lente do cinema americano. Com o gênero, Lee faz questão de intensificar estereótipos dos mais clássicos desse tipo de filme, como se essa extrapolação servisse para despistar o espectador mais desatento, enquanto o diretor insere sua tese racial. Para pensar estes clichês de heist, "Inside Man" tem as tradicionais ligações de negociação entre policial e assaltante, tem um vilão genérico e caricato, mas que convence simplesmente por não esperarmos nada demais dele, além de ter uma pinta meio personagem de Agatha Christie que o deixa mais divertido que o padrão. Lee busca os olhares canastrões de seus assaltantes, suas reações ao encontrarem uma joia ou ao bolarem mais uma etapa do plano; nesses momentos, a trilha sobe e os close ups intensificam momentos chave que o gênero já assimilou para si. Desse modo, por mais que Lee esteja fazendo um anti-heist, um filme de assalto que no final não entrega assalto nenhum, que em nenhum momento ultrapassa a linha da expectativa, ele jamais rompe com as convenções mais básicas, essencial para manter uma ligação com um cinema de entretenimento típico do cinema de seu país.
Já ao trabalhar as etnias dentro desse cinema, Lee inverte papéis durante toda sua história. O negro investiga o branco assaltante, o homem com traços árabes é refém, o judeu é um dos suspeitos e a albanesa é quem ajuda a avançar em certo momento da resolução do crime. A mulher branca - Judie Foster - que aparenta experiência e confiança, no final se mostrou inútil e incapaz de conter as intenções de uma dupla que por mais que inimigas se junta por um motivo em comum. A questão racial é óbvia e constante no cinema do diretor e aqui, como em diversos de seus longas, ele trabalha a relação dos estereótipos de raça com sua representação no cinema de massa. Principalmente ao pensar nesse filme de 2006, quando o entretenimento americano já está a todo vapor reproduzindo racismo e preconceito pós-11/9.
Borat: Fita de Cinema Seguinte
3.6 551 Assista AgoraBorat está sempre buscando o limiar entre o encenado e o real - abusa dessa dúvida para tentar consolidar sua proposta, pois ao mesmo tempo que especulamos se aquela pessoa e aquele diálogo são espontâneos ou roteirizados, já estamos sendo impactados pelo que o filme propõe: o absurdo, mais do que no diálogo e pessoas em si, está na possibilidade de algo tão repugnante poder ser real no nosso 2020. O enquadramento supõe que a cena possa ser ensaiada, a naturalidade leva o momento para um tom mais realista, de câmera escondida - Borat é basicamente uma sequência de esquetes neste sentido ligadas por arcos, aí sim transparentes em sua encenação, que não interessam e não impactam.
Poderia ser interessante se saísse alguma força dessas esquetes que flutuam entre o captar o lado sombrio da sociedade e encenar o que sabemos que pode ser real, entretanto já chegamos em um nível de consciência dos problemas apresentados nos EUA de Trump ou no Brasil de Bolsonaro que instigar os cidadãos a exercitar seus absurdos já não revela choque nenhum. Sabemos dos problemas que existem, revela-los já não basta; e quando o filme tenta ir além destas revelações, soa tosco, superficial e nada caótico. E nunca, nunca mesmo, engraçado.
Cuidado Com Quem Chama
3.4 630O isolamento e o encontro do horror nos espaços domésticos que viraram prisão do dia a dia. Dos primeiros filmes dos muitos que virão contextualizados na pandemia, "Host" localiza seus medos nos cenários e nos objetos que tomaram a vida dos personagens presos em casa pelo lockdown, traz o terror de dentro das casas e das pessoas e ignora completamente o outro terror que está acontecendo do lado de fora, no mundo. Um filme de pandemia que mal fala da pandemia, o mínimo necessário pra se contextualizar historicamente. Infelizmente o desktop horror acaba sendo mais uma escolha situacional, que permite o encontro devido ao distanciamento, do que uma escolha formal que é explorada em seu máximo. Mesmo que as ideias de filtros e fundos de tela do zoom acabem sendo utilizadas de maneira bem criativa, as limitações e oportunidades que o gênero abre pra serem trabalhadas são bem pouco aproveitadas aqui, o foco em cada câmera como bem desejar, funcionando como close ups e cortes é muito prático e limitador dentro de um gênero que tem como maior recurso as infinitas possibilidades de uma tela de computador. Ainda estou na espera de um autor que disseque o máximo das possibilidades de um desktop horror, indo além dos horrores vindos da queda de internet, defeitos de som e profundidade de campo de uma webcam.
63 Up
4.3 1Já que o próximo demorará mais 6 anos pra sair, vou aproveitar a página desse filme pro review do projeto como um todo. A Up Series surge com uma premissa até que fraca pro modo como pensava em sustentar sua tese.
A proposta era analisar as opções e caminhos de vida de pessoas comuns da Inglaterra que perteciam a classes sociais diferentes e, por isso, analisaríamos como cada classe possibilita vidas diferentes e também se há mobilidade de classes na Inglaterra dos anos 60 em diante. Arrisco a dizer que com o passar dos anos, os próprios criadores entenderam que a dinâmica de voltar a cada 7 anos para fazer algumas perguntas e pontuar como estava a vida de seus participantes não era o modo mais efetivo de obter as nuances das diferenças de classe, pois há na vida uma infinitude de escolhas e dificuldades que o projeto não consegue captar por existirem na elipse entre um filme e outro. Justamente nessa fraqueza que a série encontra um olhar e uma análise muito mais instigante e que sustenta tudo até essa edição 56 anos depois. Nicholas, um dos participantes, parece ser dos únicos que realmente entendem porque as pessoas se interessam pela proposta. É claro que criamos vínculos com alguns deles, temos nosso preferidos e alguns que soam indiferentes, mas o que mais fisga nosso olhar é a simples passagem do tempo. É o corte seco entre um plano do filme anterior e a "revelação" de como está o entrevistado nos dias atuais. O "choque" que a passagem do tempo traz na montagem chega a ser tão revelador quanto as perguntas feitas por Michael depois que a câmera nos apresenta ao entrevistado da vez. A força da Up Series está em contar histórias banais, talvez parecidas com as nossas, ou não, mas que captam a simples existência de pessoas. Está mais distante de um voyeur e mais próximo de um Boyhood talvez. O filme ganha ao evidenciar o tempo da maneira mais simples possível: a comparação de planos de épocas diferentes.
Não interessa tanto se a personagem rica se rebelou e depois voltou a vida de alto padrão ou se o jovem do campo virou doutor em Física e se mudou, o que dá força a Up Series é encontrar pessoas que se disponibilizam a serem "cobaias" do simples registro de seus envelhecimentos, "cobaias" de uma curiosidade quase que inexplicável que temos pela vida alheia. As perguntas de Apted reforçam como o interesse é muito mais pelo banal e comum do que pelo específico de cada pessoa. Pouco se pergunta sobre suas opiniões políticas ou assuntos datados do momento presente, o interesse se direciona muito mais a questionamentos de "você quer ter filhos?", "seus pais já morreram?", "você está ficando doente?" etc. pois são vivências quase que inerentes a vida de qualquer pessoa de nossa sociedade e é justamente as mudanças de opiniões, os acasos e as surpresas que nos atraem. É voltando a vidas comuns que lembramos de tudo que já sabemos, mas que vistos periodicamente nos forçam a enfrentar: você envelhece e o acaso sempre vence.
Por fim, uma pena o formato ser tão quadrado e encaixado para funcionar como programa de TV. Tantas as possibilidades que um projeto duradouro desse carrega, mas a necessidade em sempre voltar aos programas anteriores e seguir a mesma fórmula por mais de 50 anos é um tanto quanto frustrante.
Tim Maia - Não Há Nada Igual
3.6 593 Assista AgoraImpressionante como qualquer comentário, positivo ou negativo, sobre Bohemian Raphsody se encaixa perfeitamente em Tim Maia também.
Joias Brutas
3.7 1,1K Assista AgoraO filme inicia registrando um trabalhador ferido sendo carregado pelos seus colegas na Etiópia e ao adentrar a caverna na qual esses trabalhadores atuam, encontra-se uma pedra de beleza inigualável. As câmeras dos Safdie a penetram e acompanhamos uma pequena viagem mística por dentro do objeto, com formas abstratas, cores e sons que nos remetem a algo onírico e sensorial. Ao “sair” pelo outro lado, caímos de cara com um aparelho médico de ponta, que examina o personagem de Adam Sandler em uma colonoscopia. Mais que uma rápida e poderosa conexão entre as duas realidades que acabam sendo comparadas pela montagem e suas condições de desenvolvimento divergentes, esse mergulho pela pedra - que seria o ponto central do filme - me remete a uma escolha tão poderosa quanto a orelha em Blue Velvet de Lynch. O filme de Lynch começa observando um típico subúrbio americano no qual tudo parece comum e estável, um homem regando o jardim em mais um retrato normal do american dream; entretanto, Lynch logo acha uma orelha decepada no meio da grama e, ao passar por dentro dela, também passa por um “portal” que o leva ao submundo assombroso do restante do filme, o qual desmonta esse certo otimismo retratado no início do seu filme. Aqui, o efeito é parecido: mergulhar pela pedra e encontrar do outro lado Adam Sandler, é o portal que os Safdie precisaram passar para entrar de vez na realidade nervosa que o protagonista vive, desmontando, assim como Lynch, ideais da sua época durante as próximas horas.
Howard Ratner vive às custas de um dinheiro que não existe. Sua rotina é a pura especulação, pois a cada item que adquire o personagem não poupa tempo em penhorar para ter mais dinheiro em mãos e usar isso para outros investimentos, sem nunca sair desse ciclo frenético de nunca ter, mas sempre esperar ter múltiplas quantias desse valor nos próximos minutos. Ao encomendar a tal pedra etíope que em sua cabeça vale milhões de reais, Ratner acredita ter encontrado seu pote de ouro, ainda mais quando Kevin Garnett fica maravilhado por ela e acredita que tira dela forças para melhorar seu desempenho nas finais do basquete. A ironia dessa relação de crença entre Kevin e a Black Mamba é encontrar esta mesma iniciativa em Ratner, só que com o dinheiro - ou melhor, com a ideia de dinheiro. O filme dos Safdie capta esse capitalismo financeiro desenfreado dos day traders, do mito do enriquecimento fácil com investimentos e da especulação financeira após uma das suas maiores crises. Ratner nunca chega a usufruir do dinheiro que ganha, mas sua crença de que ficará rico e de que seus investimentos valerão a pena é tão subjetiva quanto a crença do jogador de basquete com seu desempenho melhorado por ter uma pedra em mãos. Os diretores comparam, silenciosamente, durante seu filme, uma mística mais pura e tradicional de nossa história como sociedade com uma nova mística contemporânea: a do capital, das ações, do não visto, do não materializável caráter do dinheiro. Quase que absurdamente, a mística primitiva parece mais palpável do que a de hoje.
A especulação é a peça motriz desse cenário capitalista e dessa Nova York que produz todos os interesses que os Safdie articulam em seus filmes. A vida de judeus nova iorquinos rodeados por um pulsar de culturas, hábitos e ritmos é materializado no que os diretores exprimem em tela. Ao filmar uma biografia de seus pais e deles quando crianças, de uma drogada que interpreta a si mesma, de ladrões e agora de agiotas, os Safdie estudam a relação de pessoas comuns com o capitalismo do século 21, mas também sempre estudam a relação deles com a geografia que os permeia - a Nova York na qual cresceram. Esse frenesi que mistura povos, que nunca dorme e que estimula uma vida de correria eterna - de geração a geração - está também expresso em cada plano de Uncut Gems. Seus personagens falam, mas ninguém ouve um ao outro, suas conversas são sempre rápidas e todos parecem atrasados para o próximo compromisso. A hiperatividade das ações de Ratner ditam o ritmo do filme e angustiam qualquer um que acompanhe esse confronto do protagonista versus a lógica. Sabemos o buraco que o personagem de Adam Sandler está se enfiando e é justamente essa percepção que temos, mas ele não, que gera parte da ansiedade que Uncut Gems proporciona. Nunca me saiu da cabeça, desde que vi o filme lá pelos dias em que foi lançado, o modo como ele dialoga com a música trap, em sua forma e em sua estética.
Esse gênero do hip hop nascido na Atlanta da década de 90 e lapidado até seu auge atual, na música ocidental, é a expressão máxima da juventude dessa etapa do capitalismo, cantada junto de uma ansiedade latente em cima de um beat tão hiperativo quanto a montagem dos Safdie. São músicas que defendem uma ostentação do consumo e da necessidade de se portar itens de valor com um beat que desafia o rapper a se fazer entender, de tão rápido que as palavras vêm e vão. Hoje, não há nada que absorva tão bem o ambiente urbano caótico que nossa geração cresce quanto esse nicho do rap. O que seria Uncut Gems se não essas próprias regras do trap no Cinema? A mesma mentalidade do jovem trapper que fala de tatuagens, roupas e jóias enquanto se embaralha na correria do seu meio é o ~mindset que conduz Ratner a cada plano na busca pelo próximo cifrão, enquanto também se perde na agilidade das suas ações que não o permitem raciocinar. São artes que brotam do mesmo substrato, frutos de um ideal hedonista e instantâneo, onde tudo está no agora, onde se opta pelo risco incalculável, onde “cisnes negros” são cada vez mais comuns, e com isso a sensação de imprevisibilidade nos faz largar qualquer tentativa de previsão ou estabilidade; artes que refletem uma agilidade das relações que se materializam na forma de palavras ou de planos.
Por fim, os irmãos compilam essa enxurrada de símbolos dos seus Estados Unidos em uma estética que porta as mesmas bases que o tema que buscam dissecar. A estética de Uncut Gems é tão especulativa e urgente quanto a rotina que move Ratner. Seus planos mal terminam antes do outro começar, as expressões são mostradas tão rapidamente que quase não absorvemos o que cada personagem sente, e, se tivesse um tempo mais longo para apreciar cada momento que filmam, perderíamos a próxima dúzia de planos que não aguentam a agitação que atua naqueles locais. A trilha é tão mística quanto as crenças de Kevin e de Howard, as cores que vemos fluindo por dentro das pedras só carrega essa sensorialidade tão importante por que o que ouvimos nos ajuda a embarcar nessa levada. É dos filmes que mais concretizam um modus operandi de toda uma geração e de um sistema econômico. Se os Safdie iniciam seu filme observando a Etiópia, é porque toda a ganância e ostentação que vemos depois têm suas raízes na rotina daqueles trabalhadores fraturados e ostensivamente explorados por potências que nunca os contataram. Não se restringe aos temas, está tudo na linguagem que os irmãos articulam em cada peça do seu filme. Místico.
Bom Comportamento
3.8 392Cinema especulativo que sempre estuda uma saída, uma solução, mas nunca a acha na prática. Penso que essa seja a característica dos filmes dos Safdie que mais os coloquem como motores de adrenalina e ansiedade, seus personagens vivem a mil por hora, mas sempre correm sem meta, sem ter onde chegar e com pouquíssima probabilidade de terminar em um final satisfatório. Nessa Nova York do capitalismo falido e tardio, os diretores observam os desajustados que sem nada a perder arriscam suas últimas fichas no risco com chances infinitesimais de dar certo. A protagonista de Heaven Knows What corre pela cidade em busca de drogas e distância dos seus problemas, mas parece andar em círculos; Pattison, em ritmo frenético, busca uma fuga impossível, passando por diversas doses de otimismo ao achar uma suposta solução para seus problemas; Sandler vive na base da especulação e do incerto, suas finanças são colocadas a mando de apostas e empréstimos que nunca dão o retorno que colocaria um ponto final nessa vida. O fetiche das cidades oitentistas, marcadas pelos neon e regidos pelo pop sintético, é reproduzido só que sem o glamour, essa estética, trazida para o contemporâneo, é ressignificada, hoje dialoga muito mais com o trap, por exemplo, do que com a aura daquela época. É a estética que conversa com a rapidez, com o dinheiro fácil, com os riscos em busca da riqueza e das drogas sintéticas como estímulo. Isso dita uma vida agitada e gananciosa que mascara a falência dos meios a sua volta e a sua posição de primeiro alvo desse sistema falido. É o anúncio do fracasso sistêmico em frente a holofotes de neons vibrantes e ritmados por batidas 180bpm ou algo assim.
O capitalismo é tão decadente que o MacGuffin é uma garrafa PET cheia de ácido. Isso é absurdamente genial.
O Prazer de Ser Roubado
3.2 16Muito mais um mumblecore de Alex Ross Perry, Noah Baumbach ou outro desse cinema indie americano recente do que se imagina quando pensamos no cinema dos Safdie hoje em dia. Os filmes dos irmãos tem duas óticas principais que eles abordam quando estudam essa Nova York que cresceram: a correria e agressividade urbana contemporânea e a ingenuidade apaixonada de quem cresceu lá e admira muito essa cidade que pulsa por estímulos criativos e pessoas das mais diversas formações. Recentemente eles parecem ter encontrado mais inspiração e potencial em discutir esse frenesi moderno, a velocidade como as coisas acontecem e o modo como captar isso através das câmeras, por vezes montando freneticamente seu filme(Uncut Gems), por vezes recusando o corte, mas compilando muitas informações em pouco tempo para reproduzir a mesma ideia de ritmo acelerado(Good Time). Entretanto, nesse começo de carreira, seja nesse longa, seja em alguns de seus curtas disponíveis, os Safdie evidenciam esse outro prisma de NY deixado um pouco de lado na filmografia recente.
Essa estética(?) mumblecore condiz com uma perspectiva "vazia" de se viver, de buscar o interesse nas situações sem motivos evidentes, em acompanhar personagens que se sujeitam a seus estímulos e não pensam muito antes de agir. Personagens que preferem experimentar e até burlar leis para atingir vontades que surgem em seus interiores. O mumblecore, que aproveita de uma autenticidade, do improviso, da sensação de naturalidade e ausência de formalismo, se encaixa muito bem nessa visão que "The Pleasure of Being Robbed" quer chegar ao captar Nova York. Eleonore é crível em suas atitudes, pois consegue passar - pelo seu modo de olhar o mundo e se comportar e interagir com as outras pessoas - a vulnerabilidade que a faz ceder a impulsos cleptomaníacos de seu interior. Essa impulsividade é totalmente exposta em tela pelo modo como a unidade que o mumblecore e seus efeitos já citados ajudam a criar. É muito comum assistir a um desses filmes indies americanos com essa pegada e sair em dúvida se o diretor realmente concretiza algo em tela, ou se ele somente utiliza dessa estética em alta para propor algo que soe como sugestivo, mas que não possui muito a dizer. É uma linha tênue entre trazer ao mundo uma visão leve e despretensiosa do que se filma e buscar tanto essa falta de pretensão e acabar vazio de sensações. E é isso que mais me chama atenção no filme dos Safdie, é dos usos dessa estética que mais fazem sentido dentro do que é proposto. Eleonore parece verdadeiramente interessante e convincente, sua relação com o espaço e com o que vale a pena ser vivido é preenchido pela forma como os Safdie filmam - a distância do que é filmado e o zoom como meios de simular quase que uma câmera escondida que propõe uma observação distante e verdadeira da personagem, o uso de não atores etc.
A perspectiva de facinação pela cidade está em todos seus filmes; impossível ver isso aqui e imaginar o que eles se tornariam, mas já dá pra sacar interesses que caminham com eles até hoje e provavelmente por mais muito tempo. Dos cinemas que mais entendem a atualidade e entregam isso em forma de filme.
Traga-me Alecrim
3.7 6Filme que capta muito bem o que já vinha sendo o principal interesse dos Safdie desde seus primeiros curtas, principalmente em "John's Gone", que é o desconforto, o estresse inerente a vida urbana e corrida dessa Nova York "pós moderna" - o que chegaria em seu ápice em Uncut Gems. Interessante também entender o filme como um relato pessoal dos irmãos com seu pai e tirar daí o background de onde ambos vieram, justificando o tipo de personagem no qual eles se interessam em seus filmes. Assim, tanto em forma, quanto em temas, "Daddy Longlegs" já é absurdamente autoral e possui o que mais marca o cinema dos irmãos. A fotografia suja, a câmera na mão e os close-ups são fundamentais pra potencializar o ambiente que o filme se passa, suas lentes absorvem a crueza e o desespero daqueles locais e personagens, dando espaço para as expressões de pânico que a vida vai proporcionando pro protagonista e localizando eles no meio dessa correria e mal estar da cidade contemporânea. Curioso de perceber também como os Safdie sempre que podem se aproveitam de um momento mais onírico, aqui o mosquito, em Uncut Gems a mística da pedra por exemplo, pra intensificar o que vem se passando na mente do personagem. A fixação de Adam Sandler pelo potencial comercial da joia, a loucura de Lenny com a distância dos filhos etc. Por fim, os Safdie tem um cinema muito consolidado já, em ideias e em mise en scene, buscam a cada filme trabalhar uma nuance de Nova York: a família, o crime, o mercado, a especulação, o frenesi moderno, os junkies; e articulam daí sempre uma posição muito forte pela linguagem, cada filme tem um espírito muito próprio, aqui o modo cuidadoso como representa o pai, na sua dualidade de defeitos absurdos e carinho genuíno pelos dois filhos, é bem peculiar do cinema que entregam.
Arábia
4.2 167 Assista Agora"E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego"
O que a música de Chico e Arábia têm em comum é a dualidade entre um protagonista comum, facilmente reconhecido, e que busca uma vida normal, sem pretensões, sustentado pelo amor padrão de filhos, namorada, esposa e afim; e a realidade crua da luta de classes e o papel descartável do trabalhador na máquina do capital. Em Construção, a desumanização da morte do operário, tratada apenas como um obstáculo na rotina de quem passava pelo local rumo a suas atividades incomoda porque nos acende a mesma luz que Cristiano captou, quase como uma epifania, no fim do filme. Primeiro, a criação da simpatia pelo personagem; depois a tomada de consciência de seu papel descartável e nosso incômodo com tal realidade; por fim, nossa própria ascensão de consciência e identificação na mesma posição social de Cristiano. Uchoa não busca o ódio de classe e a tomada dos meios de produção como saída, embora o assunto de greves e sindicatos perpassarem o filme, mas justamente a sensação de injustiça entre a vida cotidiana e a repentina lembrança de nosso lugar nessa roda. Mais dolorido que a própria diferença de classe, é recordar que por trás de cada proletário tem uma vivência muito única e interessante de se conhecer, mas que diariamente é massacrada e tirada de qualquer individualidade. A despersonalização que o trabalho causa, o mito de trabalho como algo que enobrece posto em ruínas.
Assistindo a dor dos outros
3.9 2Todd Haynes's Safe intesifies.
Dissecação da autoridade, da imagem e do discurso. O contraponto entre o que fala os médicos e o que sente as "pacientes". O excesso de imagens que tira qualquer poder de comprovação, não há mais poder no que vemos, tudo é volátil e manipulável. A conspiração está em tudo. Retroalimentação do vídeo ensaio nessa aventura de concretizar o que foi sentido pelo que viu, mas não se pode acreditar.
As feridas que a autora sente na pele são dignas de uma ideia de Cronenberg.
Ad Astra: Rumo às Estrelas
3.3 850 Assista AgoraAnotações que tinha feito da primeira vez que vi e não coloquei em lugar nenhum, dessa vez gostei menos do que da primeira, mas foi mais culpa minha:
-Jornada de aceitação de um luto, de se autoconhecer e aceitar a partida de alguém, começar a trilhar seu próprio caminho e cortar o cordão que liga os dois para que seja possível recomeçar.
-Sociedade que só admite pessoas frias, que não se alteram em nenhum tipo de situação, que mede cada reação química dentro do corpo humano e transforma o ser em uma máquina que segue algoritmos. Sociedade que acaba renegando as emoções e o que nos faz humanos, entra em confronto com nosso eu mais primitivo (o primata, a ira) e por isso gera tanta destruição a quem está em volta.
-Sociedade arrogante que esqueceu de seus princípios e do que seria mais importante a ela em troca de uma busca por conhecimento que mais afasta do que aproxima. A arrogância humana nunca contente com seu estado faz com que menosprezemos nossos filhos, mulher, família em busca de uma resposta que não existe. Quase um Shyamalan, a exaltação de valores tipicamente americanos, cristãos e ocidentais que estariam em degradação em uma sociedade secular, humanista e científica.
-Jornada de autoconhecimento, ir até suas profundezas para finalmente curar feridas e se sentir disposto a começar a viver sua vida. às vezes é necessário mexermos no nosso eu mais interior para arrumar a casa e conseguir dar um start na nossa vida independente. o scifi como um psicólogo.
-Scifi é isso também né, transformar um problema tão interno e pessoal em uma jornada pelo espaço, pelo conhecimento; fazer das nossas barreiras humanas as barreiras do impossível, dos limites que nosso conhecimento encontra.
A Cidade é uma Só
3.9 27Gosto como o filme em nenhum momento precisa levantar verbalmente a questão que dá o título. A câmera de Queirós observa, relata detalhes da vida desses 3 cidadãos comuns da Ceilândia e esse cotidiano é o que interessa, sem uma pose de objeto de estudo, sem uma tentativa de distanciamento entre câmera e quem é filmado; Adirley encontra intimidade e harmonia com quem filma, há conversa entre os lados e captar o ordinário nos leva a responder o que seu filme questiona sem verborragia. Não é preciso nem filmar o "outro lado", não é necessário a oposição com moradores da Brasília do plano piloto para causar choque e evidenciar a desigualdade. Queirós filma o que conhece, o que está acostumado e a realidade daquela periferia diz por si só. O interesse pelo processo de expulsão dos moradores para o periférico, o sonho distante de entrar para a política para buscar justiça e o dia a dia de alguém que tenta algum sucesso financeiro em meio as dificuldades. Sem precisar perguntar, o diretor nos dá a resposta.
Amantes
3.5 340Créditos que vêm com a força de um soco na cara. Como dói.
A Vastidão da Noite
3.5 575 Assista AgoraNa tentativa de fazer da oralidade e da crença nas histórias que ouvimos o mote de The Vast of Night, Patterson quase se recusa a propor algo pela sua encenação. Tudo que o diretor filma se limita meramente a sua função narrativa, mas não há nada que concretize uma unidade estética em seu filme. O mais sintomático pra mim, é claro, são as cenas dos relatos dos personagens secundários; não há nada ali que tente dar peso ao que ouvimos, seja a tela em preto, seja o close up no rosto da senhora durante toda sua história. Essa recusa em usar do visual para propor uma ideia pode parecer uma visão apaixonada por histórias, mas não por Cinema. Shyamalan nunca precisou dessa transgressão cinematográfica para passar sua fé e paixão pelo que ouvimos, pelo contrário, sua encenação eleva cada pedaço de sua filmografia a níveis superiores. Só escrevendo isso aqui já me vem a cabeça diversos planos de Sinais e Dama na Água, por exemplo. E sabemos como o homem ama histórias.
A montagem que deveria salientar o frenesi do momento assustador em que vivem não encontra um ritmo adequado e acaba oscilando ao decorrer do filme; o neon e o perfil de subúrbio do local, típicos de Spielberg, King e tudo que Patterson bebe como referência, simplesmente não funcionam, pois o diretor não filma nada que exercite essa ideia e trabalhe com o espaço tão rico que tinha em mãos. O senso de emergência parece não deixar que o diretor explore aquela comunidade, as pessoas e o perigo em que estão passando. As constantes remodelações de expectativas que se alteravam a cada informação que recebiam não tem tempo nem capacidade de serem trabalhadas. É a falta de soluções visuais que o diretor possui para propor sua ideia em imagens que deixa o filme com a sensação de que sabemos onde ele quer chegar, até porque suas referências são visíveis, mas que não concretiza nada além de um pastiche de terror Twilight Zone com carinha de pipoca oitentista. Talvez Patterson tenha tanto amor pelos relatos e contos orais que se recusou a fazer de seu filme...um filme.
Dado tudo isso, arrisco a dizer que isso aqui se daria muito melhor em outra mídia, um podcast talvez? É a resposta mais óbvia. A proposta é interessante e as únicas coisas que valem algo aqui são realmente o clima que o relato de Bill pode trazer. O cara filma em seu clímax uma nave espacial e consegue fazer isso sem entregar um pingo de tesão. Se a invasão alienígena simboliza de alguma forma o apagamento do rádio e seus restos como fósseis de uma época passada com a chegada da TV (como ele precisa tanto enfatizar), o diretor perdeu a chance de despertar qualquer interesse de seus espectadores pelo que ele tenta homenagear.
A Vida Invisível
4.3 642Utopia do encontro às avessas. Enquanto essa mitologia clássica do Cinema se concentra na consciente efemeridade da relação entre duas pessoas e busca a intensidade desse momento e as marcas que essa brevidade deixa na vida de cada um, como Encontros e Desencontros, Comrades, Desencanto, Carol, entre outros; Vida Invisível se assemelha mais a Retrato de uma Jovem Em Chamas mesmo que neste ainda haja tempo para viver o amor impossível, pois é na imposição social que despedaça as oportunidades na vida daquelas mulheres que o filme encontra sua força motriz. Os primeiros se concentram no pequeno momento juntos, os últimos na longa vida sem a possibilidade de celebrar a união.
O filme vai além de uma visão feminista que denuncia um Brasil conservador da década de 50 e que obviamente traz as discussão para os dias atuais. Aïnouz defende em sua mise-en-scène uma ligação subjetiva entre as irmãs, um laço nunca rompido que conecta ambas durante suas existências, há entre elas uma conexão irracional e muito além do palpável que gera toda a dramaticidade de Vida Invisível. Ao montar paralelamente os acontecimentos na vida de Eurídice e Guida, o filme valida esta semelhança que independe dos desafios diferentes que cada uma encontra, mesmo que frutos do mesmo patriarcado, pois é a força pela procura e pela manutenção das memórias que dá vida a cada uma dessas histórias. Em "Retrato", a memória é o local protegido onde o casal do filme encontra a possibilidade de preservar seu amor em um universo que não aceita sua natureza. Aqui, a memória e o exercício de cultivá-la por meio de cartas é o hábito que perpetua esse laço que o filme acredita existir, essa ligação familiar e muito além disso. E claro, o Mito de Orfeu encontra na memória da última olhada, daquela virada pra trás, o combustível para continuar em frente. É optar pelo passageiro, no caso de Orfeu que tinha essa escolha, mas guardá-lo para sempre dentro de si. O principal do filme é isso, é a potência que essa conexão carrega as duas vida a frente e a crença eterna que um dia o encontro há de chegar.
Por fim, também é muito fácil lembrar do cinema de Todd Haynes ao ver "Vida Invisível", principalmente "Carol", mas com uma premissa que já se encontrava em "Far From Heaven". É o resgate de um Cinema Clássico, do melodrama e da Utopia do Encontro, de dialogar com as regras dessa tragédia, com o formalismo do período e ressignificá-lo em seus filmes. Haynes entrega em Carol uma possibilidade de burlar o trágico que suas inspirações concretizavam, "Vida Invisível" segue a tradição à risca. E vai além, leva a impossibilidade tão a sério que nem a efemeridade dos encontros em restaurantes/cafés típico de "Carol" e de sua base "Desencanto", Aïnouz permite. O desfecho com Montenegro não é só um show off de surpreender o público com a tão conhecida atriz, nem de abusar da possibilidade de poder tê-la em cena. Fernanda carrega ali na sua gigante atuação uma vida inteira que Carol Duarte desenvolveu nas mais de 2h de filme. Aïnouz, para mensurar o peso que sua história gera em sua personagem principal, entrega a bagagem para alguém do mesmo peso, para que possa carregar.
Kon-Tiki
4.0 11Totalmente compreensível o apreço de Bazin por "Kon-Tiki". Filme que carrega em suas imagens (ou na falta delas) a dificuldade e os perigos da travessia. Pertence a esse interesse científico e etnográfico do pós segunda guerra nos filmes reportagem, mas que também abre margem para a articulação do autor que vivenciou a aventura. Não é um vídeo do Telecurso 2000 te ensinando sobre a relevância dos ventos e marés para as viagens pré-históricas, é o relato, narrado e filmado, do inacreditável feito de seus autores, utilizando da credibilidade das suas imagens para validar seu discurso, e da montagem de suas gravações para transpor suas memórias.
Meu Tio
4.1 115Mon Oncle e Parasita - Comédias de costumes que opõem as classes sociais
Que filme incrível em sintetizar toda sua tese na arquitetura e nos ambientes em que suas cenas se localizam. A vivacidade, a agitação e a integração entre os moradores do bairro em que Hulot mora, apresentado tão bem quanto a vila de "Carrossel da Esperança", já denotam toda a estrutura e as características principais que dominam aquele local. Enquanto isso, a casa burguesa é tomada por aparelhos nada funcionais, mergulhados em um ambiente frio e pouco acolhedor que ao ser revelado aos poucos por Tati demonstra e reforça a ideia de uma casa pouco confortável, mas montada pelos seus donos para ser um objeto de poder e exposição para os outros que a veem. Diversos aparelhos desta casa são símbolos de uma inovação brega e pouco efetiva que a família rica implementa em seu lar, seja na intenção de automatizar os processos domésticos, seja para significar luxo. Mas nenhum é tão enfatizado e trabalhado por Tati quanto o chafariz de peixe na entrada da casa. Objeto de cuidados especiais dos donos, a fonte de água é ligada por eles sempre que alguém toca o seu interfone, na expectativa de poder esbanjar este aparelho para quem entrar na casa; porém, caso a pessoa seja algum funcionário ou membro de uma classe abaixo da família, o chafariz é logo desligado pois não há o interesse em impressionar esse tipo de pessoa.
Tão representativo e cínico a esta posição burguesa de gastar dinheiro na necessidade de impressionar seus conhecidos que compartilham da mesma situação financeira, o diretor faz a escolha perfeita em materializar toda essa dinâmica em um objeto como um chafariz. Um aparelho inútil, sem função evidente que somente possui como "benefício" um embelezamento do ambiente em que se encontra, um mero artefato que reproduz, ao existir, a mensagem de que seu dono tem dinheiro suficiente para ter algo sem função embelezando sua casa. Mas Tati vai ainda mais além, pois ao desvendar aquela casa, ele já deixa evidente a falta de coerência e beleza nos objetos que compõem os cômodos, revelando uma falta de noção estética daquela família que empilha objetos somente na intenção de se mostrarem ricos, mesmo que não haja senso estético nenhum na mistura entre eles. Assim, essa dinâmica de oposição entre dois ambientes totalmente diferentes, tanto no visual quanto no comportamental de seus membros consolidam os palcos pelos quais o personagem de Tati vai interagir com toda sua inocência e ali notabilizar as diferenças de comportamento de cada classe social.
E nesse uso de uma comédia de costumes para rivalizar e comparar duas classes sociais distintas utilizando da casa como signo primordial dessa disparidade, fica impossível não lembrar de "Parasita", pelo menos até a virada dramática do filme coreano. No filme de Tati há, ainda mais que uma comédia de costumes, uma herança das comédias de Chaplin, Keaton e outros mais interessadas nas gags de humor físico, mas que ainda assim, ao filmar os hábitos de cada classe, acaba por construir seu humor nesses costumes. Por se levar mais a sério, a casa de "Parasita" acaba sendo quase que o oposto de "Mon Oncle", um ambiente totalmente funcional e luxuoso que justamente pela sua beleza e tamanho acaba por significar a discrepância com a realidade dos pobres, mas que também materializa o mal caráter burguês em sua construção. O filme de 1958 aproveita da feiura da residência, um ambiente que me lembra muito a casa do escritor de "Laranja Mecânica", para começar a tecer suas ironias e piadas com a burrice da família burguesa, vide a cena do carro na garagem. E isso também é algo que concilia os dois filmes, retratar o quão limitadas são aquelas pessoas e deixar isto claro quando elas interagem com os mais pobres, seja a família principal de "Parasita", seja Hulot em "Mon Oncle"; em ambos isto e a posição de classe burguesa como pouco produtiva, mas sim acumuladora de capital ficam clara por meio de suas conversas e ações com os de baixo. São os representantes dos pobres se safando de problemas com os ricos ao usarem da sua inteligência e são cenas como a do conserto do chafariz feito pelo empregado do dono da casa que reforçam essa lógica.
Por fim, assim como Joon Ho conseguiu alcançar em seu filme, Tati também trabalha sua ideia de maneira tão assertiva por meio do ambiente que cria para posicionar seus personagens, extraindo muito mais subtexto daí do que qualquer diálogo que pudesse ser dito em tela. Cada casa desses dois filmes exprimem o modo de agir das classes que as possuem e essa discrepância vista em tela já deixa ao espectador tudo que precisa para ser concluído. Além de que, Tati e Ho, exercitam seus gêneros de escolha dentro desse pano de fundo sem nunca deixar que esse lado crítico seja mais importante que as convenções que os gêneros buscam possibilitar: o suspense e terror em "Parasita" e o humor físico e ingênuo que Hulot encontra em cada ambiente que passa. E é nesse equilíbrio tão bem orquestrado que ambos filmes resistirão ao tempo como obras gigantescas que são.
O Círculo Vermelho
4.1 47 Assista AgoraMelville aqui e em The Samourai abre o filme com frases que já premeditam muito do que vai acontecer em cena. Dado a ideia da convergência dos homens dentro do tal círculo vermelho, o filme todo se torna a iminência do encontro entre as partes opostas: o trio de ladrões e o policial. "Le Cercle Rouge" sustenta todas as escolhas de Melville que fazem dos seus filmes de gangster ter toda essa elegância, formal e visualmente. Seus personagens possuem um estilo muito intimidador e ao mesmo tempo elegante e desejável, são meio que um Tyler Durden de sobretudo e chapéu, seguros em alguns ideais de gangue e que encontram parceiros na sintonia de uma camaradagem que se justifica nas ações de um para o outro, salvando a vida do parceiro sem nenhum motivo aparente, somente por ambos fazerem parte do mesmo mundo. A frieza e concentração com que executam seus atos e o entrosamento que desenvolvem tão rapidamente consolidam o nível de ameaça ou de profissionalismo que aqueles caras tem no ramo. A inteligência e capacidade do atirador de elite, o modo como os policiais tratam Vogel e a habilidade do protagonista para despistar nas paradas policiais funcionam justamente como demonstração de como eles são bons no que fazem. Tão bons que por muito tempo acreditamos que dessa vez, nesse filme, Melville dará um final de sucesso para os ladrões; só que sempre, nos acréscimos, esse desvio natural do homem pelo crime, tão martelado durante o filme, tomarecebe sua punição em um ato tão amador para ladrões tão experientes. É justamente nessa confiança demasiada que nossos personagens colocam em outros do seu meio que vem o erro, se com o atirador de elite a recomendação deu certa, na segunda vez a polícia ganhou se dia. Fica aquela sensação de: quase foi dessa vez.
Uma Loura por Um Milhão
3.7 27Um típico filme de Wilder, todas as características que marcaram os filmes do diretor são possíveis de serem pensadas nesse filme. Personagens corruptos que burlam leis ou morais americanas em busca de sucesso financeiro ou sexual, necessitando sustentar a mentira que inaugura o filme até o seu fim. Wilder, primoroso ao trabalhar esse cenário sempre, leva seus personagens ao limite do esforço para que não caiam em contradição e segurem a verdade para si; porém geralmente a redenção vem ao final em um lapso de arrependimento e lucidez moral.
Com um humor muito mais controlado do que em seus dois filmes anteriores, a parceria entre Wilder e Lemmon volta a funcionar como nos seus melhores filmes, há o equilíbrio entre a leveza que Lemmon consegue trazer as cenas ao cantarolar e dançar na cadeira de rodas com a seriedade do caso judicial tratado por Gingrich que ganha o mesmo tom que Wilder sustenta durante boa parte do "Testemunha de Acusação". É possível encontrar a relação e a subversão da ideia que Hitchcock trabalha em "Janela Indiscreta" em "The Fortune Cookie". Se no clássico de 1954 o personagem de Stewart, ao ficar imobilizado na cadeira de rodas, observava os vizinhos da janela, aqui é Lemmon que, em repouso pelo seu acidente, fica em observação pelos detetives do outro lado da rua. Em Janela, o voyeurismo do protagonista se liga à nossa passividade como espectador, característica primordial do Cinema, e nosso interesse por histórias e vidas alheias enquanto meros observadores daquela realidade sem poder de interferência. Em Fortune, Lemmon que é observado pelo detetive, pelos advogados, pela lei e pela moral; cabe a ele manipular a imagem que entrega a quem o assiste. Lemmon deixa de ser o passivo que observa vidas alheias para ser o diretor e editor da sua própria história, aqui ele ganha a vantagem de decidir o seu futuro e dos outros personagens à sua volta, resta a ele optar entre sustentar a farsa e aguentar os interesseiros que se aproximam ou expor os verdadeiros vilões e salvar a carreira de seu amigo sem peso na consciência. Se Janela é sobre o espectador, Fortune é sobre cada cidadão comum nos momentos longe da tela, moldando seu próprio filme.