Um verdadeiro milagre cinematográfico. Não só supera e expande Blade Runner, como talvez seja o melhor sci-fi já realizado, em toda a sua gloriosa melancolia e intimismo. Até hoje, meses depois, ponho a belíssima trilha do Zimmer pra tocar e sempre que chega nas faixas "All the Best Memories are Hers" e "Tears in the Rain", sinto um arrepio na nuca. Lembro instantaneamente do Gosling na escadaria, da neve caindo e da sua expressão desolada de quem acabou de constatar, em sua jornada solitária, que nada em sua vida era real, nem mesmo suas memórias. Nem mesmo aquilo que ele buscava. Não ter absolutamente nada para segurar. Que cena linda e triste da porra. Que momento genuinamente humano. Uma epifania que eu não sinto desde Lost in Translation. Villeneuve provou ser o diretor mais competente da atualidade e 2049 vai ser lembrado pelas futuras gerações como um clássico canônico, tal qual seu antecessor. E Richard Deakins, cara, eu te amo.
45 anos separam The Beguiled de Barry Lyndon, mas não me vem à mente, neste intervalo de mais de quatro décadas, nenhum outro filme cujas beleza e elegância sejam comparáveis ao clássico do Kubrick, que não esta jóia cinematográfica da Sofia Coppola. Cada frame desse southern gothic parece ter sido meticulosamente feito para simular um quadro. Mesmo as tensões sexuais latentes e crescentes, quando irrompem na tela, não foram capazes de me distrair da beleza da paleta de cores quase homogênea, ou dos rostos pálidos, porém enrubescidos pela curiosidade, das garotas, nem dos cômodos da casa pouco iluminados e empoeirados, ou dos raios de sol penetrando as frestas das árvores, ou dos jantares à luz de velas. Tudo arranjado com tanta graça e rigor que chega a ser uma dádiva a mão da diretora não ter pesado no final. Ao contrário, ter conseguido entregar um thriller tão provocante e funcional. Tivesse uma duração um pouco maior, com o aprofundamento de personagens como a Edwina, seria perfeito. Um filme para rever e contemplar várias vezes.
Melhor que o pescoço do Mindinho sendo cortado, melhor que a chegada da Daenerys no Fosso dos Dragões, melhor que o protecionismo de Clegane e Brienne em relação a Arya, melhor que Jaime finalmente largando a Cersei, melhor que o tão esperado colapso da Muralha, melhor que Bran e Sam juntando as peças tudo, melhor que tudo isso só mesmo a bundinha redondinha do João das Neves.
“You are deranged. You’re fucking evil, you know that? You’re a goddamned motherfucking monster. Fucking heartless sadistic motherfucking evil cunt. Fuck you, Serena. You are gonna burn in goddamned motherfucking hell, you crazy evil bitch.”
O ano era 1886. Edvard Munch exibia pela primeira vez, em Kristiania (hoje Oslo), sua obra mais dolorosa e pessoal, “The Sick Child” (que revisitaria inúmeras vezes ao longo da vida), na qual sua amada irmã Johanne Sophie é confortada no leito de morte pela tia, momentos antes de sucumbir a uma tuberculose, aos 14 anos, mesma doença que vitimou sua mãe e que quase o matou. A pintura, com traços e marcas profundas sobre a tela, como se demonstrassem um estado de espírito intranquilo – ruptura drástica com o naturalismo e impressionismo da época –, causou controvérsia e indignação moral entre público e crítica, que a considerou feia, grotesca e inacabada, recepção hostil que se revelaria constante durante quase toda a trajetória artística do Munch.
Doença, morte, incomunicabilidade, solidão, ciúmes, isolamento, impotência e perplexidade do ser humano diante daquilo que não está sob seu controle. Esses são os temas centrais da obra do pintor norueguês, cuja infância e juventude marcadas pela dor, perda e traumas foram fatores propulsores para aquilo que o distinguiria de todos os pintores da época: o desejo inexorável de expressar sua visão subjetiva de mundo através da arte. Munch, então, foi além. A mera representação objetiva da realidade e da beleza concreta não teria lugar em sua busca por uma solução artística. Sua arte então seria a arte do coração, dos recônditos da psique, do sentimento, uma janela da alma para temas atemporais que sempre assombrariam a humanidade. Pintaria rostos vazios ou demasiado expressivos, com traços desfigurados e olhares partidos, corpos que se tocam, mas que não se tocam. Pintaria a angústia do não pertencimento, o sexo, a enfermidade, a ansiedade, a melancolia. "Na minha arte, eu tento explicar a vida e o seu significado a mim mesmo.", disse uma vez.
O primoroso docudrama de 1974 do Peter Watkins reconta, em suas 3h31min de duração e com uma atenção aos detalhes sem precedentes, todos esses momentos-chave da história da vida do Munch, dramatizando eventos reais com uma narrativa documental: sua conturbada relação com a família sempre convalescente, a morte da irmã mais nova, o fanatismo religioso do pai, as discussões acaloradas com poetas simbolistas e amigos boêmios e niilistas que tanto o influenciaram, o rompimento com a moralidade da época, os relacionamentos frustrados e disfuncionais, o rechaço público em galerias, a falta de reconhecimento, a busca pela verdade e pelo amor.
A câmera do Watkins, sempre atenta, investiga detalhes das pinturas, rostos, expressões e olhares – repetidamente, os atores e o próprio Munch encaram a câmera, como se revelassem no olhar negação, aflição, indolência, conflito, desalento ou até compreensão. É como se víssemos o mundo através dos olhos do Munch. A constante transposição de cenas não-cronológicas e a-lineares, muitas delas da sua infância, quando foi atacado pela tuberculose, e a fotografia enevoada e púrpura do filme criam uma espécie de fratura permanente na narrativa que serve para ilustrar a mente atormentada e conflitiva do pintor. Em uma das cenas mais devastadoras, Munch é objeto de escrutínio público em uma exibição e ao fundo ouvimos seu choro de miséria, vindo de outro tempo-lugar. Curiosamente, os personagens são interpretados por não-atores, dentre os quais muitos realmente não gostavam da obra do Munch e por isso suas opiniões violentas contra o pintor eram indesculpavelmente sinceras.
Vi poucos filmes que conseguiram criar uma dimensão tão pessoal da vida de um artista e de sua obra, ajudando a compreendê-las em um nível tão profundo e emocional. Talvez apenas Lust for Life, do Vincente Minnelli, sobre Van Gogh, chegue tão perto. Ou os documentários sobre o Crumb (Crumb, do Terry Zwigoff) e sobre o Chet Baker (Let's Get Lost, do Bruce Weber). Se antes apenas admirava, com certa distância, o Edvard Munch, com o filme do Watkins ele se tornou o meu favorito. Não apenas pela consistência e autenticidade de sua obra, mas pela sua resiliência enquanto artista, de não ceder às mentes mesquinhas e continuar acreditando em sua visão, buscando aperfeiçoá-la sempre, mesmo que isso lhe custasse a sanidade mental. Eis um homem que enfrentou toda uma sorte de intempéries, tragédias pessoais e ataques às suas obras durante a vida inteira e mesmo assim não abdicou de sua arte. Ao contrário, mergulhou cada vez mais no seu universo, dançou com seus demônios, abraçou sua loucura e seguiu até o fim de seus dias. Um extraordinário tratado sobre perseverança e humanidade sobre quem era, sem dúvidas, o Bresson do expressionismo.
Eu amo gente perturbada da cabeça e engenhosa, que filme grotesco e nojento e alucinante da porra. Um clássico instantâneo do cyberpunk e body horror, como se David Cronenberg e David Lynch tivessem um filho bastardo no Japão. Uma aula de como se virar com um baixo orçamento, montagem e sonoplastia simplesmente sensacionais, preto e branco que lembra muito Pi e Eraserhead, o que ajuda bastante na composição artística do filme: quase não dá pra fazer distinção entre metal fundido de fluidos corporais, sangue de graxa e ferrugem, fios emaranhados de vermes sobre carne podre, metal contorcido de ossos se quebrando. Muito criativo. Pena que todo o frenesi saia um pouco do controle na metade final e exagere no tom cômico (meio constrangedoras algumas cenas, com um falocentrismo totalmente desnecessário) e no mote dos personagens, o que me impediu de levar esse delírio audiovisual do Shinya Tsukamoto mais a sério.
Há filmes que envelhecem mal e há os filmes do Sidney Lumet. Inacreditáveis 40 anos se passaram e Network parece que foi feito para os dias de hoje. Confesso que tenho uma preguiça incorrigível para filmes com "mensagens contundentes" porque geralmente formulaicos e sem espaço para subjetividade, mas esse aqui é tão certeiro, com um humor tão sofisticado e um elenco tão afiado, que não teve como fugir, nem sair ileso. Um filme incategorizável, talvez até maior que si mesmo, e que vai continuar reverberando por muitos anos, com seus monólogos e diálogos arrasa-quarteirão. Ainda sem fôlego com esse daqui (mas há muitos outros igualmente estarrecedores):
"Você é um homem velho, Sr. Beale, que pensa em termos de nações e pessoas. Não existem nações. Não existem pessoas. Não existem russos. Não existem árabes. Não existe terceiro mundo. Não existe oeste. Só há um sistema holístico de sistemas! Um vasto e imanente, interligado, interagente, multi-variante e multinacional domínio de dólares. Dólares petrolíferos, eletro-dólares, multi-dólares. Moeda alemã, moeda japonesa, moeda-russa, moeda britânica e moeda dos judeus. É o sistema internacional da moeda corrente que determina a totalidade de vida neste planeta. Esta é a ordem natural das coisas hoje em dia. Esta é a estrutura atômica, sub-atômica, galáctica, e você mexeu com as forças primitivas da natureza, Sr. Beale. Você se levantou em sua televisãozinha de 21 polegadas e praguejou sobre a América e sobre democracia. Não há América. Não há democracia. Só há IBM e ITT e AT&T e Du Pont, Dow, Union Carbide e Exxon. Essas são as nações do mundo de hoje. Sobre o que você acha que os russos falam em seus conselhos de estado? Karl Marx? Eles saem de suas programações lineares, decisões em cima de teorias estáticas, soluções minimalistas e computam as probabilidades do custo-benefício de suas transações e investimentos, como nós! Nós não estamos mais vivendo num mundo de nações e ideologias, Sr. Beale. O mundo é um colegiado de corporações, inexoravelmente determinado pelas leis imutáveis dos negócios. O mundo é um negócio, e tem sido desde que o homem saiu da caverna."
O rei do blue balls ataca novamente – dessa vez, com um filme muito ambivalente e autoconsciente para o seu próprio bem, mas que possui seu charme. Uma mistura de summer camp e swimming pool, o filme retrata um final de semana na vida de 8 rapazes que se encontram numa casa de campo em Ezeiza sob a perspectiva de um deles: o cenário ideal para a provocação e a contemplação do “Eros” dos diretores Marco Berger e Martín Farina.
Diferentemente de Havaí, que considero o melhor do diretor argentino (Berger), a tensão sexual crescente (sempre ela) em Taekwondo é tão calculada que beira ao improvável, como se os protagonistas (mesmo com muita química) vivessem trancafiados na década de 50 e o toque, ainda que urgente, fosse algo proibido. Todo o filme transita nesse espaço entre o “será que ele está a fim?” e o “ou será que ele está apenas sendo simpático?” que muitos de nós já vivenciamos alguma vez. O problema é que em Taekwondo os sinais são inequívocos e a protelação de algo carnal soa mais como uma desculpa do Berger/Farina para exercerem suas habilidades diretivas.
Ainda assim, mesmo que a inverossimilhança pese demais, e superados os problemas esquemáticos, Berger entrega um filme esteticamente primoroso, uma prova irrefutável do seu amadurecimento enquanto cineasta – aqui, as semelhanças ao Linklater mais recente, “Everybody Wants Some!!”, são inevitáveis, cuja dinâmica homoerótica e a “camaraderie” entre os atores são o mais puro retrato de testosterona em ebulição em tela. Taekwondo consegue capturar tão bem a energia sexual daqueles rapazes, com um olhar contemplativo quase literário sobre eles, que o filme se transforma num conto erótico de verão sobre desejo, amizade e possibilidades. Os enquadramentos cuidadosos, os close-ups realçando os olhares que se cruzam e o toque que nunca se concretiza, a casualidade/banalidade dos diálogos que cortam os longos silêncios que permeiam os vários cômodos da casa, a forma como a câmera repousa nos corpos masculinos naturalmente nus (quase sempre num repouso dominical): essa pulsão sexual em cada frame torna a experiência como um todo pra lá de satisfatória (e ironicamente frustrante também). É como se Berger e Farina pensassem “vou levar esses personagens ao extremo do desejo e o espectador ao limite da paciência” – o que pode não funcionar para grande parte do público já acostumada com o estilo.
"Olhem de novo para aquele ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, todos os que conhecemos de quem ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas.
Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “líderes supremos”, todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração deste ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes mal distinguíveis de algum outro canto em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, tudo é posto em dúvida por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.
A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos em futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Estabelecer-se, ainda não. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto."
"O horror possui uma beleza irresistível, Shelley."
Se Deus está morto, então tudo está permitido na cabeça do Ken Russell. Esse fascínio do diretor pelo universo romântico combinado com seu estilo idiossincrático e nada convencional rendeu muitas pérolas do cinema britânico. Com esse não poderia ser diferente. Horror, morte, poesia, sexo, incesto, histeria, ópio, natimortos: Gothic é um dos seus maiores delírios, deliciosamente homoerótico, absurdo e caótico, com uma estética sombria e sensual, uma mistura kitsch de Rembrandt com clipes da Kate Bush. Nunca mais verei Lord Byron e Mary Shelley da mesma forma.
"And if one does what God does enough times, one will become as God is.", racionaliza, sobre homicídio, um sardônico Hannibal Lecktor para o já atormentado Will Graham, magistralmente interpretado pelo William Petersen, um agente especial do FBI que quase sucumbiu à loucura durante a apreensão do famoso sociopata e agora foi designado a capturar um novo serial killer: o Tooth Fairy.
Às vezes é difícil colocar em palavras o quanto a gente gosta de um filme e sempre tive essa dificuldade com o Michael Mann, que dirigiu pelo menos dois dos meus filmes favoritos: “Heat” e “Thief”. Acabei de ver “Manhunter” e me sinto na obrigação de dizer que este é provavelmente seu grande filme, seu chef-d'oeuvre, não só pela notória qualidade estética e narrativa, mas porque é o seu filme que mais reverberou no cinema e na tevê. Num nível bem mais pessoal, ao ouvir a expressão “azul é a cor mais quente”, já não penso mais naquele inesquecível gouinage entre Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, mas no azul emocional do Michael Mann que invade a tela nas mãos do Dante Spinotti. Que puta uso da paleta de cores. Que mise-en-scène. Desde os planos em espaços abertos, com prédios com arquitetura art deco, até o uso contrastante do branco asséptico das cenas com o Leckter versus as cores pulsantes (azul, verde e magenta) das cenas envolvendo Graham e Dolarhyde. Algo que o Argento fez em “Suspiria”. Para um filme de baixo orçamento, o resultado é primoroso e talvez o filme mais cool e sexy dos anos 80.
Antes de “Manhunter”, estava convicto que “The Silence of the Lambs” era a adaptação definitiva de uma das obras do Thomas Harris para o cinema. Como eu estava enganado. Até a série “Hannibal”, mesmo em sua sombria e gloriosa plasticidade, e tendo bebido muito dessa fonte, parece menor. Não só é interessante ver todos esses personagens de Dragão Vermelho em suas primeiras aparições nas telas do cinema (Hannibal Lecter, Will Graham, Francis Dolarhyde, Jack Crawford, Freddy Lounds), ou rever cenas marcantes da série com outra ambientação (com aquela pegada de Miami Vice do diretor), como é sensacional observar como os personagens são bem construídos, enfrentando dualidades existenciais que fazem parte da complexidade da natureza humana. Como o Herzog fez com seu Nosferatu, transformando-o numa vítima do tempo, condenada a viver numa eternidade estéril e sem amor.
Se eu pudesse casar com uma cena pra sempre, seria aquela em que o serial killer Tooth Fairy (Dolarhyde) leva sua amante e potencial vítima Reba, que é cega, para acariciar um tigre anestesiado. O ritmo, o silêncio, a tensão e a simbologia do perigo iminente diante da proximidade da presa-predador resultaram numa das cenas mais bonitas, imersivas e inesperadamente românticas do cinema.
Outro grande chamariz desse filme: a trilha sonora. O uso diegético da música é tão bom que talvez só perca para o de Blade Runner. Sintetizadores minimalistas que evocam um tom atmosférico e sensual (bem Badalamenti mesmo) dão emoção ao silêncio noturno dos apartamentos mal iluminados e ruas desertas que aparecem no filme. O mesmo serve pra músicas como This Big Hush, do Shrieback, e Strong As I Am, do The Prime Movers, que dão a vibe cool oitentista que alguns podem considerar datado, mas que é uma das minhas coisas favoritas dos filmes dessa década.
Um filmão da porra, classudo e lindo, com personagens psicologicamente torturados e que caminham nos terrenos mais pantanosos da mente humana, cambaleando pela linha tênue entre sanidade e loucura. Poucos conseguiram fazer isso tão bem e com tanta sofisticação como o Michael Mann. Espero um dia revê-lo no cinema e conseguir ler os livros do Thomas Harris para mergulhar ainda mais nesse universo. Hands down.
"Sua ausência enche minha vida completamente e a destrói."
Grazadeus entorpecido pela melancolia desse Almodóvar mais emocional, que depois de um bom tempo com obras mornas acertou em cheio, num filme que traz de volta personagens femininas marcantes e que esconde uma acidez cortante por trás do drama familiar de perda e culpa da protagonista. A sutileza das críticas que ele faz às instituições (aqui, ao fanatismo religioso e ao machismo) não diminui sua potência – é quase um grito silencioso. Fui com tanto medo de me decepcionar, que acabei sendo pego de surpresa por essa experiência altamente sensorial. Que narrativa envolvente, que direção de atores. Falar de como o suspense é conduzido com excelência, dos cenários mediterrâneos, da trilha do Alberto Iglesias e da paleta de cores carmesim é chover no molhado. Não que precisasse, mas aqui ele se reafirma como o grande auteur que realmente é, com um domínio absoluto de sua Arte. Continue nesse caminho, Almodô.
Dos grandes favoritos na corrida pelo Oscar de melhor documentário esse ano, O.J.: Made in America é uma jornada épica pelo lado obscuro do Sonho Americano, um estudo microscópico de 7 horas e meia sobre meio século de tensões raciais e de classe nos Estados Unidos sob a lente da ascensão e queda de O.J. Simpson: de herói nacional a assassino de Nicole Brown (sua esposa) e Ronald Goldman. Com um tremendo potencial transformador e um dinamismo e edição inegavelmente brilhantes, o documentário é uma verdadeira aula sobre temas que se conectavam e se convergiam na trajetória de um dos maiores ídolos da história dos EUA: movimento dos direitos civis dos negros, brutalidade policial, racismo estrutural, poder revelando as facetas mais sombrias do ser humano, naturalização do machismo, violência doméstica, banalidade do sistema judiciário, circo midiático, etc.
A imparcialidade, complexidade e multiplicidade de perspectivas e depoimentos são os grandes méritos do documentário do Ezra Edelman, cuja estrutura vai preparando o terreno para o espectador compreender cada faceta do maior julgamento que aquele país vivenciou e o porquê dele ter se transformado em algo muito maior que o caso do O.J. Simpson. Somente dessa forma o espectador sentiria o misto de emoções que essa história tem a proporcionar e se veria encurralado pelas narrativas do filme.
De um lado, impossível não se sentir abalado e empático pela comunidade negra que por décadas foi brutalmente massacrada e teve sua dignidade violada pela polícia racista de Los Angeles. Do outro, chega a ser desconcertante compreender toda essa comunidade clamando pela inocência de um assassino pelo o que ele representava naquele contexto histórico: a possibilidade de se ter um negro inocentado pela primeira vez pelo sistema judiciário americano, após décadas de injustiças e criminalização da população negra. Inevitável, também, não comungar com a frustração dos promotores de acusação, cujos esforços e provas mais que suficientes para uma condenação foram derrotados pela hipocrisia e oportunismo do O.J. Simpson e pelo malabarismo intelectual dos seus milionários advogados de defesa. Mais que palpável a angústia deles ao presenciar um assassino não somente ser inocentado, mas terminar representando uma “grande vitória” por clamor popular. Essencialmente porque esse homem, durante toda sua trajetória de glória, nunca ligou um puto para o movimento negro, pois os espaços de privilégio que adquiriu e o carisma meticulosamente calculado pelo qual ele era famoso transcendiam sua raça.
Ao fim do documentário, quando ocorre a eventual condenação do Simpson por um crime patético que ele viria a cometer mais de 13 anos após o duplo assassinato que arruinou a vida de várias pessoas, eu ainda me perguntava: o quão maluco é você perdoar e idolatrar um ser humano que agredia física e psicologicamente a mulher por vários anos e que não sabendo lidar com sua rejeição, a mata brutalmente a facadas, deixando seu corpo ensanguentado e exposto no chão enquanto os filhos dormiam no andar de cima? Quanto ressentimento e mágoa acumulados por anos de injustiça social são necessários para absolver alguém de crime tão bárbaro? O documentário, sabiamente, não nos dá as respostas de prontidão, mas nos estimula a refletir e nos questionar com muito mais responsabilidade e consciência histórica.
Que surpresa esse filme. O pôster sugeria algo medíocre, cheio de jump scares, mas eis que me deparo com um belo e grotesco conto de terror sobre perda e ausência, embalado pela musa do fado português Amália Rodrigues. Vejo as cenas do celeiro e do bar e só consigo pensar em como o diretor Nicolas Pesce se embebedou de The Night of the Hunter, do Charles Laughton, e Kárhozat, do Béla Tarr, para compô-las. Uma pena que seja tão apressado e pouco desenvolvido e se apoie tanto em sua riqueza imagética. Poderia ser uma pequena obra-prima do gênero.
"Cavalheiros, gostariam de um vislumbre do vosso futuro?"
Ninguém narra um filme como o Sokurov. O onirismo e a subjetividade etérea de suas imagens e o ritmo como ele as conduz, como quem conduz uma orquestra, é algo lírico, transcendental. Assim foi em Arca Russa, Mãe e Filho e tantos outros. Não foi diferente em Francofonia. Aqui, o que era pra ser um docudrama histórico sobre a ocupação do Louvre pela Alemanha nazista durante a 2ª Guerra, se transforma num passeio pelos corredores não só do museu, mas do passado, numa belíssima elegia sobre as obras de arte perdidas no tempo. Um filme não só sobre identidade e memória, mas sobre como a Arte é o coração pulsante da Humanidade. Em êxtase.
A Atração
3.2 65Julianne Moore e Evan Peters estão ótimos.
O Lagosta
3.8 1,5K Assista AgoraNo filme eu sou a garota que esbofetou a amiga falsiane e escolheu Stand By Me pra ver antes de morrer/virar um pônei. Melhor pessoa.
Bom Comportamento
3.8 392Michael Mann and John Cassavetes' enfant terrible.
Blade Runner 2049
4.0 1,7K Assista AgoraUm verdadeiro milagre cinematográfico. Não só supera e expande Blade Runner, como talvez seja o melhor sci-fi já realizado, em toda a sua gloriosa melancolia e intimismo. Até hoje, meses depois, ponho a belíssima trilha do Zimmer pra tocar e sempre que chega nas faixas "All the Best Memories are Hers" e "Tears in the Rain", sinto um arrepio na nuca. Lembro instantaneamente do Gosling na escadaria, da neve caindo e da sua expressão desolada de quem acabou de constatar, em sua jornada solitária, que nada em sua vida era real, nem mesmo suas memórias. Nem mesmo aquilo que ele buscava. Não ter absolutamente nada para segurar. Que cena linda e triste da porra. Que momento genuinamente humano. Uma epifania que eu não sinto desde Lost in Translation. Villeneuve provou ser o diretor mais competente da atualidade e 2049 vai ser lembrado pelas futuras gerações como um clássico canônico, tal qual seu antecessor. E Richard Deakins, cara, eu te amo.
O Estranho que Nós Amamos
3.2 617 Assista Agora45 anos separam The Beguiled de Barry Lyndon, mas não me vem à mente, neste intervalo de mais de quatro décadas, nenhum outro filme cujas beleza e elegância sejam comparáveis ao clássico do Kubrick, que não esta jóia cinematográfica da Sofia Coppola. Cada frame desse southern gothic parece ter sido meticulosamente feito para simular um quadro. Mesmo as tensões sexuais latentes e crescentes, quando irrompem na tela, não foram capazes de me distrair da beleza da paleta de cores quase homogênea, ou dos rostos pálidos, porém enrubescidos pela curiosidade, das garotas, nem dos cômodos da casa pouco iluminados e empoeirados, ou dos raios de sol penetrando as frestas das árvores, ou dos jantares à luz de velas. Tudo arranjado com tanta graça e rigor que chega a ser uma dádiva a mão da diretora não ter pesado no final. Ao contrário, ter conseguido entregar um thriller tão provocante e funcional. Tivesse uma duração um pouco maior, com o aprofundamento de personagens como a Edwina, seria perfeito. Um filme para rever e contemplar várias vezes.
Game of Thrones (7ª Temporada)
4.1 1,2K Assista AgoraMelhor que o pescoço do Mindinho sendo cortado, melhor que a chegada da Daenerys no Fosso dos Dragões, melhor que o protecionismo de Clegane e Brienne em relação a Arya, melhor que Jaime finalmente largando a Cersei, melhor que o tão esperado colapso da Muralha, melhor que Bran e Sam juntando as peças tudo, melhor que tudo isso só mesmo a bundinha redondinha do João das Neves.
The Wire (2ª Temporada)
4.4 73"I got the shotgun. You got the briefcase. It's all in the game, though, right?" Omar é foda.
Taboo (1ª Temporada)
4.1 126 Assista AgoraTom Hardy: "I have a use for you"
Me: "MY BODY IS READY"
O Conto da Aia (1ª Temporada)
4.7 1,5K Assista Agora“You are deranged. You’re fucking evil, you know that? You’re a goddamned motherfucking monster. Fucking heartless sadistic motherfucking evil cunt. Fuck you, Serena. You are gonna burn in goddamned motherfucking hell, you crazy evil bitch.”
Edvard Munch
4.4 13“Quero vida. Aquilo que está vivo."
O ano era 1886. Edvard Munch exibia pela primeira vez, em Kristiania (hoje Oslo), sua obra mais dolorosa e pessoal, “The Sick Child” (que revisitaria inúmeras vezes ao longo da vida), na qual sua amada irmã Johanne Sophie é confortada no leito de morte pela tia, momentos antes de sucumbir a uma tuberculose, aos 14 anos, mesma doença que vitimou sua mãe e que quase o matou. A pintura, com traços e marcas profundas sobre a tela, como se demonstrassem um estado de espírito intranquilo – ruptura drástica com o naturalismo e impressionismo da época –, causou controvérsia e indignação moral entre público e crítica, que a considerou feia, grotesca e inacabada, recepção hostil que se revelaria constante durante quase toda a trajetória artística do Munch.
Doença, morte, incomunicabilidade, solidão, ciúmes, isolamento, impotência e perplexidade do ser humano diante daquilo que não está sob seu controle. Esses são os temas centrais da obra do pintor norueguês, cuja infância e juventude marcadas pela dor, perda e traumas foram fatores propulsores para aquilo que o distinguiria de todos os pintores da época: o desejo inexorável de expressar sua visão subjetiva de mundo através da arte. Munch, então, foi além. A mera representação objetiva da realidade e da beleza concreta não teria lugar em sua busca por uma solução artística. Sua arte então seria a arte do coração, dos recônditos da psique, do sentimento, uma janela da alma para temas atemporais que sempre assombrariam a humanidade. Pintaria rostos vazios ou demasiado expressivos, com traços desfigurados e olhares partidos, corpos que se tocam, mas que não se tocam. Pintaria a angústia do não pertencimento, o sexo, a enfermidade, a ansiedade, a melancolia. "Na minha arte, eu tento explicar a vida e o seu significado a mim mesmo.", disse uma vez.
O primoroso docudrama de 1974 do Peter Watkins reconta, em suas 3h31min de duração e com uma atenção aos detalhes sem precedentes, todos esses momentos-chave da história da vida do Munch, dramatizando eventos reais com uma narrativa documental: sua conturbada relação com a família sempre convalescente, a morte da irmã mais nova, o fanatismo religioso do pai, as discussões acaloradas com poetas simbolistas e amigos boêmios e niilistas que tanto o influenciaram, o rompimento com a moralidade da época, os relacionamentos frustrados e disfuncionais, o rechaço público em galerias, a falta de reconhecimento, a busca pela verdade e pelo amor.
A câmera do Watkins, sempre atenta, investiga detalhes das pinturas, rostos, expressões e olhares – repetidamente, os atores e o próprio Munch encaram a câmera, como se revelassem no olhar negação, aflição, indolência, conflito, desalento ou até compreensão. É como se víssemos o mundo através dos olhos do Munch. A constante transposição de cenas não-cronológicas e a-lineares, muitas delas da sua infância, quando foi atacado pela tuberculose, e a fotografia enevoada e púrpura do filme criam uma espécie de fratura permanente na narrativa que serve para ilustrar a mente atormentada e conflitiva do pintor. Em uma das cenas mais devastadoras, Munch é objeto de escrutínio público em uma exibição e ao fundo ouvimos seu choro de miséria, vindo de outro tempo-lugar. Curiosamente, os personagens são interpretados por não-atores, dentre os quais muitos realmente não gostavam da obra do Munch e por isso suas opiniões violentas contra o pintor eram indesculpavelmente sinceras.
Vi poucos filmes que conseguiram criar uma dimensão tão pessoal da vida de um artista e de sua obra, ajudando a compreendê-las em um nível tão profundo e emocional. Talvez apenas Lust for Life, do Vincente Minnelli, sobre Van Gogh, chegue tão perto. Ou os documentários sobre o Crumb (Crumb, do Terry Zwigoff) e sobre o Chet Baker (Let's Get Lost, do Bruce Weber). Se antes apenas admirava, com certa distância, o Edvard Munch, com o filme do Watkins ele se tornou o meu favorito. Não apenas pela consistência e autenticidade de sua obra, mas pela sua resiliência enquanto artista, de não ceder às mentes mesquinhas e continuar acreditando em sua visão, buscando aperfeiçoá-la sempre, mesmo que isso lhe custasse a sanidade mental. Eis um homem que enfrentou toda uma sorte de intempéries, tragédias pessoais e ataques às suas obras durante a vida inteira e mesmo assim não abdicou de sua arte. Ao contrário, mergulhou cada vez mais no seu universo, dançou com seus demônios, abraçou sua loucura e seguiu até o fim de seus dias. Um extraordinário tratado sobre perseverança e humanidade sobre quem era, sem dúvidas, o Bresson do expressionismo.
Tetsuo, o Homem de Ferro
3.7 136Eu amo gente perturbada da cabeça e engenhosa, que filme grotesco e nojento e alucinante da porra. Um clássico instantâneo do cyberpunk e body horror, como se David Cronenberg e David Lynch tivessem um filho bastardo no Japão. Uma aula de como se virar com um baixo orçamento, montagem e sonoplastia simplesmente sensacionais, preto e branco que lembra muito Pi e Eraserhead, o que ajuda bastante na composição artística do filme: quase não dá pra fazer distinção entre metal fundido de fluidos corporais, sangue de graxa e ferrugem, fios emaranhados de vermes sobre carne podre, metal contorcido de ossos se quebrando. Muito criativo. Pena que todo o frenesi saia um pouco do controle na metade final e exagere no tom cômico (meio constrangedoras algumas cenas, com um falocentrismo totalmente desnecessário) e no mote dos personagens, o que me impediu de levar esse delírio audiovisual do Shinya Tsukamoto mais a sério.
Rede de Intrigas
4.2 360 Assista AgoraVocê é loucura, Diana.
Há filmes que envelhecem mal e há os filmes do Sidney Lumet. Inacreditáveis 40 anos se passaram e Network parece que foi feito para os dias de hoje. Confesso que tenho uma preguiça incorrigível para filmes com "mensagens contundentes" porque geralmente formulaicos e sem espaço para subjetividade, mas esse aqui é tão certeiro, com um humor tão sofisticado e um elenco tão afiado, que não teve como fugir, nem sair ileso. Um filme incategorizável, talvez até maior que si mesmo, e que vai continuar reverberando por muitos anos, com seus monólogos e diálogos arrasa-quarteirão. Ainda sem fôlego com esse daqui (mas há muitos outros igualmente estarrecedores):
"Você é um homem velho, Sr. Beale, que pensa em termos de nações e pessoas. Não existem nações. Não existem pessoas. Não existem russos. Não existem árabes. Não existe terceiro mundo. Não existe oeste. Só há um sistema holístico de sistemas! Um vasto e imanente, interligado, interagente, multi-variante e multinacional domínio de dólares. Dólares petrolíferos, eletro-dólares, multi-dólares. Moeda alemã, moeda japonesa, moeda-russa, moeda britânica e moeda dos judeus. É o sistema internacional da moeda corrente que determina a totalidade de vida neste planeta. Esta é a ordem natural das coisas hoje em dia. Esta é a estrutura atômica, sub-atômica, galáctica, e você mexeu com as forças primitivas da natureza, Sr. Beale. Você se levantou em sua televisãozinha de 21 polegadas e praguejou sobre a América e sobre democracia. Não há América. Não há democracia. Só há IBM e ITT e AT&T e Du Pont, Dow, Union Carbide e Exxon. Essas são as nações do mundo de hoje. Sobre o que você acha que os russos falam em seus conselhos de estado? Karl Marx? Eles saem de suas programações lineares, decisões em cima de teorias estáticas, soluções minimalistas e computam as probabilidades do custo-benefício de suas transações e investimentos, como nós! Nós não estamos mais vivendo num mundo de nações e ideologias, Sr. Beale. O mundo é um colegiado de corporações, inexoravelmente determinado pelas leis imutáveis dos negócios. O mundo é um negócio, e tem sido desde que o homem saiu da caverna."
Taekwondo
2.9 53O rei do blue balls ataca novamente – dessa vez, com um filme muito ambivalente e autoconsciente para o seu próprio bem, mas que possui seu charme. Uma mistura de summer camp e swimming pool, o filme retrata um final de semana na vida de 8 rapazes que se encontram numa casa de campo em Ezeiza sob a perspectiva de um deles: o cenário ideal para a provocação e a contemplação do “Eros” dos diretores Marco Berger e Martín Farina.
Diferentemente de Havaí, que considero o melhor do diretor argentino (Berger), a tensão sexual crescente (sempre ela) em Taekwondo é tão calculada que beira ao improvável, como se os protagonistas (mesmo com muita química) vivessem trancafiados na década de 50 e o toque, ainda que urgente, fosse algo proibido. Todo o filme transita nesse espaço entre o “será que ele está a fim?” e o “ou será que ele está apenas sendo simpático?” que muitos de nós já vivenciamos alguma vez. O problema é que em Taekwondo os sinais são inequívocos e a protelação de algo carnal soa mais como uma desculpa do Berger/Farina para exercerem suas habilidades diretivas.
Ainda assim, mesmo que a inverossimilhança pese demais, e superados os problemas esquemáticos, Berger entrega um filme esteticamente primoroso, uma prova irrefutável do seu amadurecimento enquanto cineasta – aqui, as semelhanças ao Linklater mais recente, “Everybody Wants Some!!”, são inevitáveis, cuja dinâmica homoerótica e a “camaraderie” entre os atores são o mais puro retrato de testosterona em ebulição em tela. Taekwondo consegue capturar tão bem a energia sexual daqueles rapazes, com um olhar contemplativo quase literário sobre eles, que o filme se transforma num conto erótico de verão sobre desejo, amizade e possibilidades. Os enquadramentos cuidadosos, os close-ups realçando os olhares que se cruzam e o toque que nunca se concretiza, a casualidade/banalidade dos diálogos que cortam os longos silêncios que permeiam os vários cômodos da casa, a forma como a câmera repousa nos corpos masculinos naturalmente nus (quase sempre num repouso dominical): essa pulsão sexual em cada frame torna a experiência como um todo pra lá de satisfatória (e ironicamente frustrante também). É como se Berger e Farina pensassem “vou levar esses personagens ao extremo do desejo e o espectador ao limite da paciência” – o que pode não funcionar para grande parte do público já acostumada com o estilo.
Cosmos: Uma Odisséia No Espaço Tempo
4.8 344"Olhem de novo para aquele ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, todos os que conhecemos de quem ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas.
Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “líderes supremos”, todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração deste ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes mal distinguíveis de algum outro canto em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, tudo é posto em dúvida por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.
A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos em futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Estabelecer-se, ainda não. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto."
Toda uma vida antes e depois de Cosmos.
Louis C.K. 2017
4.0 25You should have the right to kill a baby if it's in your vagina. You can kill a man if it's in your house.
Gótico
3.4 56"O horror possui uma beleza irresistível, Shelley."
Se Deus está morto, então tudo está permitido na cabeça do Ken Russell. Esse fascínio do diretor pelo universo romântico combinado com seu estilo idiossincrático e nada convencional rendeu muitas pérolas do cinema britânico. Com esse não poderia ser diferente. Horror, morte, poesia, sexo, incesto, histeria, ópio, natimortos: Gothic é um dos seus maiores delírios, deliciosamente homoerótico, absurdo e caótico, com uma estética sombria e sensual, uma mistura kitsch de Rembrandt com clipes da Kate Bush. Nunca mais verei Lord Byron e Mary Shelley da mesma forma.
Caçador de Assassinos
3.5 158 Assista Agora"And if one does what God does enough times, one will become as God is.", racionaliza, sobre homicídio, um sardônico Hannibal Lecktor para o já atormentado Will Graham, magistralmente interpretado pelo William Petersen, um agente especial do FBI que quase sucumbiu à loucura durante a apreensão do famoso sociopata e agora foi designado a capturar um novo serial killer: o Tooth Fairy.
Às vezes é difícil colocar em palavras o quanto a gente gosta de um filme e sempre tive essa dificuldade com o Michael Mann, que dirigiu pelo menos dois dos meus filmes favoritos: “Heat” e “Thief”. Acabei de ver “Manhunter” e me sinto na obrigação de dizer que este é provavelmente seu grande filme, seu chef-d'oeuvre, não só pela notória qualidade estética e narrativa, mas porque é o seu filme que mais reverberou no cinema e na tevê. Num nível bem mais pessoal, ao ouvir a expressão “azul é a cor mais quente”, já não penso mais naquele inesquecível gouinage entre Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, mas no azul emocional do Michael Mann que invade a tela nas mãos do Dante Spinotti. Que puta uso da paleta de cores. Que mise-en-scène. Desde os planos em espaços abertos, com prédios com arquitetura art deco, até o uso contrastante do branco asséptico das cenas com o Leckter versus as cores pulsantes (azul, verde e magenta) das cenas envolvendo Graham e Dolarhyde. Algo que o Argento fez em “Suspiria”. Para um filme de baixo orçamento, o resultado é primoroso e talvez o filme mais cool e sexy dos anos 80.
Antes de “Manhunter”, estava convicto que “The Silence of the Lambs” era a adaptação definitiva de uma das obras do Thomas Harris para o cinema. Como eu estava enganado. Até a série “Hannibal”, mesmo em sua sombria e gloriosa plasticidade, e tendo bebido muito dessa fonte, parece menor. Não só é interessante ver todos esses personagens de Dragão Vermelho em suas primeiras aparições nas telas do cinema (Hannibal Lecter, Will Graham, Francis Dolarhyde, Jack Crawford, Freddy Lounds), ou rever cenas marcantes da série com outra ambientação (com aquela pegada de Miami Vice do diretor), como é sensacional observar como os personagens são bem construídos, enfrentando dualidades existenciais que fazem parte da complexidade da natureza humana. Como o Herzog fez com seu Nosferatu, transformando-o numa vítima do tempo, condenada a viver numa eternidade estéril e sem amor.
Se eu pudesse casar com uma cena pra sempre, seria aquela em que o serial killer Tooth Fairy (Dolarhyde) leva sua amante e potencial vítima Reba, que é cega, para acariciar um tigre anestesiado. O ritmo, o silêncio, a tensão e a simbologia do perigo iminente diante da proximidade da presa-predador resultaram numa das cenas mais bonitas, imersivas e inesperadamente românticas do cinema.
Outro grande chamariz desse filme: a trilha sonora. O uso diegético da música é tão bom que talvez só perca para o de Blade Runner. Sintetizadores minimalistas que evocam um tom atmosférico e sensual (bem Badalamenti mesmo) dão emoção ao silêncio noturno dos apartamentos mal iluminados e ruas desertas que aparecem no filme. O mesmo serve pra músicas como This Big Hush, do Shrieback, e Strong As I Am, do The Prime Movers, que dão a vibe cool oitentista que alguns podem considerar datado, mas que é uma das minhas coisas favoritas dos filmes dessa década.
Um filmão da porra, classudo e lindo, com personagens psicologicamente torturados e que caminham nos terrenos mais pantanosos da mente humana, cambaleando pela linha tênue entre sanidade e loucura. Poucos conseguiram fazer isso tão bem e com tanta sofisticação como o Michael Mann. Espero um dia revê-lo no cinema e conseguir ler os livros do Thomas Harris para mergulhar ainda mais nesse universo. Hands down.
A Floresta dos Lamentos
4.0 40Cinema-suspiro, com cheiro de terra e lágrimas.
Naomi Kawase sempre esse sopro de vida.
Feud: Bette and Joan (1ª Temporada)
4.6 284 Assista Agora"Welcome to the house that fear built."
Já quero outro episódio inteiro só com a Judy Davis sugando toda a energia ao redor.
Julieta
3.8 529 Assista Agora"Sua ausência enche minha vida completamente e a destrói."
Grazadeus entorpecido pela melancolia desse Almodóvar mais emocional, que depois de um bom tempo com obras mornas acertou em cheio, num filme que traz de volta personagens femininas marcantes e que esconde uma acidez cortante por trás do drama familiar de perda e culpa da protagonista. A sutileza das críticas que ele faz às instituições (aqui, ao fanatismo religioso e ao machismo) não diminui sua potência – é quase um grito silencioso. Fui com tanto medo de me decepcionar, que acabei sendo pego de surpresa por essa experiência altamente sensorial. Que narrativa envolvente, que direção de atores. Falar de como o suspense é conduzido com excelência, dos cenários mediterrâneos, da trilha do Alberto Iglesias e da paleta de cores carmesim é chover no molhado. Não que precisasse, mas aqui ele se reafirma como o grande auteur que realmente é, com um domínio absoluto de sua Arte. Continue nesse caminho, Almodô.
O.J.: Made in America
4.7 122"I'm not black, I'm O.J."
Dos grandes favoritos na corrida pelo Oscar de melhor documentário esse ano, O.J.: Made in America é uma jornada épica pelo lado obscuro do Sonho Americano, um estudo microscópico de 7 horas e meia sobre meio século de tensões raciais e de classe nos Estados Unidos sob a lente da ascensão e queda de O.J. Simpson: de herói nacional a assassino de Nicole Brown (sua esposa) e Ronald Goldman. Com um tremendo potencial transformador e um dinamismo e edição inegavelmente brilhantes, o documentário é uma verdadeira aula sobre temas que se conectavam e se convergiam na trajetória de um dos maiores ídolos da história dos EUA: movimento dos direitos civis dos negros, brutalidade policial, racismo estrutural, poder revelando as facetas mais sombrias do ser humano, naturalização do machismo, violência doméstica, banalidade do sistema judiciário, circo midiático, etc.
A imparcialidade, complexidade e multiplicidade de perspectivas e depoimentos são os grandes méritos do documentário do Ezra Edelman, cuja estrutura vai preparando o terreno para o espectador compreender cada faceta do maior julgamento que aquele país vivenciou e o porquê dele ter se transformado em algo muito maior que o caso do O.J. Simpson. Somente dessa forma o espectador sentiria o misto de emoções que essa história tem a proporcionar e se veria encurralado pelas narrativas do filme.
De um lado, impossível não se sentir abalado e empático pela comunidade negra que por décadas foi brutalmente massacrada e teve sua dignidade violada pela polícia racista de Los Angeles. Do outro, chega a ser desconcertante compreender toda essa comunidade clamando pela inocência de um assassino pelo o que ele representava naquele contexto histórico: a possibilidade de se ter um negro inocentado pela primeira vez pelo sistema judiciário americano, após décadas de injustiças e criminalização da população negra. Inevitável, também, não comungar com a frustração dos promotores de acusação, cujos esforços e provas mais que suficientes para uma condenação foram derrotados pela hipocrisia e oportunismo do O.J. Simpson e pelo malabarismo intelectual dos seus milionários advogados de defesa. Mais que palpável a angústia deles ao presenciar um assassino não somente ser inocentado, mas terminar representando uma “grande vitória” por clamor popular. Essencialmente porque esse homem, durante toda sua trajetória de glória, nunca ligou um puto para o movimento negro, pois os espaços de privilégio que adquiriu e o carisma meticulosamente calculado pelo qual ele era famoso transcendiam sua raça.
Ao fim do documentário, quando ocorre a eventual condenação do Simpson por um crime patético que ele viria a cometer mais de 13 anos após o duplo assassinato que arruinou a vida de várias pessoas, eu ainda me perguntava: o quão maluco é você perdoar e idolatrar um ser humano que agredia física e psicologicamente a mulher por vários anos e que não sabendo lidar com sua rejeição, a mata brutalmente a facadas, deixando seu corpo ensanguentado e exposto no chão enquanto os filhos dormiam no andar de cima? Quanto ressentimento e mágoa acumulados por anos de injustiça social são necessários para absolver alguém de crime tão bárbaro? O documentário, sabiamente, não nos dá as respostas de prontidão, mas nos estimula a refletir e nos questionar com muito mais responsabilidade e consciência histórica.
O Monstro no Armário
3.7 237 Assista AgoraA cena em que o Oscar cheira a roupa com o suor do Wilder é uma das mais sensuais que já vi na vida. Puta que pariu.
Os Olhos de Minha Mãe
3.6 180 Assista AgoraQue surpresa esse filme. O pôster sugeria algo medíocre, cheio de jump scares, mas eis que me deparo com um belo e grotesco conto de terror sobre perda e ausência, embalado pela musa do fado português Amália Rodrigues. Vejo as cenas do celeiro e do bar e só consigo pensar em como o diretor Nicolas Pesce se embebedou de The Night of the Hunter, do Charles Laughton, e Kárhozat, do Béla Tarr, para compô-las. Uma pena que seja tão apressado e pouco desenvolvido e se apoie tanto em sua riqueza imagética. Poderia ser uma pequena obra-prima do gênero.
Francofonia – Louvre Sob Ocupação
3.7 37"Cavalheiros, gostariam de um vislumbre do vosso futuro?"
Ninguém narra um filme como o Sokurov. O onirismo e a subjetividade etérea de suas imagens e o ritmo como ele as conduz, como quem conduz uma orquestra, é algo lírico, transcendental. Assim foi em Arca Russa, Mãe e Filho e tantos outros. Não foi diferente em Francofonia. Aqui, o que era pra ser um docudrama histórico sobre a ocupação do Louvre pela Alemanha nazista durante a 2ª Guerra, se transforma num passeio pelos corredores não só do museu, mas do passado, numa belíssima elegia sobre as obras de arte perdidas no tempo. Um filme não só sobre identidade e memória, mas sobre como a Arte é o coração pulsante da Humanidade. Em êxtase.