Terceiro filme do Godard que vejo. Dessa vez após ter tido uma transa desmarcada e, ao contrário dos outros dois, não dormi em momento algum do filme. Acho que foi até uma boa maneira de lidar com a frustração, apesar de ter demorado um bocado pra entrar no ritmo do que aparecia em tela. Alguns meses atrás, vi uma cinebiografia sobre o diretor, O Formidável. Assim como o Godard do filme -- não sei como ele é na vida real --, o protagonista masculino é terrivelmente insuportável. Sonha com ideais, os professa profusamente, sai enchendo o saco alheio com suas ideias absolutas, enquanto nada ou pouco faz para colocar suas ocas palavras em prática. Existem muitas ruas para nosso personagem andar, mas ele vive em cafeterias.
Ironica ou simbolicamente, quem sabe, eu havia visto um vídeo que tá rolando nas redes poucos instantes antes de ver o filme. No vídeo, um rapaz é carregado à força no centro do Rio por sujeitos fardados com uniformes da guarda municipal para dentro de uma van particular, de uma empresa de turismo, e de placas encobertas. Logo depois, o cinegrafista se move para uma viatura atrás do veículo e, junto com outras pessoas, cobra dos policiais que persigam a van e acabem com o sequestro. A polícia se faz de sonsa e finge que não é com eles. Pouco após o início do filme, Paul assina um abaixo assinado denunciando a prisão injusta de 8 pessoas no Rio de Janeiro, durante o período da ditadura. É.
Masculino Feminino é carregado da visão política de Godard, mas esta, assim como as atuações e situações que permeiam a narrativa, é improvisada e frustrada -- o que me leva a outro ponto. Percebi que é comum nos filmes dele que as cenas e seus diálogos sejam completamente desprovidos de naturalidade cotidiana, parece mais algo onírico, como fragmentos de sonhos mesmo. Contudo, quando o Paul recebe um presente da Madeleine e começa a assobiar uma música enquanto Elisabeth acaricia o rosto de sua (sim, dos dois) amada, rodeados por uma descendente de vítimas do holocausto negociando seu programa e pela Brigitte Bardot lendo uma peça, nada me parece mais humano e diário do que isso.
O Farol foi um verdadeiro sonífero pra mim em muitos momentos, assim como foi uma parada extremamente incômoda em outros, mas uma coisa é certa: Robert Eggers é completamente fodido da cabeça.
Esse é o tipo de filme que dá pra galera ter as mais diversas interpretações. Vendo uma entrevista do Robert Pattinson ao Film4 deixa isso claro -- nem ele sabia o que pensar direito sobre a história, se o que se passa é real ou fantástico. De qualquer forma, me parece que a ilha é real, os personagens são reais, mas a lenta e progressiva espiralização na mais alucinante loucura floreia a narrativa com elementos fantasiosos, o que enriquece bastante a trama.
A minha impressão se deu sobretudo a três fatores: (1) a cena do Willem Dafoe pelado, com luzes que atravessam seus olhos e penetram nos de Robert Pattinson, (2) a menção e a representação do mito de Prometeu e (3) a irritadiça fala do personagem mais novo dirigida ao mais velho, dizendo "[...] você não é meu pai, então pare de agir como tal".
O conceito de "luz" é amplamente associado ao conhecimento. Prometeu foi responsável por roubar o "fogo" da vida e dar aos homens, o que lhe rendeu a punição de ter um pássaro devorando seu fígado eternamente. Ao final do filme, o personagem de Robert Pattinson finalmente consegue ver o que está dentro da iluminação do farol, surtando no processo e termina tendo seu cadáver tornado em comida de gaivota.
Além disso, os dois protagonistas são personagens que se complementam no sentido de que são homens quebrados por traumas de suas vidas passadas e que estão a todo momento fugindo de seus fantasmas. Quanto mais conversam e involuntariamente se abrem um ao outro, mais entram em contato consigo mesmos e com as memórias que estão evitando. Eles se reprimem e MUITO.
Assim, penso que essas alegorias servem pra ilustrar esse profundo mergulho na insanidade desses dois personagens. Após, a contragosto, terem tido uma tomada de consciência, entrando em contato consigo mesmos, com seus traumas e questões particulares, os dois protagonistas se veem numa situação de serem absolutamente incapazes de lidar com suas identidades, com quem realmente são de verdade: afinal, somos humanos, criaturas frágeis, que sofrem e fazem sofrer.
Perceber isso e se reconhecer nisso é muito doloroso.
Grilhões do Passado, ou Mr Arkadin, é honestamente uma versão frustrada de Cidadão Kane. Temos as mesmas batidas narrativas: um cínico bilionário envolto em mistério, um bucha que vai de um canto a outro ouvindo histórias sobre o gigante rico, um segredo inviolável -- paralelo de Rosebud com a filha de Arkadin -- e construções cênicas sinuosas, provocadoras e impetuosas, assim como seu personagem título.
Visualmente esplendoroso mas narrativamente convoluto (meu deus, TUDO nesse filme precisa ser explicado?), não é de se impressionar que Orson Welles tenha abandonado o filme na sala de edição e o renegado posteriormente. Infelizmente, o filme vai do nada a lugar nenhum, sendo apenas mais uma tentativa do nosso gigante de contar aquilo que fez com maestria anos antes.
A impressão que me fica após ter maratonado os 4 filmes é que, além de os criadores por detrás da franquia não terem tido IDEIA de como conduzir/finalizar suas obras. ainda deve ter acontecido alguma espécie de grave desentendimento nos bastidores. Enquanto o REC 3 é um filme que debocha de si e de tudo que veio anteriormente, o 4º ainda tenta terminar a mitologia criada com algum mínimo resquício de dignidade, amarrando forçosamente algumas pontas soltas e deliberadamente ignorando outras.
O surto de criatividade dos dois primeiros ao apresentar um found footage com elementos sobrenaturais ligados a zumbis, numa incrível forçasão de barra ao introduzir um contágio viral propagado por possessão demoníaca (???), vai completamente por água abaixo quando suas sequências não expandem em seu mito, apesar de seus títulos referenciarem a eventos bíblicos e uma ou outra vez mencionarem a intervenção demoníaca sobre os acontecimentos -- de resto, não há nada de "novo": o terceiro conta uma paródia paralela e o quarto apenas se contenta com batidas narrativas convencionais, eventualmente ignorando por completo o aspecto religioso que justamente suscitava a curiosidade alheia.
Levando em conta o completo fracasso narrativo e de público da produção anterior, parece que a segunda metade por trás da franquia estava consciente desse fato, construindo um suspense num molde mais "clássico". Não há piadinhas gratuitas ou apelo ao melodrama, havendo um foco num tom sóbrio e numa atmosfera mais uma vez claustrofóbica. Mais uma vez, a linguagem de found footage foi lamentavelmente jogada fora, o que revelou de cara que o diretor REALMENTE não sabe conduzir cenas de ação, o que era sabiamente escondido nos dois primeiros filmes através da câmera justificadamente tremida e em cortes camuflados. Antes, o aspecto técnico era louvável por conta das artimanhas encontradas para contar uma inspirada história mesmo com limites orçamentários, causando admiração por conta de seus tantos "planos sequência". Aqui, não há nem inspiração, quanto menos história pra contar -- somente a inércia de uma explosão remota de anos atrás.
Não há motivo para terem trazido a protagonista dos dois primeiros filmes de volta: deliberadamente ignoraram o ÚNICO progresso no desenvolvimento narrativo dela, ao magicamente transferirem o verme infernal para um personagem novo com o qual ninguém possui qualquer tipo de vínculo e de quem não sabemos nada. Poderiam explorar o capeta tocando o terror num navio apertado através de uma aparente inocente sobrevivente de uma horrível chacina, mas escolheram revertê-la ao estado em que se encontrava no primeiro filme, apenas, dessa vez, menos histérica. Isso é preguiçoso e revela a estupidez da escrita do roteiro.
Ao não contar com os cabeças de áreas anteriores -- que aparentemente escolheram ficar com o diretor do fiasco do terceiro REC --, certos segmentos como a direção de arte tiveram certa liberdade para explorar seus elementos, neste caso oferecendo nova maquiagem aos infectados, muito mais agressivos e horrendos do que antes. Pena que é mais uma das várias oportunidades desperdiçadas. Já a direção de fotografia, encabeçada pelo mesmo cara ao longo de toda a franquia, não apresenta qualquer inovação ou inspiração, e reforça o desconhecimento por parte do fotógrafo sobre a existência de grandes angulares: justificável neste filme pela escolha dos cenários, mas não no longa anterior.
Enfim, REC 1 e 2 são pequenas obras primas louváveis por seus lampejos de criatividade e inovação que deveriam ter se resumido a uma duologia, mas que infelizmente foram limadas até a infertilidade, revelando a ingenuidade e o despreparo técnico de seus dois diretores-roteiristas que não tinham conteúdo algum para preencher sua audácia em querer transformar seus filmes de baixo orçamento numa variação barata de Resident Evil.
Levando em conta que o filme é dirigido e escrito por um dos diretores dos dois primeiros filmes e conta com os mesmos cabeças de fotografia, arte. edição e som das produções anteriores, fico aqui me perguntando como a galera que pariu a ideia inicial da franquia achou que seria uma boa descaracterizar de forma tão gratuita aquilo que, à primeira impressão, criaram com tanto empenho?
Ainda tenho de ver o último filme pra ver se este foi apenas um "experimento", no sentido de avaliar como o produto deles ficaria se feito completamente às avessas, explorando outras convenções de gênero etc, ou se é o que parece quando REC 3 chega por volta da marca dos 20 minutos: Paco Plaza ao escrever que o protagonista quebra a câmera do cinegrafista, não imaginou de forma satisfeita como poderia conduzir a trama a partir daquele ponto, bateu AQUELA preguiça e pensou "ah, vou tacar o foda-se" e todos na produção por serem migs toparam fazer uma paródia dos próprios filmes.
Uma coisa é certa: a diversão que eles tiveram fazendo esse trashzão sem pé nem cabeça que destrói a mitologia que eles mesmos criaram não foi passada pro público, não.
Deixo aqui meu incessante questionamento que tive frente a absolutamente tudo que acontecia nesse filme: POR QUÊ?
Curioso pensar que o diretor deste filme também dirigiu o documentário sobre Ted Bundy presente na Netflix. Enquanto esse último é extremamente competente em destrinchar toda a teia de crimes, relacionamentos e atitudes de Bundy, o primeiro insiste em deixar mais complicado ainda uma investigação e posteriormente um julgamento que duraram mais de uma década.
A persistência na suposta dúvida sobre a culpabilidade de Ted Bundy vai completamente por água abaixo se levar em conta a popularidade do caso e O FATO DE QUE O JOE BERLINGER SE UTILIZOU DE SEU DOCUMENTÁRIO PARA ATRAIR BUZZ PARA O FILME (???) Assim, a narrativa perde seu charme, que vai todo para a atuação surpreendente de Zac Efron -- que merece algum reconhecimento por carregar o filme nas costas.
O fraco roteiro não consegue se sustentar nos diálogos que tenta criar, se fazendo valer por recriações de momentos famosos, ao invés de de fato mergulhar na privacidade da vida dos envolvidos, não mostrando nada de novo ou de inventivo. Ademais, há algumas coisinhas bem piegas como o ocasional filtro de gravações setentistas ou aquela cena descartável do Bundy colocando medo no cachorro na base da força do pensamento.
De qualquer forma, é um filme assistível que pouco a pouco se torna tedioso até ganhar sopro de vida perto do final pela corajosa atuação do protagonista, além de contar com rostos conhecidos certamente para atrair audiência. Infelizmente, por conta de uma direção fraca, Lily Collins não consegue colocar pra fora todos os sentimentos de sua personagem e John Malkovich se encontra fazendo um pouco mais do mesmo, que já é algo seguro o suficiente.
Não precisaria se agarrar ao sensacionalismo barato para ser melhor, como o filme tentou aqui, mas talvez um pouco mais de sagacidade ao não contar com a ignorância ou com a boa vontade alheia quanto à responsabilidade dos crimes faria com que os cabeças do projeto se prestassem a mostrar essa lamentável e revoltante história com algo além de somente mais do mesmo.
O Drácula desse filme é tudo de bom: levemente inspirado no Bela Lugosi, charmoso, anda pelas paredes, escandaloso e ainda é interpretado de maneira bem “camp”. Genial, chega a ter um toque teatral. Já a Criatura de Frankenstein me cativa toda vez que implora para viver, implora para EXISTIR. A tragédia manifesta.
Fui rever após muitos anos — era um dos meus favoritos quando criança — e me surpreendi que sobreviveu bem ao teste do tempo. De certa maneira, como Garota Infernal, lida com seus personagens e temas de maneira bem tosca e exagerada, dando um charme a mais a uma história que, se feita de maneira mais morna, menos enérgica, ficaria facilmente inassistível pela falta de substância.
Por falar nisso, as criativas e hiperbólicas cenas de ação, com repetitivas cambalhotas e usos de cabos no maior estilo Tarzan, com direito a escaladas nas paredes, é o que preenche esse filme de inventividade. Poucas coisas entretêm tanto quanto Hugh Jackman bancando o Van Helsing super herói.
De fato, expectativas são uma merda. Levando em conta o primor de Corra, esperava um pouco mais do novo de Jordan Peele. Em comparação, o filme já não é lá isso tudo e o terceiro ato, absolutamente terrível, quase destrói a obra: ao invés de somente abraçar a ideia fantasiosa das cópias, Peele envereda por um turbulento caminho repleto de furos ao tentar EXPLICAR a origem e o propósito dos macacões vermelhos. PÉSSIMA decisão.
Soma-se a isso momentos avulsos em que os personagems subitamente emburrecem e realizam atitudes completamente estúpidas, o desperdício de Elisabeth Moss e um final completamente auto indulgente, em que eu consegui visualizar o Jordan Peele piscando e dando um sorrisinho besta, se achando tão sagaz com um twist infelizmente telegrafado.
Apesar dessas burradas, sua nova obra é permeada de duras e inteligentes críticas à atual sociedade ocidental, com seu pavor do Outro, aludindo sobre as díspares dicotomias de classes e sobre a questão dos refugiados. Além disso abusa sabiamente da versatilidade ímpar da Lupita Nyong’o e do carisma do Winston Duke, ao mesmo tempo que constrói uma perversa e perturbadora atmosfera, até mesmo invocando Michael Haneke no processo.
Aguardo ansiosamente pelas próximas cartas que Peele possa ter nas mangas.
Sam Was Here é um interessante experimento sobre a mente fragmentada de um assassino. A trilha musical ambient, repleta de sintetizadores e reminiscente de Neon Demon, é uma excelente escolha para ditar o ritmo da narrativa, dando um clima fantasioso, tenebroso, algo fora da realidade. A pulsante luz vermelha, onisciente de cada passo do nosso protagonista, que vaga pelo céu e, posteriormente, ilumina o exterior do corpo sujo e sangrento de nosso antagonista, o Eddy, ganha uma instigante sugestão de interpretação quando a velha diz que Eddy está “dentro”. Aliás, o ator que faz o Sam carrega um enorme peso dramático em seus olhos e em sua postura, ao mesmo tempo que interpreta um sujeito aparentemente simplório e cotidiano. Interpretação genuína. Por mais simples que seja, o filme carrega uma atmosfera fantástica que conta a história de um assassino pouco a pouco aceitando seus nefastos demônios interiores. Relevante filme experimental, repleto de signos emblemáticos, nunca entregando de mão beijada o que almeja. Certamente digno de mais atenção.
MEU GASPAR NOÉ ESTÁ VIVÍSSIMO POURRAAAAAAAAAAAAAAAAAAA AA
A mais nova obra prima de Gaspar Noé é um tanto surpreendente, tanto por cima sua temática, trama, escolha de atores, quanto por sua produção e recepção. Quando você acha que já sacou qual é a do Noé, o diretor-autor protótipo do provocador Novo Extremismo Francês chega com um longa metragem sobre uma trupe de dançarinos enclausurada numa construção abandonada no meio da neve que lentamente perde a sanidade e a moralidade. Em Clímax, temos um filme experimental de terror de dança que usa e abusa de synth music. Suspiria nunca ousou ser tão bom assim.
Ao contrário de seus filmes anteriores, especialmente Sozinho Contra Todos e Enter the Void, longas que demoraram literalmente ANOS nas fases de pré, produção e pós -- o primeiro foi gravado ao longo de 5 anos e o segundo, quase 20 anos foram levados só pra sair do papel --, Clímax teve sua concepção num mês, gravado noutro, num período de 15 dias dentro dum enorme galpão, e finalizado em mais um. Além disso, esse é seu filme melhor recebido tanto por crítica quanto por público, apesar de carregar muita bagagem similar do que veio antes. Parece que quanto menos Noé pensa sobre o que faz, melhor o faz. Gênio.
Numa espiral de insanidade que dita tanto ritmo quanto narrativa, nosso elenco é levado aos seus impulsos mais primitivos, profundamente guardados em seu inconsciente, por conta de uma sangria batizada com LSD. Num minuto, essa incrível trupe de dançarinos, permeada por verdadeiros artistas do estilo "krumping", e coloridos por seus vários gêneros, etnias e sexualidades, num ato lindo e comovente de trabalho coletivo, caem num poço de auto destruição, que inclui sexo, incesto, assassinato, suicídio e aborto... em frente à bandeira francesa, onde antes havia uma sublime coreografia grupal, há agora o mais sangrento clamor individual.
Num filme emblemático sobre construção vs destruição, Noé, incidentalmente, comenta sobre o atual estado da União Europeia -- antes, um grupo cultural e econômico referência para o mundo ocidental --, agora, um no qual seus países se encontram confusos, em conflito interno e com um levante racista e preconceituoso tomando forma como assustadoramente aconteceu no início do século passado, frente à entrada recente de estrangeiros refugiados de países em guerra, sobretudo vindouros do Oriente Médio.
Em seu filme, sua trupe de negros, brancos, pardos, loiros, dreadlocks, gays, bis, héteros..., em meio à loucura psicodélica, pouco a pouco, se encontram num livro da Agatha Christie, no melhor estilo "whodunit", possessos em busca do culpado por ter "batizado" a bebida. Em quem encontram seu principal suspeito? No muçulmano. Sem titubear, o expulsam para o exterior da construção, para o limbo cheio da mais branca neve que o engolirá em seguida. De novo, emblemático.
Em seguida, rapidamente, Clímax vai assumindo uma nova roupagem, cada vez mais paranóica e insidiosa. Qualquer um familiar com filmes de George Romero, ou de mortos vivos em geral, notará a semelhança patente que o novo de Noé possui com esses. O enclausuramento num ambiente fechado, música (por mais diegética que seja) que impulsiona o senso de perigo, personagens paranoicos pouco a pouco "tomados" por impulsos animalescos, enquanto outros fogem avidamente deles... a patente febre da cabana.
Ao contrário de seu Enter the Void, não há recursos visuais caleidoscópicos para nos colocar no ponto de vista do drogado, dessa vez, nos põe em terceira visão, como um voyeur, para examinar as atitudes de nossos personagens, e nos chocando enquanto isso. Aqui, a violência corporal e o exame do corpo volta com tudo. Além de gráficas cenas de mutilação e espancamento, Noé meticulosamente mostra a FORMA, ou as FORMAS, do corpo humano, por meio dos dançarinos que se contorcem de maneiras inacreditáveis. Nem mesmo em seu filme anterior, Love, com toda a nudez pornográfica, houve tanto uma análise corporal como em Clímax.
Com longuíssimos takes e planos sequência de até 42 minutos, com sua característica câmera flutuante acoplada à grua, que vaga, voa e dá cambalhotas pela cena, Noé constrói uma oscilante parábola sobre os desafios da multiculturalidade, sobre o fracasso das coletividades. Em mais um exame sobre a condição humana e sua vida em sociedade, Noé trata o corpo como um guia de estudo do Outro. O desconhecido, o estrangeiro, o forasteiro, o "outsider", é explorado, e violentado, à exaustão no seu mais novo e soberbo body horror.
Com suas pirotecnias visuais, sua câmera, AH, A CÂMERA ONÍRICA DE NOÉ, terminamos Clímax encarando nossas presas e predadores literalmente de ponta cabeça, com a orientação invertida, num ardente e pulsante vermelho, com gritos e grunhidos de dor enchendo a sala. Posteriormente, encaramos as vítimas e agressores num zenital, mais uma vez no que chamo de sua "visão da Criação". Enquanto uns se encontram mortos, outros estão no mais profundo êxtase. Não há maneira mais exata de representar o mundo em que vivemos.
Poderia-se dizer que Love é o filme mais convencional de Noé, claro, tirando as cenas de sexo. Creio que poderia ser até um filme do Xavier Dolan, na época de Amores Imaginários. As pirotecnias visuais marcantemente presentes nos dois filmes anteriores de Noé deram lugar a usos convencionais de câmera e à utilização excessiva de monólogos irracionais, similares ao de Sozinho Contra Todos, para exteriorizar os sentimentos de nossos personagens. Não diria que Noé se dá tão bem com palavras assim.
Certamente, as metáforas visuais, marca patente de Enter the Void, por exemplo, servem muito mais às narrativas de Noé, dão mais voz aos seus personagens do que ditas palavras. Aqui, quando nossos protagonistas tentam dar vazão aos seus pensamentos por meio de exposição de suas ideias ou até mesmo por discussões acaloradas, acaba soando pueril demais, raso, superficial, como um adolescente que leu sobre um assunto novo horas antes e acha que sabe alguma coisa. Nhe.
Ademais, em sua ignorância jovial, Murphy lembra uma espécie de protótipo do que pode vir a ser o açougueiro de Sozinho Contra Todos. É um homem (importante) cheio de sonhos, vendo-os sendo frustrados à sua frente, sem contato com seu interior, brilhante mas ainda burro. É como Electra diz, é um jovem inteligente que não sabe o que é o amor. Assim, por conta de sua inabilidade de compreender a si e ao mundo, Murphy desconta sua frustração nos outros, até mesmo naqueles que ama e que o amam. Triste.
Parece que as cenas de sexo explícito fogem somente ao seu significado literal, oferecendo, também, através da visão de corpos desnudos, nossos personagens despidos de seus filtros morais e sociais, deixando com que suas emoções fiquem à flor da pele, expondo a incapacidade deles de compreender seus próprios sentimentos.
Talvez, em última instância, Love seja sobre a incompreensão do Outro, sobre como estamos tão focados em nós mesmos, em nossos problemas e desejos, que não apreendemos que a autopercepção somente virá se acompanhada do entendimento acerca das necessidades da nossa contraparte, num sistema total. Assim como tentamos nos perder nos corpos alheios, entrando e saindo deles, talvez estejamos fadados a entrar e sair de relações, nessa fluidez de relacionamentos com a qual vivemos.
Por mais que eu tenha achado o filme enfadonho em alguns momentos, eu senti um ÊXTASE PROFUNDO COM A TRILHA MUSICAL UAAAAAA, e o final do filme, com os fade ins e fade outs alternando sobre os corpos entrelaçados do Murphy e da Electra, com eles confessando seu amor e implorando para que um nunca abandone o outro me ganhou completamente. É belo mas desesperador, naquele momento, no suicídio velado do Murphy ao ter em sua cabeça a fantasia ou o fato da morte de Electra, pensar que é necessário morrer para se conseguir ficar em paz com alguém.
De cara, Enter the Void já salta aos olhos por sua linguagem pouco usual: o uso de câmera em primeira pessoa. Não se engane, não é somente uma câmera subjetiva, que nos coloca nos olhos do personagem e nos mostra por algum momento ao que sua visão apontou; Noé literalmente nos coloca na cabeça do protagonista... por horas a fio. Junto a ele fumamos, nos olhamos no espelho, jogamos água na cara e vagamos pelas ruas banhadas em neon de Tóquio. Mais ainda, junto a ele, ao Oscar, entramos numa pira alucinógena e entramos numa viagem regada a manifestações cerebrais psicodélicas reminiscentes do movimento de caleidoscópios e algas marinhas. Noé, mais uma vez, quer extrapolar o vocabulário cinematográfico com o qual estamos acostumados.
O terceiro filme de Gaspar Noé é, sem sombra de dúvidas, o seu mais ambicioso. Quinze anos sendo cozinhado na panela de sua imaginação, teve Irreversível como sua "versão teste" -- nas palavras de seu criador, foi um "assalto ao banco", tanto no sentido financeiro, para mostrar que seus filmes poderiam lucrar, quanto no criativo, para experimentar com diversas técnicas --. Muito de seu segundo filme se encontra aqui, narrativa não linear, uso de elementos ultrajantes, personagens desgostáveis e um usoALTAMENTE INCRIVELMENTE ONIRICAMENTE METICULOSO DE SUA CÂMERA, AH A CÂMERA DE GASPAR NOÉ, O SONHO DO ESTUDANTE DE CINEMA
Com suas panorâmicas mirabolantes, alternadas em planos master e over the shoulder, numa utilização completamente única de câmera acoplada à grua, Noé, em nenhum momento, abandona a linguagem que instaurou nos segundos inicias de filme -- a de primeira pessoa, um passante num mundo passageiro --; apesar do protagonista não mais "piscar" ou falar, ainda estamos em sua "cabeça", posteriormente, dentro de sua alma, analisando aquilo que todos temem quando morrem: a vida. O que acontece depois que eu for? Será que o que eu vivi valeu a pena?
Noé classifica seu terceiro longa como um "melodrama psicodélico", ao nos mostrar os dramas pessoais de dois irmãos cujas vidas foram carregadas de tragédia e droga, muita droga. Como o gênero sugere, seus personagens não possuem muita profundidade, sendo meros peões para o desenvolvimento de algum tema dramático, no caso, a profunda relação afetiva dentre os dois, em meio aos contextos sociais marginalizados em que foram inseridos. Não posso dizer que concordo.
Ao meu ver, Enter the Void poderia ser o que chamarei particularmente de "thriller sublime". Acompanhamos a vida noturna de um jovem traficante e sua irmã stripper tentando fazer dinheiro em meio à uma Tóquio psicodélica, energética e decadente. Elementos de investigação policial são patentes mas tangentes, como quando Oscar é morto durante um enquadro e a polícia segue investigando e coletando provas sobre o esquema ilegal de drogas ao longo do filme, conforme acompanhamos os dramas, sobretudo, de Linda e Alex.
Contudo, o foco não se mantém ali, apesar de, pela maneira única como as cenas são gravadas e montadas, conseguimos ter consciência da investigação. Durante a costura das sequências do filme, entramos em contato íntimo com as lembranças da vida de Oscar, seus sofrimentos, traumas, sonhos e desejos. Em seus flashbacks alucinógenos, tomamos ciência da morte dos pais, da cisão de uma família, da súbita interrupção do desenvolvimento de dois irmãos e como isso os marcará.
Da maneira mais Freudiana possível, mais uma vez retorna um dos temas recorrentes nas obras de Noé: "o que é moral?" Temos um irmão intimamente ligado à sua contraparte, com o dever de protegê-la e de cuidar dela, mas em meio aos seus deveres fraternos, há um latente desejo incestuoso por sua irmã. Ele não quer somente o bem dela, Oscar quer possuir Linda, dominar Linda, TER Linda. Em menor grau, sua irmã reciproca, ambos numa confusa afeição de amantes e pais.
Com isso, há outro ponto. Constantemente, vemos Oscar pensar, rememorar, alucinar sua mãe, a memória afetiva de sua mãe, aquela que perdeu ainda criança, mas que, até então, se mostrava uma das figuras mais caridosas e afetivas de que se tem notícia, exalando ternura em seu sorriso e em seus seios. Oscar frequentemente justaposiciona os seios de sua mãe com seios de outras mulheres, incluindo os de sua própria irmã e os da mãe de seu amigo. Ao transar com essa última, Oscar entra em contato com a "figura materna", uma forma de se reconectar com alguém e com um passado há muito perdidos, uma maneira de se ligar ao arquétipo mãe.
Ademais, em suas alucinações oníricas, obtidas através das projeções de consciência, de experiências além-corpóreas, por conta da morte do protagonista, Noé nos coloca numa perspectiva única, aquela da "Criação". Num zenital que domina boa parte do filme -- atente, ainda na câmera em primeira pessoa --, examinamos a vida e seu aspecto passageiro, o vazio da existência, o vácuo da condição humana, nas palavras do próprio Noé. Nada de significativo acontece, além do cotidiano. Morremos e cada um segue com seus dramas pessoais.
Assim, Noé, numa perspectiva de "eterno retorno", retoma os temas da moralidade e do vazio existencial de suas obras anteriores, reimaginando a visão da "Criação", presente em Irreversível, uma onipresente figura que assiste impassível aos males que assolam a vida humana. E, ainda em seu olhar filosófico, finaliza Enter the Void com Oscar, possivelmente, "renascendo" ao ser fecundado em típicas cenas de sexo explícito de Noé e posteriormente retirado do útero, sendo, então, posto no colo de sua mãe: nos colocando, uma última vez, para ver os seus afetuosos sorriso e seios.
A impressão constante que tive ao longo desse filme foi que ninguém da cena tr00 NoRwEgiAn BLACK METAL \w/ hoooooooooooooooorghhhh era particularmente inteligente, né. Eu perdi a conta de quantas vezes eu dei replay nas cenas das festas e do subsolo, quando o BLACK CIRCLE HUAAAAAARHHHHH se reunia pra bater cabelo e grunhir, pra rir do quão patético é um bando de cabeludo imaturo proferindo conceitos que eles não entendiam pra se proclamarem como algo mais evoluído do que aqueles ao seu redor.
Aí fica a questão, o filme não leva seu objeto muito a sério, né? Logo de início quando apareceu o logo da Vice, pensei "hmmm lá vem AQUELE humor irreverente", por "irreverente", entende-se pretensioso, característico das matérias do site. Acho que isso foi um dos motivos pro tom inconsistente do filme: percebe-se a vontade de ridicularizar aquela galera, mas os temas são tão sérios, tanto em termos sociais quanto psicológicos, que a pretensa audácia "viceana" não colou. O filme e suas críticas a neonazistas satanistas soa inócua.
Isso leva ao grande problema do filme. Temos uma comunidade considerável de jovens num dos países com uma das maiores taxas de IDH e, paradoxalmente, com uma das maiores taxas de suicídio, até mesmo como o protagonista narra, e isso simplesmente não é abordado -- nem mesmo quando um dos personagens-chave da trama SE MATA, PORRA.
Claramente era um sujeito sofrendo dos mais pesados males psicológicos, que sofreu bullying, que se cortava e desejava a morte mais do que tudo, cometendo uma verdadeira atrocidade contra seu corpo, e isso simplesmente é levado na ironia, "herp derp ele gostava de matar gato e enterrava as próprias roupas dur hur", porra, me poupe, o cara se cortava nos shows e o público adorava. Havia um evidente problema social endêmico que o filme simplesmente encara como um bando de jovens querendo ser foda. Os realizadores são tão ou mais imaturos que a galera envolvida.
Além disso, há toda a questão do Euronymous ser um sadista safado que incitava o sofrimento alheio, seja encorajando o sofrimento de seu vocalista, o assassinato cometido por seu baterista e a piora emocional de alguém que declaradamente o admirava. Alguns eventos são contestáveis e passíveis de dúvida, o que me fez dar uma pesquisada ao longo do filme. Boa parte do que aconteceu, de fato aconteceu e da forma como mostrada. Houve acontecimentos piores ainda. De qualquer forma, é preocupante inocentar o protagonista frente a tudo que, de fato, fez, falou e incitou. Não acredito que deveria ter morrido, mas também não era o são em processo de redenção que o filme trata.
Há ainda a questão do Varg. Se a intenção era que eu levasse aquele sujeito a sério, o filme falhou miseravelmente. O que, de novo, é problemático. Sim, o cara era um neonazista, satanista, pagão, adorador de Odin e pregava a supremacia branca (??? não sei como funciona a articulação de tanta ideia errada numa cabeça só), mas é EXTREMAMENTE problemático não retratar ele como um sujeito do nosso cotidiano, colocando ele como um pateta, maria-vai-com-as-outras, que acabou internalizando os ideias de sua cena musical um pouco demais da conta. Isso são assuntos sérios, que causam destruição, sofrimento e barbárie.
Há como abordar todos os pontos da cena musical do Black Metal norueguês de forma sardônica, como pareceu ser o intuito, mas voluntariamente ignorar a profundidade e relevância temática de depressão, suicídio, doenças sociais, neonazismo, genocídio, intolerância religiosa, preconceito, racismo, sexismo, assassinato, homofobia, dentre outros subtemas que acarreta, em detrimento de mostrar um bando de menininho machista imaturo, batendo cabeça e brincando de ser mau, já é irresponsabilidade consciente, dando leviandade pra temas em voga e que assolam a sociedade.
Isso se torna mais perigoso se levar em conta que um dos autores que co-assinou o livro que serviu de origem ao filme concorda, ou "concordava", com os ideais extremistas do Varg, que a cena de Black Metal segue firme e forte e que, sim, o Varg, o assassino neonazista e pregador de genocídio, segue vivíssimo fazendo vídeo pro youtube e com uma extensa coleção de fãs que apoiam seus ideais de extermínio.
Wow, simplesmente wow. Tudo, wow. É, baixas expectativas são uma coisa incrível. Eu esperava um filme absolutamente chato, patriótico e apelativo a prêmios, mas, wow, e não é que fui maravilhosamente surpreendido.
Damien Chazelle, em apenas seu terceiro filme, se mostra um mestre de sua arte, muito mais maduro que em trabalhos anteriores, nos entregando um longa metragem sóbrio, honesto e sério. Não há espaço para firulas visuais, enaltecimento egoico ou fetiche iconográfico. Esse jovem mas habilidoso diretor tá muito mais preocupado com os sofrimentos e os sacrifícios que levaram a um dos maiores feitos alcançados pelo ser humano. Foi certamente uma abordagem improvável, mas fantasticamente eficaz.
Uma coisa que notei é como o "ícone Neil Armstrong" foi desconstruído, até a sua essência, até a sua humanidade. Em nenhum momento ele é exaltado, seja como pai, esposo, amigo, profissional ou até mesmo como O PRIMEIRO HOMEM QUE PISOU NA LUA. Ele é só mais um tentando lidar com seus problemas.
Armstrong é mostrado tão humanamente genuíno que dá gosto. Ele é um pai medíocre, completamente afastado de seus filhos. Ele é um marido que possui extrema dificuldade de se abrir e de expressar o que sente. Ele é um amigo solitário, de poucas palavras e de sutil presença. A vida passa por ele como vento e ele nem sequer estende a mão pra sentir a brisa entre os dedos. É engraçado pensar como um homem tão grande pode ser tão pequeno.
A morte de sua filha ainda pesa nele, como uma cruz que ele se põe na obrigação de carregar até o fim de seus dias, por ter sido impotente demais para salvar o que havia de mais precioso em sua existência. É um pai que sente que não conseguiu cumprir seu papel. E essa sina vai ditar todo seu arco dramático.
Ryan Gosling carrega esse sofrimento interno de maneira comedida, entregando um protagonista introspectivo e contido, cheio de inseguranças, dúvidas e com muita fúria, muito remorso dentro de si, sem a necessidade de expôr isso em seus diálogos, imprimindo suas emoções no olhar e em suas ações. Ah, O OLHAR DE RYAN GOSLING. Aqueles olhos carregam uma angústia ímpar, uma dor impensável. Obrigado pelos close ups, Chazelle.
Assim, o que esse filme entrega é muito mais um estudo sobre seu personagem, com todas suas nuances, falhas e problemáticas, recusando completamente a saída fácil de glamurizá-lo. Os seus defeitos, aqui enxergados como mais algumas de suas características humanas, são absolutamente inerentes a ele e à forma como lida com suas questões. Armstrong não é inocentado de sua humanidade.
Como deveria ser numa biografia, deixamos de lado por algum momento o ícone de livros de história e de coletâneas de recordes e aprendemos sobre o homem, sobre o sujeito de carne e osso que viveu os eventos retratados. Ademais, é curioso ver como os envolvidos possuíam pesadas dúvidas sobre o sucesso de tudo que faziam, além de que eu estava completamente alheio aos protestos e à revolta popular contra a exploração espacial. Não aprendi somente sobre Armstrong, mas também sobre a situação social referente aos seus trabalhos.
Com isso, a obra vai completamente na direção contrária a de filmes como Bohemian Rhapsody, que se atêm à saída fácil de manter a ilusória idolatria a despeito dos fatos, desenhando um ícone divino que nunca duvidou de si ou de seu sucesso, deixando o conhecimento extra filme afetar completamente a história, fugindo, assim, de ter que problematizar a si.
Ainda, é bom comentar sobre como a fotografia, reminiscente de imagens da época, aliada à equipe de efeitos visuais e práticos, conseguiu construir planos tão belos e avassaladores, como aquele de câmera subjetiva que nos põe na visão de Neil ao se ejetar de um veículo voador incandescente, e aquelas paranômicas de encher os olhos que retratam a estranha Lua e o infindável espaço. A magnitude do infinito carrega um lirismo consigo.
Com essa poética espacial, Armstrong consegue finalmente atingir a conclusão de seu arco narrativo: pondo a pulseira de sua filha numa cratera lunar e eternizando a memória do que lhe é mais precioso. Foi um gesto tão simples, mas tão sublime.
"É um pequeno passo para um homem, mas um grande salto para a humanidade". Não, Neil, foi um grande passo para um homem. Wow.
É uma versão higienizada? ....é. Faltou muita droga, sexo, dúvida, questionamento sexual e lascívia? Uhum. Rami Malek merece o Oscar de Melhor Ator? PORRA PRA CARALHO
Particularmente, não conhecia lhufas da vida privada da banda, só algumas coisinhas básicas sobre o Freddie Mercury: sexualidade conturbada, muito sexo, muito talento e AIDS. Com certeza isso me ajudou a apreciar melhor o filme sem ficar me flagelando com toda e qualquer ausência de acurácia por parte do roteiro. Claro, como estudante de Cinema e cineasta amador, dá pra perceber umas facilitações aqui, umas conveniências ali, um excesso de pieguice acolá, mas deu pra deixar passar batido, afinal, é uma biografia, patrocinada pelos membros restantes e com o evidente intuito de enaltecer todos os envolvidos.
Contudo, esse desleixo com os fatos e maquilagem dos eventos possuem seus efeitos colaterais negativos: saí do filme sabendo as mesmas coisas sobre os membros da banda do que quando entrei: absolutamente nada -- ah, sim, um se chama Brian (aquele cabeludo), tinha um cara loiro chamado Roger (?) e eles tinham um baixista tão zé ninguém que nem o Freddie sabe do que insultar ele num momento de chilique; os diálogos soam como uma coletânea de mescla de melhores frases ditas em filmes épicos e melodramáticos oferecidos por Hollywood entre os anos 40 e 60 RAPAZ AQUELA CENA DA CHUVA EM QUE O FREDDIE SENTA O PAU NO BIGODUDO ESCROTO TÃO DIGNA DE NOVELA MEXICANA EXIBIDA NO SBT ME DEU ÁGUA NOS OLHOS E UM ÍMPETO DE COLOCAR O FREDDIE NUM PEDESTAL E O BABACA NUM POÇO SEM FIM é eficiente? é, mas tem aquela parada de que fica muito dicotômico e didático, um é bonzinho e o outro é o maléfico que o levou ao caminho da perdição. nhe
Além disso, temos os personagens terciários em que suas personalidades são resumidas a "amigos do freddie" e "gente escrota que não merece existir". É caricato e não exala humanidade. E, convenhamos, num retrato biográfico, buscamos conhecer a vida de um ícone, vê-lo que é tão ralé quento nós, só que com mais fama e mais dinheiro e mais talento e muito mais legal.
Essa problemática se desdobra em questões sociais, étnicas e sexuais mal abordadas e mal resolvidas. Não vejo peso dramático em dois xingamentos xenofóbicos e numa revolta coletiva quanto à sexualidade do Freddie Mercury se isso é rapidamente resolvido numa reunião familiar.
O que levou o Freddie a negar suas origens? Por que é tão importante ser assimilado na cultura européia? Como um homem velho tradicional aceita num piscar de olhos seu filho não hétero, foi o dinheiro, a fama, ou ficou senil e esqueceu dos valores religiosos e morais que cultivou ao longo de sua longa vida? Mais uma vez, querer tratar a realidade como uma ficção histórica possui seus agravamentos, sobretudo se possui um viés político, moral e ideológico que não leva a sério as próprias questões que pretende tratar.
AGORA VAMO FALAR DE RAMI MALEK AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
Rapaz, que que foi aquilo? Eu fiquei tão absorto na performance malekiana que acabei ignorando completamente outros problemas. Este homem incorporou seu personagem de maneira tão orgânica, fluída, sensível, honesta e magnífica que eu fiquei convencido de que Freddie Mercury é deus na terra RAMI MALEK VIVEU FREDDIE MERCURY
Eu acho absolutamente incrível como o Malek capturou a voz, o sotaque, os maneirismos e a fisicalidade do Freddie, tendo não somente de atuar como ele vivia, mas cantar, performar e tocar como ele. É tocante, é pungente, é impressionante e me deixou embasbacado por mais de duas horas.
A audácia de recriar o show do Queen no Live Aid foi soberba e magnânima, um espetáculo de atuação, direção, fotografia e edição. Na moral, Bohemian Rhapsody se sairia muito melhor como um extenso video clipe cru e estilizado do que como uma biografia sobre um sujeito imaculado e seus apóstolos. Fica aí a dica pra quando derem dinheiro suficiente pro Sacha Baron Cohen fazer o dele.
Logo quando ouvi falar do novo filme do Yorgos, fiquei com alguns vários pés atrás. Pareceu ser beeeeeemmm diferente de todos os outros filmes dele, e é: é um filme de época, é divulgado como uma comédia e, mais importante, não foi escrito por ele. Me aparentou ser um típico filme hollywoodiano e, rapaz, como eu fiquei feliz que não é. Mais uma vez, o grego safado me pegou de surpresa.
Por não assinar o roteiro, é melhor esquecer as tramas fora desse mundo e os personagens monotônicos. As obras do Yorgos parecem habitar uma realidade fantástica -- ainda reconhecemos os filmes como um reflexo da nossa sociedade, mas as histórias contadas e as figuras que as protagonizam soam estranhamente alienígenas. É uma mistura um tanto difícil de ser alcançada e até mesmo de ser descrita e só esse gênio pra inflar vida nisso.
Contudo, ainda é um filme do Yorgos. Os super peculiares e excêntricos usos de câmera ainda estão presentes: nosso diretor costuma rejeitar por completo os planos tradicionais; os ambientes e os personagens são apresentados e retratados com muito contra-plongées e grandes angulares, apelando até mesmo para fisheye. Assim, cenários naturalmente grandes, se tornam colossais, preenchendo a tela do cinema como um gigante ameaçador que engole nossas solitárias protagonistas, tornando-as cada vez menores e mais vítimas de suas condições, apesar de crerem fortemente no contrário. De certa maneira, ao enjaulá-las assim mas mostrando-nas em posições de poder, Yorgos captura implicitamente essa paradoxal característica delas. Genialidade é para poucos.
Ademais, a visão crítica de Yorgos ainda se mantém. Assistindo ao filme, me recordei de seus longas anteriores, Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, tentando, em retrospectiva, encontrar um subtexto temático em comum entre esses e A Favorita. Nesse fluxo de consciência que, ora se encontrava em profunda admiração pelo que via em tela, e ora pensando nas obras que tinha visto anteriormente, concluí que Yorgos costuma criticar com veemência os valores da sociedade, sobretudo os morais e os familiares. Acho que finalmente consegui perceber por que fico tão incomodado vendo seus filmes.
Em A Favorita, temos uma rainha um tanto esquisita. Claramente, a mulher possui algum distúrbio mental que afeta a maneira como compreende a realidade e, portanto, a forma como se relaciona com as pessoas e os ambientes ao seu redor, além de ter consequências físicas, como a estranha condição de pele que possui e as dificuldades para se locomover. Junto a isso, temos duas damas de companhia extremamente astutas, ousadas, ardilosas e que exalam sex appeal competindo por sua atenção, amor e genitália. Elas penetram no que há de mais primitivo no ser humano, suas emoções e necessidades, para conseguir o que há de mais cobiçado: o poder.
Assim, colocando essas três sob o mesmo teto, somos entretidos e capturados por suas intrigas, brigas, armadilhas, manipulações e jogos de gato e rato. No meio desse experimento sociológico, há uma verdadeira tragédia sendo explorada tanto dentro quanto fora das telas: duas mulheres sedentas abusando de uma outra já doente e um diretor não conformista tirando comicidade disso e dando divertimento a um público doido para ser anestesiado por mais um produto cultural. Não é isso que acontece. Não, Yorgos não nos deixa cair num sono momentâneo, au contraire, ele nos indaga e nos perturba.
Como mais uma manifestação de suas críticas, nesse filme as vemos agindo no sentido de uma governante, umA rainhA, dominando um reino e fazendo os homens ao seu redor de fantoches, num triângulo amoroso lésbico e mais preocupada com qual subordinada sua vai servir de "sobremesa" do que com os conflitos que seu país está tendo com a França. Os típicos valores morais, familiares e matrimoniais que se esperam de uma aristocrata vivendo no Reino Unido do século XVIII foram todos por água abaixo.
Assim, e se utilizando de uma trilha sonora fora do comum, sem composição musical autoral, confiando muito mais num design sonoro pungente, Yorgos nos intimida e nos deixa na beira de nossas cadeiras olhando para o espetáculo tragicamente belo à nossa frente. Pode ser seu filme mais acessível, com seus personagens coloridos e, pasmem, que possuem inflexões vocais, mas a trama nos perturba e, a despeito de quem quer que seja que se torne a favorita, nos pegamos compassíveis e lamentando pelo que a sede por poder leva as pessoas a fazerem.
Segundo filme do Godard que vejo. Assim como o primeiro, Adeus à Linguagem, dormi um bocado ao longo do filme, só que, dessa vez, após tanto estudar fotografia e não houve aglutinações dos meus sonhos com o que vi em tela.
Eu ri bastante. Toda vez que o sujeito relembrava a Marianne que o nome dele é Ferdinand e não Pierrot, o filme me fazia pensar em sketchs de comédia e eu caía na gargalhada. Gostei muito do uso das cores primárias e em como elas são alternadas entre os protagonistas. Ele passa a maior parte inicial do filme de azul e ela, de vermelho, e isso troca quando ela some e depois volta. Após isso, ele fica demasiadamente sentimental e ela, "racional".
Finalmente vi a cena pela qual eu tanto me apaixonei ao longo de anos de tumblr: a do "você fala comigo com palavras e eu te olho com sentimentos". Não sei elaborar isso muito bem, mas esse diálogo me deixa inexplicavelmente enternecido, me faz pensar em como quem o escreveu tem uma compreensão tão sensível dos sentimentos humanos e, de forma metafórica (?), sintetiza conflitos interpessoais em duas linhas faladas. Me faltam palavras, mas eu fico tão acalorado, aconchegado e ENTENDIDO quando eu vejo isso. Sei lá, é bonitinho e jovial e passional e afetuoso.
Eu não entendi boa parte do que vi, ouvi e senti, mas me causou reflexões e emoções, que é o que basicamente acontece quando você tem uma experiência estética que te toca no âmago. Apesar das evidentes críticas sociopolíticas que, honestamente, me soaram um tanto rasas e das tantas referências pop, achei um filme leve e descontraído sobre o amar, sobre o sentir, sobre o frustrar e ser frustrado, sobre o se envolver com outro ser. De novo, é bonitinho.
Muito provavelmente vou reassistir ao longo da vida. Tem muitos monólogos e diálogos pungentes para se ponderar conforme for experimentando os passares da existência. Ah, é tão bonitinho.
Nos mitos gregos, mais especificamente nas tragédias, há sempre uma subjacente sensação de ultimato, de fadário, de que os personagens estão destinados a chegar a tal lugar, a enfrentar tal criatura ou a cometer tal ato, muitas vezes, horrendo, sem muita escolha, por comando divino. Não há como fugir.
Isso me lembrou que em Hereditário, se eu não me engano, em uma das cenas, um professor pergunta se um final trágico é """mais trágico""" caso o fim seja irrevogável ou caso a pessoa tenha tido opções de escolha, mas acabou tomando decisões que a levaram a um fim infeliz. É uma pergunta que vez ou outra surge em minha cabeça quando escrevo alguma coisa ou quando vejo filmes como esse. Puta merda, eu tô acabado.
Logo de início, eu fiquei completamente revoltado com toda a sequência primorosa da balada gay, por dois motivos. Primeiro, como caralhos o Gaspar Noé realizou aqueles movimentos com a câmera? O que é aquilo? Como ela roda daquele jeito, tão fluída, tão leve, como brisa passando por folhas? Tava acoplada num giroscópio preso à uma grua; mas há momentos em que claramente está no ombro; e o ambiente é fechado; como???? Segundo, eu REALMENTE tinha de ver um rosto ser completamente esmagado até pedaços de crânio e de massa encefálica pularem pra fora??? Eu não sei, mas eu tô bem puto tentando entender isso tudo ainda.
O que me leva a outro ponto: era necessário eu ver uma mulher sendo estuprada ad eternum, ao ponto de me indagar se eu deveria parar de ver o filme? O que foi aquilo? É uma atuação soberba da Monica Belluci? É. Ela me convenceu de que ela foi agressivamente violentada? Porra, pra caralho. Eu fiquei absolutamente nauseado e puto com o mundo e com o escroto que viu aquilo tudo, mas preferiu dar meia volta sem fazer nada? Porra, cara.
Eu achava que o Lars Von Trier gostava dum chock value em seus filmes. Depois de ver isso daqui e Sozinho Contra Todos, estou revendo meus conceitos de mostrar para chocar. Contudo, também nos faz pensar.
De início, vemos um Vincent Cassel animalesco, destruindo tudo e todos pela frente, sem um pingo de piedade ou remorso. Pensamos "nossa, isso é um cara revoltado e cruel". Mas será mesmo? Em ordem reversa, tendo nos mostrado primeiro as consequências de um ato de vingança que foi completamente pela culatra, Noé nos indaga se as atitudes tomadas foram válidas ou até mesmo se são de todas humanas, ainda mais levando em conta que é um ser humano completamente cru, desprovido de qualquer filtro, tanto pela droga quanto pela revolta, no ápice de suas emoções, sem um pingo de raciocínio sobre o que está fazendo.
Depois de um bom tempo tentando compreender o que aconteceu e quem caralhos é La Tenia, vemos o gatilho daquilo tudo. Uma mulher chateada com seu namorado, na dela, voltando pra casa, sem incomodar ninguém, calada e pensando na própria vida, é subitamente atacada por um drogado cheio de ódio no coração, violentador de mulheres e doido pra fazer merda como se não houvesse amanhã. La Tenia estupra Alex num ambiente sujo, em público onde qualquer um poderia ver, intercalando entre bombeadas e cheiradas, xingando a plenos pulmões e urrando de prazer. É um psicopata em seu primor.
Me parece que nos mostrando de forma tão explícita e escancarada atos tão horrendos e repreensíveis numa ordem cronológica inversa, Gaspar Noé surpreendentemente comenta sobre a moralidade do comportamento humano, sobre as crenças que levam a certas tomadas de atitudes no grande universo randômico em que vivemos. Ele retoma questões de seu primeiro filme: o que é moral e o que é justiça?
Em sua estrutura reversa e com seu conteúdo ultrajante, Noé constrói uma narrativa com um notável peso moral. Quanto mais o filme passava, pior eu me sentia, tanto por ter aguentado tanta coisa horrorosa, quanto por saber exatamente em que ponto aquele casal bonito e apaixonado, cheio de vida e de sonhos, acompanhado de seu amigo enfadonho mas engraçado iria terminar. Me dava uma angústia saber que o final seria irreversível, independente do que fizessem, do que falassem, do que pensassem, de que decisão tomassem.
É uma tragédia grega, com seus heróis subitamente presos numa narrativa horrenda por comando de seu diretor e escritor, que serve tanto como deus de suas pequeninas e medíocres vidas e como as Moiras desse universo, tecendo cada linha do que vai acontecer, simbolizado, ainda, por aquele plano zenital que, num estrobo, transforma um sprinkler sobre uma grama vivamente verde numa evocação do cosmos.
Não achei que um dia diria isso, mas, uau, Gaspar Noé foi genial.
Poucas vezes eu fiquei tão genuinamente enojado e incomodado com um filme. Em Sozinho Contra Todos, Gaspar Noé nos mostra o ralo entupido da humanidade, cheio das mais deploráveis atitudes e convicções em monólogos demasiadamente nauseantes vindos da mente perturbada de seu protagonista, o Açougueiro.
Em Fargo, na série, não lembro se também tá presente no filme, no porão do personagem do Martin Freeman tem um pôster com alguma coisa envolvendo um bando de peixes iguais indo numa direção e um outro de cor diferente nadando em outra, com os dizeres "e se todos estiverem errados?". Levando em conta as atitudes estúpidas que o boçal faz mantendo esse lema em mente, envolvendo matar a própria mulher, esse pôster é um bom emblema do que se trata esse filme aqui.
Muita coisa nesse longa me fizeram pensar imediatamente em Memórias do Subsolo, uma novela do Dostoiévski, e em Taxi Driver. Todo o monólogo inicial, alternando inserts sobre a vida do personagem -- que, logo de cara, em retrospectiva, se estabelece como um narrador não confiável --, comentando sobre as aleatoriedades da vida numa reflexão acerca do que é moral ou justo, em conjunto com os solilóquios que permeiam o filme inteiro, em longos takes com o Açougueiro vagando em ruas vazias, me fizeram lembrar do protagonista dostoievskiano: um homem solitário, revoltado com tudo e com nada, numa revolução pessoal e irracional, tentando desesperadamente ajustar os seus arredores com base em seu interior.
O que me leva ao Travis Bickle: outro homem incapaz de compreender a si mesmo, mergulhado num ódio contra a si mesmo projetado no Outro, de ego absolutamente frágil como porcelana, encarando o mundo armado até os dentes. Assim como o protagonista do filme do Scorsese, o Açougueiro comenta exaustivamente sobre sua reclusão social, sobre como é duro mas libertador ser sozinho (perceba que é um mecanismo de cooperação), sobre como tudo e todos ao redor estão errados em completamente tudo que fazem ou deixam de fazer e como, em sua ignorância, rejeitam tudo que é diferente, manifestado por meio do estrangeiro e da mulher, recorrendo à violência viril para solucionar a sociedade podre e imoral que os cerca. Ah, como eu amo um estudo de personagem.
De qualquer forma, Gaspar Noé leva seu protagonista a outro nível quando, por meio de insights acerca de sua mente, nos faz entender seus pensamentos, atos e mecanismos de defesa do ego, contudo, em nenhum momento nos querendo fazer enxergá-lo como alguém bom -- ao contrário de produções como You --, mas exatamente como humano. Ele ama, ele detesta, ele sofre, ele regozija, ele fode, ele é fodido, ele violenta, ele é violentado -- ele é morto, mas estranhamente não mata; ele tortura, ele molesta, ele corrompe... ele é covarde demais para abater o outro.
O final não poderia ser outro. Ele finalmente encontra consolo em sua jornada de autodescobrimento. Depois de concluir que todos ao seu redor são exatamente como ele esperava, porcos imundos e mesquinhos, ele segue em direção à salvação, à única coisa que ama e que o conforta: sua filha, ou melhor, seu desejo irrefreável por ela. Continuamente ele proclama que a ama, que a protegerá, que a manterá a salvo da imoralidade alheia, afinal, ela é a única coisa boa que há no mundo. Mas, repare, isso é somente porque ela veio dele. É um porco narcisista mesmo. Parabéns, Noé.
Agora, me encontro intrigado para ver os outros filmes que levam nomes de palavras pronunciadas em momentos chave deste filme: Irreversível, Enter the Void e Love. Parece que tudo se conecta.
Masculino-Feminino
3.9 159 Assista AgoraTerceiro filme do Godard que vejo. Dessa vez após ter tido uma transa desmarcada e, ao contrário dos outros dois, não dormi em momento algum do filme. Acho que foi até uma boa maneira de lidar com a frustração, apesar de ter demorado um bocado pra entrar no ritmo do que aparecia em tela. Alguns meses atrás, vi uma cinebiografia sobre o diretor, O Formidável. Assim como o Godard do filme -- não sei como ele é na vida real --, o protagonista masculino é terrivelmente insuportável. Sonha com ideais, os professa profusamente, sai enchendo o saco alheio com suas ideias absolutas, enquanto nada ou pouco faz para colocar suas ocas palavras em prática. Existem muitas ruas para nosso personagem andar, mas ele vive em cafeterias.
Ironica ou simbolicamente, quem sabe, eu havia visto um vídeo que tá rolando nas redes poucos instantes antes de ver o filme. No vídeo, um rapaz é carregado à força no centro do Rio por sujeitos fardados com uniformes da guarda municipal para dentro de uma van particular, de uma empresa de turismo, e de placas encobertas. Logo depois, o cinegrafista se move para uma viatura atrás do veículo e, junto com outras pessoas, cobra dos policiais que persigam a van e acabem com o sequestro. A polícia se faz de sonsa e finge que não é com eles. Pouco após o início do filme, Paul assina um abaixo assinado denunciando a prisão injusta de 8 pessoas no Rio de Janeiro, durante o período da ditadura. É.
Masculino Feminino é carregado da visão política de Godard, mas esta, assim como as atuações e situações que permeiam a narrativa, é improvisada e frustrada -- o que me leva a outro ponto. Percebi que é comum nos filmes dele que as cenas e seus diálogos sejam completamente desprovidos de naturalidade cotidiana, parece mais algo onírico, como fragmentos de sonhos mesmo. Contudo, quando o Paul recebe um presente da Madeleine e começa a assobiar uma música enquanto Elisabeth acaricia o rosto de sua (sim, dos dois) amada, rodeados por uma descendente de vítimas do holocausto negociando seu programa e pela Brigitte Bardot lendo uma peça, nada me parece mais humano e diário do que isso.
Vidas sem Destino
3.7 659Dá pra resumir esse filme em uma palavra: perversão.
O Farol
3.8 1,6K Assista AgoraO Farol foi um verdadeiro sonífero pra mim em muitos momentos, assim como foi uma parada extremamente incômoda em outros, mas uma coisa é certa: Robert Eggers é completamente fodido da cabeça.
Esse é o tipo de filme que dá pra galera ter as mais diversas interpretações. Vendo uma entrevista do Robert Pattinson ao Film4 deixa isso claro -- nem ele sabia o que pensar direito sobre a história, se o que se passa é real ou fantástico. De qualquer forma, me parece que a ilha é real, os personagens são reais, mas a lenta e progressiva espiralização na mais alucinante loucura floreia a narrativa com elementos fantasiosos, o que enriquece bastante a trama.
A minha impressão se deu sobretudo a três fatores: (1) a cena do Willem Dafoe pelado, com luzes que atravessam seus olhos e penetram nos de Robert Pattinson, (2) a menção e a representação do mito de Prometeu e (3) a irritadiça fala do personagem mais novo dirigida ao mais velho, dizendo "[...] você não é meu pai, então pare de agir como tal".
O conceito de "luz" é amplamente associado ao conhecimento. Prometeu foi responsável por roubar o "fogo" da vida e dar aos homens, o que lhe rendeu a punição de ter um pássaro devorando seu fígado eternamente. Ao final do filme, o personagem de Robert Pattinson finalmente consegue ver o que está dentro da iluminação do farol, surtando no processo e termina tendo seu cadáver tornado em comida de gaivota.
Além disso, os dois protagonistas são personagens que se complementam no sentido de que são homens quebrados por traumas de suas vidas passadas e que estão a todo momento fugindo de seus fantasmas. Quanto mais conversam e involuntariamente se abrem um ao outro, mais entram em contato consigo mesmos e com as memórias que estão evitando. Eles se reprimem e MUITO.
Assim, penso que essas alegorias servem pra ilustrar esse profundo mergulho na insanidade desses dois personagens. Após, a contragosto, terem tido uma tomada de consciência, entrando em contato consigo mesmos, com seus traumas e questões particulares, os dois protagonistas se veem numa situação de serem absolutamente incapazes de lidar com suas identidades, com quem realmente são de verdade: afinal, somos humanos, criaturas frágeis, que sofrem e fazem sofrer.
Perceber isso e se reconhecer nisso é muito doloroso.
Grilhões do Passado
3.8 8 Assista AgoraGrilhões do Passado, ou Mr Arkadin, é honestamente uma versão frustrada de Cidadão Kane. Temos as mesmas batidas narrativas: um cínico bilionário envolto em mistério, um bucha que vai de um canto a outro ouvindo histórias sobre o gigante rico, um segredo inviolável -- paralelo de Rosebud com a filha de Arkadin -- e construções cênicas sinuosas, provocadoras e impetuosas, assim como seu personagem título.
Visualmente esplendoroso mas narrativamente convoluto (meu deus, TUDO nesse filme precisa ser explicado?), não é de se impressionar que Orson Welles tenha abandonado o filme na sala de edição e o renegado posteriormente. Infelizmente, o filme vai do nada a lugar nenhum, sendo apenas mais uma tentativa do nosso gigante de contar aquilo que fez com maestria anos antes.
[REC]⁴ Apocalipse
2.5 593 Assista AgoraA impressão que me fica após ter maratonado os 4 filmes é que, além de os criadores por detrás da franquia não terem tido IDEIA de como conduzir/finalizar suas obras. ainda deve ter acontecido alguma espécie de grave desentendimento nos bastidores. Enquanto o REC 3 é um filme que debocha de si e de tudo que veio anteriormente, o 4º ainda tenta terminar a mitologia criada com algum mínimo resquício de dignidade, amarrando forçosamente algumas pontas soltas e deliberadamente ignorando outras.
O surto de criatividade dos dois primeiros ao apresentar um found footage com elementos sobrenaturais ligados a zumbis, numa incrível forçasão de barra ao introduzir um contágio viral propagado por possessão demoníaca (???), vai completamente por água abaixo quando suas sequências não expandem em seu mito, apesar de seus títulos referenciarem a eventos bíblicos e uma ou outra vez mencionarem a intervenção demoníaca sobre os acontecimentos -- de resto, não há nada de "novo": o terceiro conta uma paródia paralela e o quarto apenas se contenta com batidas narrativas convencionais, eventualmente ignorando por completo o aspecto religioso que justamente suscitava a curiosidade alheia.
Levando em conta o completo fracasso narrativo e de público da produção anterior, parece que a segunda metade por trás da franquia estava consciente desse fato, construindo um suspense num molde mais "clássico". Não há piadinhas gratuitas ou apelo ao melodrama, havendo um foco num tom sóbrio e numa atmosfera mais uma vez claustrofóbica. Mais uma vez, a linguagem de found footage foi lamentavelmente jogada fora, o que revelou de cara que o diretor REALMENTE não sabe conduzir cenas de ação, o que era sabiamente escondido nos dois primeiros filmes através da câmera justificadamente tremida e em cortes camuflados. Antes, o aspecto técnico era louvável por conta das artimanhas encontradas para contar uma inspirada história mesmo com limites orçamentários, causando admiração por conta de seus tantos "planos sequência". Aqui, não há nem inspiração, quanto menos história pra contar -- somente a inércia de uma explosão remota de anos atrás.
Não há motivo para terem trazido a protagonista dos dois primeiros filmes de volta: deliberadamente ignoraram o ÚNICO progresso no desenvolvimento narrativo dela, ao magicamente transferirem o verme infernal para um personagem novo com o qual ninguém possui qualquer tipo de vínculo e de quem não sabemos nada. Poderiam explorar o capeta tocando o terror num navio apertado através de uma aparente inocente sobrevivente de uma horrível chacina, mas escolheram revertê-la ao estado em que se encontrava no primeiro filme, apenas, dessa vez, menos histérica. Isso é preguiçoso e revela a estupidez da escrita do roteiro.
Ao não contar com os cabeças de áreas anteriores -- que aparentemente escolheram ficar com o diretor do fiasco do terceiro REC --, certos segmentos como a direção de arte tiveram certa liberdade para explorar seus elementos, neste caso oferecendo nova maquiagem aos infectados, muito mais agressivos e horrendos do que antes. Pena que é mais uma das várias oportunidades desperdiçadas. Já a direção de fotografia, encabeçada pelo mesmo cara ao longo de toda a franquia, não apresenta qualquer inovação ou inspiração, e reforça o desconhecimento por parte do fotógrafo sobre a existência de grandes angulares: justificável neste filme pela escolha dos cenários, mas não no longa anterior.
Enfim, REC 1 e 2 são pequenas obras primas louváveis por seus lampejos de criatividade e inovação que deveriam ter se resumido a uma duologia, mas que infelizmente foram limadas até a infertilidade, revelando a ingenuidade e o despreparo técnico de seus dois diretores-roteiristas que não tinham conteúdo algum para preencher sua audácia em querer transformar seus filmes de baixo orçamento numa variação barata de Resident Evil.
[REC]³ Gênesis
2.2 1,5K Assista AgoraEu não consigo nem compreender o que aconteceu.
Levando em conta que o filme é dirigido e escrito por um dos diretores dos dois primeiros filmes e conta com os mesmos cabeças de fotografia, arte. edição e som das produções anteriores, fico aqui me perguntando como a galera que pariu a ideia inicial da franquia achou que seria uma boa descaracterizar de forma tão gratuita aquilo que, à primeira impressão, criaram com tanto empenho?
Ainda tenho de ver o último filme pra ver se este foi apenas um "experimento", no sentido de avaliar como o produto deles ficaria se feito completamente às avessas, explorando outras convenções de gênero etc, ou se é o que parece quando REC 3 chega por volta da marca dos 20 minutos: Paco Plaza ao escrever que o protagonista quebra a câmera do cinegrafista, não imaginou de forma satisfeita como poderia conduzir a trama a partir daquele ponto, bateu AQUELA preguiça e pensou "ah, vou tacar o foda-se" e todos na produção por serem migs toparam fazer uma paródia dos próprios filmes.
Uma coisa é certa: a diversão que eles tiveram fazendo esse trashzão sem pé nem cabeça que destrói a mitologia que eles mesmos criaram não foi passada pro público, não.
Deixo aqui meu incessante questionamento que tive frente a absolutamente tudo que acontecia nesse filme: POR QUÊ?
Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal
3.3 584 Assista AgoraCurioso pensar que o diretor deste filme também dirigiu o documentário sobre Ted Bundy presente na Netflix. Enquanto esse último é extremamente competente em destrinchar toda a teia de crimes, relacionamentos e atitudes de Bundy, o primeiro insiste em deixar mais complicado ainda uma investigação e posteriormente um julgamento que duraram mais de uma década.
A persistência na suposta dúvida sobre a culpabilidade de Ted Bundy vai completamente por água abaixo se levar em conta a popularidade do caso e O FATO DE QUE O JOE BERLINGER SE UTILIZOU DE SEU DOCUMENTÁRIO PARA ATRAIR BUZZ PARA O FILME (???) Assim, a narrativa perde seu charme, que vai todo para a atuação surpreendente de Zac Efron -- que merece algum reconhecimento por carregar o filme nas costas.
O fraco roteiro não consegue se sustentar nos diálogos que tenta criar, se fazendo valer por recriações de momentos famosos, ao invés de de fato mergulhar na privacidade da vida dos envolvidos, não mostrando nada de novo ou de inventivo. Ademais, há algumas coisinhas bem piegas como o ocasional filtro de gravações setentistas ou aquela cena descartável do Bundy colocando medo no cachorro na base da força do pensamento.
De qualquer forma, é um filme assistível que pouco a pouco se torna tedioso até ganhar sopro de vida perto do final pela corajosa atuação do protagonista, além de contar com rostos conhecidos certamente para atrair audiência. Infelizmente, por conta de uma direção fraca, Lily Collins não consegue colocar pra fora todos os sentimentos de sua personagem e John Malkovich se encontra fazendo um pouco mais do mesmo, que já é algo seguro o suficiente.
Não precisaria se agarrar ao sensacionalismo barato para ser melhor, como o filme tentou aqui, mas talvez um pouco mais de sagacidade ao não contar com a ignorância ou com a boa vontade alheia quanto à responsabilidade dos crimes faria com que os cabeças do projeto se prestassem a mostrar essa lamentável e revoltante história com algo além de somente mais do mesmo.
Aziz Ansari: RIGHT NOW
3.8 16Ainda tentando entender como aconteceu Spinke Jonze dirigindo um stand up do Aziz Ansari.
Van Helsing: O Caçador de Monstros
3.3 1,1K Assista AgoraO Drácula desse filme é tudo de bom: levemente inspirado no Bela Lugosi, charmoso, anda pelas paredes, escandaloso e ainda é interpretado de maneira bem “camp”. Genial, chega a ter um toque teatral. Já a Criatura de Frankenstein me cativa toda vez que implora para viver, implora para EXISTIR. A tragédia manifesta.
Fui rever após muitos anos — era um dos meus favoritos quando criança — e me surpreendi que sobreviveu bem ao teste do tempo. De certa maneira, como Garota Infernal, lida com seus personagens e temas de maneira bem tosca e exagerada, dando um charme a mais a uma história que, se feita de maneira mais morna, menos enérgica, ficaria facilmente inassistível pela falta de substância.
Por falar nisso, as criativas e hiperbólicas cenas de ação, com repetitivas cambalhotas e usos de cabos no maior estilo Tarzan, com direito a escaladas nas paredes, é o que preenche esse filme de inventividade. Poucas coisas entretêm tanto quanto Hugh Jackman bancando o Van Helsing super herói.
Aurora - O Resgate das Almas
2.3 26 Assista AgoraProvavelmente não foi a melhor escolha pra eu ter um primeiro contato com o cinema filipino.
Nós
3.8 2,3K Assista AgoraDe fato, expectativas são uma merda. Levando em conta o primor de Corra, esperava um pouco mais do novo de Jordan Peele. Em comparação, o filme já não é lá isso tudo e o terceiro ato, absolutamente terrível, quase destrói a obra: ao invés de somente abraçar a ideia fantasiosa das cópias, Peele envereda por um turbulento caminho repleto de furos ao tentar EXPLICAR a origem e o propósito dos macacões vermelhos. PÉSSIMA decisão.
Soma-se a isso momentos avulsos em que os personagems subitamente emburrecem e realizam atitudes completamente estúpidas, o desperdício de Elisabeth Moss e um final completamente auto indulgente, em que eu consegui visualizar o Jordan Peele piscando e dando um sorrisinho besta, se achando tão sagaz com um twist infelizmente telegrafado.
Apesar dessas burradas, sua nova obra é permeada de duras e inteligentes críticas à atual sociedade ocidental, com seu pavor do Outro, aludindo sobre as díspares dicotomias de classes e sobre a questão dos refugiados. Além disso abusa sabiamente da versatilidade ímpar da Lupita Nyong’o e do carisma do Winston Duke, ao mesmo tempo que constrói uma perversa e perturbadora atmosfera, até mesmo invocando Michael Haneke no processo.
Aguardo ansiosamente pelas próximas cartas que Peele possa ter nas mangas.
A Deusa da Vingança
2.8 179 Assista AgoraSam Was Here é um interessante experimento sobre a mente fragmentada de um assassino. A trilha musical ambient, repleta de sintetizadores e reminiscente de Neon Demon, é uma excelente escolha para ditar o ritmo da narrativa, dando um clima fantasioso, tenebroso, algo fora da realidade. A pulsante luz vermelha, onisciente de cada passo do nosso protagonista, que vaga pelo céu e, posteriormente, ilumina o exterior do corpo sujo e sangrento de nosso antagonista, o Eddy, ganha uma instigante sugestão de interpretação quando a velha diz que Eddy está “dentro”. Aliás, o ator que faz o Sam carrega um enorme peso dramático em seus olhos e em sua postura, ao mesmo tempo que interpreta um sujeito aparentemente simplório e cotidiano. Interpretação genuína. Por mais simples que seja, o filme carrega uma atmosfera fantástica que conta a história de um assassino pouco a pouco aceitando seus nefastos demônios interiores. Relevante filme experimental, repleto de signos emblemáticos, nunca entregando de mão beijada o que almeja. Certamente digno de mais atenção.
Clímax
3.6 1,1K Assista AgoraMEU GASPAR NOÉ ESTÁ VIVÍSSIMO POURRAAAAAAAAAAAAAAAAAAA AA
A mais nova obra prima de Gaspar Noé é um tanto surpreendente, tanto por cima sua temática, trama, escolha de atores, quanto por sua produção e recepção. Quando você acha que já sacou qual é a do Noé, o diretor-autor protótipo do provocador Novo Extremismo Francês chega com um longa metragem sobre uma trupe de dançarinos enclausurada numa construção abandonada no meio da neve que lentamente perde a sanidade e a moralidade. Em Clímax, temos um filme experimental de terror de dança que usa e abusa de synth music. Suspiria nunca ousou ser tão bom assim.
Ao contrário de seus filmes anteriores, especialmente Sozinho Contra Todos e Enter the Void, longas que demoraram literalmente ANOS nas fases de pré, produção e pós -- o primeiro foi gravado ao longo de 5 anos e o segundo, quase 20 anos foram levados só pra sair do papel --, Clímax teve sua concepção num mês, gravado noutro, num período de 15 dias dentro dum enorme galpão, e finalizado em mais um. Além disso, esse é seu filme melhor recebido tanto por crítica quanto por público, apesar de carregar muita bagagem similar do que veio antes. Parece que quanto menos Noé pensa sobre o que faz, melhor o faz. Gênio.
Numa espiral de insanidade que dita tanto ritmo quanto narrativa, nosso elenco é levado aos seus impulsos mais primitivos, profundamente guardados em seu inconsciente, por conta de uma sangria batizada com LSD. Num minuto, essa incrível trupe de dançarinos, permeada por verdadeiros artistas do estilo "krumping", e coloridos por seus vários gêneros, etnias e sexualidades, num ato lindo e comovente de trabalho coletivo, caem num poço de auto destruição, que inclui sexo, incesto, assassinato, suicídio e aborto... em frente à bandeira francesa, onde antes havia uma sublime coreografia grupal, há agora o mais sangrento clamor individual.
Num filme emblemático sobre construção vs destruição, Noé, incidentalmente, comenta sobre o atual estado da União Europeia -- antes, um grupo cultural e econômico referência para o mundo ocidental --, agora, um no qual seus países se encontram confusos, em conflito interno e com um levante racista e preconceituoso tomando forma como assustadoramente aconteceu no início do século passado, frente à entrada recente de estrangeiros refugiados de países em guerra, sobretudo vindouros do Oriente Médio.
Em seu filme, sua trupe de negros, brancos, pardos, loiros, dreadlocks, gays, bis, héteros..., em meio à loucura psicodélica, pouco a pouco, se encontram num livro da Agatha Christie, no melhor estilo "whodunit", possessos em busca do culpado por ter "batizado" a bebida. Em quem encontram seu principal suspeito? No muçulmano. Sem titubear, o expulsam para o exterior da construção, para o limbo cheio da mais branca neve que o engolirá em seguida. De novo, emblemático.
Em seguida, rapidamente, Clímax vai assumindo uma nova roupagem, cada vez mais paranóica e insidiosa. Qualquer um familiar com filmes de George Romero, ou de mortos vivos em geral, notará a semelhança patente que o novo de Noé possui com esses. O enclausuramento num ambiente fechado, música (por mais diegética que seja) que impulsiona o senso de perigo, personagens paranoicos pouco a pouco "tomados" por impulsos animalescos, enquanto outros fogem avidamente deles... a patente febre da cabana.
Ao contrário de seu Enter the Void, não há recursos visuais caleidoscópicos para nos colocar no ponto de vista do drogado, dessa vez, nos põe em terceira visão, como um voyeur, para examinar as atitudes de nossos personagens, e nos chocando enquanto isso. Aqui, a violência corporal e o exame do corpo volta com tudo. Além de gráficas cenas de mutilação e espancamento, Noé meticulosamente mostra a FORMA, ou as FORMAS, do corpo humano, por meio dos dançarinos que se contorcem de maneiras inacreditáveis. Nem mesmo em seu filme anterior, Love, com toda a nudez pornográfica, houve tanto uma análise corporal como em Clímax.
Com longuíssimos takes e planos sequência de até 42 minutos, com sua característica câmera flutuante acoplada à grua, que vaga, voa e dá cambalhotas pela cena, Noé constrói uma oscilante parábola sobre os desafios da multiculturalidade, sobre o fracasso das coletividades. Em mais um exame sobre a condição humana e sua vida em sociedade, Noé trata o corpo como um guia de estudo do Outro. O desconhecido, o estrangeiro, o forasteiro, o "outsider", é explorado, e violentado, à exaustão no seu mais novo e soberbo body horror.
Com suas pirotecnias visuais, sua câmera, AH, A CÂMERA ONÍRICA DE NOÉ, terminamos Clímax encarando nossas presas e predadores literalmente de ponta cabeça, com a orientação invertida, num ardente e pulsante vermelho, com gritos e grunhidos de dor enchendo a sala. Posteriormente, encaramos as vítimas e agressores num zenital, mais uma vez no que chamo de sua "visão da Criação". Enquanto uns se encontram mortos, outros estão no mais profundo êxtase. Não há maneira mais exata de representar o mundo em que vivemos.
Love
3.5 883 Assista AgoraPoderia-se dizer que Love é o filme mais convencional de Noé, claro, tirando as cenas de sexo. Creio que poderia ser até um filme do Xavier Dolan, na época de Amores Imaginários. As pirotecnias visuais marcantemente presentes nos dois filmes anteriores de Noé deram lugar a usos convencionais de câmera e à utilização excessiva de monólogos irracionais, similares ao de Sozinho Contra Todos, para exteriorizar os sentimentos de nossos personagens. Não diria que Noé se dá tão bem com palavras assim.
Certamente, as metáforas visuais, marca patente de Enter the Void, por exemplo, servem muito mais às narrativas de Noé, dão mais voz aos seus personagens do que ditas palavras. Aqui, quando nossos protagonistas tentam dar vazão aos seus pensamentos por meio de exposição de suas ideias ou até mesmo por discussões acaloradas, acaba soando pueril demais, raso, superficial, como um adolescente que leu sobre um assunto novo horas antes e acha que sabe alguma coisa. Nhe.
Ademais, em sua ignorância jovial, Murphy lembra uma espécie de protótipo do que pode vir a ser o açougueiro de Sozinho Contra Todos. É um homem (importante) cheio de sonhos, vendo-os sendo frustrados à sua frente, sem contato com seu interior, brilhante mas ainda burro. É como Electra diz, é um jovem inteligente que não sabe o que é o amor. Assim, por conta de sua inabilidade de compreender a si e ao mundo, Murphy desconta sua frustração nos outros, até mesmo naqueles que ama e que o amam. Triste.
Parece que as cenas de sexo explícito fogem somente ao seu significado literal, oferecendo, também, através da visão de corpos desnudos, nossos personagens despidos de seus filtros morais e sociais, deixando com que suas emoções fiquem à flor da pele, expondo a incapacidade deles de compreender seus próprios sentimentos.
Talvez, em última instância, Love seja sobre a incompreensão do Outro, sobre como estamos tão focados em nós mesmos, em nossos problemas e desejos, que não apreendemos que a autopercepção somente virá se acompanhada do entendimento acerca das necessidades da nossa contraparte, num sistema total. Assim como tentamos nos perder nos corpos alheios, entrando e saindo deles, talvez estejamos fadados a entrar e sair de relações, nessa fluidez de relacionamentos com a qual vivemos.
Por mais que eu tenha achado o filme enfadonho em alguns momentos, eu senti um ÊXTASE PROFUNDO COM A TRILHA MUSICAL UAAAAAA, e o final do filme, com os fade ins e fade outs alternando sobre os corpos entrelaçados do Murphy e da Electra, com eles confessando seu amor e implorando para que um nunca abandone o outro me ganhou completamente. É belo mas desesperador, naquele momento, no suicídio velado do Murphy ao ter em sua cabeça a fantasia ou o fato da morte de Electra, pensar que é necessário morrer para se conseguir ficar em paz com alguém.
Love
3.5 883 Assista AgoraGaspar Noé fez um pornozao, com historinha e tudo
Enter The Void: Viagem Alucinante
4.0 870De cara, Enter the Void já salta aos olhos por sua linguagem pouco usual: o uso de câmera em primeira pessoa. Não se engane, não é somente uma câmera subjetiva, que nos coloca nos olhos do personagem e nos mostra por algum momento ao que sua visão apontou; Noé literalmente nos coloca na cabeça do protagonista... por horas a fio. Junto a ele fumamos, nos olhamos no espelho, jogamos água na cara e vagamos pelas ruas banhadas em neon de Tóquio. Mais ainda, junto a ele, ao Oscar, entramos numa pira alucinógena e entramos numa viagem regada a manifestações cerebrais psicodélicas reminiscentes do movimento de caleidoscópios e algas marinhas. Noé, mais uma vez, quer extrapolar o vocabulário cinematográfico com o qual estamos acostumados.
O terceiro filme de Gaspar Noé é, sem sombra de dúvidas, o seu mais ambicioso. Quinze anos sendo cozinhado na panela de sua imaginação, teve Irreversível como sua "versão teste" -- nas palavras de seu criador, foi um "assalto ao banco", tanto no sentido financeiro, para mostrar que seus filmes poderiam lucrar, quanto no criativo, para experimentar com diversas técnicas --. Muito de seu segundo filme se encontra aqui, narrativa não linear, uso de elementos ultrajantes, personagens desgostáveis e um usoALTAMENTE INCRIVELMENTE ONIRICAMENTE METICULOSO DE SUA CÂMERA, AH A CÂMERA DE GASPAR NOÉ, O SONHO DO ESTUDANTE DE CINEMA
Com suas panorâmicas mirabolantes, alternadas em planos master e over the shoulder, numa utilização completamente única de câmera acoplada à grua, Noé, em nenhum momento, abandona a linguagem que instaurou nos segundos inicias de filme -- a de primeira pessoa, um passante num mundo passageiro --; apesar do protagonista não mais "piscar" ou falar, ainda estamos em sua "cabeça", posteriormente, dentro de sua alma, analisando aquilo que todos temem quando morrem: a vida. O que acontece depois que eu for? Será que o que eu vivi valeu a pena?
Noé classifica seu terceiro longa como um "melodrama psicodélico", ao nos mostrar os dramas pessoais de dois irmãos cujas vidas foram carregadas de tragédia e droga, muita droga. Como o gênero sugere, seus personagens não possuem muita profundidade, sendo meros peões para o desenvolvimento de algum tema dramático, no caso, a profunda relação afetiva dentre os dois, em meio aos contextos sociais marginalizados em que foram inseridos. Não posso dizer que concordo.
Ao meu ver, Enter the Void poderia ser o que chamarei particularmente de "thriller sublime". Acompanhamos a vida noturna de um jovem traficante e sua irmã stripper tentando fazer dinheiro em meio à uma Tóquio psicodélica, energética e decadente. Elementos de investigação policial são patentes mas tangentes, como quando Oscar é morto durante um enquadro e a polícia segue investigando e coletando provas sobre o esquema ilegal de drogas ao longo do filme, conforme acompanhamos os dramas, sobretudo, de Linda e Alex.
Contudo, o foco não se mantém ali, apesar de, pela maneira única como as cenas são gravadas e montadas, conseguimos ter consciência da investigação. Durante a costura das sequências do filme, entramos em contato íntimo com as lembranças da vida de Oscar, seus sofrimentos, traumas, sonhos e desejos. Em seus flashbacks alucinógenos, tomamos ciência da morte dos pais, da cisão de uma família, da súbita interrupção do desenvolvimento de dois irmãos e como isso os marcará.
Da maneira mais Freudiana possível, mais uma vez retorna um dos temas recorrentes nas obras de Noé: "o que é moral?" Temos um irmão intimamente ligado à sua contraparte, com o dever de protegê-la e de cuidar dela, mas em meio aos seus deveres fraternos, há um latente desejo incestuoso por sua irmã. Ele não quer somente o bem dela, Oscar quer possuir Linda, dominar Linda, TER Linda. Em menor grau, sua irmã reciproca, ambos numa confusa afeição de amantes e pais.
Com isso, há outro ponto. Constantemente, vemos Oscar pensar, rememorar, alucinar sua mãe, a memória afetiva de sua mãe, aquela que perdeu ainda criança, mas que, até então, se mostrava uma das figuras mais caridosas e afetivas de que se tem notícia, exalando ternura em seu sorriso e em seus seios. Oscar frequentemente justaposiciona os seios de sua mãe com seios de outras mulheres, incluindo os de sua própria irmã e os da mãe de seu amigo. Ao transar com essa última, Oscar entra em contato com a "figura materna", uma forma de se reconectar com alguém e com um passado há muito perdidos, uma maneira de se ligar ao arquétipo mãe.
Ademais, em suas alucinações oníricas, obtidas através das projeções de consciência, de experiências além-corpóreas, por conta da morte do protagonista, Noé nos coloca numa perspectiva única, aquela da "Criação". Num zenital que domina boa parte do filme -- atente, ainda na câmera em primeira pessoa --, examinamos a vida e seu aspecto passageiro, o vazio da existência, o vácuo da condição humana, nas palavras do próprio Noé. Nada de significativo acontece, além do cotidiano. Morremos e cada um segue com seus dramas pessoais.
Assim, Noé, numa perspectiva de "eterno retorno", retoma os temas da moralidade e do vazio existencial de suas obras anteriores, reimaginando a visão da "Criação", presente em Irreversível, uma onipresente figura que assiste impassível aos males que assolam a vida humana. E, ainda em seu olhar filosófico, finaliza Enter the Void com Oscar, possivelmente, "renascendo" ao ser fecundado em típicas cenas de sexo explícito de Noé e posteriormente retirado do útero, sendo, então, posto no colo de sua mãe: nos colocando, uma última vez, para ver os seus afetuosos sorriso e seios.
Mayhem: Senhores Do Caos
3.5 280A impressão constante que tive ao longo desse filme foi que ninguém da cena tr00 NoRwEgiAn BLACK METAL \w/ hoooooooooooooooorghhhh era particularmente inteligente, né. Eu perdi a conta de quantas vezes eu dei replay nas cenas das festas e do subsolo, quando o BLACK CIRCLE HUAAAAAARHHHHH se reunia pra bater cabelo e grunhir, pra rir do quão patético é um bando de cabeludo imaturo proferindo conceitos que eles não entendiam pra se proclamarem como algo mais evoluído do que aqueles ao seu redor.
Aí fica a questão, o filme não leva seu objeto muito a sério, né? Logo de início quando apareceu o logo da Vice, pensei "hmmm lá vem AQUELE humor irreverente", por "irreverente", entende-se pretensioso, característico das matérias do site. Acho que isso foi um dos motivos pro tom inconsistente do filme: percebe-se a vontade de ridicularizar aquela galera, mas os temas são tão sérios, tanto em termos sociais quanto psicológicos, que a pretensa audácia "viceana" não colou. O filme e suas críticas a neonazistas satanistas soa inócua.
Isso leva ao grande problema do filme. Temos uma comunidade considerável de jovens num dos países com uma das maiores taxas de IDH e, paradoxalmente, com uma das maiores taxas de suicídio, até mesmo como o protagonista narra, e isso simplesmente não é abordado -- nem mesmo quando um dos personagens-chave da trama SE MATA, PORRA.
Claramente era um sujeito sofrendo dos mais pesados males psicológicos, que sofreu bullying, que se cortava e desejava a morte mais do que tudo, cometendo uma verdadeira atrocidade contra seu corpo, e isso simplesmente é levado na ironia, "herp derp ele gostava de matar gato e enterrava as próprias roupas dur hur", porra, me poupe, o cara se cortava nos shows e o público adorava. Havia um evidente problema social endêmico que o filme simplesmente encara como um bando de jovens querendo ser foda. Os realizadores são tão ou mais imaturos que a galera envolvida.
Além disso, há toda a questão do Euronymous ser um sadista safado que incitava o sofrimento alheio, seja encorajando o sofrimento de seu vocalista, o assassinato cometido por seu baterista e a piora emocional de alguém que declaradamente o admirava. Alguns eventos são contestáveis e passíveis de dúvida, o que me fez dar uma pesquisada ao longo do filme. Boa parte do que aconteceu, de fato aconteceu e da forma como mostrada. Houve acontecimentos piores ainda. De qualquer forma, é preocupante inocentar o protagonista frente a tudo que, de fato, fez, falou e incitou. Não acredito que deveria ter morrido, mas também não era o são em processo de redenção que o filme trata.
Há ainda a questão do Varg. Se a intenção era que eu levasse aquele sujeito a sério, o filme falhou miseravelmente. O que, de novo, é problemático. Sim, o cara era um neonazista, satanista, pagão, adorador de Odin e pregava a supremacia branca (??? não sei como funciona a articulação de tanta ideia errada numa cabeça só), mas é EXTREMAMENTE problemático não retratar ele como um sujeito do nosso cotidiano, colocando ele como um pateta, maria-vai-com-as-outras, que acabou internalizando os ideias de sua cena musical um pouco demais da conta. Isso são assuntos sérios, que causam destruição, sofrimento e barbárie.
Há como abordar todos os pontos da cena musical do Black Metal norueguês de forma sardônica, como pareceu ser o intuito, mas voluntariamente ignorar a profundidade e relevância temática de depressão, suicídio, doenças sociais, neonazismo, genocídio, intolerância religiosa, preconceito, racismo, sexismo, assassinato, homofobia, dentre outros subtemas que acarreta, em detrimento de mostrar um bando de menininho machista imaturo, batendo cabeça e brincando de ser mau, já é irresponsabilidade consciente, dando leviandade pra temas em voga e que assolam a sociedade.
Isso se torna mais perigoso se levar em conta que um dos autores que co-assinou o livro que serviu de origem ao filme concorda, ou "concordava", com os ideais extremistas do Varg, que a cena de Black Metal segue firme e forte e que, sim, o Varg, o assassino neonazista e pregador de genocídio, segue vivíssimo fazendo vídeo pro youtube e com uma extensa coleção de fãs que apoiam seus ideais de extermínio.
Cafarnaum
4.6 673 Assista AgoraEu não sei nem como transformar em palavras as emoções que eu tô sentindo. Fúria, revolta, angústia. Eu tô chorando muito. Caralho. Eu tô destruído.
“Smile, Zain. This is for a passport, not for a death certificate”. Essa frase tá me assombrando.
O Primeiro Homem
3.6 649 Assista AgoraWow, simplesmente wow. Tudo, wow. É, baixas expectativas são uma coisa incrível. Eu esperava um filme absolutamente chato, patriótico e apelativo a prêmios, mas, wow, e não é que fui maravilhosamente surpreendido.
Damien Chazelle, em apenas seu terceiro filme, se mostra um mestre de sua arte, muito mais maduro que em trabalhos anteriores, nos entregando um longa metragem sóbrio, honesto e sério. Não há espaço para firulas visuais, enaltecimento egoico ou fetiche iconográfico. Esse jovem mas habilidoso diretor tá muito mais preocupado com os sofrimentos e os sacrifícios que levaram a um dos maiores feitos alcançados pelo ser humano. Foi certamente uma abordagem improvável, mas fantasticamente eficaz.
Uma coisa que notei é como o "ícone Neil Armstrong" foi desconstruído, até a sua essência, até a sua humanidade. Em nenhum momento ele é exaltado, seja como pai, esposo, amigo, profissional ou até mesmo como O PRIMEIRO HOMEM QUE PISOU NA LUA. Ele é só mais um tentando lidar com seus problemas.
Armstrong é mostrado tão humanamente genuíno que dá gosto. Ele é um pai medíocre, completamente afastado de seus filhos. Ele é um marido que possui extrema dificuldade de se abrir e de expressar o que sente. Ele é um amigo solitário, de poucas palavras e de sutil presença. A vida passa por ele como vento e ele nem sequer estende a mão pra sentir a brisa entre os dedos. É engraçado pensar como um homem tão grande pode ser tão pequeno.
A morte de sua filha ainda pesa nele, como uma cruz que ele se põe na obrigação de carregar até o fim de seus dias, por ter sido impotente demais para salvar o que havia de mais precioso em sua existência. É um pai que sente que não conseguiu cumprir seu papel. E essa sina vai ditar todo seu arco dramático.
Ryan Gosling carrega esse sofrimento interno de maneira comedida, entregando um protagonista introspectivo e contido, cheio de inseguranças, dúvidas e com muita fúria, muito remorso dentro de si, sem a necessidade de expôr isso em seus diálogos, imprimindo suas emoções no olhar e em suas ações. Ah, O OLHAR DE RYAN GOSLING. Aqueles olhos carregam uma angústia ímpar, uma dor impensável. Obrigado pelos close ups, Chazelle.
Assim, o que esse filme entrega é muito mais um estudo sobre seu personagem, com todas suas nuances, falhas e problemáticas, recusando completamente a saída fácil de glamurizá-lo. Os seus defeitos, aqui enxergados como mais algumas de suas características humanas, são absolutamente inerentes a ele e à forma como lida com suas questões. Armstrong não é inocentado de sua humanidade.
Como deveria ser numa biografia, deixamos de lado por algum momento o ícone de livros de história e de coletâneas de recordes e aprendemos sobre o homem, sobre o sujeito de carne e osso que viveu os eventos retratados. Ademais, é curioso ver como os envolvidos possuíam pesadas dúvidas sobre o sucesso de tudo que faziam, além de que eu estava completamente alheio aos protestos e à revolta popular contra a exploração espacial. Não aprendi somente sobre Armstrong, mas também sobre a situação social referente aos seus trabalhos.
Com isso, a obra vai completamente na direção contrária a de filmes como Bohemian Rhapsody, que se atêm à saída fácil de manter a ilusória idolatria a despeito dos fatos, desenhando um ícone divino que nunca duvidou de si ou de seu sucesso, deixando o conhecimento extra filme afetar completamente a história, fugindo, assim, de ter que problematizar a si.
Ainda, é bom comentar sobre como a fotografia, reminiscente de imagens da época, aliada à equipe de efeitos visuais e práticos, conseguiu construir planos tão belos e avassaladores, como aquele de câmera subjetiva que nos põe na visão de Neil ao se ejetar de um veículo voador incandescente, e aquelas paranômicas de encher os olhos que retratam a estranha Lua e o infindável espaço. A magnitude do infinito carrega um lirismo consigo.
Com essa poética espacial, Armstrong consegue finalmente atingir a conclusão de seu arco narrativo: pondo a pulseira de sua filha numa cratera lunar e eternizando a memória do que lhe é mais precioso. Foi um gesto tão simples, mas tão sublime.
"É um pequeno passo para um homem, mas um grande salto para a humanidade". Não, Neil, foi um grande passo para um homem. Wow.
Bohemian Rhapsody
4.1 2,2K Assista AgoraÉ uma versão higienizada? ....é. Faltou muita droga, sexo, dúvida, questionamento sexual e lascívia? Uhum. Rami Malek merece o Oscar de Melhor Ator? PORRA PRA CARALHO
Particularmente, não conhecia lhufas da vida privada da banda, só algumas coisinhas básicas sobre o Freddie Mercury: sexualidade conturbada, muito sexo, muito talento e AIDS. Com certeza isso me ajudou a apreciar melhor o filme sem ficar me flagelando com toda e qualquer ausência de acurácia por parte do roteiro. Claro, como estudante de Cinema e cineasta amador, dá pra perceber umas facilitações aqui, umas conveniências ali, um excesso de pieguice acolá, mas deu pra deixar passar batido, afinal, é uma biografia, patrocinada pelos membros restantes e com o evidente intuito de enaltecer todos os envolvidos.
Contudo, esse desleixo com os fatos e maquilagem dos eventos possuem seus efeitos colaterais negativos: saí do filme sabendo as mesmas coisas sobre os membros da banda do que quando entrei: absolutamente nada -- ah, sim, um se chama Brian (aquele cabeludo), tinha um cara loiro chamado Roger (?) e eles tinham um baixista tão zé ninguém que nem o Freddie sabe do que insultar ele num momento de chilique; os diálogos soam como uma coletânea de mescla de melhores frases ditas em filmes épicos e melodramáticos oferecidos por Hollywood entre os anos 40 e 60 RAPAZ AQUELA CENA DA CHUVA EM QUE O FREDDIE SENTA O PAU NO BIGODUDO ESCROTO TÃO DIGNA DE NOVELA MEXICANA EXIBIDA NO SBT ME DEU ÁGUA NOS OLHOS E UM ÍMPETO DE COLOCAR O FREDDIE NUM PEDESTAL E O BABACA NUM POÇO SEM FIM é eficiente? é, mas tem aquela parada de que fica muito dicotômico e didático, um é bonzinho e o outro é o maléfico que o levou ao caminho da perdição. nhe
Além disso, temos os personagens terciários em que suas personalidades são resumidas a "amigos do freddie" e "gente escrota que não merece existir". É caricato e não exala humanidade. E, convenhamos, num retrato biográfico, buscamos conhecer a vida de um ícone, vê-lo que é tão ralé quento nós, só que com mais fama e mais dinheiro e mais talento e muito mais legal.
Essa problemática se desdobra em questões sociais, étnicas e sexuais mal abordadas e mal resolvidas. Não vejo peso dramático em dois xingamentos xenofóbicos e numa revolta coletiva quanto à sexualidade do Freddie Mercury se isso é rapidamente resolvido numa reunião familiar.
O que levou o Freddie a negar suas origens? Por que é tão importante ser assimilado na cultura européia? Como um homem velho tradicional aceita num piscar de olhos seu filho não hétero, foi o dinheiro, a fama, ou ficou senil e esqueceu dos valores religiosos e morais que cultivou ao longo de sua longa vida? Mais uma vez, querer tratar a realidade como uma ficção histórica possui seus agravamentos, sobretudo se possui um viés político, moral e ideológico que não leva a sério as próprias questões que pretende tratar.
AGORA VAMO FALAR DE RAMI MALEK AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
Rapaz, que que foi aquilo? Eu fiquei tão absorto na performance malekiana que acabei ignorando completamente outros problemas. Este homem incorporou seu personagem de maneira tão orgânica, fluída, sensível, honesta e magnífica que eu fiquei convencido de que Freddie Mercury é deus na terra RAMI MALEK VIVEU FREDDIE MERCURY
Eu acho absolutamente incrível como o Malek capturou a voz, o sotaque, os maneirismos e a fisicalidade do Freddie, tendo não somente de atuar como ele vivia, mas cantar, performar e tocar como ele. É tocante, é pungente, é impressionante e me deixou embasbacado por mais de duas horas.
A audácia de recriar o show do Queen no Live Aid foi soberba e magnânima, um espetáculo de atuação, direção, fotografia e edição. Na moral, Bohemian Rhapsody se sairia muito melhor como um extenso video clipe cru e estilizado do que como uma biografia sobre um sujeito imaculado e seus apóstolos. Fica aí a dica pra quando derem dinheiro suficiente pro Sacha Baron Cohen fazer o dele.
A Favorita
3.9 1,2K Assista AgoraLogo quando ouvi falar do novo filme do Yorgos, fiquei com alguns vários pés atrás. Pareceu ser beeeeeemmm diferente de todos os outros filmes dele, e é: é um filme de época, é divulgado como uma comédia e, mais importante, não foi escrito por ele. Me aparentou ser um típico filme hollywoodiano e, rapaz, como eu fiquei feliz que não é. Mais uma vez, o grego safado me pegou de surpresa.
Por não assinar o roteiro, é melhor esquecer as tramas fora desse mundo e os personagens monotônicos. As obras do Yorgos parecem habitar uma realidade fantástica -- ainda reconhecemos os filmes como um reflexo da nossa sociedade, mas as histórias contadas e as figuras que as protagonizam soam estranhamente alienígenas. É uma mistura um tanto difícil de ser alcançada e até mesmo de ser descrita e só esse gênio pra inflar vida nisso.
Contudo, ainda é um filme do Yorgos. Os super peculiares e excêntricos usos de câmera ainda estão presentes: nosso diretor costuma rejeitar por completo os planos tradicionais; os ambientes e os personagens são apresentados e retratados com muito contra-plongées e grandes angulares, apelando até mesmo para fisheye. Assim, cenários naturalmente grandes, se tornam colossais, preenchendo a tela do cinema como um gigante ameaçador que engole nossas solitárias protagonistas, tornando-as cada vez menores e mais vítimas de suas condições, apesar de crerem fortemente no contrário. De certa maneira, ao enjaulá-las assim mas mostrando-nas em posições de poder, Yorgos captura implicitamente essa paradoxal característica delas. Genialidade é para poucos.
Ademais, a visão crítica de Yorgos ainda se mantém. Assistindo ao filme, me recordei de seus longas anteriores, Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, tentando, em retrospectiva, encontrar um subtexto temático em comum entre esses e A Favorita. Nesse fluxo de consciência que, ora se encontrava em profunda admiração pelo que via em tela, e ora pensando nas obras que tinha visto anteriormente, concluí que Yorgos costuma criticar com veemência os valores da sociedade, sobretudo os morais e os familiares. Acho que finalmente consegui perceber por que fico tão incomodado vendo seus filmes.
Em A Favorita, temos uma rainha um tanto esquisita. Claramente, a mulher possui algum distúrbio mental que afeta a maneira como compreende a realidade e, portanto, a forma como se relaciona com as pessoas e os ambientes ao seu redor, além de ter consequências físicas, como a estranha condição de pele que possui e as dificuldades para se locomover. Junto a isso, temos duas damas de companhia extremamente astutas, ousadas, ardilosas e que exalam sex appeal competindo por sua atenção, amor e genitália. Elas penetram no que há de mais primitivo no ser humano, suas emoções e necessidades, para conseguir o que há de mais cobiçado: o poder.
Assim, colocando essas três sob o mesmo teto, somos entretidos e capturados por suas intrigas, brigas, armadilhas, manipulações e jogos de gato e rato. No meio desse experimento sociológico, há uma verdadeira tragédia sendo explorada tanto dentro quanto fora das telas: duas mulheres sedentas abusando de uma outra já doente e um diretor não conformista tirando comicidade disso e dando divertimento a um público doido para ser anestesiado por mais um produto cultural. Não é isso que acontece. Não, Yorgos não nos deixa cair num sono momentâneo, au contraire, ele nos indaga e nos perturba.
Como mais uma manifestação de suas críticas, nesse filme as vemos agindo no sentido de uma governante, umA rainhA, dominando um reino e fazendo os homens ao seu redor de fantoches, num triângulo amoroso lésbico e mais preocupada com qual subordinada sua vai servir de "sobremesa" do que com os conflitos que seu país está tendo com a França. Os típicos valores morais, familiares e matrimoniais que se esperam de uma aristocrata vivendo no Reino Unido do século XVIII foram todos por água abaixo.
Assim, e se utilizando de uma trilha sonora fora do comum, sem composição musical autoral, confiando muito mais num design sonoro pungente, Yorgos nos intimida e nos deixa na beira de nossas cadeiras olhando para o espetáculo tragicamente belo à nossa frente. Pode ser seu filme mais acessível, com seus personagens coloridos e, pasmem, que possuem inflexões vocais, mas a trama nos perturba e, a despeito de quem quer que seja que se torne a favorita, nos pegamos compassíveis e lamentando pelo que a sede por poder leva as pessoas a fazerem.
O Demônio das Onze Horas
4.2 430 Assista AgoraSegundo filme do Godard que vejo. Assim como o primeiro, Adeus à Linguagem, dormi um bocado ao longo do filme, só que, dessa vez, após tanto estudar fotografia e não houve aglutinações dos meus sonhos com o que vi em tela.
Eu ri bastante. Toda vez que o sujeito relembrava a Marianne que o nome dele é Ferdinand e não Pierrot, o filme me fazia pensar em sketchs de comédia e eu caía na gargalhada. Gostei muito do uso das cores primárias e em como elas são alternadas entre os protagonistas. Ele passa a maior parte inicial do filme de azul e ela, de vermelho, e isso troca quando ela some e depois volta. Após isso, ele fica demasiadamente sentimental e ela, "racional".
Finalmente vi a cena pela qual eu tanto me apaixonei ao longo de anos de tumblr: a do "você fala comigo com palavras e eu te olho com sentimentos". Não sei elaborar isso muito bem, mas esse diálogo me deixa inexplicavelmente enternecido, me faz pensar em como quem o escreveu tem uma compreensão tão sensível dos sentimentos humanos e, de forma metafórica (?), sintetiza conflitos interpessoais em duas linhas faladas. Me faltam palavras, mas eu fico tão acalorado, aconchegado e ENTENDIDO quando eu vejo isso. Sei lá, é bonitinho e jovial e passional e afetuoso.
Eu não entendi boa parte do que vi, ouvi e senti, mas me causou reflexões e emoções, que é o que basicamente acontece quando você tem uma experiência estética que te toca no âmago. Apesar das evidentes críticas sociopolíticas que, honestamente, me soaram um tanto rasas e das tantas referências pop, achei um filme leve e descontraído sobre o amar, sobre o sentir, sobre o frustrar e ser frustrado, sobre o se envolver com outro ser. De novo, é bonitinho.
Muito provavelmente vou reassistir ao longo da vida. Tem muitos monólogos e diálogos pungentes para se ponderar conforme for experimentando os passares da existência. Ah, é tão bonitinho.
Irreversível
4.0 1,8K Assista AgoraNos mitos gregos, mais especificamente nas tragédias, há sempre uma subjacente sensação de ultimato, de fadário, de que os personagens estão destinados a chegar a tal lugar, a enfrentar tal criatura ou a cometer tal ato, muitas vezes, horrendo, sem muita escolha, por comando divino. Não há como fugir.
Isso me lembrou que em Hereditário, se eu não me engano, em uma das cenas, um professor pergunta se um final trágico é """mais trágico""" caso o fim seja irrevogável ou caso a pessoa tenha tido opções de escolha, mas acabou tomando decisões que a levaram a um fim infeliz. É uma pergunta que vez ou outra surge em minha cabeça quando escrevo alguma coisa ou quando vejo filmes como esse. Puta merda, eu tô acabado.
Logo de início, eu fiquei completamente revoltado com toda a sequência primorosa da balada gay, por dois motivos. Primeiro, como caralhos o Gaspar Noé realizou aqueles movimentos com a câmera? O que é aquilo? Como ela roda daquele jeito, tão fluída, tão leve, como brisa passando por folhas? Tava acoplada num giroscópio preso à uma grua; mas há momentos em que claramente está no ombro; e o ambiente é fechado; como???? Segundo, eu REALMENTE tinha de ver um rosto ser completamente esmagado até pedaços de crânio e de massa encefálica pularem pra fora??? Eu não sei, mas eu tô bem puto tentando entender isso tudo ainda.
O que me leva a outro ponto: era necessário eu ver uma mulher sendo estuprada ad eternum, ao ponto de me indagar se eu deveria parar de ver o filme? O que foi aquilo? É uma atuação soberba da Monica Belluci? É. Ela me convenceu de que ela foi agressivamente violentada? Porra, pra caralho. Eu fiquei absolutamente nauseado e puto com o mundo e com o escroto que viu aquilo tudo, mas preferiu dar meia volta sem fazer nada? Porra, cara.
Eu achava que o Lars Von Trier gostava dum chock value em seus filmes. Depois de ver isso daqui e Sozinho Contra Todos, estou revendo meus conceitos de mostrar para chocar. Contudo, também nos faz pensar.
De início, vemos um Vincent Cassel animalesco, destruindo tudo e todos pela frente, sem um pingo de piedade ou remorso. Pensamos "nossa, isso é um cara revoltado e cruel". Mas será mesmo? Em ordem reversa, tendo nos mostrado primeiro as consequências de um ato de vingança que foi completamente pela culatra, Noé nos indaga se as atitudes tomadas foram válidas ou até mesmo se são de todas humanas, ainda mais levando em conta que é um ser humano completamente cru, desprovido de qualquer filtro, tanto pela droga quanto pela revolta, no ápice de suas emoções, sem um pingo de raciocínio sobre o que está fazendo.
Depois de um bom tempo tentando compreender o que aconteceu e quem caralhos é La Tenia, vemos o gatilho daquilo tudo. Uma mulher chateada com seu namorado, na dela, voltando pra casa, sem incomodar ninguém, calada e pensando na própria vida, é subitamente atacada por um drogado cheio de ódio no coração, violentador de mulheres e doido pra fazer merda como se não houvesse amanhã. La Tenia estupra Alex num ambiente sujo, em público onde qualquer um poderia ver, intercalando entre bombeadas e cheiradas, xingando a plenos pulmões e urrando de prazer. É um psicopata em seu primor.
Me parece que nos mostrando de forma tão explícita e escancarada atos tão horrendos e repreensíveis numa ordem cronológica inversa, Gaspar Noé surpreendentemente comenta sobre a moralidade do comportamento humano, sobre as crenças que levam a certas tomadas de atitudes no grande universo randômico em que vivemos. Ele retoma questões de seu primeiro filme: o que é moral e o que é justiça?
Em sua estrutura reversa e com seu conteúdo ultrajante, Noé constrói uma narrativa com um notável peso moral. Quanto mais o filme passava, pior eu me sentia, tanto por ter aguentado tanta coisa horrorosa, quanto por saber exatamente em que ponto aquele casal bonito e apaixonado, cheio de vida e de sonhos, acompanhado de seu amigo enfadonho mas engraçado iria terminar. Me dava uma angústia saber que o final seria irreversível, independente do que fizessem, do que falassem, do que pensassem, de que decisão tomassem.
É uma tragédia grega, com seus heróis subitamente presos numa narrativa horrenda por comando de seu diretor e escritor, que serve tanto como deus de suas pequeninas e medíocres vidas e como as Moiras desse universo, tecendo cada linha do que vai acontecer, simbolizado, ainda, por aquele plano zenital que, num estrobo, transforma um sprinkler sobre uma grama vivamente verde numa evocação do cosmos.
Não achei que um dia diria isso, mas, uau, Gaspar Noé foi genial.
Sozinho Contra Todos
4.0 313Poucas vezes eu fiquei tão genuinamente enojado e incomodado com um filme. Em Sozinho Contra Todos, Gaspar Noé nos mostra o ralo entupido da humanidade, cheio das mais deploráveis atitudes e convicções em monólogos demasiadamente nauseantes vindos da mente perturbada de seu protagonista, o Açougueiro.
Em Fargo, na série, não lembro se também tá presente no filme, no porão do personagem do Martin Freeman tem um pôster com alguma coisa envolvendo um bando de peixes iguais indo numa direção e um outro de cor diferente nadando em outra, com os dizeres "e se todos estiverem errados?". Levando em conta as atitudes estúpidas que o boçal faz mantendo esse lema em mente, envolvendo matar a própria mulher, esse pôster é um bom emblema do que se trata esse filme aqui.
Muita coisa nesse longa me fizeram pensar imediatamente em Memórias do Subsolo, uma novela do Dostoiévski, e em Taxi Driver. Todo o monólogo inicial, alternando inserts sobre a vida do personagem -- que, logo de cara, em retrospectiva, se estabelece como um narrador não confiável --, comentando sobre as aleatoriedades da vida numa reflexão acerca do que é moral ou justo, em conjunto com os solilóquios que permeiam o filme inteiro, em longos takes com o Açougueiro vagando em ruas vazias, me fizeram lembrar do protagonista dostoievskiano: um homem solitário, revoltado com tudo e com nada, numa revolução pessoal e irracional, tentando desesperadamente ajustar os seus arredores com base em seu interior.
O que me leva ao Travis Bickle: outro homem incapaz de compreender a si mesmo, mergulhado num ódio contra a si mesmo projetado no Outro, de ego absolutamente frágil como porcelana, encarando o mundo armado até os dentes. Assim como o protagonista do filme do Scorsese, o Açougueiro comenta exaustivamente sobre sua reclusão social, sobre como é duro mas libertador ser sozinho (perceba que é um mecanismo de cooperação), sobre como tudo e todos ao redor estão errados em completamente tudo que fazem ou deixam de fazer e como, em sua ignorância, rejeitam tudo que é diferente, manifestado por meio do estrangeiro e da mulher, recorrendo à violência viril para solucionar a sociedade podre e imoral que os cerca. Ah, como eu amo um estudo de personagem.
De qualquer forma, Gaspar Noé leva seu protagonista a outro nível quando, por meio de insights acerca de sua mente, nos faz entender seus pensamentos, atos e mecanismos de defesa do ego, contudo, em nenhum momento nos querendo fazer enxergá-lo como alguém bom -- ao contrário de produções como You --, mas exatamente como humano. Ele ama, ele detesta, ele sofre, ele regozija, ele fode, ele é fodido, ele violenta, ele é violentado -- ele é morto, mas estranhamente não mata; ele tortura, ele molesta, ele corrompe... ele é covarde demais para abater o outro.
O final não poderia ser outro. Ele finalmente encontra consolo em sua jornada de autodescobrimento. Depois de concluir que todos ao seu redor são exatamente como ele esperava, porcos imundos e mesquinhos, ele segue em direção à salvação, à única coisa que ama e que o conforta: sua filha, ou melhor, seu desejo irrefreável por ela. Continuamente ele proclama que a ama, que a protegerá, que a manterá a salvo da imoralidade alheia, afinal, ela é a única coisa boa que há no mundo. Mas, repare, isso é somente porque ela veio dele. É um porco narcisista mesmo. Parabéns, Noé.
Agora, me encontro intrigado para ver os outros filmes que levam nomes de palavras pronunciadas em momentos chave deste filme: Irreversível, Enter the Void e Love. Parece que tudo se conecta.