Estamos confinados junto aos personagens entre construções de tons meio bege, tristes, e salas escuras, com janelas de vidros amarelos que realmente dão a impressão de uma colmeia, onde cada indivíduo autonomamente mantém seus afazeres em profundo silêncio. É um filme que exala solidão, e esse é o cenário perfeito para que as imagens sejam predominantemente exploradas junto ao silêncio. Os enquadramentos que resultam disso, como se pode esperar, são lindos.
O conflito narrativo se manifesta pelo cruzamento da personagem principal, alimentada pela fantasia do cinema, com a realidade. Não dá para saber o que acontece fora do ambiente em que eles estão, e os poucos sinais da realidade externa que nos chegam são filtrados pelos olhos imaginativos de Anna. Talvez isso baste - a fantasia por si só.
Não considero este um filme definitivo sobre como o cinema age sobre nossa percepção da realidade, mas que é um bonito exercício, é.
Este filme é um triunfo por diversos motivos que todo mundo já sabe: lançou a figura do zumbi da forma como conhecemos hoje (aqui, sem efeitos de computador para exagerar a morbidez dos zumbis, o mérito fica para a caracterização e performance dos atores), oferece momentos realmente tensos (a filmagem em preto-e-branco e a câmera inquieta acabaram contribuindo) e, coincidentemente ou não, discutiu relações raciais e de poder de forma consistente e ainda atual: a cena final, da forma como foi exposta, é o verdadeiro terror.
É um filme onde nitidamente tudo acontece de forma rápida, sem grandes enrolações. Isso deixa claro de antemão que a prioridade será dada à sequência de acontecimentos, e não à construção da atmosfera. Com isso, a narrativa precisa mobilizar vários recursos já conhecidos do terror comercial (jump scares, desenhos mórbidos de criança, espíritos captados por câmeras, epifania do protagonista perto do fim etc.) sem nunca aparecer com algo realmente só seu. Curiosamente, as sequências menos apressadas seguem sendo as melhores: a cena da mãe olhando diversas vezes em cima e embaixo da cama é um dos raros momentos em que o silêncio é verdadeiramente utilizado em favor da tensão, e certamente é a cena que me virá à mente quando eu ouvir falar deste filme.
Seguindo a mesma linha de Divertida Mente ao mobilizar conceitos existenciais e abstratos e sintentizá-los em um mundo redondinho paralelo ao nosso, a Pixar mostra mais uma vez que consegue reaproveitar fórmulas antigas com inteligência e elegância. Além disso, o visual é lindamente concebido (não deve ser fácil adaptar instâncias de vida e morte de forma tão madura e lúdica) e a música é de extremo bom gosto. Os furos no roteiro existem e a narrativa não chega perto da exuberância que o estúdio consegue, mas o resultado é incontestavelmente divertido e reflexivo.
Emir Kusturica, que já vinha fazendo história no cinema de sua região, prova aqui que é uma das vozes mais poderosas do cinema mundial: Underground é um raio-X definitivo de povos que, por trás da música e dos aparentes excessos, carregam uma história dolorosa e parecem só se encontrar por completo na festa ou na guerra - aqui, esses dois polos coexistem quase sempre, como uma coisa só. Por isso, ele lança mão de três horas densas (sem nunca perder o ritmo), recheadas de confrontos, enganos, humor e, claro, seu estilo escandaloso, para contar uma saga que atravessa décadas e termina na desintegração literal de uma sociedade.
Para se aprofundar nas relações dos que vivem à margem da sociedade, Kim Ki-Duk abdica, já em seu primeiro filme, de qualquer sensibilidade: todas as ações são codificadas em violências físicas e psicológicas. São o sofrimento e o desprezo que unem e fabricam personagens tão consumidos pela revolta. Entretanto, os acontecimentos principais da trama - a inserção e a permanência forçadas e passivas da personagem feminina - não convencem e, por consequência, incomodam do jeito errado. Isso afeta toda tentativa do diretor de tentar extrair um pouco de humanidade do personagem, sempre trazendo junto uma sequência interminável de violências episódicas e não mais profundas do que se propõem. A cena final, que dá uma palha da força poética do diretor, é um alívio pelo personagem e pelo término dessa experiência.
É um filme que, sem muito esforço, consegue imprimir já no início sua marca de "filme estranho". Na maior parte do tempo, cumpre seu propósito de, com situações insólitas e soluções criativas, sustentar a ideia central sem perder a mão.
É perto do fim, com a intensificação da loucura e do desespero dos personagens, que ele decai, com a inserção de determinadas sequências fora do tom (quem assistiu, vai identificar imediatamente) que não se justificam do ponto de vista narrativo nem lógico. Pareceu-me uma escolha relativamente burra.
Felizmente, após este tropeço, Kim Ki-Duk retoma o controle com um desfecho bonito, como pode se esperar de sua delicadeza autoral.
A ideia é ótima e as referências, como é de se esperar do Porta dos Fundos, são afiadas - tanto as referências à nossa tragédia brasileira, quanto os detalhes bíblicos cuidadosamente posicionados nas caricaturas e falas dos personagens. Entretanto, o formato cansa rápido, e as piadas realmente engraçadas passam a se tornar pontuais.
Não demora para o espectador perceber que, cada vez que as portas se abrem para o templo flutuante, algo está para quebrar a harmonia que até então vinha se (re)construindo naquele espaço. Isso porque Kim Ki-Duk consegue, com uma economia admirável de atos, cenários, personagens e falas, sintetizar uma vida em choque com os valores do mundo vulgar, que nunca chega a aparecer na tela, mas permeia todas as tensões da narrativa.
E é por esse choque em constante progressão que a narrativa vai assumindo tons cada vez mais impactantes, desenrolando-se de um modo que, aparentemente, estamos sempre aptos a adivinhar, não por incompetência do texto, mas por conhecermos demais a dinâmica do nosso mundo.
Apesar do aspecto trágico que engole a narrativa, a poesia nunca é deixada de lado: o diretor felizmente se demora em cada detalhe daquele cenário, nas tensões físicas entre os personagens e na insuficiência silenciosa do ser humano diante de ciclos inquebrantáveis.
Mais do que apresentar impossibilidades de comunicação que aproximam e afastam os personagens, a rede de relacionamentos traçada nesse filme incomoda.
Desde o início, os protagonistas estão inseridos em um ambiente de insatisfação, indiferença e tristeza de uns aos outros, não sendo possível desvendar se isso se justifica só por sentimentos reprimidos ou pelo simples vazio daquele grupo social.
Conforme o enredo se desenvolve, os protagonistas partem em uma busca que visivelmente não desejam concluir, revelando também serem parte desse ciclo de desconfiança, decepção e desejo que nunca parece terminar, estando sempre em recomeço.
Mesmo quando o desfecho do filme nos leva para o nada, incapaz de nos apontar qualquer conclusão, talvez a única certeza seja essa: que o ser humano nunca termina essa busca por algo que já nem se sabe mais o que é, mas que segue incomodando. É essa a aventura do título?
Vale comentar ainda os cenários espetaculares, para os quais o silêncio e a vagareza da narrativa arrastam o espectador (o mesmo que senti vendo Profissão: Repórter, também do Antonioni), além dos figurinos muito chiques.
A ideia é fenomenal, e a inclusão do gênero musical é não menos que genial: dela decorrem números musicais completamente avessos ao que estamos acostumados, pois não empolgam e não enchem os olhos, mas exageram o traço grotesco da narrativa. Esse e outros artifícios suspendem o filme da realidade, como se o cemitério estivesse literalmente além da vida real, para tratar ainda de temas sociais, que perseguem o ser humano até depois da morte. Infelizmente, o desfecho revela que a narrativa não chegou a lugar nenhum, somente a uma conclusão que, ainda que bastante simples, confere um fecho explicitamente reflexivo para esta crônica sobre amor, vida e morte.
Não sei se tem muito a dizer além de nos apresentar a própria narrativa em formato alucinante, mas é um competente exercício de construção fílmica por meio de cortes, dados e panes. A narração recheada de reflexões matemáticas entrega de antemão uma subjetividade processada pelo seu próprio objeto de estudo, e me fez terminar o filme com a impressão de que meu QI tinha aumentado muito. Ponto positivo também para a duração enxugada, o que incorreria em uma experiência desgastante caso se prolongasse.
Filme de horror por excelência, o clássico moderno de Ari Aster evoca tudo o que existe de mais sombrio em histórias demoníacas (culto, espíritos, possessão, maldição, heranças malditas, ouija) e insere em um filme de tensão intocável, reviravoltas impactantes e entrega admirável de Toni Collette, cuja última aparição é daquelas imagens de guardar na memória. O que reforça esse espanto, para além dos sustos, é o desenrolar grotesco e trágico da narrativa, que lentamente se encaminha para conclusões cada vez mais pessimistas, sem promessa de alívio. Uma aula de roteiro e direção.
A decisão de incluir uma coprotagonista se mostra acertada em todos os sentidos. Dando a entender, de início, que seguirá a batida fórmula "filha-fazendo-pai-amadurecer", o enredo alivia, ao longo de seu percurso, por subverter tudo o que se espera desse tipo de trama - e que é justamente o que se espera de Sacha Baron Cohen. Assim, a ótima Maria Bakalova consegue estrategicamente se infiltrar onde o protagonista já é carta marcada, protagonizar loucuras igualmente engraçadas e, no fim, adicionar uma camada a mais de profundidade na dimensão do personagem-título.
Já a estrutura geral do filme, amplamente acusada de ser uma repetição do primeiro, encontra frescor em polêmicas ainda mais urgentes para o momento imediato. Como resultado, o filme se revela, mais do que uma comédia anárquica, um filme de denúncia, documentando tudo o que, na atual conjuntura, afunda ainda mais a sempre podre sociedade norte-americana.
Com Metrópolis, Fritz Lang moldou os rumos da ficção científica e abriu espaço para muitas possibilidades imaginativas, voltando a ecoar, anos depois, em estilos artísticos muito próprios, como o gênero cyberpunk, a música eletrônica europeia robotizada e distopias literárias. É, portanto, um triunfo narrativo com visível influência em diversas artes.
Para além disso, a obra mostra-se um triunfo visual e arquitetônico, pois veicula sua mensagem na própria roupagem de sua cidade, na estrutura dos prédios, no caos que engole as pessoas, na fumaça e nas máquinas que funcionam como um organismo mais potente que o humano.
No centro disso tudo, irrompe ainda uma história de amor, que ultrapassa classes sociais e catapulta para o cerne da narrativa a necessidade da conciliação e de humanização para além do desenvolvimento desenfreado.
E é oposta a essa humanização que o homem-máquina, o símbolo do terror científico, nasce e ganha espaço para protagonizar algumas das melhores sequências: primeiro, de forma meio andrógina, causa um desconforto que cravou-se no imaginário coletivo até hoje; depois, na pele da fantástica Brigitte Helm que, quando sorrindo maliciosamente para a câmera ou dançando cheia de personalidade, soube idealizar a melhor antagonista para si mesma.
É preciso ter paciência e boa vontade para se ver um filme tão denso, tão entrecortado por reflexões existenciais e políticas que nem sempre vêm em melhor momento. Ao longo de três horas, acompanhamos personagens intrigantes e dúbios, cujas ações se divergem das falas e parecem nunca mostrar o que querem, talvez porque nem mesmo saibam.
Junto das tortuosidades da existência que estes trazem ao discurso, impacta ainda a concepção visual aos arredores da Zona, monocromática, nebulosa e cheia de grades, diretamente oposta à liberdade colorida, triste e solitária de seu território - uma dualidade que reflete refinadas críticas a sistemas econômicos e sublinha a desilusão à qual eles nos condicionam.
O que destaca essa tradicional narrativa de manipulação e inversão de papéis é, antes de qualquer coisa, o delicioso cinismo de Dick Bogarde, cujas expressões tão bem trabalhadas escondem camadas de perigo, mas não se delatam diretamente como a causa da tensão que se abate sobre aquela casa. Sua construção, aliás. é quase tão rica quanto a própria atmosfera da residência, reforçada por ângulos de câmeras que valorizam sombras e reflexos. Sarah Miles, por sua vez, se introduz na narrativa trazendo consigo uma fina e ameaçadora sensualidade, cujo ápice se exerce na cozinha escura, quando o protagonista, preso em uma batalha visual sufocante com Miles, ignora o telefone, entregando silenciosamente ao espectador o início de seu colapso. A loucura final, ainda que realmente não tenha sido a mais sutil, fecha o filme de maneira forte e perturbadora, como já se podia esperar.
Quem conhece Kaufman sabe que a estrutura labiríntica de seus roteiros pode incluir não só diferentes temporalidades, mas também camadas narrativas distintas.
Aqui, o labirinto se inicia como uma imersão psicológica na personagem principal, que conduz o espectador por meio de diálogos enormes e cheios de referências, personagens enigmáticos e objetos de cena instáveis, até que uma espiral de reflexões, tempos e perspectivas se desenrole como um grande delírio até o último ato musical.
A maior parte do filme caminha bem sobre desconfortos e estranhamentos que, mesmo não sendo 100% compreensíveis, fornecem uma linearidade que permite a criação de hipóteses e reflexões próprias para cada um. O segmento final, entretanto, apesar da linda coreografia, se joga em um hermetismo cansativo que destoa do resto.
Não podemos, entretanto, ignorar a expressiva direção de Kaufman e a inteligência como tudo isso se articula em um filme que, com mais de duas horas, corre como uma duração muito menor.
Taika Waititi e Jemaine Clement somam seu humor escrachado a uma coletânea admirável de referências ao universo dos vampiros, incorporando inclusive personagens de diversas outras obras, para criar um falso documentário propositalmente ridículo, de efeitos visuais FELIZMENTE precários. Não vejo muito o que avaliar em um filme desse, restando-me me deixar levar pelas situações criativas e personagens bastante particulares. Os três atores centrais são engraçados à sua maneira, mas algo em Taika Waititi me rouba os olhos quase sempre.
Quatro mulheres substancialmente diferentes, e defendidas com competência pelas quatro ótimas atrizes que as compõem, dividem o mesmo local de trabalho, segredos e, às vezes, desejos conjugais, ainda que estes se manifestem de formas únicas. Após o fim do expediente, a efervescência e as diversas possibilidades que se projetam naquela moderna Paris colocam cada uma em sua própria forma de exercer a vida. Em oposição a elas, as figuras dos homens evocam morte, privação e asfixia, o que se observa desde a relação patrão-empregada ou entre namorados até os momentos de maior tensão, como nas cenas finais. Infelizmente, os valores nos quais essas relações se pautam ainda se mantêm atuais. Para além disso, é um filme gostoso de acompanhar, com personagens agradáveis e espaços de atmosferas charmosas, como se espera de ambientes parisienses.
O Apartamento apresenta uma narrativa que, lentamente, vai se tecendo em volta de um ato de violência, mas nunca traz a violência em si para o primeiro plano. Embora um clima de mistério passe a orientar os atos dos protagonistas, o destaque não fica para grandes revelações, vinganças concretizadas ou respostas firmes, mas recai sobre a busca em si, as histórias interditas que nunca chegam à superfície e os problemas sociais desvelados (a impossibilidade da mulher de se dirigir à polícia, os julgamentos alheios que cruzam a figura ausente da antiga moradora, o pai que se esconde sob a máscara de homem exemplar perante à família, etc.). Grande direção, madura e sem pressa, de Ashgar Farhadi.
É de uma beleza estonteante o que, em pouco tempo, é feito aqui. Em primeiro lugar, temos um filme visualmente lindo, limpo e lírico, que faz um ótimo uso estético não só dos atores em relação a seus parceiros de cena como também em relação ao ambiente: diante das fumaças dos trens que preenchem a tela e escondem os corpos, das janelas por onde se espia quem chega e quem sai, em relação às portas fechadas que sugerem segredos e dos carimbos que demarcam a disciplina (e um ponto de virada muito divertido na história). Tudo isso contribui para criar um clima predominantemente calmo, restrito e atento.
Temos, depois, o interessante protagonista, composto com muita delicadeza pelo seu ator principal, em uma admirável trajetória em busca do amadurecimento e da superação de suas aflições sexuais. Essa narrativa juvenil está desde o início articulada com um pano de fundo histórico mais sério, que desenha a posição resistente da Tchecoslováquia em relação a tudo o que vinha acontecendo.
Por fim, após sequências tanto divertidas quanto comoventes, chegamos aos momentos finais, alguns dos mais tensos e (des)esperançosos, que conduzem ao desfecho ambíguo. É com base nesses equilíbrios entre graça e drama, entre esperança e desespero, que algumas das maiores joias do Leste Europeu são construídas, e aqui isso se resume de forma curta, simples e altamente charmosa.
A partir do primeiro momento em que a icônica trilha sonora de Ryuichi Sakamoto irrompe, espera-se um filme que consiga trazer para o cenário duro da guerra uma história difícil, mas com um quê de delicadeza e relações interpessoais em primeiro plano. De fato, a proposta do filme é estabelecer entre os personagens relações controversas, que perpassam tanto a ordem da rivalidade quanto da empatia. Entretanto, essas relações foram tão pouco aprofundadas que não é possível se conectar com nenhum personagem, nem se emocionar muito com os momentos de maior densidade emocional.
A narrativa em si apresenta muitos altos e baixos, seguindo um ritmo irregular e, consequentemente, não conseguindo instigar tanto nas cenas de tensão. Apesar disso, alguns pontos positivos ficam para os enquadramentos expressivos, a trilha sonora inesquecível, o final minimamente tocante e as grandes atuações de David Bowie, Takeshi Kitano e Ryuichi Sakamoto.
O que mais chama a atenção aqui, para além do ritmo frenético e incansável proporcionado por Edgar Wright, é o uso inteligente da música como componente central da narrativa e elemento de sua composição formal: o ritmo e a trilha sonora, muito bem escolhida, se integram como um só, e tudo que vem junto está subjugado a essa união. Foi uma eficiente forma encontrada pelo diretor para reforçar a visão do espectador como a visão do protagonista e, assim, prover essa submersão no submundo pop do crime que ele propõe. No cinema deve ter sido um espetáculo...
O Espírito da Colméia
4.2 145 Assista AgoraEstamos confinados junto aos personagens entre construções de tons meio bege, tristes, e salas escuras, com janelas de vidros amarelos que realmente dão a impressão de uma colmeia, onde cada indivíduo autonomamente mantém seus afazeres em profundo silêncio. É um filme que exala solidão, e esse é o cenário perfeito para que as imagens sejam predominantemente exploradas junto ao silêncio. Os enquadramentos que resultam disso, como se pode esperar, são lindos.
O conflito narrativo se manifesta pelo cruzamento da personagem principal, alimentada pela fantasia do cinema, com a realidade. Não dá para saber o que acontece fora do ambiente em que eles estão, e os poucos sinais da realidade externa que nos chegam são filtrados pelos olhos imaginativos de Anna. Talvez isso baste - a fantasia por si só.
Não considero este um filme definitivo sobre como o cinema age sobre nossa percepção da realidade, mas que é um bonito exercício, é.
A Noite dos Mortos-Vivos
4.0 549 Assista AgoraEste filme é um triunfo por diversos motivos que todo mundo já sabe: lançou a figura do zumbi da forma como conhecemos hoje (aqui, sem efeitos de computador para exagerar a morbidez dos zumbis, o mérito fica para a caracterização e performance dos atores), oferece momentos realmente tensos (a filmagem em preto-e-branco e a câmera inquieta acabaram contribuindo) e, coincidentemente ou não, discutiu relações raciais e de poder de forma consistente e ainda atual: a cena final, da forma como foi exposta, é o verdadeiro terror.
Vozes
2.9 305É um filme onde nitidamente tudo acontece de forma rápida, sem grandes enrolações. Isso deixa claro de antemão que a prioridade será dada à sequência de acontecimentos, e não à construção da atmosfera. Com isso, a narrativa precisa mobilizar vários recursos já conhecidos do terror comercial (jump scares, desenhos mórbidos de criança, espíritos captados por câmeras, epifania do protagonista perto do fim etc.) sem nunca aparecer com algo realmente só seu. Curiosamente, as sequências menos apressadas seguem sendo as melhores: a cena da mãe olhando diversas vezes em cima e embaixo da cama é um dos raros momentos em que o silêncio é verdadeiramente utilizado em favor da tensão, e certamente é a cena que me virá à mente quando eu ouvir falar deste filme.
Soul
4.3 1,4KSeguindo a mesma linha de Divertida Mente ao mobilizar conceitos existenciais e abstratos e sintentizá-los em um mundo redondinho paralelo ao nosso, a Pixar mostra mais uma vez que consegue reaproveitar fórmulas antigas com inteligência e elegância. Além disso, o visual é lindamente concebido (não deve ser fácil adaptar instâncias de vida e morte de forma tão madura e lúdica) e a música é de extremo bom gosto. Os furos no roteiro existem e a narrativa não chega perto da exuberância que o estúdio consegue, mas o resultado é incontestavelmente divertido e reflexivo.
Underground: Mentiras de Guerra
4.3 79 Assista AgoraEmir Kusturica, que já vinha fazendo história no cinema de sua região, prova aqui que é uma das vozes mais poderosas do cinema mundial: Underground é um raio-X definitivo de povos que, por trás da música e dos aparentes excessos, carregam uma história dolorosa e parecem só se encontrar por completo na festa ou na guerra - aqui, esses dois polos coexistem quase sempre, como uma coisa só. Por isso, ele lança mão de três horas densas (sem nunca perder o ritmo), recheadas de confrontos, enganos, humor e, claro, seu estilo escandaloso, para contar uma saga que atravessa décadas e termina na desintegração literal de uma sociedade.
Crocodilo
3.3 16Para se aprofundar nas relações dos que vivem à margem da sociedade, Kim Ki-Duk abdica, já em seu primeiro filme, de qualquer sensibilidade: todas as ações são codificadas em violências físicas e psicológicas. São o sofrimento e o desprezo que unem e fabricam personagens tão consumidos pela revolta. Entretanto, os acontecimentos principais da trama - a inserção e a permanência forçadas e passivas da personagem feminina - não convencem e, por consequência, incomodam do jeito errado. Isso afeta toda tentativa do diretor de tentar extrair um pouco de humanidade do personagem, sempre trazendo junto uma sequência interminável de violências episódicas e não mais profundas do que se propõem. A cena final, que dá uma palha da força poética do diretor, é um alívio pelo personagem e pelo término dessa experiência.
Dream
3.6 61Não vou dizer nada de realmente novo.
É um filme que, sem muito esforço, consegue imprimir já no início sua marca de "filme estranho". Na maior parte do tempo, cumpre seu propósito de, com situações insólitas e soluções criativas, sustentar a ideia central sem perder a mão.
É perto do fim, com a intensificação da loucura e do desespero dos personagens, que ele decai, com a inserção de determinadas sequências fora do tom (quem assistiu, vai identificar imediatamente) que não se justificam do ponto de vista narrativo nem lógico. Pareceu-me uma escolha relativamente burra.
Felizmente, após este tropeço, Kim Ki-Duk retoma o controle com um desfecho bonito, como pode se esperar de sua delicadeza autoral.
Teocracia em Vertigem
3.5 147A ideia é ótima e as referências, como é de se esperar do Porta dos Fundos, são afiadas - tanto as referências à nossa tragédia brasileira, quanto os detalhes bíblicos cuidadosamente posicionados nas caricaturas e falas dos personagens. Entretanto, o formato cansa rápido, e as piadas realmente engraçadas passam a se tornar pontuais.
Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera
4.3 377Não demora para o espectador perceber que, cada vez que as portas se abrem para o templo flutuante, algo está para quebrar a harmonia que até então vinha se (re)construindo naquele espaço. Isso porque Kim Ki-Duk consegue, com uma economia admirável de atos, cenários, personagens e falas, sintetizar uma vida em choque com os valores do mundo vulgar, que nunca chega a aparecer na tela, mas permeia todas as tensões da narrativa.
E é por esse choque em constante progressão que a narrativa vai assumindo tons cada vez mais impactantes, desenrolando-se de um modo que, aparentemente, estamos sempre aptos a adivinhar, não por incompetência do texto, mas por conhecermos demais a dinâmica do nosso mundo.
Apesar do aspecto trágico que engole a narrativa, a poesia nunca é deixada de lado: o diretor felizmente se demora em cada detalhe daquele cenário, nas tensões físicas entre os personagens e na insuficiência silenciosa do ser humano diante de ciclos inquebrantáveis.
A Aventura
4.1 113Mais do que apresentar impossibilidades de comunicação que aproximam e afastam os personagens, a rede de relacionamentos traçada nesse filme incomoda.
Desde o início, os protagonistas estão inseridos em um ambiente de insatisfação, indiferença e tristeza de uns aos outros, não sendo possível desvendar se isso se justifica só por sentimentos reprimidos ou pelo simples vazio daquele grupo social.
Conforme o enredo se desenvolve, os protagonistas partem em uma busca que visivelmente não desejam concluir, revelando também serem parte desse ciclo de desconfiança, decepção e desejo que nunca parece terminar, estando sempre em recomeço.
Mesmo quando o desfecho do filme nos leva para o nada, incapaz de nos apontar qualquer conclusão, talvez a única certeza seja essa: que o ser humano nunca termina essa busca por algo que já nem se sabe mais o que é, mas que segue incomodando. É essa a aventura do título?
Vale comentar ainda os cenários espetaculares, para os quais o silêncio e a vagareza da narrativa arrastam o espectador (o mesmo que senti vendo Profissão: Repórter, também do Antonioni), além dos figurinos muito chiques.
Sinfonia da Necrópole
3.5 109A ideia é fenomenal, e a inclusão do gênero musical é não menos que genial: dela decorrem números musicais completamente avessos ao que estamos acostumados, pois não empolgam e não enchem os olhos, mas exageram o traço grotesco da narrativa. Esse e outros artifícios suspendem o filme da realidade, como se o cemitério estivesse literalmente além da vida real, para tratar ainda de temas sociais, que perseguem o ser humano até depois da morte. Infelizmente, o desfecho revela que a narrativa não chegou a lugar nenhum, somente a uma conclusão que, ainda que bastante simples, confere um fecho explicitamente reflexivo para esta crônica sobre amor, vida e morte.
Pi
3.8 769 Assista AgoraNão sei se tem muito a dizer além de nos apresentar a própria narrativa em formato alucinante, mas é um competente exercício de construção fílmica por meio de cortes, dados e panes. A narração recheada de reflexões matemáticas entrega de antemão uma subjetividade processada pelo seu próprio objeto de estudo, e me fez terminar o filme com a impressão de que meu QI tinha aumentado muito. Ponto positivo também para a duração enxugada, o que incorreria em uma experiência desgastante caso se prolongasse.
Hereditário
3.8 3,0K Assista AgoraFilme de horror por excelência, o clássico moderno de Ari Aster evoca tudo o que existe de mais sombrio em histórias demoníacas (culto, espíritos, possessão, maldição, heranças malditas, ouija) e insere em um filme de tensão intocável, reviravoltas impactantes e entrega admirável de Toni Collette, cuja última aparição é daquelas imagens de guardar na memória. O que reforça esse espanto, para além dos sustos, é o desenrolar grotesco e trágico da narrativa, que lentamente se encaminha para conclusões cada vez mais pessimistas, sem promessa de alívio. Uma aula de roteiro e direção.
Borat: Fita de Cinema Seguinte
3.6 552 Assista AgoraA decisão de incluir uma coprotagonista se mostra acertada em todos os sentidos. Dando a entender, de início, que seguirá a batida fórmula "filha-fazendo-pai-amadurecer", o enredo alivia, ao longo de seu percurso, por subverter tudo o que se espera desse tipo de trama - e que é justamente o que se espera de Sacha Baron Cohen. Assim, a ótima Maria Bakalova consegue estrategicamente se infiltrar onde o protagonista já é carta marcada, protagonizar loucuras igualmente engraçadas e, no fim, adicionar uma camada a mais de profundidade na dimensão do personagem-título.
Já a estrutura geral do filme, amplamente acusada de ser uma repetição do primeiro, encontra frescor em polêmicas ainda mais urgentes para o momento imediato. Como resultado, o filme se revela, mais do que uma comédia anárquica, um filme de denúncia, documentando tudo o que, na atual conjuntura, afunda ainda mais a sempre podre sociedade norte-americana.
Metrópolis
4.4 633 Assista AgoraCom Metrópolis, Fritz Lang moldou os rumos da ficção científica e abriu espaço para muitas possibilidades imaginativas, voltando a ecoar, anos depois, em estilos artísticos muito próprios, como o gênero cyberpunk, a música eletrônica europeia robotizada e distopias literárias. É, portanto, um triunfo narrativo com visível influência em diversas artes.
Para além disso, a obra mostra-se um triunfo visual e arquitetônico, pois veicula sua mensagem na própria roupagem de sua cidade, na estrutura dos prédios, no caos que engole as pessoas, na fumaça e nas máquinas que funcionam como um organismo mais potente que o humano.
No centro disso tudo, irrompe ainda uma história de amor, que ultrapassa classes sociais e catapulta para o cerne da narrativa a necessidade da conciliação e de humanização para além do desenvolvimento desenfreado.
E é oposta a essa humanização que o homem-máquina, o símbolo do terror científico, nasce e ganha espaço para protagonizar algumas das melhores sequências: primeiro, de forma meio andrógina, causa um desconforto que cravou-se no imaginário coletivo até hoje; depois, na pele da fantástica Brigitte Helm que, quando sorrindo maliciosamente para a câmera ou dançando cheia de personalidade, soube idealizar a melhor antagonista para si mesma.
Stalker
4.3 505 Assista AgoraÉ preciso ter paciência e boa vontade para se ver um filme tão denso, tão entrecortado por reflexões existenciais e políticas que nem sempre vêm em melhor momento. Ao longo de três horas, acompanhamos personagens intrigantes e dúbios, cujas ações se divergem das falas e parecem nunca mostrar o que querem, talvez porque nem mesmo saibam.
Junto das tortuosidades da existência que estes trazem ao discurso, impacta ainda a concepção visual aos arredores da Zona, monocromática, nebulosa e cheia de grades, diretamente oposta à liberdade colorida, triste e solitária de seu território - uma dualidade que reflete refinadas críticas a sistemas econômicos e sublinha a desilusão à qual eles nos condicionam.
O Criado
4.1 55O que destaca essa tradicional narrativa de manipulação e inversão de papéis é, antes de qualquer coisa, o delicioso cinismo de Dick Bogarde, cujas expressões tão bem trabalhadas escondem camadas de perigo, mas não se delatam diretamente como a causa da tensão que se abate sobre aquela casa. Sua construção, aliás. é quase tão rica quanto a própria atmosfera da residência, reforçada por ângulos de câmeras que valorizam sombras e reflexos. Sarah Miles, por sua vez, se introduz na narrativa trazendo consigo uma fina e ameaçadora sensualidade, cujo ápice se exerce na cozinha escura, quando o protagonista, preso em uma batalha visual sufocante com Miles, ignora o telefone, entregando silenciosamente ao espectador o início de seu colapso. A loucura final, ainda que realmente não tenha sido a mais sutil, fecha o filme de maneira forte e perturbadora, como já se podia esperar.
Estou Pensando em Acabar com Tudo
3.1 1,0K Assista AgoraQuem conhece Kaufman sabe que a estrutura labiríntica de seus roteiros pode incluir não só diferentes temporalidades, mas também camadas narrativas distintas.
Aqui, o labirinto se inicia como uma imersão psicológica na personagem principal, que conduz o espectador por meio de diálogos enormes e cheios de referências, personagens enigmáticos e objetos de cena instáveis, até que uma espiral de reflexões, tempos e perspectivas se desenrole como um grande delírio até o último ato musical.
A maior parte do filme caminha bem sobre desconfortos e estranhamentos que, mesmo não sendo 100% compreensíveis, fornecem uma linearidade que permite a criação de hipóteses e reflexões próprias para cada um. O segmento final, entretanto, apesar da linda coreografia, se joga em um hermetismo cansativo que destoa do resto.
Não podemos, entretanto, ignorar a expressiva direção de Kaufman e a inteligência como tudo isso se articula em um filme que, com mais de duas horas, corre como uma duração muito menor.
O Que Fazemos nas Sombras
4.0 662 Assista AgoraTaika Waititi e Jemaine Clement somam seu humor escrachado a uma coletânea admirável de referências ao universo dos vampiros, incorporando inclusive personagens de diversas outras obras, para criar um falso documentário propositalmente ridículo, de efeitos visuais FELIZMENTE precários. Não vejo muito o que avaliar em um filme desse, restando-me me deixar levar pelas situações criativas e personagens bastante particulares. Os três atores centrais são engraçados à sua maneira, mas algo em Taika Waititi me rouba os olhos quase sempre.
Mulheres Fáceis/Entre Amigas
3.7 9Quatro mulheres substancialmente diferentes, e defendidas com competência pelas quatro ótimas atrizes que as compõem, dividem o mesmo local de trabalho, segredos e, às vezes, desejos conjugais, ainda que estes se manifestem de formas únicas. Após o fim do expediente, a efervescência e as diversas possibilidades que se projetam naquela moderna Paris colocam cada uma em sua própria forma de exercer a vida. Em oposição a elas, as figuras dos homens evocam morte, privação e asfixia, o que se observa desde a relação patrão-empregada ou entre namorados até os momentos de maior tensão, como nas cenas finais. Infelizmente, os valores nos quais essas relações se pautam ainda se mantêm atuais. Para além disso, é um filme gostoso de acompanhar, com personagens agradáveis e espaços de atmosferas charmosas, como se espera de ambientes parisienses.
O Apartamento
3.9 258 Assista AgoraO Apartamento apresenta uma narrativa que, lentamente, vai se tecendo em volta de um ato de violência, mas nunca traz a violência em si para o primeiro plano. Embora um clima de mistério passe a orientar os atos dos protagonistas, o destaque não fica para grandes revelações, vinganças concretizadas ou respostas firmes, mas recai sobre a busca em si, as histórias interditas que nunca chegam à superfície e os problemas sociais desvelados (a impossibilidade da mulher de se dirigir à polícia, os julgamentos alheios que cruzam a figura ausente da antiga moradora, o pai que se esconde sob a máscara de homem exemplar perante à família, etc.). Grande direção, madura e sem pressa, de Ashgar Farhadi.
Trens Estreitamente Vigiados
4.0 42É de uma beleza estonteante o que, em pouco tempo, é feito aqui. Em primeiro lugar, temos um filme visualmente lindo, limpo e lírico, que faz um ótimo uso estético não só dos atores em relação a seus parceiros de cena como também em relação ao ambiente: diante das fumaças dos trens que preenchem a tela e escondem os corpos, das janelas por onde se espia quem chega e quem sai, em relação às portas fechadas que sugerem segredos e dos carimbos que demarcam a disciplina (e um ponto de virada muito divertido na história). Tudo isso contribui para criar um clima predominantemente calmo, restrito e atento.
Temos, depois, o interessante protagonista, composto com muita delicadeza pelo seu ator principal, em uma admirável trajetória em busca do amadurecimento e da superação de suas aflições sexuais. Essa narrativa juvenil está desde o início articulada com um pano de fundo histórico mais sério, que desenha a posição resistente da Tchecoslováquia em relação a tudo o que vinha acontecendo.
Por fim, após sequências tanto divertidas quanto comoventes, chegamos aos momentos finais, alguns dos mais tensos e (des)esperançosos, que conduzem ao desfecho ambíguo. É com base nesses equilíbrios entre graça e drama, entre esperança e desespero, que algumas das maiores joias do Leste Europeu são construídas, e aqui isso se resume de forma curta, simples e altamente charmosa.
Furyo - Em Nome da Honra
3.7 66 Assista AgoraA partir do primeiro momento em que a icônica trilha sonora de Ryuichi Sakamoto irrompe, espera-se um filme que consiga trazer para o cenário duro da guerra uma história difícil, mas com um quê de delicadeza e relações interpessoais em primeiro plano. De fato, a proposta do filme é estabelecer entre os personagens relações controversas, que perpassam tanto a ordem da rivalidade quanto da empatia. Entretanto, essas relações foram tão pouco aprofundadas que não é possível se conectar com nenhum personagem, nem se emocionar muito com os momentos de maior densidade emocional.
A narrativa em si apresenta muitos altos e baixos, seguindo um ritmo irregular e, consequentemente, não conseguindo instigar tanto nas cenas de tensão. Apesar disso, alguns pontos positivos ficam para os enquadramentos expressivos, a trilha sonora inesquecível, o final minimamente tocante e as grandes atuações de David Bowie, Takeshi Kitano e Ryuichi Sakamoto.
Em Ritmo de Fuga
4.0 1,9K Assista AgoraO que mais chama a atenção aqui, para além do ritmo frenético e incansável proporcionado por Edgar Wright, é o uso inteligente da música como componente central da narrativa e elemento de sua composição formal: o ritmo e a trilha sonora, muito bem escolhida, se integram como um só, e tudo que vem junto está subjugado a essa união. Foi uma eficiente forma encontrada pelo diretor para reforçar a visão do espectador como a visão do protagonista e, assim, prover essa submersão no submundo pop do crime que ele propõe. No cinema deve ter sido um espetáculo...