Terminei essa revisão com a mesma vontade inocente de brincar sobre os móveis, escapando das criaturas no chão (ou fingindo que é lava), que me batia quando o via nas inesgotáveis reprises do Cinema em Casa. Não esperava que permanecesse tão dinâmico quanto eu lembrava, além disso, gosto como ele assume o seu lado b na homenagem aos filmes de monstro dos anos 50, dentro de uma pegada faroeste, ao mesmo tempo que tem uma noção bem spielbergiana para criar seus momentos de tensão a partir da sugestão, através de outros elementos de cena que não somente os tais vermes. Sessão vespertina das boas.
Revisto depois de muitos e muitos anos, esse filme reafirma a habilidade de Wes Craven de dar forma a pesadelos suburbanos como poucos, aqui através de uma fábula que versa sobre especulação imobiliária, distribuição de renda e luta de classes sob uma lente infantil e ilustra esses comentários sociais por meio de caricaturas de gênero – os seres que vivem literalmente “abaixo”, a caça ao tesouro, a dupla de vilões etc. É um filme frenético, que, apesar de soar redundante mais para o final, consegue manter bem o ritmo e a pegada aventuresca, sem perder de vista os elementos de horror de sua alegoria capitalista.
Dentre os filmes estrelados por Freddy Krueger, este, ao lado do terceiro, foi o que mais marcou minha infância assistindo escondido filmes de terror tarde da noite na TV aberta ou na fita de vídeo da locadora. Tenho vívidas memórias do impacto que cenas como a do velório, a da babá e a batalha final me causaram quando criança. Visto hoje, parece mais alongado do que deveria e alguns pontos soam meio frouxos, mas é um filme muito forte em reforçar sua mitologia (desconstruir para construir, como faria ainda melhor em Pânico, anos depois), ao propor uma fábula que pretende resgatar medos e pavores em suas formas de expressão mais primitivas, como as bruxas dos contos de fadas ou os homens maus dos nossos pesadelos.
É a semente de todo um universo que Guillermo del Toro viria a lapidar em trabalhos posteriores, e por isso já valeria a conferida, mas, no todo, Cronos é um filme bem desajeitado, que não tem o mesmo interesse em desenvolver os personagens e suas relações que parece ter pela concepção visual da coisa toda, o que é um problema considerando ser essa uma história que, em suma, quer reforçar laços afetivos e fazer deles uma validade “eterna” na passagem da vida, embora esse efeito emocional pretendido acabe quase sempre em segundo plano.
Mojica ainda mais disposto a explorar a figura de Zé do Caixão em uma abordagem metalinguística, para além da complexa investida que já havia feito no superior O Despertar da Besta, em um filme que vai tratar do bom e velho duelo de criador x criatura, e reafirmar algumas obsessões do diretor – mais uma vez, a despeito do que prega o famoso personagem, há uma moral religiosa por trás de tudo; não é à toa que este é, vejam só, um filme natalino e familiar. Por mais que deturpe a paisagem cristã com crucifixos invertidos, demônios e invocações, e com isso revele algo de imoral por trás dessa composição (a mãe que cede a filha num pacto, o filho de Satã que vem para selar uma união, a criança sensível e suscetível ao mal), Mojica restitui alguns dos valores tradicionais quando ressalta o contraste de sua presença desajustada naquele meio. Sempre muito interessante, ainda que não impressione como outros de seus trabalhos.
Revisto. Não precisa conhecer muito do cinema de Bergman para inferir sobre os traços biográficos do diretor na construção dos personagens desse filme, em especial a figura atormentada do artista; dilemas e inquietações que permeiam outras de suas obras e que encontram aqui um eco de terror, num pesadelo de fundo psicanalítico que personifica questões de trauma, medo e culpa em figuras disformes e cenários sombrios, e seguem uma espiral de loucura cada vez maior e mais agoniante. Nunca foi um dos meus favoritos dele, ainda acho que não é dramaticamente tão forte e suas imagens nem sempre surtem o impacto pretendido como em outros seus, a meu ver, mas é cheio de momentos isolados brilhantes, como a sequência da pescaria.
Uma revisita ao original logo após conferir o surpreendente reboot de 2021 me fez perceber o quanto esse filme é poderoso ao propor uma mitologia complexa que parte de tensões de raça e classe seculares na América assombrada pelo passado escravagista, e se apropria dessas fobias e terrores cotidianos para conceber o seu próprio universo, em que o medo que os personagens compartilham, traduzido na figura do vilão, não deixa de estar associado a uma constante de paranoia, vigilância e desprezo – por parte da polícia, das instituições judiciais, da elite – que permeia o dia a dia dos moradores daquele espaço. Cresceu mais nessa revisão e arrisco dizer que, da leva de terror dos anos 90, é um dos mais interessantes.
É um filme que se resolve dentro da própria mitologia melhor do que eu poderia imaginar, e, apesar de seus excessos, abre novas possibilidades para a construção de seu universo de terror à luz de novos espaços e perspectivas de classe e raça no espaço urbano. O novo Candyman se apropria desse processo de “limpeza” das zonas periféricas para invocar um mal que surge justo desse apagamento – um ser de ódio que se perpetua pelo ódio histórico, estruturante, manifestado aqui, simbolicamente, por essa repaginada de concreto que apenas dá uma nova cara à paisagem de casa grande e senzala. Algumas das cenas de horror – a introdução, com o homem do gancho dos anos 70, a sequência final no apartamento da crítica de arte etc. - mais bem filmadas no ano, em um reboot que, ao passo que honra o original, se mantém como produto relevante de seu próprio tempo.
Viver como um salto num abismo, uma incerteza diante de um protagonista que sempre procurou ver uma burocracia na vida e na morte, como se encaixasse peças de um quebra-cabeça pra chegar às suas respostas – não à tona ele tenta, em vão, colar os pedaços de um crânio quebrado, sem sucesso. E o amor, então, como uma força misteriosa, surreal e surtada que vem para desestabilizar as suas certezas, romper com as tecnicalidades de seu ofício e responder à racionalidade dos homens pragmáticos. Tudo isso dentro de uma mistura de tons que, embora particularmente não soe tão homogênea, sempre é hipnótica de se ver. Para futuras revisões.
Gosto de como explora o caso do enigmático bandido como parte do imaginário coletivo americano, quase como um mito tão incorporado ao inconsciente que todo mundo parece ter uma história para contar, embora esse argumento passe a ser reforçado mais para o final do documentário, quando as visões passam a se confrontar só com base em convicções pessoais; no todo, reveza entre curiosidades e informações muito superficiais, principalmente para quem já conhece a história, como uma matéria de TV esticada em um longa-metragem.
O que James Wan faz aqui é meio que invocar as mais diversas categorias do terror que poderiam caber em um filme e que compõem o repertório de um fã – assistir a Maligno é como fazer uma viagem de trem fantasma pelos subgêneros de serial killer, fantasma, monstro, demônio etc. que o diretor incorpora aqui como referência ao seu trabalho prévio e à sua própria formação enquanto entusiasta. É desconcertante e surpreendente, não pelas viradas da trama, mas pela constante mudança de engrenagem mesmo, e a liberdade com que, para o bem e para o mal, abraça os excessos e se esbalda com o universo de horror que cria.
Não gosto como toda a trama de conspiração política e construção gradativa do mistério da primeira parte dá lugar a um filme de escapada e correria sem muita personalidade na segunda metade. Sputnik até consegue estabelecer alguns paralelos interessantes entre o processo de dominação da criatura sobre sua vítima e o controle das forças militares no poder sob o indivíduo, mas essa tensão se esvazia quando o filme passa a forçar no maniqueísmo, inclusive apelando para o melodrama. O ótimo primeiro ato e a protagonista, no entanto, ainda seguram muita coisa.
É o exploitation estrangeiro típico dos anos 70 importado para nossa terra com a nossa própria definição de Charles Bronson e os códigos morais que regem o país. Tem algumas cenas sensacionais, como toda a sequência do crime na fazenda e o linchamento à luz do dia, que, para além do interessante trabalho de câmera, refletem algumas tensões históricas de cor e classe no país, implícitas no filme, mas que deixam seu debate sobre justiça um tanto mais complexo. É bastante episódico e dá os seus atropelos para amarrar as tramas, mas é um exemplar bacana de um autêntico filme de gênero do país.
De queixo caído com o quão moderno e provocativo é esse filme, quase um experimento tropicalista na maneira como incorpora diferentes estilos e um tom irônico (especialmente na segunda metade), em que Mojica, já consciente da força da figura do Zé do Caixão, explora sua persona cinematográfica para refletir sobre um inconsciente coletivo brasileiro que, ao mesmo tempo repudia, é fascinado pelo homem de preto, unhas longas, sádico e amoral – o personagem torna-se, então, o gatilho para os cidadãos de bem, que escondem sob uma falsa civilidade todas as suas perversões, angústias e depravações, que emergem na tela de um jeito impiedoso e alucinante.
Filme inteiramente perdido em várias referências, estilos e tons. Soa como paródia, ao mesmo tempo parece se levar a sério. Expõe algumas tradições do terror (casa estranha, invasão domiciliar, espírito obsessor), embora não se aprofunde em nenhuma. Acho que ele até começa com algum potencial, por conferir ao homem um papel costumeiramente feminino em produtos do gênero e brincar um pouco com isso, mas logo perde esse fio da meada e já vira uma bagunça das grandes mesmo. No pior sentido.
O momento em que as crianças sentam na areia da praia e param para construir um castelo, aproveitando a brincadeira mesmo que isso possa lhes custar tudo, tem a mesma essência que cena onde a família do pastor se reúne para uma deliciosa ceia enquanto seu mundo está prestes a colapsar em Sinais, ou da sequência em que o menino abre os braços e, mesmo atordoado pelo que está lhe acontecendo, aproveita a brisa quando a mãe o empurra no carrinho de supermercado em O Sexto Sentido: a vida sendo contemplada em pequenos momentos, que tornam-se grandiosos quando compartilhados com aqueles que amamos. Tempo é um filme cheio de arestas, que se enrola um pouco para resolver alguns arcos de suas trama, mas tem uma ternura e um arrojo visual que vai ressoar bem aos convertidos nesse tipo de cinema minimalista, ousado e sempre afetuoso de Shyamalan. Ainda não consegui tirar da cabeça, e tenho a leve impressão de que envelhecerá bem em futuras revisões.
Esse filme me fez pensar um pouco sobre esse legado deixado por Ed Gein no imaginário americano para a construção do serial killer moderno, os traços de sua biografia que se misturaram com o folclore popular para moldar tipos como Norman Bates, Leatherface e Buffalo Bill, em maior e menor grau herdeiros do assassino. No sentido de mesclar fatos com liberdade criativa para entender o fascínio e a aversão causados pelos crimes, é bem eficaz, mas o formato de falso documentário, com interrupções aleatórias e didáticas para “explicar” seus atos, enfraquece muito o conjunto.
Bem menos pirado do que eu achei que seria para um filme com ecos de David Lynch, eu diria que ele até se contém muito para abraçar de vez o gore surtado, que parece sempre prestes a explodir, e quando finalmente estoura, lá pelo fim, é até meio anticlimático, a meu ver. A parte disso, no entanto, Censor suscita ideias bem interessantes e sempre atuais acerca da tensa relação entre filmes de terror e a violência do mundo real, sugerindo, por meio da perturbada protagonista, que essa associação está muito mais nos olhos de quem vê e, por consequência do pânico moral, reprime, proíbe e censura.
O segundo capítulo é fraquinho embora seja possível ver que aqui a série Rua do Medo tenha sido um pouquinho mais feliz ao incorporar sua gama de referências a uma trama mais coesa mesmo; não que a mitologia seja menos bobalhona, mas há, ao menos, um fio da meada a seguir aqui e alguma preocupação em desenvolver personagens e suas relações, apesar de tudo. Ainda segue bem artificial, mas sem chegar a ser tão destrambelhado quanto o primeiro, felizmente.
Bela história contada pela perspectiva mais desinteressante possível: ao invés de explorar a figura trágica de Lazarus e sua ambígua relação com o pessoal da aldeia, que rendeu até um instigante plot de vingança ali no meio, se foca na família branca e num terror meio que de casa assombrada/invasão em sua estrutura, sem ao menos explorar as tensões raciais evidentes nessa dinâmica de povos. O desfecho, além de tudo isso, ainda é bem anticlimático.
Foi difícil chegar ao fim da salada mista de algoritmos que a Netflix aprontou dessa vez, tudo é tão mas tão artificial que quase soa como uma autoparódia, mas aí você percebe que o filme realmente bota fé na mitologia e tenta fazer da mistureba de referências algo coeso, ainda que sem sucesso. Por algum motivo, acho que a empreitada rendeu bem, tanto tô escrevendo isso já tendo assistido ao segundo capítulo e prestes a conferir o terceiro – não sei se pelos cliffhangers, pela dificuldade de abortar a missão, ou só por masoquismo meu mesmo.
Bem bonitinha essa dinâmica meio Capitães da Areia que o filme explora na relação entre as crianças órfãs, que assumem um papel de manter viva uma fantasia para fazer sentido àquela realidade desoladora, que acho que acaba sendo o que tem de melhor, pois como terror mesmo deixa um pouco a desejar, tem um sério problema em criar tensão ou fazer esse universo imaginário e fantástico mais gráfico se integrar bem com essa estética realista de mundo cão.
Terror moralmente ambíguo em que o aspecto sobrenatural surge como uma espécie de rota de fuga de uma vida comum e ordinária por parte de personagens que estão nessa zona média, social e economicamente falando, mas aspiram à grandeza – a busca por uma elevação não apenas material, da maneira mais torpe, mas de certa forma, espiritual também, por mais contraditório que isso soe. É um filme atmosférico e desolador, que diz muito sobre a ambivalência das relações humanas e sobre o estilo de Kiyoshi Kurosawa no gênero onde fez nome.
Fábula de horror que tem o poder ancestral das histórias orais que ouvimos de geração para geração, construindo imagens que evocam esse imaginário puro e elementar das lendas – a mulher de branco, a floresta escura, o espírito vingador, o próprio gato preto, símbolos que falam muito conosco, mesmo que sejamos parte de outro tempo e cultura. No fundo, uma fantástica tragédia cujas proporções se estendem até o outro mundo, sentimental e arrepiante como não deixam de ser as grandes narrativas folclóricas.
O Ataque dos Vermes Malditos
3.3 676 Assista AgoraTerminei essa revisão com a mesma vontade inocente de brincar sobre os móveis, escapando das criaturas no chão (ou fingindo que é lava), que me batia quando o via nas inesgotáveis reprises do Cinema em Casa. Não esperava que permanecesse tão dinâmico quanto eu lembrava, além disso, gosto como ele assume o seu lado b na homenagem aos filmes de monstro dos anos 50, dentro de uma pegada faroeste, ao mesmo tempo que tem uma noção bem spielbergiana para criar seus momentos de tensão a partir da sugestão, através de outros elementos de cena que não somente os tais vermes. Sessão vespertina das boas.
As Criaturas Atrás das Paredes
3.3 197 Assista AgoraRevisto depois de muitos e muitos anos, esse filme reafirma a habilidade de Wes Craven de dar forma a pesadelos suburbanos como poucos, aqui através de uma fábula que versa sobre especulação imobiliária, distribuição de renda e luta de classes sob uma lente infantil e ilustra esses comentários sociais por meio de caricaturas de gênero – os seres que vivem literalmente “abaixo”, a caça ao tesouro, a dupla de vilões etc. É um filme frenético, que, apesar de soar redundante mais para o final, consegue manter bem o ritmo e a pegada aventuresca, sem perder de vista os elementos de horror de sua alegoria capitalista.
O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger
3.4 393 Assista AgoraDentre os filmes estrelados por Freddy Krueger, este, ao lado do terceiro, foi o que mais marcou minha infância assistindo escondido filmes de terror tarde da noite na TV aberta ou na fita de vídeo da locadora. Tenho vívidas memórias do impacto que cenas como a do velório, a da babá e a batalha final me causaram quando criança. Visto hoje, parece mais alongado do que deveria e alguns pontos soam meio frouxos, mas é um filme muito forte em reforçar sua mitologia (desconstruir para construir, como faria ainda melhor em Pânico, anos depois), ao propor uma fábula que pretende resgatar medos e pavores em suas formas de expressão mais primitivas, como as bruxas dos contos de fadas ou os homens maus dos nossos pesadelos.
Cronos
3.2 119É a semente de todo um universo que Guillermo del Toro viria a lapidar em trabalhos posteriores, e por isso já valeria a conferida, mas, no todo, Cronos é um filme bem desajeitado, que não tem o mesmo interesse em desenvolver os personagens e suas relações que parece ter pela concepção visual da coisa toda, o que é um problema considerando ser essa uma história que, em suma, quer reforçar laços afetivos e fazer deles uma validade “eterna” na passagem da vida, embora esse efeito emocional pretendido acabe quase sempre em segundo plano.
Exorcismo Negro
3.6 39Mojica ainda mais disposto a explorar a figura de Zé do Caixão em uma abordagem metalinguística, para além da complexa investida que já havia feito no superior O Despertar da Besta, em um filme que vai tratar do bom e velho duelo de criador x criatura, e reafirmar algumas obsessões do diretor – mais uma vez, a despeito do que prega o famoso personagem, há uma moral religiosa por trás de tudo; não é à toa que este é, vejam só, um filme natalino e familiar. Por mais que deturpe a paisagem cristã com crucifixos invertidos, demônios e invocações, e com isso revele algo de imoral por trás dessa composição (a mãe que cede a filha num pacto, o filho de Satã que vem para selar uma união, a criança sensível e suscetível ao mal), Mojica restitui alguns dos valores tradicionais quando ressalta o contraste de sua presença desajustada naquele meio. Sempre muito interessante, ainda que não impressione como outros de seus trabalhos.
A Hora do Lobo
4.2 308Revisto. Não precisa conhecer muito do cinema de Bergman para inferir sobre os traços biográficos do diretor na construção dos personagens desse filme, em especial a figura atormentada do artista; dilemas e inquietações que permeiam outras de suas obras e que encontram aqui um eco de terror, num pesadelo de fundo psicanalítico que personifica questões de trauma, medo e culpa em figuras disformes e cenários sombrios, e seguem uma espiral de loucura cada vez maior e mais agoniante. Nunca foi um dos meus favoritos dele, ainda acho que não é dramaticamente tão forte e suas imagens nem sempre surtem o impacto pretendido como em outros seus, a meu ver, mas é cheio de momentos isolados brilhantes, como a sequência da pescaria.
O Mistério de Candyman
3.3 407 Assista AgoraUma revisita ao original logo após conferir o surpreendente reboot de 2021 me fez perceber o quanto esse filme é poderoso ao propor uma mitologia complexa que parte de tensões de raça e classe seculares na América assombrada pelo passado escravagista, e se apropria dessas fobias e terrores cotidianos para conceber o seu próprio universo, em que o medo que os personagens compartilham, traduzido na figura do vilão, não deixa de estar associado a uma constante de paranoia, vigilância e desprezo – por parte da polícia, das instituições judiciais, da elite – que permeia o dia a dia dos moradores daquele espaço. Cresceu mais nessa revisão e arrisco dizer que, da leva de terror dos anos 90, é um dos mais interessantes.
A Lenda de Candyman
3.3 506 Assista AgoraÉ um filme que se resolve dentro da própria mitologia melhor do que eu poderia imaginar, e, apesar de seus excessos, abre novas possibilidades para a construção de seu universo de terror à luz de novos espaços e perspectivas de classe e raça no espaço urbano. O novo Candyman se apropria desse processo de “limpeza” das zonas periféricas para invocar um mal que surge justo desse apagamento – um ser de ódio que se perpetua pelo ódio histórico, estruturante, manifestado aqui, simbolicamente, por essa repaginada de concreto que apenas dá uma nova cara à paisagem de casa grande e senzala. Algumas das cenas de horror – a introdução, com o homem do gancho dos anos 70, a sequência final no apartamento da crítica de arte etc. - mais bem filmadas no ano, em um reboot que, ao passo que honra o original, se mantém como produto relevante de seu próprio tempo.
Pelo Amor e Pela Morte
3.9 131Viver como um salto num abismo, uma incerteza diante de um protagonista que sempre procurou ver uma burocracia na vida e na morte, como se encaixasse peças de um quebra-cabeça pra chegar às suas respostas – não à tona ele tenta, em vão, colar os pedaços de um crânio quebrado, sem sucesso. E o amor, então, como uma força misteriosa, surreal e surtada que vem para desestabilizar as suas certezas, romper com as tecnicalidades de seu ofício e responder à racionalidade dos homens pragmáticos. Tudo isso dentro de uma mistura de tons que, embora particularmente não soe tão homogênea, sempre é hipnótica de se ver. Para futuras revisões.
O Mistério de D.B. Cooper
3.2 4Gosto de como explora o caso do enigmático bandido como parte do imaginário coletivo americano, quase como um mito tão incorporado ao inconsciente que todo mundo parece ter uma história para contar, embora esse argumento passe a ser reforçado mais para o final do documentário, quando as visões passam a se confrontar só com base em convicções pessoais; no todo, reveza entre curiosidades e informações muito superficiais, principalmente para quem já conhece a história, como uma matéria de TV esticada em um longa-metragem.
Maligno
3.3 1,2KO que James Wan faz aqui é meio que invocar as mais diversas categorias do terror que poderiam caber em um filme e que compõem o repertório de um fã – assistir a Maligno é como fazer uma viagem de trem fantasma pelos subgêneros de serial killer, fantasma, monstro, demônio etc. que o diretor incorpora aqui como referência ao seu trabalho prévio e à sua própria formação enquanto entusiasta. É desconcertante e surpreendente, não pelas viradas da trama, mas pela constante mudança de engrenagem mesmo, e a liberdade com que, para o bem e para o mal, abraça os excessos e se esbalda com o universo de horror que cria.
Estranho Passageiro: Sputnik
3.0 197 Assista AgoraNão gosto como toda a trama de conspiração política e construção gradativa do mistério da primeira parte dá lugar a um filme de escapada e correria sem muita personalidade na segunda metade. Sputnik até consegue estabelecer alguns paralelos interessantes entre o processo de dominação da criatura sobre sua vítima e o controle das forças militares no poder sob o indivíduo, mas essa tensão se esvazia quando o filme passa a forçar no maniqueísmo, inclusive apelando para o melodrama. O ótimo primeiro ato e a protagonista, no entanto, ainda seguram muita coisa.
Ódio
3.7 32 Assista AgoraÉ o exploitation estrangeiro típico dos anos 70 importado para nossa terra com a nossa própria definição de Charles Bronson e os códigos morais que regem o país. Tem algumas cenas sensacionais, como toda a sequência do crime na fazenda e o linchamento à luz do dia, que, para além do interessante trabalho de câmera, refletem algumas tensões históricas de cor e classe no país, implícitas no filme, mas que deixam seu debate sobre justiça um tanto mais complexo. É bastante episódico e dá os seus atropelos para amarrar as tramas, mas é um exemplar bacana de um autêntico filme de gênero do país.
O Despertar da Besta
3.8 76 Assista AgoraDe queixo caído com o quão moderno e provocativo é esse filme, quase um experimento tropicalista na maneira como incorpora diferentes estilos e um tom irônico (especialmente na segunda metade), em que Mojica, já consciente da força da figura do Zé do Caixão, explora sua persona cinematográfica para refletir sobre um inconsciente coletivo brasileiro que, ao mesmo tempo repudia, é fascinado pelo homem de preto, unhas longas, sádico e amoral – o personagem torna-se, então, o gatilho para os cidadãos de bem, que escondem sob uma falsa civilidade todas as suas perversões, angústias e depravações, que emergem na tela de um jeito impiedoso e alucinante.
A Garota do Terceiro Andar
2.1 93Filme inteiramente perdido em várias referências, estilos e tons. Soa como paródia, ao mesmo tempo parece se levar a sério. Expõe algumas tradições do terror (casa estranha, invasão domiciliar, espírito obsessor), embora não se aprofunde em nenhuma. Acho que ele até começa com algum potencial, por conferir ao homem um papel costumeiramente feminino em produtos do gênero e brincar um pouco com isso, mas logo perde esse fio da meada e já vira uma bagunça das grandes mesmo. No pior sentido.
Tempo
3.1 1,1K Assista AgoraO momento em que as crianças sentam na areia da praia e param para construir um castelo, aproveitando a brincadeira mesmo que isso possa lhes custar tudo, tem a mesma essência que cena onde a família do pastor se reúne para uma deliciosa ceia enquanto seu mundo está prestes a colapsar em Sinais, ou da sequência em que o menino abre os braços e, mesmo atordoado pelo que está lhe acontecendo, aproveita a brisa quando a mãe o empurra no carrinho de supermercado em O Sexto Sentido: a vida sendo contemplada em pequenos momentos, que tornam-se grandiosos quando compartilhados com aqueles que amamos. Tempo é um filme cheio de arestas, que se enrola um pouco para resolver alguns arcos de suas trama, mas tem uma ternura e um arrojo visual que vai ressoar bem aos convertidos nesse tipo de cinema minimalista, ousado e sempre afetuoso de Shyamalan. Ainda não consegui tirar da cabeça, e tenho a leve impressão de que envelhecerá bem em futuras revisões.
Confissões de um Necrófilo
3.3 32Esse filme me fez pensar um pouco sobre esse legado deixado por Ed Gein no imaginário americano para a construção do serial killer moderno, os traços de sua biografia que se misturaram com o folclore popular para moldar tipos como Norman Bates, Leatherface e Buffalo Bill, em maior e menor grau herdeiros do assassino. No sentido de mesclar fatos com liberdade criativa para entender o fascínio e a aversão causados pelos crimes, é bem eficaz, mas o formato de falso documentário, com interrupções aleatórias e didáticas para “explicar” seus atos, enfraquece muito o conjunto.
Censor
3.1 123Bem menos pirado do que eu achei que seria para um filme com ecos de David Lynch, eu diria que ele até se contém muito para abraçar de vez o gore surtado, que parece sempre prestes a explodir, e quando finalmente estoura, lá pelo fim, é até meio anticlimático, a meu ver. A parte disso, no entanto, Censor suscita ideias bem interessantes e sempre atuais acerca da tensa relação entre filmes de terror e a violência do mundo real, sugerindo, por meio da perturbada protagonista, que essa associação está muito mais nos olhos de quem vê e, por consequência do pânico moral, reprime, proíbe e censura.
Rua do Medo: 1978 - Parte 2
3.5 549 Assista AgoraO segundo capítulo é fraquinho embora seja possível ver que aqui a série Rua do Medo tenha sido um pouquinho mais feliz ao incorporar sua gama de referências a uma trama mais coesa mesmo; não que a mitologia seja menos bobalhona, mas há, ao menos, um fio da meada a seguir aqui e alguma preocupação em desenvolver personagens e suas relações, apesar de tudo. Ainda segue bem artificial, mas sem chegar a ser tão destrambelhado quanto o primeiro, felizmente.
8: A South African Horror
2.4 17Bela história contada pela perspectiva mais desinteressante possível: ao invés de explorar a figura trágica de Lazarus e sua ambígua relação com o pessoal da aldeia, que rendeu até um instigante plot de vingança ali no meio, se foca na família branca e num terror meio que de casa assombrada/invasão em sua estrutura, sem ao menos explorar as tensões raciais evidentes nessa dinâmica de povos. O desfecho, além de tudo isso, ainda é bem anticlimático.
Rua do Medo: 1994 - Parte 1
3.1 773 Assista AgoraFoi difícil chegar ao fim da salada mista de algoritmos que a Netflix aprontou dessa vez, tudo é tão mas tão artificial que quase soa como uma autoparódia, mas aí você percebe que o filme realmente bota fé na mitologia e tenta fazer da mistureba de referências algo coeso, ainda que sem sucesso. Por algum motivo, acho que a empreitada rendeu bem, tanto tô escrevendo isso já tendo assistido ao segundo capítulo e prestes a conferir o terceiro – não sei se pelos cliffhangers, pela dificuldade de abortar a missão, ou só por masoquismo meu mesmo.
Os Tigres Não Têm Medo
3.5 32Bem bonitinha essa dinâmica meio Capitães da Areia que o filme explora na relação entre as crianças órfãs, que assumem um papel de manter viva uma fantasia para fazer sentido àquela realidade desoladora, que acho que acaba sendo o que tem de melhor, pois como terror mesmo deixa um pouco a desejar, tem um sério problema em criar tensão ou fazer esse universo imaginário e fantástico mais gráfico se integrar bem com essa estética realista de mundo cão.
Sessão Espírita
3.6 4Terror moralmente ambíguo em que o aspecto sobrenatural surge como uma espécie de rota de fuga de uma vida comum e ordinária por parte de personagens que estão nessa zona média, social e economicamente falando, mas aspiram à grandeza – a busca por uma elevação não apenas material, da maneira mais torpe, mas de certa forma, espiritual também, por mais contraditório que isso soe. É um filme atmosférico e desolador, que diz muito sobre a ambivalência das relações humanas e sobre o estilo de Kiyoshi Kurosawa no gênero onde fez nome.
O Gato Preto
4.1 55 Assista AgoraFábula de horror que tem o poder ancestral das histórias orais que ouvimos de geração para geração, construindo imagens que evocam esse imaginário puro e elementar das lendas – a mulher de branco, a floresta escura, o espírito vingador, o próprio gato preto, símbolos que falam muito conosco, mesmo que sejamos parte de outro tempo e cultura. No fundo, uma fantástica tragédia cujas proporções se estendem até o outro mundo, sentimental e arrepiante como não deixam de ser as grandes narrativas folclóricas.