Talvez eu tenha sido manipulado pelos princípios utópicos dos personagens de Capitão Fantástico ou talvez ele seja, de fato, um filme engrandecedor e edificante, com uma proposta de realidade e consciência que faz você refletir sobre muita coisa: nosso senso de coletividade, nossos falhos e neoliberais sistemas de ensino, nossa dependência à indústria farmacêutica, nossa relação com a natureza, etc. Dou credibilidade ao filme porque ao mesmo tempo que ele radicaliza, o roteiro encontra seu equilíbrio ao expor as dúvidas do protagonista, o Super-Pai, humanizando-o, ou ao retratar as fragilidades da alternativa de existência por ele proposta, bela e falível, como a vida. Enganado ou não, sei que me deixei envolver por essa família de excêntricos e falhei miseravelmente em minhas tentativas de conter o choro em diversas cenas. E Viggo Mortensen: que atorzão da porra, versátil e intenso, em seu melhor papel desde Marcas da Violência. E o que falar dessa trilha emocional do Alex Somers (do Sigur Rós) já no repeat? Assim nasce um clássico do cinema indie.
Minha relação com Marina Abramović é muito conturbada e esse incômodo se refletiu muito em Espaço Além: de um lado, meu fascínio pela artista com uma trajetória excepcional, ainda em busca da transcendência e da cura através da arte e da espiritualidade - que ela transa muito bem; do outro, uma figura cada vez mais autocentrada e vaidosa. O filme acaba refletindo isso também, gerando um misto de admiração e constrangimento, como nas cenas muito pré-fabricadas e pouco convincentes onde ela experimenta ayahuasca pela primeira vez, ou quando conhece o sincretismo da Bahia e soa deslocada. No entanto, apesar das falhas (e do contato com algumas figuras duvidosas), esse mergulho em seu processo criativo e em sua inquietude espiritual supera os pessoalismos e rende alguns momentos singulares: as cenas no Vale do Amanhecer, no Distrito Federal, me apresentaram um Brasil até então desconhecido, com imagens místicas que parecem ter saído de um filme do Jodorowsky; os passeios em nossas exuberantes chapadas, que escondem seus mistérios noturnos; os rituais xamânicos no meio do mato em algum lugar no sul do país, onde a artista se desnuda por completo, literal e simbolicamente, e que transmitem uma energia muito honesta, assim como as cenas com os cristais em Minas Gerais, que são belíssimas. Eu já sabia o que esperar, uma obra irregular, com seus altos e baixos, mas com um imenso potencial para tocar em espaços desconhecidos no espectador.
Elle me deixou pensando em algo que há tempos me incomodava. Compreendo a necessidade da busca, na arte, pelo belo, por figuras que inspirem, que nos dêem fôlego para acreditar em algo, mas a arte não é uma só e a vida nem sempre é um triunfo dualístico do bem sobre o mal. Há de ter espaço para o grotesco, para as facetas da humanidade que nos assombram porque elas também nos dizem respeito e é preciso ser sagaz para distinguir - e isso tem a ver com a nossa percepção orientada sobre as coisas - um filme que retrata um estupro, de um filme que o glorifica, um filme que retrata um relacionamento doentio e abusivo, de um filme que o romantiza. Eu sempre tive esse interesse maior pelas almas atormentadas, pelos anti-heróis, pelos rejeitados, pelos sem-volta, pelos solitários trancafiados nos porões do esquecimento, pelos que dançam com a morte e caminham pelo abismo. Acho muito mais instigante mergulhar na mente de um personagem problemático, de um assassino em série, de um sociopata frio e calculista, de um personagem perverso do Haneke porque eles nos inquietam e nos incomodam de uma forma fascinante. São pulsões e naturezas que desconhecemos. Já viram "Henry: Portrait of a Serial Killer"? A gente torce pela salvação do personagem, nutre a esperança de sua redenção, mas o mal às vezes é inerente. Não afirmo, do meu lugar de privilegiado, que representatividade não importa (longe disso), mas acho equivocada essa cartilha de absolutismo moral reivindicada por certos movimentos de que todo filme deva ser um puta manifesto político, ou essa expectativa irreal de que todo personagem, no final, deva ser edificante e um exemplo a ser seguido. Acho isso um delírio e a arte, para ser plena, não pode ter rédeas criativas ou morais, ela tem que ser livre e maior que as nossas vontades e medos.
Dito isso, como eu sinto falta de personagens femininas assim como a Michèle do Verhoeven: multidimensionais, pulsantes (no sentido de Eros e Tânatos), sexualmente agressivas, que você não sabe se ama ou odeia, pois frias, mas ao mesmo tempo assustadoramente intensas. E não compreendo quem condena ver relacionamentos abusivos e disfuncionais no cinema, como se a arte tivesse obrigação de retratar apenas o belo. Quando a pessoa se dispõe a assistir um filme como Elle, ela deve estar preparada para alguns gatilhos. Desejo todos os louros possíveis para a Isabelle Huppert porque é um talento absurdo o dessa mulher em dar vida a personagens tão singulares, marcantes e humanamente complexas.
Tem programa cinematográfico mais agradável que ver draminha bucólico sobre despertar da sexualidade numa tarde de domingo? Tem não. Para minha surpresa, André Téchiné, mais conhecido no "circuito queer" pelo inesquecível Les Roseaux Sauvages (1994), apareceu ano passado com esse lindo filme sobre a relação conflituosa entre dois rapazes no interior da França. Embora não traga nada de novo, o filme não cai na banalidade comum a que a maioria dos filmes com essa temática está sujeita. Téchiné, com sua sensibilidade peculiar para tratar do assunto, consegue costurar bem os dramas familiares dos personagens, tratando do bom e velho processo de conflito e aceitação que envolve o florescer do desejo. Tudo com muita química entre os atores, uma boa trilha sonora e paisagens campestres pra encher os olhos. Um lembrete de que preciso ver mais filmes do diretor.
Como o Kiyoshi Kurosawa, que dirigiu meu filme de terror predileto dos anos 2000, Kairo, uma alegoria fantasmagórica sobre a solidão nos nossos tempos, pode ter dirigido uma porcaria dessas? Pense num thriller investigativo onde absolutamente nada funciona. Um puta desperdício de mise-en-scène e habilidade diretiva, numa trama irregular e repleta de furos no roteiro, com personagens estúpidos, sem motivações aparentes, cometendo erros primários o tempo inteiro. Duas horas que parecem cinco numa empreitada que só me deu alguma satisfação nos dez minutos finais, quando já era tarde demais. Primeira grande decepção de 2017.
Ainda hipnotizado pela beleza da Harriet Andersson nesse conto agridoce de amour fou inesperadamente realista do Bergman, recheado de cenários idílicos e um erotismo extremamente vivaz e pulsante, que dão um tom libertário ao filme (ao menos até os dissabores da vida adulta aparecerem). Embora não goze de privilégios e nem comungue de dilemas pequeno-burgueses (o oposto disso, na verdade), Monika é a personagem mais rohmeriana do Bergman: sua inconsequência juvenil, sua malícia e sua implacável vontade de viver e ser amada/desejada a tornam uma fonte inesgotável de carisma. E as lentes do Gunnar Fischer não permitem que sua inocência perdida nos escape aos olhos e aos sentidos por um momento sequer. Numa das cenas mais bonitas de que me recordo (e o filme está repleto delas, acredite), Monika foge tresloucada e aos tropeços pela floresta, faminta e com um pedaço de carne na mão, tentando encontrar seu jovem amante após um furto que deu errado. Tudo isso acompanhado pela câmera num jogo gracioso de luz e movimento. Um quadro vivo em esplendoroso preto e branco. Filme lindo e melancólico, sobre paixão, escolhas, amadurecimento e impermanência. Aliás, o quanto o cinema francês absorveu desse filme do diretor sueco não dá mesmo pra mensurar. Um pequeno tesouro.
João Pedro Rodrigues não decepciona, mesmo com as expectativas lá nas alturas. O Ornitólogo é maravilhoso a cada minuto, principalmente no terço final, quando o filme supera a beleza do protagonista e das locações e mergulha no simbolismo. Me lembrou muito o cinema do Derek Jarman, não somente pelas referências iconoclastas (São Sebastião, A incredulidade de São Tomé do Caravaggio, etc), mas pela verve poética e autoral do diretor. Lindo.
O amor como impulso artístico. Meio piegas, mas foi por essa razão que gostei tanto desse Greenaway, que deveria constar em todas as listas de filmes queer de 2016, não por ser tão fálico, mas pela honestidade desconcertante de várias cenas, sobretudo quando o protagonista encontra afirmação através da própria sexualidade. Filmão com alguns momentos antológicos que merece ser visto também pela montagem frenética, pela entrega corporal dos atores e acima de tudo pela visão pouco ortodoxa do diretor sobre um dos verdadeiros pais do cinema (o filme deveria se chamar: Que Viva Eisenstein! - Um Filme que Abalou a Rússia Homofóbica). Só essa cena do Eisenstein e seu amante Palomino dialogando no cemitério vale toda a empreitada:
Cañedo: Não o surpreende que passemos tanto tempo fazendo gente morrer em filmes? Eisenstein: Todos os atores, mais cedo ou mais tarde, de preferência mais cedo, de cinema e teatro em todo o mundo, são solicitados a foder ou morrer. Hamlet, Otelo, Macbeth, Julieta, Madame Butterfly, Joana D'Arc, Yevgeniy 0negin, Cleópatra, Júlio César, Savonarola, Helena de Troia, Ivan o Terrível. Cañedo: Nós lhe permitimos que mostrem pessoas fodendo e morrendo. Sabemos que não estão. Você também sabe. E sabemos que você sabe que nós sabemos que não estão. Eisenstein: Tudo para provar que vivemos duas vezes. Primeiro como afirmação, depois como um desafio à própria morte. A voluntária e indispensável suspensão da descrença. Na Rússia de hoje a morte chega bêbeda, toda amarfanhada, e sem roupas íntimas, porque lá ninguém tem dinheiro para isso. Veste uma camisa branca usada, sem colarinho e com punhos sujos. A morte na Rússia é um evento desagradável no fim da vida. Aqui no México, ela chega de olhos resplandecentes, risonha, totalmente sóbria, dando início à sua maior aventura, distribuindo beijos. Sua cabeça, seu coração e seu pau levantados. Sexo e morte, as duas únicas coisas inegociáveis: Eros e Thanatos.
Não tem o que discutir: o terror pertence ao cinema asiático. Há anos não vejo um thriller tão sinistro, cuidadoso e envolvente, cheio de simbolismos e reviravoltas, como esse O Lamento, me lembrando muito a sofisticação e atmosfera do Memórias de Um Assassino, do Bong Joon-ho. Caralho, esses coreanos não tem pra ninguém. Filmão da porra! Vejam antes de 2016 acabar pra encerrar o ano com uma obra-prima do gênero.
Só mesmo o Herzog pra transformar o que poderia ser mais um documentário sobre vulcões nessa experiência mística e dantesca nos confins do mundo. A convergência entre imagens espetaculares da natureza, existencialismo e crenças ancestrais impressionam e já são marca no seu cinema. Da Islândia a Etiópia, em meio a nuvens piroclásticas, explosões retumbantes de lava e música clássica, Herzog parece estar mais preocupado com a experiência humana acima de tudo. No ponto alto do documentário, filmado na Coreia do Norte (e que por isso parece saído de um filme distópico dos anos 80), o diretor tenta extrair uma resposta pessoal sobre a relação entre o vulcão, religião e política de um dos guias coreanos e obtém, para sua frustração, apenas respostas vagas e programadas que revelam muito daquele país. No fim, uma inevitável jornada espiritual pelos vulcões mais ativos do mundo, guiada por um cineasta sem limites. E o melhor: fresquinho na Netflix.
Caralho, como eu AMO Jacques Tourneur. Ninguém cria uma atmosfera de terror com tanta sugestão e elegância como esse homem. Essa luz, essas sombras, esses sons que irrompem o silêncio da noite trazendo consigo um perigo iminente. Maravilhoso, assim como em Sangue de Pantera e A Morta-Viva.
Acabei de terminar a primeira temporada e estou vendo os episódios da 2ª (e última) o mais lentamente possível porque não quero que acabe nunca. É de uma sofisticação e ao mesmo tempo sobriedade extraordinárias a forma como eles conseguiram costurar subtramas ficcionais aos eventos históricos que abalaram a Roma Antiga, tendo como ápice o tão aguardado assassinato do tirano Júlio César no chão do Senado, precedido de muita conspiração e tensão política. Por ser uma produção caríssima, possui poucas cenas grandiosas, o que é compensado integralmente pelo roteiro inteligente (mostrando a implacável disputa pelo poder e as facetas dos diferentes universos habitados pela elite romana e pela plebe), pela violência gráfica, pela nudez recorrente e pela excelência dos atores que interpretam os detestáveis e ácidos Marco Antônio e Átia dos Júlios e os carismáticos Titus Pullo e Lucius Vorenus.
Certamente serviu como a progenitora de produções futuras como Spartacus, Game of Thrones e até mesmo House of Cards. Pra quem curte História e política, sexo e tragédia, não consigo pensar em nada tão incrível como Rome. Uma série completa, sem dúvidas. Só faltou Dead Can Dance na trilha e um pouco de viadagem.
Não acho Black Mirror genial. É uma série criativa e sabiamente oportunista, digamos, porque nos põe a pensar nessas situações assustadoramente críveis trazidas pela tecnologia, que estão a apenas alguns passos da nossa realidade. Eles atingem em cheio nossas pequenas hipocrisias e contradições, mas essa identificação já é esperada. A dependência sintomática por gadgets cada vez mais atraentes. A busca incansável por aceitação, que muitas vezes vem de pessoas que na verdade nem nos importamos. A perda paulatina de nossas humanidades. As concessões que fazemos pra viver em sociedade. A glamourização do oversharing e do banal.
Mas são reflexões rasas com uma roupagem bonita e high-tech. Ficam jogando essas obviedades na nossa cara, mas quase nunca ultrapassam isso. Talvez a intenção seja só essa mesmo, não oferecer saídas, mas causar overthinking. Talvez tais saídas nem existam.
De toda forma, sou seduzido pelo pessimismo da série. Como eles conseguem criar situações que parecem sedutoras à princípio e que vão se revelando insustentáveis e bizarras com o tempo. Gostei desse primeiro episódio que parece uma mistura bem sucedida de Tim Burton e Spike Jonze e de como a pessoa mais altruísta era aquela que simplesmente não se importava com a opinião alheia. Fui acometido por um ímpeto de deletar minhas redes sociais ou ao menos repensar a forma como lido com elas, mas cá estou rindo dessa grande e fodida ironia.
Como esperado, fiquei apaixonado por esse draminha dinamarquês sobre rebeldia e descoberta na infância, Du Er Ikke Alene ("Você não está sozinho"), retratado do ponto de vista de adolescentes que vivem em um repressor internato no final dos anos 70. Poucos filmes coming-of-age (com viés queer ou não) conseguiram retratar com tanto lirismo e, ao mesmo tempo, bravura o desabrochar para a vida e para o amor como esse filme. Só consigo pensar em duas obras que conseguiram tal proeza: o francês Les amitiés particulières (1964) e o alemão Noordzee, Texas (2011). Em paralelo, também pensei em Le souffle au cœur (1971) e Stand By Me (1986).
Pena que o filme encontre tanta resistência em certos públicos até hoje, que o encaram como controverso por tratar, sem muitas reservas, do primeiro amor gay entre dois infantes. Sobre esse falso tabu é interessante observar como os conflitos do filme residem muito mais no choque entre a visão moralista dos professores da bucólica cidade versus os ideais revolucionários e a ebulição hormonal dos alunos (lembrando muito Dazed and Confused) do que na paixonite juvenil ainda ambivalente entre os dois protagonistas, tratada com uma inesquecível naturalidade. Tanto que as cenas de afeto entre os dois, apesar de chocantes para alguns, são completamente naturais para quem vivenciou o rito de passagem da infância para a adolescência sem muitos traumas: a repressão paterna, a curiosidade da descoberta, a linha tênue entre a inocência e o desejo, os toques sem malícia, a vontade de estar junto. Quem nunca falou de masturbação com um amiguinho do colégio? Uma pena que ainda vivamos em tempos tão sombrios onde se censure tanto esta fase e um filme tão bonito como esse precise de alcunhas como “provocador” e “liberal”.
Muito mais do que um romancezinho gay, fica aí a dica para quem quer ver um conto extraordinário sobre amizade, companheirismo e teenage angst. A cena final é de uma coragem e de uma beleza tão espantosas que passados quase 40 anos poucos diretores teriam a audácia de filmá-la.
Em um relacionamento sério com esse documentário, À la recherche du paradis perdu: Vivre Nu (algo como “Em Busca do Paraíso Perdido: Viver nu”), do Robert Salis, sobre os modos de vida naturistas francês e alemão. As paisagens arcadianas, ensolaradas e idílicas do Sul da França e a poesia dos corpos em sintonia com a trilha transformam esse filme num misto de Eric Rohmer e Henry Scott Tuke. Só por isso, as suas quase duas horas valeriam a pena, mas o diretor vai bem além: sem proselitismo e munido de depoimentos diversos e um rico acervo visual e histórico (1939--1993), ele desmistifica uma série de pré-conceitos sobre o naturismo e mostra como sua prática ainda é pouco compreendida enquanto filosofia e estilo de vida ao tempo que ganha cada vez mais adeptos e defensores ao redor do mundo.
Muito se pensa dos retiros naturistas como espaços para neo-hippies aplaudirem o sol, abraçar árvores e invocar Gaia ao luar, ou para gente rica e entediada dar vasão às suas extravagâncias sem o julgamento alheio, ou - e talvez o mais comum - como antros de libertinagem para pessoas em busca de explorar os seus lados kinky-hedonistas. Salis desconstrói essa visão caricata e mostra como retiros naturistas são espaços democráticos (respeitadas as suas variedades: retiros, praias, resorts, etc) destinados para pessoas e famílias que simplesmente desejam vivenciar a nudez de forma coletiva e com espontaneidade, independente de classe, sexo, religião ou qualquer máscara social.
Mostra, com isso, a ubiquidade do dogmatismo cristão, tão forte em nossa cultura que somos doutrinados desde cedo a enxergar a nudez como algo ofensivo, associando-a sumariamente à pornografia e ao sexo, através de uma erotização compulsória do corpo, quando, na verdade, tudo não passa de uma enraizada convenção social sustentada pelo moralismo, pelo bodyshaming, pela culpa, pelo medo da própria sexualidade e pela ignorância.
O que acho fascinante sobre esse documentário é que ele consegue, através da diversidade e seriedade dos seus depoimentos e sem a catequização do espectador, transmitir o naturismo como um potencializador de nossas liberdades porque apoiado em uma filosofia de harmonia com a natureza, de autoaceitação, de tolerância, de bem-estar e de respeito. Diferentemente da selva de pedra, nesses espaços não há ansiedade para atender expectativas sociais exasperantes e padrões de beleza inatingíveis. Não existe competição por status ou poder. Não existe o conceito de “beach body” ou a glamourização do corpo jovem/esbelto acompanhada da ojeriza ao corpo velho/flácido dos mais idosos. Não existe a ideia de posse do homem sobre o corpo da mulher. É quase um estado-utópico. A verdadeira Arcádia. Com corpos sendo livres, sem vergonha ou pudor. E não há nada mais belo e natural que isso.
Encerro com uma frase dita no doc que achei genial e que atesta a não romantização do assunto: “Uma multidão de pessoas despidas pode ser tão entediante quanto uma multidão de pessoas vestidas”.
"How can a love undeclared, a life removed, be forgiven?"
Que foda essa animação sobre a relação entre Aquiles e Pátroclo durante a Batalha de Tróia. Trabalho de câmera e jogo de luzes incríveis e muita, muita pederastia. Puro deleite homoerótico com narração do Derek Jacobi. Deviam passar isso nas escolas (risos).
Protelei horrores. Deveria ter protelado mais. Primeiro filme do Woody que me custou chegar até o fim. Li comentários positivos dizendo que o diretor tinha "voltado à velha forma" e fui esperando um Deconstructing Harry ou Radio Days, mas o resultado é terrível: personagens insuportáveis e sem carisma algum! O que já era de se esperar com essa escolha grotesca de elenco que nem a Blake Lively e a Parker Posey conseguiram salvar. Maior miscasting do ano´, sem dúvidas. Isso sem falar nas piadas sobre judaísmo que não funcionam mais e no roteiro preguiçoso que tenta se sustentar nessa nostalgia/romantismo batido da Era de Ouro de Hollywood (também não funcionou pros Coen esse ano). Nem a fotografia se salva, já que tudo é tão plástico e exageradamente amarelado que na metade do filme eu já não aguentava mais. Woody, meu véio, it's been a long time. Saudade Judy Davis em Husbands and Wives: neurose at its finest.
Uma das poucas coisas que me confortam nessa vida é saber que ainda tenho uma dezena de filmes do Rohmer pra assistir nos próximos anos – por isso o faço assim, sem pressa, saboreando em doses homeopáticas o minimalismo de seus filmes. A última surpresa – e das boas – foi Full Moon in Paris, da série “Comédias e Provérbios", onde temos uma das heroínas mais multidimensionais e interessantes do diretor, talvez a melhor delas: Louise. Aliás, um parêntese, alguém precisa escrever sobre como as mulheres rohmerianas são tão bem construídas: Laura (Béatrice Romand) em Le Genou de Claire, Delphine (Marie Rivière) em Le Rayon Vert, Pauline (Amanda Langlet) em Pauline à la Plage e agora Louise (Pascale Ogier) em Nuits de la pleine lune. É de um frescor sem igual se deixar envolver pelos diálogos e dilemas dessas personagens, tão palpáveis e tão mundanos (quando não muito pequeno-burgueses), que qualquer um de nós poderia ter.
Louise é dessas personagens francesas que parecem ter sido a fonte de inspiração para o cinema do Woody Allen: jovem, com potencial criativo, assertiva e independente, mas nunca satisfeita e de alguma forma perdida nos embaraços do amor. Octave (Fabrice Luchini, maravilhoso), seu amigo-confidente e que vai protagonizar os diálogos mais sagazes do filme, a descreve bem: “Você dá a impressão de viver no mundo da lua, mas, na verdade, é concreta, prática e realista.”. Louise acabou de se formar em Belas Artes e está num relacionamento sufocante que não tem funcionado porque seu namorado, o possessivo Remi, gosta de passar a noite em casa enquanto ela, jovem e extrovertida, gosta de sair à noite em busca de excitação. Para superar esse entrave, ela propõe uma alternativa inesperada: viver em casas separadas alguns dias da semana para “reduzir os danos” das incompatibilidades entre os dois, dando-lhes mais autonomia e espaço – preservando, com isso, o relacionamento. Como essa mudança na rotina se desdobrará na vida de todos é o que vai dar combustão à narrativa.
Destaco o contraste da monotonia melancólica do subúrbio, com apartamentos cinza e quadros do Mondrian que sugerem ordem e harmonia, e a efervescência notívaga do centro parisiense, que parece mover nossa protagonista. Aliás, todas as definições de festinhas-no-apê foram zeradas com esse filme. A linguagem corporal dos atores e figurantes e os passinhos oitentistas em duas cenas são simplesmente impagáveis. Uma digressão: preciso desabafar que fiquei profundamente nostálgico e terrivelmente frustrado com nossa geração de amores líquidos e voláteis, festinhas entediantes, carões e swipes em aplicativos. A aventura, a química e o deleite irresistível que é avistar alguém offline e paquerar deram lugar ao comodismo da praticidade.
“O ar do campo é bom, mas pesa. Preciso estar no ‘centro’. De um país, de uma cidade que é como o centro do mundo. Certa vez fui professor em Orleans. Podia ter morado lá mesmo, mas gastava uma hora de trem para voltar a Paris toda noite. E por quê? Geralmente eu lia ou escutava o rádio. Voltava só para escutar música! Mas sabia que na rua havia cinemas, restaurantes, mulheres incríveis. Mil oportunidades. Tudo estava lá, disponível. Sabia que só precisava descer.”.
Com esperada maestria, Rohmer trabalha a ideia de que o amor não pode ser domesticado ou adestrado, mas não é desonesto com certezas absolutas e nem nos ilude com soluções idealizadas e romantizadas para suas personagens. Louise deseja amar e ser amada, mas quer continuar livre. Consciente ou inconscientemente, é o que todos desejamos, embora saibamos que a aplicabilidade desse desejo é qualquer coisa, menos fácil. As personagens rohmerianas são inteligentes, mas vítimas dos seus próprios medos, dúvidas, contradições e inseguranças, porque humanas e, portanto, falíveis. “Quero amá-lo e ficar com ele. O que me impede é que ele me ama demais. E, automaticamente, eu o amo de menos.”: quem nunca esteve em um dos dois lados desse drama?
Uma maravilha charmosa de filme sobre um tema inesgotável: relacionamentos e suas disfuncionalidades. Tragicômico como é a vida – por isso bem-aventurados aqueles que chegam ao fim das suas carregando consigo decepções e triunfos. Não importa a proporção, ao menos tentaram.
*Uma curiosidade triste: Pascale Ogier morreu de ataque cardíaco na véspera do seu aniversário de 26 anos, pouco tempo depois de ter sido premiada como Melhor Atriz no Festival de Veneza por esse papel. Jim Jarmusch homenageou a atriz dedicando um dos seus melhores filmes, Down by Law, a ela. Respect.
Imagine uma transa entre Uma Mulher sob Influência do Cassavetes e Repulsa ao Sexo do Polanski. É o badalado longa de estreia do Trey Edward Shults. Ainda que deva muito à Gena Rowlands, Krisha Fairchild é um trem descarrilhando. Uma bomba de ansiedade prestes a explodir a qualquer momento. Poucos minutos em cena e o espectador já pressente que algo vai acontecer.
Aliado a isso, Shults faz muito bom uso da trilha e da câmera - sempre angustiantes e repetitivas, que dão o tom sufocante do filme, embora se exceda um pouco ao tentar evocar o clima de paranoia e desastre iminente com o insistente uso de zoom in e zoom out.
Mas isso é detalhe porque o diretor consegue criar um naturalismo surpreendente, já que a fórmula family drama + dinner went wrong tem sempre a chance de cair numa teatralidade caricata desgastada. Shults parece saber que nada pode ser tão intimidador e opressor quanto uma noite de Ação de Graças se você é a ovelha negra da família, que sempre fodeu tudo e nunca conquistou nada e precisa conviver com os sorrisos amarelos dos vitoriosos e os olhares condescendentes que dizem "beberrona, derrotada, você é um caso perdido".
Excessos à parte, um bom filme sobre deslocamento, o peso das nossas escolhas, que podem ser irreversíveis, mas, sobretudo, um retrato duro de como família nem sempre é sinônimo de acalento.
Capitão Fantástico
4.4 2,7K Assista AgoraTalvez eu tenha sido manipulado pelos princípios utópicos dos personagens de Capitão Fantástico ou talvez ele seja, de fato, um filme engrandecedor e edificante, com uma proposta de realidade e consciência que faz você refletir sobre muita coisa: nosso senso de coletividade, nossos falhos e neoliberais sistemas de ensino, nossa dependência à indústria farmacêutica, nossa relação com a natureza, etc. Dou credibilidade ao filme porque ao mesmo tempo que ele radicaliza, o roteiro encontra seu equilíbrio ao expor as dúvidas do protagonista, o Super-Pai, humanizando-o, ou ao retratar as fragilidades da alternativa de existência por ele proposta, bela e falível, como a vida. Enganado ou não, sei que me deixei envolver por essa família de excêntricos e falhei miseravelmente em minhas tentativas de conter o choro em diversas cenas. E Viggo Mortensen: que atorzão da porra, versátil e intenso, em seu melhor papel desde Marcas da Violência. E o que falar dessa trilha emocional do Alex Somers (do Sigur Rós) já no repeat? Assim nasce um clássico do cinema indie.
Espaço Além - Marina Abramović e o Brasil
4.3 131Minha relação com Marina Abramović é muito conturbada e esse incômodo se refletiu muito em Espaço Além: de um lado, meu fascínio pela artista com uma trajetória excepcional, ainda em busca da transcendência e da cura através da arte e da espiritualidade - que ela transa muito bem; do outro, uma figura cada vez mais autocentrada e vaidosa. O filme acaba refletindo isso também, gerando um misto de admiração e constrangimento, como nas cenas muito pré-fabricadas e pouco convincentes onde ela experimenta ayahuasca pela primeira vez, ou quando conhece o sincretismo da Bahia e soa deslocada. No entanto, apesar das falhas (e do contato com algumas figuras duvidosas), esse mergulho em seu processo criativo e em sua inquietude espiritual supera os pessoalismos e rende alguns momentos singulares: as cenas no Vale do Amanhecer, no Distrito Federal, me apresentaram um Brasil até então desconhecido, com imagens místicas que parecem ter saído de um filme do Jodorowsky; os passeios em nossas exuberantes chapadas, que escondem seus mistérios noturnos; os rituais xamânicos no meio do mato em algum lugar no sul do país, onde a artista se desnuda por completo, literal e simbolicamente, e que transmitem uma energia muito honesta, assim como as cenas com os cristais em Minas Gerais, que são belíssimas. Eu já sabia o que esperar, uma obra irregular, com seus altos e baixos, mas com um imenso potencial para tocar em espaços desconhecidos no espectador.
Elle
3.8 886Elle me deixou pensando em algo que há tempos me incomodava. Compreendo a necessidade da busca, na arte, pelo belo, por figuras que inspirem, que nos dêem fôlego para acreditar em algo, mas a arte não é uma só e a vida nem sempre é um triunfo dualístico do bem sobre o mal. Há de ter espaço para o grotesco, para as facetas da humanidade que nos assombram porque elas também nos dizem respeito e é preciso ser sagaz para distinguir - e isso tem a ver com a nossa percepção orientada sobre as coisas - um filme que retrata um estupro, de um filme que o glorifica, um filme que retrata um relacionamento doentio e abusivo, de um filme que o romantiza. Eu sempre tive esse interesse maior pelas almas atormentadas, pelos anti-heróis, pelos rejeitados, pelos sem-volta, pelos solitários trancafiados nos porões do esquecimento, pelos que dançam com a morte e caminham pelo abismo. Acho muito mais instigante mergulhar na mente de um personagem problemático, de um assassino em série, de um sociopata frio e calculista, de um personagem perverso do Haneke porque eles nos inquietam e nos incomodam de uma forma fascinante. São pulsões e naturezas que desconhecemos. Já viram "Henry: Portrait of a Serial Killer"? A gente torce pela salvação do personagem, nutre a esperança de sua redenção, mas o mal às vezes é inerente. Não afirmo, do meu lugar de privilegiado, que representatividade não importa (longe disso), mas acho equivocada essa cartilha de absolutismo moral reivindicada por certos movimentos de que todo filme deva ser um puta manifesto político, ou essa expectativa irreal de que todo personagem, no final, deva ser edificante e um exemplo a ser seguido. Acho isso um delírio e a arte, para ser plena, não pode ter rédeas criativas ou morais, ela tem que ser livre e maior que as nossas vontades e medos.
Dito isso, como eu sinto falta de personagens femininas assim como a Michèle do Verhoeven: multidimensionais, pulsantes (no sentido de Eros e Tânatos), sexualmente agressivas, que você não sabe se ama ou odeia, pois frias, mas ao mesmo tempo assustadoramente intensas. E não compreendo quem condena ver relacionamentos abusivos e disfuncionais no cinema, como se a arte tivesse obrigação de retratar apenas o belo. Quando a pessoa se dispõe a assistir um filme como Elle, ela deve estar preparada para alguns gatilhos. Desejo todos os louros possíveis para a Isabelle Huppert porque é um talento absurdo o dessa mulher em dar vida a personagens tão singulares, marcantes e humanamente complexas.
Quando Se Tem 17 Anos
3.8 72Tem programa cinematográfico mais agradável que ver draminha bucólico sobre despertar da sexualidade numa tarde de domingo? Tem não. Para minha surpresa, André Téchiné, mais conhecido no "circuito queer" pelo inesquecível Les Roseaux Sauvages (1994), apareceu ano passado com esse lindo filme sobre a relação conflituosa entre dois rapazes no interior da França. Embora não traga nada de novo, o filme não cai na banalidade comum a que a maioria dos filmes com essa temática está sujeita. Téchiné, com sua sensibilidade peculiar para tratar do assunto, consegue costurar bem os dramas familiares dos personagens, tratando do bom e velho processo de conflito e aceitação que envolve o florescer do desejo. Tudo com muita química entre os atores, uma boa trilha sonora e paisagens campestres pra encher os olhos. Um lembrete de que preciso ver mais filmes do diretor.
Creepy
3.1 70 Assista AgoraComo o Kiyoshi Kurosawa, que dirigiu meu filme de terror predileto dos anos 2000, Kairo, uma alegoria fantasmagórica sobre a solidão nos nossos tempos, pode ter dirigido uma porcaria dessas? Pense num thriller investigativo onde absolutamente nada funciona. Um puta desperdício de mise-en-scène e habilidade diretiva, numa trama irregular e repleta de furos no roteiro, com personagens estúpidos, sem motivações aparentes, cometendo erros primários o tempo inteiro. Duas horas que parecem cinco numa empreitada que só me deu alguma satisfação nos dez minutos finais, quando já era tarde demais. Primeira grande decepção de 2017.
A Criada
4.4 1,3K Assista AgoraMagritte criando vida na tela. Que filmão da PORRA!
Monika e o Desejo
4.0 120 Assista AgoraAinda hipnotizado pela beleza da Harriet Andersson nesse conto agridoce de amour fou inesperadamente realista do Bergman, recheado de cenários idílicos e um erotismo extremamente vivaz e pulsante, que dão um tom libertário ao filme (ao menos até os dissabores da vida adulta aparecerem). Embora não goze de privilégios e nem comungue de dilemas pequeno-burgueses (o oposto disso, na verdade), Monika é a personagem mais rohmeriana do Bergman: sua inconsequência juvenil, sua malícia e sua implacável vontade de viver e ser amada/desejada a tornam uma fonte inesgotável de carisma. E as lentes do Gunnar Fischer não permitem que sua inocência perdida nos escape aos olhos e aos sentidos por um momento sequer. Numa das cenas mais bonitas de que me recordo (e o filme está repleto delas, acredite), Monika foge tresloucada e aos tropeços pela floresta, faminta e com um pedaço de carne na mão, tentando encontrar seu jovem amante após um furto que deu errado. Tudo isso acompanhado pela câmera num jogo gracioso de luz e movimento. Um quadro vivo em esplendoroso preto e branco. Filme lindo e melancólico, sobre paixão, escolhas, amadurecimento e impermanência. Aliás, o quanto o cinema francês absorveu desse filme do diretor sueco não dá mesmo pra mensurar. Um pequeno tesouro.
O Ornitólogo
3.5 84João Pedro Rodrigues não decepciona, mesmo com as expectativas lá nas alturas. O Ornitólogo é maravilhoso a cada minuto, principalmente no terço final, quando o filme supera a beleza do protagonista e das locações e mergulha no simbolismo. Me lembrou muito o cinema do Derek Jarman, não somente pelas referências iconoclastas (São Sebastião, A incredulidade de São Tomé do Caravaggio, etc), mas pela verve poética e autoral do diretor. Lindo.
Que Viva Eisenstein! - 10 Dias que Abalaram o México
3.5 16O amor como impulso artístico. Meio piegas, mas foi por essa razão que gostei tanto desse Greenaway, que deveria constar em todas as listas de filmes queer de 2016, não por ser tão fálico, mas pela honestidade desconcertante de várias cenas, sobretudo quando o protagonista encontra afirmação através da própria sexualidade. Filmão com alguns momentos antológicos que merece ser visto também pela montagem frenética, pela entrega corporal dos atores e acima de tudo pela visão pouco ortodoxa do diretor sobre um dos verdadeiros pais do cinema (o filme deveria se chamar: Que Viva Eisenstein! - Um Filme que Abalou a Rússia Homofóbica). Só essa cena do Eisenstein e seu amante Palomino dialogando no cemitério vale toda a empreitada:
Cañedo: Não o surpreende que passemos tanto tempo fazendo gente morrer em filmes?
Eisenstein: Todos os atores, mais cedo ou mais tarde, de preferência mais cedo, de cinema e teatro em todo o mundo, são solicitados a foder ou morrer. Hamlet, Otelo, Macbeth, Julieta, Madame Butterfly, Joana D'Arc, Yevgeniy 0negin, Cleópatra, Júlio César, Savonarola, Helena de Troia, Ivan o Terrível.
Cañedo: Nós lhe permitimos que mostrem pessoas fodendo e morrendo. Sabemos que não estão. Você também sabe. E sabemos que você sabe que nós sabemos que não estão.
Eisenstein: Tudo para provar que vivemos duas vezes. Primeiro como afirmação, depois como um desafio à própria morte. A voluntária e indispensável suspensão da descrença. Na Rússia de hoje a morte chega bêbeda, toda amarfanhada, e sem roupas íntimas, porque lá ninguém tem dinheiro para isso. Veste uma camisa branca usada, sem colarinho e com punhos sujos. A morte na Rússia é um evento desagradável no fim da vida. Aqui no México, ela chega de olhos resplandecentes, risonha, totalmente sóbria, dando início à sua maior aventura, distribuindo beijos. Sua cabeça, seu coração e seu pau levantados. Sexo e morte, as duas únicas coisas inegociáveis: Eros e Thanatos.
O Lamento
3.9 433 Assista AgoraNão tem o que discutir: o terror pertence ao cinema asiático. Há anos não vejo um thriller tão sinistro, cuidadoso e envolvente, cheio de simbolismos e reviravoltas, como esse O Lamento, me lembrando muito a sofisticação e atmosfera do Memórias de Um Assassino, do Bong Joon-ho. Caralho, esses coreanos não tem pra ninguém. Filmão da porra! Vejam antes de 2016 acabar pra encerrar o ano com uma obra-prima do gênero.
Um Cadáver para Sobreviver
3.5 936 Assista AgoraIf you don't know Jurassic Park, you don't know shit.
Visita ao Inferno
4.0 39 Assista AgoraSó mesmo o Herzog pra transformar o que poderia ser mais um documentário sobre vulcões nessa experiência mística e dantesca nos confins do mundo. A convergência entre imagens espetaculares da natureza, existencialismo e crenças ancestrais impressionam e já são marca no seu cinema. Da Islândia a Etiópia, em meio a nuvens piroclásticas, explosões retumbantes de lava e música clássica, Herzog parece estar mais preocupado com a experiência humana acima de tudo. No ponto alto do documentário, filmado na Coreia do Norte (e que por isso parece saído de um filme distópico dos anos 80), o diretor tenta extrair uma resposta pessoal sobre a relação entre o vulcão, religião e política de um dos guias coreanos e obtém, para sua frustração, apenas respostas vagas e programadas que revelam muito daquele país.
No fim, uma inevitável jornada espiritual pelos vulcões mais ativos do mundo, guiada por um cineasta sem limites. E o melhor: fresquinho na Netflix.
O Homem-Leopardo
3.6 23Caralho, como eu AMO Jacques Tourneur. Ninguém cria uma atmosfera de terror com tanta sugestão e elegância como esse homem. Essa luz, essas sombras, esses sons que irrompem o silêncio da noite trazendo consigo um perigo iminente. Maravilhoso, assim como em Sangue de Pantera e A Morta-Viva.
Roma (1ª Temporada)
4.5 148 Assista AgoraAcabei de terminar a primeira temporada e estou vendo os episódios da 2ª (e última) o mais lentamente possível porque não quero que acabe nunca. É de uma sofisticação e ao mesmo tempo sobriedade extraordinárias a forma como eles conseguiram costurar subtramas ficcionais aos eventos históricos que abalaram a Roma Antiga, tendo como ápice o tão aguardado assassinato do tirano Júlio César no chão do Senado, precedido de muita conspiração e tensão política. Por ser uma produção caríssima, possui poucas cenas grandiosas, o que é compensado integralmente pelo roteiro inteligente (mostrando a implacável disputa pelo poder e as facetas dos diferentes universos habitados pela elite romana e pela plebe), pela violência gráfica, pela nudez recorrente e pela excelência dos atores que interpretam os detestáveis e ácidos Marco Antônio e Átia dos Júlios e os carismáticos Titus Pullo e Lucius Vorenus.
Certamente serviu como a progenitora de produções futuras como Spartacus, Game of Thrones e até mesmo House of Cards. Pra quem curte História e política, sexo e tragédia, não consigo pensar em nada tão incrível como Rome. Uma série completa, sem dúvidas. Só faltou Dead Can Dance na trilha e um pouco de viadagem.
Black Mirror (3ª Temporada)
4.5 1,3K Assista AgoraNão acho Black Mirror genial. É uma série criativa e sabiamente oportunista, digamos, porque nos põe a pensar nessas situações assustadoramente críveis trazidas pela tecnologia, que estão a apenas alguns passos da nossa realidade. Eles atingem em cheio nossas pequenas hipocrisias e contradições, mas essa identificação já é esperada. A dependência sintomática por gadgets cada vez mais atraentes. A busca incansável por aceitação, que muitas vezes vem de pessoas que na verdade nem nos importamos. A perda paulatina de nossas humanidades. As concessões que fazemos pra viver em sociedade. A glamourização do oversharing e do banal.
Mas são reflexões rasas com uma roupagem bonita e high-tech. Ficam jogando essas obviedades na nossa cara, mas quase nunca ultrapassam isso. Talvez a intenção seja só essa mesmo, não oferecer saídas, mas causar overthinking. Talvez tais saídas nem existam.
De toda forma, sou seduzido pelo pessimismo da série. Como eles conseguem criar situações que parecem sedutoras à princípio e que vão se revelando insustentáveis e bizarras com o tempo. Gostei desse primeiro episódio que parece uma mistura bem sucedida de Tim Burton e Spike Jonze e de como a pessoa mais altruísta era aquela que simplesmente não se importava com a opinião alheia. Fui acometido por um ímpeto de deletar minhas redes sociais ou ao menos repensar a forma como lido com elas, mas cá estou rindo dessa grande e fodida ironia.
O Homem nas Trevas
3.7 1,9K Assista AgoraO filme todo esse misto de:
"que aflição do caralho vou morre" e
"nossa, mas esse sugar daddy hein, pai"
Você Não Está Sozinho
3.8 120Como esperado, fiquei apaixonado por esse draminha dinamarquês sobre rebeldia e descoberta na infância, Du Er Ikke Alene ("Você não está sozinho"), retratado do ponto de vista de adolescentes que vivem em um repressor internato no final dos anos 70. Poucos filmes coming-of-age (com viés queer ou não) conseguiram retratar com tanto lirismo e, ao mesmo tempo, bravura o desabrochar para a vida e para o amor como esse filme. Só consigo pensar em duas obras que conseguiram tal proeza: o francês Les amitiés particulières (1964) e o alemão Noordzee, Texas (2011). Em paralelo, também pensei em Le souffle au cœur (1971) e Stand By Me (1986).
Pena que o filme encontre tanta resistência em certos públicos até hoje, que o encaram como controverso por tratar, sem muitas reservas, do primeiro amor gay entre dois infantes. Sobre esse falso tabu é interessante observar como os conflitos do filme residem muito mais no choque entre a visão moralista dos professores da bucólica cidade versus os ideais revolucionários e a ebulição hormonal dos alunos (lembrando muito Dazed and Confused) do que na paixonite juvenil ainda ambivalente entre os dois protagonistas, tratada com uma inesquecível naturalidade. Tanto que as cenas de afeto entre os dois, apesar de chocantes para alguns, são completamente naturais para quem vivenciou o rito de passagem da infância para a adolescência sem muitos traumas: a repressão paterna, a curiosidade da descoberta, a linha tênue entre a inocência e o desejo, os toques sem malícia, a vontade de estar junto. Quem nunca falou de masturbação com um amiguinho do colégio? Uma pena que ainda vivamos em tempos tão sombrios onde se censure tanto esta fase e um filme tão bonito como esse precise de alcunhas como “provocador” e “liberal”.
Muito mais do que um romancezinho gay, fica aí a dica para quem quer ver um conto extraordinário sobre amizade, companheirismo e teenage angst. A cena final é de uma coragem e de uma beleza tão espantosas que passados quase 40 anos poucos diretores teriam a audácia de filmá-la.
À La Recherche du Paradis Perdu
3.7 3Em um relacionamento sério com esse documentário, À la recherche du paradis perdu: Vivre Nu (algo como “Em Busca do Paraíso Perdido: Viver nu”), do Robert Salis, sobre os modos de vida naturistas francês e alemão. As paisagens arcadianas, ensolaradas e idílicas do Sul da França e a poesia dos corpos em sintonia com a trilha transformam esse filme num misto de Eric Rohmer e Henry Scott Tuke. Só por isso, as suas quase duas horas valeriam a pena, mas o diretor vai bem além: sem proselitismo e munido de depoimentos diversos e um rico acervo visual e histórico (1939--1993), ele desmistifica uma série de pré-conceitos sobre o naturismo e mostra como sua prática ainda é pouco compreendida enquanto filosofia e estilo de vida ao tempo que ganha cada vez mais adeptos e defensores ao redor do mundo.
Muito se pensa dos retiros naturistas como espaços para neo-hippies aplaudirem o sol, abraçar árvores e invocar Gaia ao luar, ou para gente rica e entediada dar vasão às suas extravagâncias sem o julgamento alheio, ou - e talvez o mais comum - como antros de libertinagem para pessoas em busca de explorar os seus lados kinky-hedonistas. Salis desconstrói essa visão caricata e mostra como retiros naturistas são espaços democráticos (respeitadas as suas variedades: retiros, praias, resorts, etc) destinados para pessoas e famílias que simplesmente desejam vivenciar a nudez de forma coletiva e com espontaneidade, independente de classe, sexo, religião ou qualquer máscara social.
Mostra, com isso, a ubiquidade do dogmatismo cristão, tão forte em nossa cultura que somos doutrinados desde cedo a enxergar a nudez como algo ofensivo, associando-a sumariamente à pornografia e ao sexo, através de uma erotização compulsória do corpo, quando, na verdade, tudo não passa de uma enraizada convenção social sustentada pelo moralismo, pelo bodyshaming, pela culpa, pelo medo da própria sexualidade e pela ignorância.
O que acho fascinante sobre esse documentário é que ele consegue, através da diversidade e seriedade dos seus depoimentos e sem a catequização do espectador, transmitir o naturismo como um potencializador de nossas liberdades porque apoiado em uma filosofia de harmonia com a natureza, de autoaceitação, de tolerância, de bem-estar e de respeito. Diferentemente da selva de pedra, nesses espaços não há ansiedade para atender expectativas sociais exasperantes e padrões de beleza inatingíveis. Não existe competição por status ou poder. Não existe o conceito de “beach body” ou a glamourização do corpo jovem/esbelto acompanhada da ojeriza ao corpo velho/flácido dos mais idosos. Não existe a ideia de posse do homem sobre o corpo da mulher. É quase um estado-utópico. A verdadeira Arcádia. Com corpos sendo livres, sem vergonha ou pudor. E não há nada mais belo e natural que isso.
Encerro com uma frase dita no doc que achei genial e que atesta a não romantização do assunto: “Uma multidão de pessoas despidas pode ser tão entediante quanto uma multidão de pessoas vestidas”.
Achilles
4.0 4"How can a love undeclared, a life removed, be forgiven?"
Que foda essa animação sobre a relação entre Aquiles e Pátroclo durante a Batalha de Tróia. Trabalho de câmera e jogo de luzes incríveis e muita, muita pederastia. Puro deleite homoerótico com narração do Derek Jacobi. Deviam passar isso nas escolas (risos).
Grace and Frankie (2ª Temporada)
4.4 151"I can't lube a vagina with one hand and smack an orangutan with the other!" Frankie ♥
Café Society
3.3 531 Assista AgoraProtelei horrores. Deveria ter protelado mais. Primeiro filme do Woody que me custou chegar até o fim. Li comentários positivos dizendo que o diretor tinha "voltado à velha forma" e fui esperando um Deconstructing Harry ou Radio Days, mas o resultado é terrível: personagens insuportáveis e sem carisma algum! O que já era de se esperar com essa escolha grotesca de elenco que nem a Blake Lively e a Parker Posey conseguiram salvar. Maior miscasting do ano´, sem dúvidas. Isso sem falar nas piadas sobre judaísmo que não funcionam mais e no roteiro preguiçoso que tenta se sustentar nessa nostalgia/romantismo batido da Era de Ouro de Hollywood (também não funcionou pros Coen esse ano). Nem a fotografia se salva, já que tudo é tão plástico e exageradamente amarelado que na metade do filme eu já não aguentava mais. Woody, meu véio, it's been a long time. Saudade Judy Davis em Husbands and Wives: neurose at its finest.
Noites de Lua Cheia
4.0 35Uma das poucas coisas que me confortam nessa vida é saber que ainda tenho uma dezena de filmes do Rohmer pra assistir nos próximos anos – por isso o faço assim, sem pressa, saboreando em doses homeopáticas o minimalismo de seus filmes. A última surpresa – e das boas – foi Full Moon in Paris, da série “Comédias e Provérbios", onde temos uma das heroínas mais multidimensionais e interessantes do diretor, talvez a melhor delas: Louise. Aliás, um parêntese, alguém precisa escrever sobre como as mulheres rohmerianas são tão bem construídas: Laura (Béatrice Romand) em Le Genou de Claire, Delphine (Marie Rivière) em Le Rayon Vert, Pauline (Amanda Langlet) em Pauline à la Plage e agora Louise (Pascale Ogier) em Nuits de la pleine lune. É de um frescor sem igual se deixar envolver pelos diálogos e dilemas dessas personagens, tão palpáveis e tão mundanos (quando não muito pequeno-burgueses), que qualquer um de nós poderia ter.
Louise é dessas personagens francesas que parecem ter sido a fonte de inspiração para o cinema do Woody Allen: jovem, com potencial criativo, assertiva e independente, mas nunca satisfeita e de alguma forma perdida nos embaraços do amor. Octave (Fabrice Luchini, maravilhoso), seu amigo-confidente e que vai protagonizar os diálogos mais sagazes do filme, a descreve bem: “Você dá a impressão de viver no mundo da lua, mas, na verdade, é concreta, prática e realista.”. Louise acabou de se formar em Belas Artes e está num relacionamento sufocante que não tem funcionado porque seu namorado, o possessivo Remi, gosta de passar a noite em casa enquanto ela, jovem e extrovertida, gosta de sair à noite em busca de excitação. Para superar esse entrave, ela propõe uma alternativa inesperada: viver em casas separadas alguns dias da semana para “reduzir os danos” das incompatibilidades entre os dois, dando-lhes mais autonomia e espaço – preservando, com isso, o relacionamento. Como essa mudança na rotina se desdobrará na vida de todos é o que vai dar combustão à narrativa.
Destaco o contraste da monotonia melancólica do subúrbio, com apartamentos cinza e quadros do Mondrian que sugerem ordem e harmonia, e a efervescência notívaga do centro parisiense, que parece mover nossa protagonista. Aliás, todas as definições de festinhas-no-apê foram zeradas com esse filme. A linguagem corporal dos atores e figurantes e os passinhos oitentistas em duas cenas são simplesmente impagáveis. Uma digressão: preciso desabafar que fiquei profundamente nostálgico e terrivelmente frustrado com nossa geração de amores líquidos e voláteis, festinhas entediantes, carões e swipes em aplicativos. A aventura, a química e o deleite irresistível que é avistar alguém offline e paquerar deram lugar ao comodismo da praticidade.
“O ar do campo é bom, mas pesa. Preciso estar no ‘centro’. De um país, de uma cidade que é como o centro do mundo. Certa vez fui professor em Orleans. Podia ter morado lá mesmo, mas gastava uma hora de trem para voltar a Paris toda noite. E por quê? Geralmente eu lia ou escutava o rádio. Voltava só para escutar música! Mas sabia que na rua havia cinemas, restaurantes, mulheres incríveis. Mil oportunidades. Tudo estava lá, disponível. Sabia que só precisava descer.”.
Com esperada maestria, Rohmer trabalha a ideia de que o amor não pode ser domesticado ou adestrado, mas não é desonesto com certezas absolutas e nem nos ilude com soluções idealizadas e romantizadas para suas personagens. Louise deseja amar e ser amada, mas quer continuar livre. Consciente ou inconscientemente, é o que todos desejamos, embora saibamos que a aplicabilidade desse desejo é qualquer coisa, menos fácil. As personagens rohmerianas são inteligentes, mas vítimas dos seus próprios medos, dúvidas, contradições e inseguranças, porque humanas e, portanto, falíveis. “Quero amá-lo e ficar com ele. O que me impede é que ele me ama demais. E, automaticamente, eu o amo de menos.”: quem nunca esteve em um dos dois lados desse drama?
Uma maravilha charmosa de filme sobre um tema inesgotável: relacionamentos e suas disfuncionalidades. Tragicômico como é a vida – por isso bem-aventurados aqueles que chegam ao fim das suas carregando consigo decepções e triunfos. Não importa a proporção, ao menos tentaram.
*Uma curiosidade triste: Pascale Ogier morreu de ataque cardíaco na véspera do seu aniversário de 26 anos, pouco tempo depois de ter sido premiada como Melhor Atriz no Festival de Veneza por esse papel. Jim Jarmusch homenageou a atriz dedicando um dos seus melhores filmes, Down by Law, a ela. Respect.
Krisha
3.7 83Imagine uma transa entre Uma Mulher sob Influência do Cassavetes e Repulsa ao Sexo do Polanski. É o badalado longa de estreia do Trey Edward Shults. Ainda que deva muito à Gena Rowlands, Krisha Fairchild é um trem descarrilhando. Uma bomba de ansiedade prestes a explodir a qualquer momento. Poucos minutos em cena e o espectador já pressente que algo vai acontecer.
Aliado a isso, Shults faz muito bom uso da trilha e da câmera - sempre angustiantes e repetitivas, que dão o tom sufocante do filme, embora se exceda um pouco ao tentar evocar o clima de paranoia e desastre iminente com o insistente uso de zoom in e zoom out.
Mas isso é detalhe porque o diretor consegue criar um naturalismo surpreendente, já que a fórmula family drama + dinner went wrong tem sempre a chance de cair numa teatralidade caricata desgastada. Shults parece saber que nada pode ser tão intimidador e opressor quanto uma noite de Ação de Graças se você é a ovelha negra da família, que sempre fodeu tudo e nunca conquistou nada e precisa conviver com os sorrisos amarelos dos vitoriosos e os olhares condescendentes que dizem "beberrona, derrotada, você é um caso perdido".
Excessos à parte, um bom filme sobre deslocamento, o peso das nossas escolhas, que podem ser irreversíveis, mas, sobretudo, um retrato duro de como família nem sempre é sinônimo de acalento.
Demônio de Neon
3.2 1,2K Assista AgoraJá tem a Bande originale du film no Spotify. Te amo, Cliff Martinez.