O futuro era mais atraente quando tínhamos carros voadores e androides; dele agora só restaram as distopias/teocracias machistas ou de extrema-direita. Toda série badalada atual tenta ser uma versão melhorada de Black Mirror, e Years and Years parecia até um esforço bem-sucedido, mas seu potencial foi se esvaindo justamente por emulá-la tanto, pelo seu ativismo exageradamente heroico e pela sanha dos roteiristas em – surprise! – lacrar, ancorando-se em nossos medos cotidianos e em uma suposta noção de culpa. Eu bato sempre nessa tecla, mas se o faço é porque essa onda se infestou feito câncer. É inescapável.
A minissérie seguiu razoável até o brilhante quarto episódio (humanamente impossível sair incólume), mas depois é ladeira abaixo para, por fim, despencar num otimismo inesperado. Aquele monólogo ultrapolitizado anti-establishment da matriarca, que todos têm elogiado, foi uma das coisas mais artificiais que eu já vi. O tom culpabilístico como epifania coletiva não colou. Dizer que o capitalismo nos tornou apáticos, cegos e confortáveis foi um discurso fácil, não houve sequer um contraponto. “O problema do Brasil é o brasileiro”. Tem algo mais senso comum para se dizer num jantar em família como reposta às nossas angústias coletivas?
Aliás, sinto que o engajamento da série tenha se dado pela sua facilidade em dialogar com várias realidades diferentes, apropriando-se de uma miríade de temas atuais (polarização, populismo, PC culture, desemprego, perseguição a minorias, crise migratória, pós-verdade, colapso climático, crise habitacional, tecnologia versus ética), e ela até se sai bem em alguns deles, mas, de forma excepcional, em nenhum porque é impossível ser profundo falando sobre tanta coisa ao mesmo tempo. Resultado: um ritmo frenético para tentar mascarar sua superficialidade e síndrome de Superman, com um caleidoscópio de soluções fáceis para situações complexas, além de muitos furos e quebras de expectativa (qual foi o aftermath da bomba?).
Outro incômodo que derivou desse apego: “Vivienne Rook é Bolsonaro de saia”. Ambos são líderes populistas e, de certa forma, ascenderam beneficiando-se do saco cheio das pessoas com a velha política e com os excessos/equívocos da esquerda e dos movimentos identitários, mas não deixa de ser uma comparação pobre: nosso Chefe do Executivo não tem um décimo da inteligência da Rook e nem, tampouco, é tão insidioso quanto ela – afinal ele, para melhor ou para pior, sempre foi coerente e continua sendo o que sempre foi desde a campanha presidencial, um bobão, que acha cool ficar no Twitter sendo politicamente incorreto enquanto terceiriza a gestão da nação para os especialistas. A “Viv”, ao contrário, tem o mérito de ser inteligente e calculista, mesmo que utilize tais atributos para naturalizar o genocídio.
A brilhante evolução de Kiernan Shipka em Mad Men foi um dos elementos mais notáveis daquela série e a razão pela qual eu decidi dar uma chance para essa releitura moderna de Sabrina. Ocultismo, bruxas, bodes, rituais pagãos em florestas à meia-noite? O que poderia dar errado? Bom, não sei nem por onde começar. 1: Misandria descarada e explícita. 2. Deus ex machina para a solução de todo e qualquer conflito. 3. Adolescentes artificialmente “despertos”. 4. Protagonista egoísta que, da noite para o dia, decide que tem a responsabilidade de acabar com todas as injustiças sociais naturalizadas pela sociedade e pelo Coven para provar que não é só mais uma mulher branca. 5. Personagens secundários sem desenvolvimento algum que servem apenas para reforçar as supostas virtudes da bruxa adolescente contestadora.
Aí você pergunta: você não acha que está levando a sério demais uma série teen de bruxaria não, meu nobre? Você não é tão anti-frágil e tão anti-vitimismo? Pra que todo esse chilique e “male tears” aí? O que está fazendo vendo uma série adolescente sobre bruxas, afinal? Não deveria estar cortando madeira, fazendo cerveja artesanal e deixando a barba crescer? You have a point, miss!
Um pouco de feminismo não faz mal a ninguém, afinal, o que esperar da Netflix? Mas a Greendale da série vai muito além: é a representação ideal de um mundo onde as mulheres não lutam por equidade, mas pela castração e domesticação revanchista e ressentida dos homens, uma tendência cada dia mais comum na tevê. E isso não fica nas entrelinhas, são diálogos e situações rotineiras. Vejamos: à exceção do irmão do Harvey e do Ambrose, todos os homens são patéticos, vis, abusadores, sexistas, bullies, frouxos ou soyboys. Até o próprio Capiroto, que é a representação não do Mal, mas de algo muito, mas muito pior: o horrível, o malévolo, o temível, o irrefreável e onipresente Patriarcado.
“Você é incapaz de machucar até uma mosca. É por isso que eu te amo”, diz a bruxa feminista para o seu namorado suco de chuchu.
“Homens... acham que podem resolver tudo usando a força”, diz a vilã malvada que, por sinal, é devoradora de homens (melhor personagem, pois caricata).
Porra, a própria história das bruxas já serve como profundo material de reflexão sobre a importância da libertação das mulheres, afinal o que foi a caça às bruxas se não uma demonização do feminino e uma perversão do processo legal, uma das passagens mais sombrias da história da Humanidade? Precisa ter adolescente fundando associação interseccional (risos) no colégio para acabar com o patriarcado branco? Será que passou pela cabeça dos roteiristas que adolescentes secundaristas vomitando jargões do feminismo 3.0 como se estes fossem universitários que acabaram de descobrir teoria crítica e se masturbam lendo Foucault e Butler em casa soaria minimamente natural? Um desperdício, porque a ambientação e a trilha sonora são sensacionais e alguns personagens são deliciosamente carismáticos, como Hilda.
Essa tendência autocongratulatória e autoimportante sem espaço para nuance, mas para lacre e crítica social foda, onde os criadores estão mais preocupados em mostrar como são politicamente conscientes do que em criar material de qualidade, é o maior câncer nas produções audiovisuais atuais. Mas eu devo ser só mais um homem querendo naturalizar o machismo. Off with his head!
O primeiro Mizoguchi a gente nunca esquece. Uma obra humanista sobre opressão, perseverança e sacrifício que parece não ter precedentes em sua beleza e capacidade de comover. Certos filmes requerem disposição para que você consiga imergir neles, mas neste clássico do cinema nipônico a história flui na mais perfeita harmonia – quase como ler um bom livro num domingo chuvoso. O lamento maternal que ecoa em diversas cenas em forma de canção poderia soar redundante ou sentimentalista caísse em outras mãos, mas aqui representa os grandes arroubos de poesia do filme. Um constante lembrete de que "La tristesse durera toujours". Inesquecível.
“Quem sou eu? Um caracol que desliza pelo vazio. Não sei para onde estou indo. Uma vez, pensei que soubesse.”
Li em algum lugar que a tristeza é o sentimento mais universal que existe. Que a dor é algo primal, capaz de nos conectar mais do que qualquer outra coisa, até mesmo a felicidade. Um conceito forte e profundo que não glorifica, nem celebra, mas percebe o sofrimento como algo inescapável à condição humana. Penso muito no Cohen e em como ele manifesta a tristeza de pessoas partidas em suas canções: me aquece e abranda o coração, nunca o contrário. O mesmo ocorreu–me com o contemplativo Paisagem na Neblina, do grego Theo Angelopoulos, uma antiga falha de caráter que resolvi solucionar para me “reconectar” com o cinema, buscando um arroubo que não sentia há meses – quiçá, anos. O filme mostra a jornada de dois irmãos, uma garota (mais velha) e um garoto (mais novo), que fogem da Grécia materna rumo à Alemanha na busca pelo suposto pai que nunca conheceram, deparando-se com um mundo inóspito, glacial, imprevisível e dolorosamente hostil, quase sempre indiferente.
A peregrinação dos dois cativou-me imediatamente, talvez por uma predileção pelo cinema errático e existencialista, e, como em nenhum outro filme, arroguei a mim a tristeza e perseverança deles. Por que torci para que o filme não acabasse? Por qual razão fui segurado pelas entranhas, chorei e temi pelo que aconteceria? Porque percebi, tal qual os irmãos amadurecendo, que não sabemos o que nos reserva o amanhã, se um abuso ou um gesto bondoso de um estranho, se a morte, a indiferença ou o amor. Porque percebi, em que pese as intempéries, adversidades e despedidas, que eles persistiram em direção à luz. Porque percebi que jamais os veria novamente. Angelopoulos articula tudo isso não de forma manipulativa ou sentimentalista, mas de forma poética, oferecendo possibilidades subjetivas através de simbolismos que nunca sobrecarregam o filme – habilidade tão rara quanto preciosa. Os únicos momentos em que precisei pausar a exibição ocorreram não por tédio ou pela inabilidade de desacelerar o cérebro e imergir na monotonia (não derrogatória) do filme, mas porque estava absorto com a beleza e melancolia das imagens que eu tinha acabado de ver. Ficarão cravadas em mim para sempre.
– O que você faz? – Eu faço as pessoas rirem... e chorarem. – Qual papel você faz? – O meu.
Noto que no cinema há uma diferença sutil, porém abissal, entre uma obra forçar você a sentir aflição pelos reveses que um personagem sofre, para que isso te leve à reflexão sobre um problema maior do que você mesmo (crise política de um país, abandono, intolerância, abuso), e uma obra que o conduz sutilmente, de maneira que a compaixão e a empatia surjam, voluntariamente, como uma extensão metafísica do filme em você. Essa ponte nunca pode ser forçada, apressada, construída aos gritos e atropelos – é um contrato silencioso que não pode ser violado. Paisagem na Neblina consegue isso. E é uma das principais razões pela qual o cinema existe para mim. Obra-prima.
Uma obra com crítica social que não se resvala em panfletarismo e maniqueísmos, mas que se sustenta pela riqueza dos personagens e pela ambiguidade moral das situações, que o diretor costura como um maestro conduz uma orquestra. Num cenário onde, de um lado, temos a monetização da nostalgia por parte de Hollywood, e, do outro, cineastas espertinhos fazendo manifesto político rasteiro (lançando mão de metáforas e simbolismos capengas), BongJoon-ho prova-se, mais uma vez, um cineasta totalmente fora da curva, um verdadeiro mestre na arte de contar uma história. Melhor filme do ano, disparado. Quanto menos você ler sobre Parasita, melhor.
- Rei Arthur: Sou seu rei! - Camponesa idosa: Não votei em você! - Rei Arthur: Os reis não são eleitos. - Camponesa idosa: Então como se tornou rei? - Rei Arthur: A Dama do Lago, seu braço coberto com o mais puro samito cintilante ergueu Excalibur da superfície da água... anunciando, por Divina Providência, que eu, Arthur, deveria carregar Excalibur. Por isto sou seu rei! - Camponês: Escute, mulheres estranhas em lagos, distribuindo espadas, não são alicerce para um sistema de governo. O poder executivo supremo provém de um comando de massas. Não de uma cerimônia aquática ridícula. - Rei Arthur: Cale-se! - Camponês: Você não pode querer exercer o poder supremo só porque uma vadia jogou uma espada pra você. - Rei Arthur: Cale a boca! - Camponês: Se eu saísse dizendo que era imperador porque uma sirigaita lançou uma cimitarra pra mim, me prenderiam! - Rei Arthur: Vai calar a boca? - Camponês: Viram? A violência é inerente ao sistema! Socorro estão me reprimindo!
Os primeiros dez minutos de The Great Hack são bem auspiciosos, com o tremendo potencial de ser o melhor episódio de Black Mirror – que nunca tivemos – sobre a coleta invasiva de dados sendo responsável por viciar processos democráticos a nível global. Exceto, é claro, que não foi nada disso. Poderia ter sido muito mais informativo, muito mais do que um abridor de olhos, mas ele mal arranha a superfície do problema. Se você fez um favor a si mesmo nos últimos anos e assistiu algum Ted sobre o tema ou leu alguma notícia sobre o escândalo da Cambridge Analytica, esse documentário não lhe trará nada novo ou relevante. Você já estaria consciente de que um futuro distópico orwelliano bate a nossa porta há algum tempo e que privacidade é nada mais que folclore, com nossos algozes fazendo fortuna no Vale do Silício enquanto lhes fornecemos, passivamente, nosso petróleo.
Porém, o pior de tudo não é a superficialidade estilizada do filme, e sim a forma como ele é conduzido, especialmente quanto à indulgência dos diretores ao tentar pintar Brittany Kaiser como uma heroína em busca de redenção. Seria uma tentativa frustrada de empatia feminista? Por acaso teria ela devolvido os milhões que ganhou na campanha suja e imoral do Trump? Que conveniente para ela culpar o “patriarcado branco” (o que ela faz logo no início do filme) depois de dar entrevistas numa piscina infinita na Tailândia e regozijar-se por ter se tornado o foco das atenções. Enojou-me o tom remissivo dado a essa farsante em sua pseudo-expiação. Que dessem mais tempo à jornalista Carole Cadwalladr e não transformassem o documentário em um A Day in The Life of Lady Where The Fuck is My Passport. Também me estranhou a presciência dos realizadores do filme, que me fez questionar a decupação das cenas: como eles conseguiram filmar em tempo real os envolvidos no escândalo enquanto os eventos ainda se desenrolavam ou até mesmo antes de eles acontecerem?
No mais, triste notar essa espiral descendente de qualidade da Netflix. Por ser o tema mais quente do momento, trouxesse grandes revelações, The Great Hack causaria um furor global e teria sido um importante acessório para um despertar coletivo sobre um mal real, mas, como tudo indica, está fadado ao esquecimento em alguns meses.
‘When you are a man with a child, you want to be a man who loves children. The baby comes out and you act proud and excited. And you pass it around and hand out cigars, but you don’t feel anything. Especially if you had a difficult childhood. You want to love them, but you don’t. The fact that you’re faking this feeling makes you wonder if your own father had the same problem. Then one day they get older, and they do something, and you feel that feeling that you were pretending to have. And it feels like your heart is going to explode.’
“I lost everyone. I lost everything, you fucking fraud, you fucking liar. You’re not in pain because if you were in pain, you would know there is no moving on. There is no happiness. What’s next? What’s fucking next?” Nothing is next! Nothing!”
Apenas fiquei sabendo desse filme por conta de uma entrevista que o Félix Maritaud concedeu à Vice na qual ele, muito consciente do seu sex appeal, dá dicas sobre como ter uma vida sexual plena e saudável. Fui pesquisar quem era o Don Juan e eis que chego nesse badalado filme francês. Após 97 minutos excruciantes, pergunto-me sobre o porquê desse filme estar sendo tão bem recebido, já que o único elemento novo trazido por Camille Vidal-Naquet, sua idealizadora, é que o prostituto que protagoniza o filme é tão carente que mais parece a tradução literal do termo stray dog (cão de rua): irracional, desamparado e constantemente à espera de um resgate (que somente será possível se for pelas mãos de outro jovem, bonito e másculo).
É como se a diretora clamasse para que sentíssemos pena do personagem, que é um dos mais mal elaborados e sofríveis dos últimos tempos, já que isento de qualquer resquício de complexidade além de um feral desejo de ser amado. Pouco se sabe sobre os reveses que o colocaram na rua, ao contrário das várias decisões erradas e incompreensivelmente irracionais que ele toma ao decorrer do filme. Com isso, seu violento desejo por afeto prova-se, desgraçadamente, insuficiente para que desperte qualquer senso de empatia, sobretudo quando a diretora, em seu afã de sensibilizar a audiência, transforma sua condição em algo inescapável e derradeiro. O filme não traz ambiguidade ou nuance, de modo que à diretora parece que há apenas duas soluções viáveis para o espectador: ser moralista ou compadecer da vítima. A mim, não sobrou nenhuma alternativa.
Além disso, a pataquada é completa para que o filme soe o mais "raw" possível: câmera tremida; excesso de nudez e drogas; incontáveis cenas anti-eróticas e pretensamente subversivas de sexo (apenas chocantes para quem nunca viu nada do Robert Mapplethorpe ou do Larry Clark). Também cai nas mesmices reiteradas ad nauseam nos filmes do gênero: closes no protagonista para mostrar o quão atraente ele é, mesmo doente; retratar gays mais velhos como miseráveis e carentes; amor platônico por hétero (ou gay-for-pay, neste caso); além de trazer um arsenal de soluções fáceis que apenas agravam um roteiro tão errante e superficial quanto o protagonista (aquela chegada dele na ponte, desfalecendo, para ser convenientemente resgatado por sua Pietá barbuda é, no mínimo, patética).
O filme acaba resvalando em todos esses lugares-comuns, se reveste de uma crueza terrivelmente previsível, não convence e desperdiça um ator com grande potencial em cena (muitos defenderam que ele segurou o filme, mas a composição do personagem é tão pobre, que não comungo dessa opinião). Nesse universo de michês desamparados, Beach Rats (para trazer um mais recente) é um retrato melancólico muito mais competente, sensível e um estudo bem mais convincente e sutil de personagem do que esse embaraço travestido de realismo social.
"Pra onde o senhor tá indo? Isso não é caminho pra lugar nenhum. O senhor tá fugindo! Fugindo só, sem saber pra onde! Por que o senhor não responde? A gente pode ir pra qualquer lugar. Ninguém conhece a gente. É só o senhor querer. Se o senhor quiser, a gente pode ir pra qualquer lugar. A gente pode viver junto, como qualquer pessoa. É só o senhor querer. Qualquer lugar serve."
Sempre fui fascinado pelo tema e estou bastante entusiasmado que a HBO resolveu produzir uma minissérie sobre Chernobyl dando atenção aos detalhes políticos e técnicos que envolveram a catástrofe, além de contar com um distinto time de atores. Muito bacana eles terem trazido como pano de fundo a Guerra Fria e recriarem de forma tão vivaz o desenrolar do evento, como a evacuação das pessoas às pressas, que tiveram apenas 40 minutos para zarpar de Pripyat (dias após a explosão). A cena em que um dos funcionários da usina é obrigado a subir ao telhado para confirmar o óbvio em uma missão suicida e a cena em que 3 deles são enviados para abrir as válvulas dos tanques são nada menos que brilhantes. Esta última cena, inclusive, consegue ser melhor que a quase totalidade dos filmes de horror da década atual. Há tempos uma cena não me tirava tanto o fôlego.
Mas o que acho também embasbacante é o nível de indulgência e miopia ideológica de alguns dos defensores do regime socialista em todo e qualquer espaço que se reserve a debater algum tema contíguo de forma crítica, como se este fosse inquebrantável e absolutamente imune ao criticismo. Por isso não me surpreende ver gente edulcorando a irresponsabilidade dos soviéticos diante do desastre (aquela chamada inacreditável de menos de 1 minuto que o governo fez sobre o acidente não deixa ninguém mentir). Não é porque Hollywood vilanizou os comunas de forma maquiavélica à exaustão no cinema que devemos perder de vista o que aconteceu, factualmente. É impressionante como qualquer crítica contundente que se faça ao regime é confundindo com “paranoia comunista” e é frequentemente rebatida com deboches datados, histéricos e rasteiros e um “whataboutism” preguiçoso (ah, mas o capitalismo também mata!).
Afinal a série contextualiza bem vários problemas graves e indefensáveis: a conveniente e dogmática necessidade do estado em distorcer a realidade para não macular a imagem do partido (como consequência, uma terrível relutância em salvaguardar a integridade física dos cidadãos da URSS); e a escancarada negligência e incompetência quanto às medidas de segurança nuclear (claramente relacionada à corrida desenfreada para cumprir os planos quinquenais). O papel de Chernobyl na queda da URSS é indiscutível porque ressaltou todos estes problemas e, fatalmente, abalou a confiança da população no governo. Acaba sendo um material bastante rico e atual porque também reforça os perigos do anti-intelectualismo e da descrença na importância da ciência e das pesquisas. Recomendo demais.
"O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus." (Lord Acton)
Maravilhoso. Sabe o que acho melhor nessa conclusão espetacular de GoT? Os criadores da série não tiveram (e nem deveriam ter) nenhum compromisso com as expectativas dos "fãs", mas tão somente com a própria criação artística. Culhão, caralho! Completamente indiferentes à recepção negativa da fanbase mais insuportável e birrenta da história (que aprendeu a taxar de "bad writing" qualquer arco que fugisse às suas vãs expectativas), eles foram lá e escreveram o final que mais pareceu justo. E assim o foi: amargo, melancólico, sombrio, mas justo e dolorosamente coerente— sobretudo quanto à Dany, que se tornou uma vilã complexa (e não uma heroína falha) para quem, fatalmente, os fins justificavam os meios. Paralelos com a História há aos montes: Pol Pot, Mao... toda a trupe. Pena que não consigam curtir um produto de entretenimento tão genial e bem feito como Game of Thrones por causa de abobrinhas e baboseiras como "pontas soltas" e "falhas no roteiro" e "perguntas não respondidas". Foi tudo meio corrido? Talvez. Mas foi feito com muita competência, afinco e qualidade cinematográfica. Hands down.
Ah, e Brienne! Digna e altiva até o fim! Que mulher.
Agora não pode mais ter mulher louca nas telas porque a patrulha feminista tá de plantão esperando personagens femininas fortes, edificantes e exemplares, como se a própria Dany não fosse uma personagem rica e complexa justamente por ser moralmente ambígua (meio tirana, meio libertadora). É esse complexo paternalista e birrento das feministas 3.0 que a Camille Paglia tanto critica em seus ensaios. Não pode ter histeria, nem descontrole emocional, afinal, mulher é um ser perfeito, canônico. Precisam de uma boa dose de Gena Rowlands, Gloria Swanson, Elizabeth Taylor, Vivian Leigh e Isabelle Huppert pra apaziguar seus chiliques. Ah, mas foram todas dirigidas por homens! Tá explicado...
Pensei que não fizessem mais obras assim. Inclusive gostei muito mais desse que o Suspiria do Argento. Imagine o Andrzej Żuławski dirigindo uma biografia endiabrada da Pina Bausch? Seria algo próximo desse filme. O desfecho é deliciosamente macabro.
"Mas minha cor vem do meu alto céu. E só me encontro quando de mim fujo."
Isso é Bethânia cantando Pessoa, mas também podia ser Cléo, da Agnès Varda, quando tem seu pequeno arroubo de epifania ao olhar-se no espelho uma última vez, percebendo que viveu a vida em função dos outros e das próprias vaidades. Deste ponto em diante, a protagonista renasce, liberta de sua auto-indulgência: é apenas fugindo de si que ela não somente se encontra, mas é capaz de se conectar com o outro. Um filme que não cabe em si de tão maravilhoso.
A esquerda, cada vez mais fechada em suas pautas identitárias e sua bolha hermética, precisa descer de uma vez do auto-erigido pedestal de superioridade moral e intelectual e de monopólio da virtude, aprender a olhar pra trás, assumir as barbaridades que cometeu na busca do sonho socialista e, com isso, reinventar-se— do contrário, cairá moribunda (esfacelada e moralmente fracassada, já está). Que o avanço da direita no mundo e no Brasil, traduzido no rápido sucesso virtual desse documentário, sirva como exemplo e alerta. Ainda que desonesto, dolorosamente parcial e eivado de técnicas rasteiras e manipulativas, além de ser porcamente editado (a edição sonora é uma catástrofe), o documentário ao menos suscita uma reflexão importante (dolorosa para alguns): o de derrubar mitos costurados no tecido social pela esquerda que possui há décadas o domínio intelectual nas universidades e nas Artes. Até hoje não compreendo o apego e romantização, por pessoas ditas libertárias, a terroristas assassinos ou a indefensáveis regimes totalitários incompetentes, corruptos e genocidas só porque servem aos fins da revolução (será que já leram sobre o Khmer Vermelho do Pol Pot?).
Digressão à parte, o filme não se propõe a analisar as atrocidades do regime militar (isso já foi muito bem documentado nas artes e na academia, respeitando as famílias, e a memorialística é vasta), mas a questionar o papel da esquerda comunista e mostrar o termômetro da Guerra Fria no Brasil antes e durante o regime para além de um viés de resistência aos milicos. Surpreendi-me com as críticas à linha dura e ao autoritarismo do regime (especialmente do AI-5) por parte de alguns dos entrevistados, mas, fatalmente, todos eles são figuras carimbadas com clara inclinação à direita e à extrema-direita, de modo que não há isenção, nem debate, mas demonização absoluta do espectro oposto, acirramento do tribalismo ideológico e da polarização. Com isso, vai alimentar ainda mais a narrativa pró-golpe com seu negacionismo histórico (feito pelo alto escalão do Governo). Por fim, assombroso perceber como em pleno 2019 a busca pela verdade seja um esforço tão árduo— por vezes, improfícuo. Para quem não segue ideologias, modelos econômicos falidos, nem é seduzido por líderes com discursos bonitos e inflamados, a tarefa é 10 vezes mais hercúlea. Ainda mais triste é perceber como a história de um país pode ser contada de formas tão díspares a depender de quem a narre.
Documentário sensacional, mesmo com os excessos. A edição é porreta, realçando os melhores momentos das corridas de 2018 com muito material gravado nos bastidores, o que lhe dá uma dimensão do quão complexa é a Fórmula 1, com suas disputas políticas milionárias, o trabalho em equipe, a rivalidade entre os pilotos. É realmente uma montanha-russa de emoções, onde tudo pode mudar em questão de segundos. Escolha muito acertada em focalizar as equipes intermediárias (Haas, Renault, Red Bull), que é onde a emoção e a verdadeira ação realmente acontecem. Apenas senti falta do Bottas, acho que ele não apareceu em momento algum. Pra quem sempre gostou do esporte, mas nunca tinha se aprofundado, Drive to Survive funciona perfeitamente como um guia completo pro campeonato de 2019.
Dramas de época sobre as disputas epopeicas da família real sempre despertarão meu interesse, mas esse novo Mary Queen of Scots, como esperado (infelizmente), não adiciona nada aos vários filmes anteriores sobre a trágica história da monarca escocesa que foi à forca sob o mando da sua prima protestante, a Rainha Virgem, Elizabeth. Historicamente, o filme é preguiçoso e descuidado e tenta compensar fazendo uma leitura feminista da rivalidade compulsória entre as duas monarcas, mas não sucede o tanto quanto gostaria. Somente no final o filme consegue entregar algum arroubo emocional, mas aí já é tarde demais. Esteticamente, porém, o filme é um primor. A composição em chiaroscuro da cena onde os membros da corte fazem seus usuais complôs para usurpar o trono dá vida às obras do Caravaggio e do van Honthorst com notória competência. No fim, ficam as belas paisagens abertas da Escócia, os belos vestidos e o válido esforço das protagonistas, com a árdua missão de dar vida a personagens brilhantemente interpretadas no passado por Vanessa Redgrave, Glenda Jackson, Katherine Hepburn e Cate Blanchett.
O foguete caindo em Koyaanisqatsi, o Clube Silêncio em Mulholland Drive e toda a sequência da orgia ritualística em Eyes Wide Shut são as três cenas absolutas e irretocáveis do cinema para este séquito aqui. Três cenas para imergir de corpo e alma na madrugada, acompanhado tão somente de sua solitude e do silêncio sinfônico das ruas. Três cenas para levar ao túmulo com a convicção de que o cinema não me deixou na mão nesta vida - melhor ainda, seu poder me proporcionou os momentos mais inesquecíveis. Obrigado, Kubrick.
Percebo que muitos, como eu, no ímpeto febril de consumir o máximo de cinema gay quando jovem, acabou vendo este filme e se decepcionou bastante com o quão contido ele foi, poupando-nos de cenas mais tórridas entres os personagens. Afinal, um dos protagonistas é um galã bastante estabelecido e nosso imaginário inquieto adoraria vê-lo entregue à lascívia nos braços de outro. Tolice juvenil.
No fundo eu sabia que, ao revê-lo hoje, estaria vendo um filme completamente diferente. Dito e certo: não só é o filme mais lírico e poético da produção Merchant/Ivory (competindo com Remains of The Day, Howards End e A Room With a View) como é, mesmo com o seu recorte aristocrático, um tratado magnífico do que era ser homossexual na Inglaterra eduardiana, onde você poderia ser preso, perder títulos e ser excluído da família ou círculo de amigos apenas por ser quem você é – uma das cenas, dentre várias, explica isso muito bem, quando o hipnotizador diz que "a Inglaterra não está preparada para aceitar a natureza humana”. É um filme que acaba dialogando muito conosco hoje em dia, especialmente para quem já esteve em uma situação onde há negação (partindo de si ou do outro) com medo de represálias da família ou de colegas de trabalho. Isso é um elemento autodestrutivo em qualquer relação, mesmo que aja silenciosamente. E o filme trata dessas escolhas difíceis que temos que fazer na vida.
O protagonista Maurice sofre uma montanha russa de emoções no decorrer do filme: descoberta, conflito, negação, medo, [tentativa de] conversão, aceitação, entrega sem desculpas. Mas sempre à luz de algo que lhe era basilar: amar e ser amado, irremediavelmente. Um encanto de personagem, do início ao fim. O peito estalou de tristeza e alegria inúmeras vezes. E claro, eu vivo para todas as trocas de olhares, todo o desejo contido e gestos insinuados do Maurice no filme. Quer coisa mais bela e sutil que ele e o Clive tirando as abotoaduras um do outro? Puro êxtase a cena em que temos um zoom-out no rosto do Hugh Grant e notamos que ele está, na verdade, repousando na coxa de alguém e que esse alguém começa a tocar o seu cabelo graciosa, mas timidamente. Descobrimos que esse alguém é o Maurice e então eles abraçam-se calorosamente como se tivessem esperado por aquele momento por toda a vida. Ao fundo, continuamos a ouvir um dos mais famosos cânticos cristãos, “Miserere mei, Deus”, do Allegri, iniciado cenas antes. Não é uma composição qualquer. Trata-se de um salmo cantado que fala sobre moral e transgressão: “E segundo sua compaixão, apaga minhas transgressões. Lava-me inteiro da minha iniquidade: e purifica-me do meu pecado.”. Como já era familiarizado com a música, quase tive um troço com a pertinência dela na cena. Que toque genial, de elegante e deliciosa ironia.
Gosto especialmente do terço final do filme, no qual o autor afasta o Maurice de sua atmosfera aristocrática, aproximando-o de uma realidade mais crua, sem sacrificar, contudo, o lirismo romântico do início do filme.
Sinto agora uma vontade extraordinária de iniciar uma campanha virtual implorando às pessoas para revisitarem essa celebração da beleza, em alta definição, o quanto antes. É um filme completo, um ode à dor e à delícia de ser quem você é e de não se curvar às normas cegamente. Obrigado por existir, James Ivory. Quero viver no calor dos seus filmes idílicos pra sempre.
Years and Years
4.5 270O futuro era mais atraente quando tínhamos carros voadores e androides; dele agora só restaram as distopias/teocracias machistas ou de extrema-direita. Toda série badalada atual tenta ser uma versão melhorada de Black Mirror, e Years and Years parecia até um esforço bem-sucedido, mas seu potencial foi se esvaindo justamente por emulá-la tanto, pelo seu ativismo exageradamente heroico e pela sanha dos roteiristas em – surprise! – lacrar, ancorando-se em nossos medos cotidianos e em uma suposta noção de culpa. Eu bato sempre nessa tecla, mas se o faço é porque essa onda se infestou feito câncer. É inescapável.
A minissérie seguiu razoável até o brilhante quarto episódio (humanamente impossível sair incólume), mas depois é ladeira abaixo para, por fim, despencar num otimismo inesperado. Aquele monólogo ultrapolitizado anti-establishment da matriarca, que todos têm elogiado, foi uma das coisas mais artificiais que eu já vi. O tom culpabilístico como epifania coletiva não colou. Dizer que o capitalismo nos tornou apáticos, cegos e confortáveis foi um discurso fácil, não houve sequer um contraponto. “O problema do Brasil é o brasileiro”. Tem algo mais senso comum para se dizer num jantar em família como reposta às nossas angústias coletivas?
Aliás, sinto que o engajamento da série tenha se dado pela sua facilidade em dialogar com várias realidades diferentes, apropriando-se de uma miríade de temas atuais (polarização, populismo, PC culture, desemprego, perseguição a minorias, crise migratória, pós-verdade, colapso climático, crise habitacional, tecnologia versus ética), e ela até se sai bem em alguns deles, mas, de forma excepcional, em nenhum porque é impossível ser profundo falando sobre tanta coisa ao mesmo tempo. Resultado: um ritmo frenético para tentar mascarar sua superficialidade e síndrome de Superman, com um caleidoscópio de soluções fáceis para situações complexas, além de muitos furos e quebras de expectativa (qual foi o aftermath da bomba?).
Outro incômodo que derivou desse apego: “Vivienne Rook é Bolsonaro de saia”. Ambos são líderes populistas e, de certa forma, ascenderam beneficiando-se do saco cheio das pessoas com a velha política e com os excessos/equívocos da esquerda e dos movimentos identitários, mas não deixa de ser uma comparação pobre: nosso Chefe do Executivo não tem um décimo da inteligência da Rook e nem, tampouco, é tão insidioso quanto ela – afinal ele, para melhor ou para pior, sempre foi coerente e continua sendo o que sempre foi desde a campanha presidencial, um bobão, que acha cool ficar no Twitter sendo politicamente incorreto enquanto terceiriza a gestão da nação para os especialistas. A “Viv”, ao contrário, tem o mérito de ser inteligente e calculista, mesmo que utilize tais atributos para naturalizar o genocídio.
O Mundo Sombrio de Sabrina (Parte 1)
4.0 645A brilhante evolução de Kiernan Shipka em Mad Men foi um dos elementos mais notáveis daquela série e a razão pela qual eu decidi dar uma chance para essa releitura moderna de Sabrina. Ocultismo, bruxas, bodes, rituais pagãos em florestas à meia-noite? O que poderia dar errado? Bom, não sei nem por onde começar. 1: Misandria descarada e explícita. 2. Deus ex machina para a solução de todo e qualquer conflito. 3. Adolescentes artificialmente “despertos”. 4. Protagonista egoísta que, da noite para o dia, decide que tem a responsabilidade de acabar com todas as injustiças sociais naturalizadas pela sociedade e pelo Coven para provar que não é só mais uma mulher branca. 5. Personagens secundários sem desenvolvimento algum que servem apenas para reforçar as supostas virtudes da bruxa adolescente contestadora.
Aí você pergunta: você não acha que está levando a sério demais uma série teen de bruxaria não, meu nobre? Você não é tão anti-frágil e tão anti-vitimismo? Pra que todo esse chilique e “male tears” aí? O que está fazendo vendo uma série adolescente sobre bruxas, afinal? Não deveria estar cortando madeira, fazendo cerveja artesanal e deixando a barba crescer? You have a point, miss!
Um pouco de feminismo não faz mal a ninguém, afinal, o que esperar da Netflix? Mas a Greendale da série vai muito além: é a representação ideal de um mundo onde as mulheres não lutam por equidade, mas pela castração e domesticação revanchista e ressentida dos homens, uma tendência cada dia mais comum na tevê. E isso não fica nas entrelinhas, são diálogos e situações rotineiras. Vejamos: à exceção do irmão do Harvey e do Ambrose, todos os homens são patéticos, vis, abusadores, sexistas, bullies, frouxos ou soyboys. Até o próprio Capiroto, que é a representação não do Mal, mas de algo muito, mas muito pior: o horrível, o malévolo, o temível, o irrefreável e onipresente Patriarcado.
“Você é incapaz de machucar até uma mosca. É por isso que eu te amo”, diz a bruxa feminista para o seu namorado suco de chuchu.
“Homens... acham que podem resolver tudo usando a força”, diz a vilã malvada que, por sinal, é devoradora de homens (melhor personagem, pois caricata).
Porra, a própria história das bruxas já serve como profundo material de reflexão sobre a importância da libertação das mulheres, afinal o que foi a caça às bruxas se não uma demonização do feminino e uma perversão do processo legal, uma das passagens mais sombrias da história da Humanidade? Precisa ter adolescente fundando associação interseccional (risos) no colégio para acabar com o patriarcado branco? Será que passou pela cabeça dos roteiristas que adolescentes secundaristas vomitando jargões do feminismo 3.0 como se estes fossem universitários que acabaram de descobrir teoria crítica e se masturbam lendo Foucault e Butler em casa soaria minimamente natural? Um desperdício, porque a ambientação e a trilha sonora são sensacionais e alguns personagens são deliciosamente carismáticos, como Hilda.
Essa tendência autocongratulatória e autoimportante sem espaço para nuance, mas para lacre e crítica social foda, onde os criadores estão mais preocupados em mostrar como são politicamente conscientes do que em criar material de qualidade, é o maior câncer nas produções audiovisuais atuais. Mas eu devo ser só mais um homem querendo naturalizar o machismo. Off with his head!
O Intendente Sansho
4.5 65"Toda pessoa tem direito a ter felicidade."
O primeiro Mizoguchi a gente nunca esquece. Uma obra humanista sobre opressão, perseverança e sacrifício que parece não ter precedentes em sua beleza e capacidade de comover. Certos filmes requerem disposição para que você consiga imergir neles, mas neste clássico do cinema nipônico a história flui na mais perfeita harmonia – quase como ler um bom livro num domingo chuvoso. O lamento maternal que ecoa em diversas cenas em forma de canção poderia soar redundante ou sentimentalista caísse em outras mãos, mas aqui representa os grandes arroubos de poesia do filme. Um constante lembrete de que "La tristesse durera toujours". Inesquecível.
Paisagem na Neblina
4.3 129“Quem sou eu? Um caracol que desliza pelo vazio. Não sei para onde estou indo. Uma vez, pensei que soubesse.”
Li em algum lugar que a tristeza é o sentimento mais universal que existe. Que a dor é algo primal, capaz de nos conectar mais do que qualquer outra coisa, até mesmo a felicidade. Um conceito forte e profundo que não glorifica, nem celebra, mas percebe o sofrimento como algo inescapável à condição humana. Penso muito no Cohen e em como ele manifesta a tristeza de pessoas partidas em suas canções: me aquece e abranda o coração, nunca o contrário. O mesmo ocorreu–me com o contemplativo Paisagem na Neblina, do grego Theo Angelopoulos, uma antiga falha de caráter que resolvi solucionar para me “reconectar” com o cinema, buscando um arroubo que não sentia há meses – quiçá, anos. O filme mostra a jornada de dois irmãos, uma garota (mais velha) e um garoto (mais novo), que fogem da Grécia materna rumo à Alemanha na busca pelo suposto pai que nunca conheceram, deparando-se com um mundo inóspito, glacial, imprevisível e dolorosamente hostil, quase sempre indiferente.
A peregrinação dos dois cativou-me imediatamente, talvez por uma predileção pelo cinema errático e existencialista, e, como em nenhum outro filme, arroguei a mim a tristeza e perseverança deles. Por que torci para que o filme não acabasse? Por qual razão fui segurado pelas entranhas, chorei e temi pelo que aconteceria? Porque percebi, tal qual os irmãos amadurecendo, que não sabemos o que nos reserva o amanhã, se um abuso ou um gesto bondoso de um estranho, se a morte, a indiferença ou o amor. Porque percebi, em que pese as intempéries, adversidades e despedidas, que eles persistiram em direção à luz. Porque percebi que jamais os veria novamente. Angelopoulos articula tudo isso não de forma manipulativa ou sentimentalista, mas de forma poética, oferecendo possibilidades subjetivas através de simbolismos que nunca sobrecarregam o filme – habilidade tão rara quanto preciosa. Os únicos momentos em que precisei pausar a exibição ocorreram não por tédio ou pela inabilidade de desacelerar o cérebro e imergir na monotonia (não derrogatória) do filme, mas porque estava absorto com a beleza e melancolia das imagens que eu tinha acabado de ver. Ficarão cravadas em mim para sempre.
– O que você faz?
– Eu faço as pessoas rirem... e chorarem.
– Qual papel você faz?
– O meu.
Noto que no cinema há uma diferença sutil, porém abissal, entre uma obra forçar você a sentir aflição pelos reveses que um personagem sofre, para que isso te leve à reflexão sobre um problema maior do que você mesmo (crise política de um país, abandono, intolerância, abuso), e uma obra que o conduz sutilmente, de maneira que a compaixão e a empatia surjam, voluntariamente, como uma extensão metafísica do filme em você. Essa ponte nunca pode ser forçada, apressada, construída aos gritos e atropelos – é um contrato silencioso que não pode ser violado. Paisagem na Neblina consegue isso. E é uma das principais razões pela qual o cinema existe para mim. Obra-prima.
Parasita
4.5 3,6K Assista AgoraUma obra com crítica social que não se resvala em panfletarismo e maniqueísmos, mas que se sustenta pela riqueza dos personagens e pela ambiguidade moral das situações, que o diretor costura como um maestro conduz uma orquestra. Num cenário onde, de um lado, temos a monetização da nostalgia por parte de Hollywood, e, do outro, cineastas espertinhos fazendo manifesto político rasteiro (lançando mão de metáforas e simbolismos capengas), BongJoon-ho prova-se, mais uma vez, um cineasta totalmente fora da curva, um verdadeiro mestre na arte de contar uma história. Melhor filme do ano, disparado. Quanto menos você ler sobre Parasita, melhor.
Monty Python em Busca do Cálice Sagrado
4.2 742 Assista AgoraSíncopes de riso sempre:
- Rei Arthur: Sou seu rei!
- Camponesa idosa: Não votei em você!
- Rei Arthur: Os reis não são eleitos.
- Camponesa idosa: Então como se tornou rei?
- Rei Arthur: A Dama do Lago, seu braço coberto com o mais puro samito cintilante ergueu Excalibur da superfície da água... anunciando, por Divina Providência, que eu, Arthur, deveria carregar Excalibur. Por isto sou seu rei!
- Camponês: Escute, mulheres estranhas em lagos, distribuindo espadas, não são alicerce para um sistema de governo. O poder executivo supremo provém de um comando de massas. Não de uma cerimônia aquática ridícula.
- Rei Arthur: Cale-se!
- Camponês: Você não pode querer exercer o poder supremo só porque uma vadia jogou uma espada pra você.
- Rei Arthur: Cale a boca!
- Camponês: Se eu saísse dizendo que era imperador porque uma sirigaita lançou uma cimitarra pra mim, me prenderiam!
- Rei Arthur: Vai calar a boca?
- Camponês: Viram? A violência é inerente ao sistema! Socorro estão me reprimindo!
Privacidade Hackeada
3.8 119 Assista AgoraBig Data is watching you. Que surpresa!
Os primeiros dez minutos de The Great Hack são bem auspiciosos, com o tremendo potencial de ser o melhor episódio de Black Mirror – que nunca tivemos – sobre a coleta invasiva de dados sendo responsável por viciar processos democráticos a nível global. Exceto, é claro, que não foi nada disso. Poderia ter sido muito mais informativo, muito mais do que um abridor de olhos, mas ele mal arranha a superfície do problema. Se você fez um favor a si mesmo nos últimos anos e assistiu algum Ted sobre o tema ou leu alguma notícia sobre o escândalo da Cambridge Analytica, esse documentário não lhe trará nada novo ou relevante. Você já estaria consciente de que um futuro distópico orwelliano bate a nossa porta há algum tempo e que privacidade é nada mais que folclore, com nossos algozes fazendo fortuna no Vale do Silício enquanto lhes fornecemos, passivamente, nosso petróleo.
Porém, o pior de tudo não é a superficialidade estilizada do filme, e sim a forma como ele é conduzido, especialmente quanto à indulgência dos diretores ao tentar pintar Brittany Kaiser como uma heroína em busca de redenção. Seria uma tentativa frustrada de empatia feminista? Por acaso teria ela devolvido os milhões que ganhou na campanha suja e imoral do Trump? Que conveniente para ela culpar o “patriarcado branco” (o que ela faz logo no início do filme) depois de dar entrevistas numa piscina infinita na Tailândia e regozijar-se por ter se tornado o foco das atenções. Enojou-me o tom remissivo dado a essa farsante em sua pseudo-expiação. Que dessem mais tempo à jornalista Carole Cadwalladr e não transformassem o documentário em um A Day in The Life of Lady Where The Fuck is My Passport. Também me estranhou a presciência dos realizadores do filme, que me fez questionar a decupação das cenas: como eles conseguiram filmar em tempo real os envolvidos no escândalo enquanto os eventos ainda se desenrolavam ou até mesmo antes de eles acontecerem?
No mais, triste notar essa espiral descendente de qualidade da Netflix. Por ser o tema mais quente do momento, trouxesse grandes revelações, The Great Hack causaria um furor global e teria sido um importante acessório para um despertar coletivo sobre um mal real, mas, como tudo indica, está fadado ao esquecimento em alguns meses.
Mad Men (6ª Temporada)
4.5 165 Assista Agora‘When you are a man with a child, you want to be a man who loves children. The baby comes out and you act proud and excited. And you pass it around and hand out cigars, but you don’t feel anything. Especially if you had a difficult childhood. You want to love them, but you don’t. The fact that you’re faking this feeling makes you wonder if your own father had the same problem. Then one day they get older, and they do something, and you feel that feeling that you were pretending to have. And it feels like your heart is going to explode.’
The Leftovers (1ª Temporada)
4.2 583 Assista Agora“I lost everyone. I lost everything, you fucking fraud, you fucking liar. You’re not in pain because if you were in pain, you would know there is no moving on. There is no happiness. What’s next? What’s fucking next?” Nothing is next! Nothing!”
Selvagem
3.6 87 Assista AgoraApenas fiquei sabendo desse filme por conta de uma entrevista que o Félix Maritaud concedeu à Vice na qual ele, muito consciente do seu sex appeal, dá dicas sobre como ter uma vida sexual plena e saudável. Fui pesquisar quem era o Don Juan e eis que chego nesse badalado filme francês. Após 97 minutos excruciantes, pergunto-me sobre o porquê desse filme estar sendo tão bem recebido, já que o único elemento novo trazido por Camille Vidal-Naquet, sua idealizadora, é que o prostituto que protagoniza o filme é tão carente que mais parece a tradução literal do termo stray dog (cão de rua): irracional, desamparado e constantemente à espera de um resgate (que somente será possível se for pelas mãos de outro jovem, bonito e másculo).
É como se a diretora clamasse para que sentíssemos pena do personagem, que é um dos mais mal elaborados e sofríveis dos últimos tempos, já que isento de qualquer resquício de complexidade além de um feral desejo de ser amado. Pouco se sabe sobre os reveses que o colocaram na rua, ao contrário das várias decisões erradas e incompreensivelmente irracionais que ele toma ao decorrer do filme. Com isso, seu violento desejo por afeto prova-se, desgraçadamente, insuficiente para que desperte qualquer senso de empatia, sobretudo quando a diretora, em seu afã de sensibilizar a audiência, transforma sua condição em algo inescapável e derradeiro. O filme não traz ambiguidade ou nuance, de modo que à diretora parece que há apenas duas soluções viáveis para o espectador: ser moralista ou compadecer da vítima. A mim, não sobrou nenhuma alternativa.
Além disso, a pataquada é completa para que o filme soe o mais "raw" possível: câmera tremida; excesso de nudez e drogas; incontáveis cenas anti-eróticas e pretensamente subversivas de sexo (apenas chocantes para quem nunca viu nada do Robert Mapplethorpe ou do Larry Clark). Também cai nas mesmices reiteradas ad nauseam nos filmes do gênero: closes no protagonista para mostrar o quão atraente ele é, mesmo doente; retratar gays mais velhos como miseráveis e carentes; amor platônico por hétero (ou gay-for-pay, neste caso); além de trazer um arsenal de soluções fáceis que apenas agravam um roteiro tão errante e superficial quanto o protagonista (aquela chegada dele na ponte, desfalecendo, para ser convenientemente resgatado por sua Pietá barbuda é, no mínimo, patética).
O filme acaba resvalando em todos esses lugares-comuns, se reveste de uma crueza terrivelmente previsível, não convence e desperdiça um ator com grande potencial em cena (muitos defenderam que ele segurou o filme, mas a composição do personagem é tão pobre, que não comungo dessa opinião). Nesse universo de michês desamparados, Beach Rats (para trazer um mais recente) é um retrato melancólico muito mais competente, sensível e um estudo bem mais convincente e sutil de personagem do que esse embaraço travestido de realismo social.
O Padre e a Moça
3.9 51"Pra onde o senhor tá indo?
Isso não é caminho pra lugar nenhum.
O senhor tá fugindo!
Fugindo só, sem saber pra onde!
Por que o senhor não responde?
A gente pode ir pra qualquer lugar.
Ninguém conhece a gente.
É só o senhor querer.
Se o senhor quiser, a gente pode ir pra qualquer lugar.
A gente pode viver junto, como qualquer pessoa.
É só o senhor querer.
Qualquer lugar serve."
Chernobyl
4.7 1,4K Assista AgoraSempre fui fascinado pelo tema e estou bastante entusiasmado que a HBO resolveu produzir uma minissérie sobre Chernobyl dando atenção aos detalhes políticos e técnicos que envolveram a catástrofe, além de contar com um distinto time de atores. Muito bacana eles terem trazido como pano de fundo a Guerra Fria e recriarem de forma tão vivaz o desenrolar do evento, como a evacuação das pessoas às pressas, que tiveram apenas 40 minutos para zarpar de Pripyat (dias após a explosão). A cena em que um dos funcionários da usina é obrigado a subir ao telhado para confirmar o óbvio em uma missão suicida e a cena em que 3 deles são enviados para abrir as válvulas dos tanques são nada menos que brilhantes. Esta última cena, inclusive, consegue ser melhor que a quase totalidade dos filmes de horror da década atual. Há tempos uma cena não me tirava tanto o fôlego.
Mas o que acho também embasbacante é o nível de indulgência e miopia ideológica de alguns dos defensores do regime socialista em todo e qualquer espaço que se reserve a debater algum tema contíguo de forma crítica, como se este fosse inquebrantável e absolutamente imune ao criticismo. Por isso não me surpreende ver gente edulcorando a irresponsabilidade dos soviéticos diante do desastre (aquela chamada inacreditável de menos de 1 minuto que o governo fez sobre o acidente não deixa ninguém mentir). Não é porque Hollywood vilanizou os comunas de forma maquiavélica à exaustão no cinema que devemos perder de vista o que aconteceu, factualmente. É impressionante como qualquer crítica contundente que se faça ao regime é confundindo com “paranoia comunista” e é frequentemente rebatida com deboches datados, histéricos e rasteiros e um “whataboutism” preguiçoso (ah, mas o capitalismo também mata!).
Afinal a série contextualiza bem vários problemas graves e indefensáveis: a conveniente e dogmática necessidade do estado em distorcer a realidade para não macular a imagem do partido (como consequência, uma terrível relutância em salvaguardar a integridade física dos cidadãos da URSS); e a escancarada negligência e incompetência quanto às medidas de segurança nuclear (claramente relacionada à corrida desenfreada para cumprir os planos quinquenais). O papel de Chernobyl na queda da URSS é indiscutível porque ressaltou todos estes problemas e, fatalmente, abalou a confiança da população no governo. Acaba sendo um material bastante rico e atual porque também reforça os perigos do anti-intelectualismo e da descrença na importância da ciência e das pesquisas. Recomendo demais.
Game of Thrones (8ª Temporada)
3.0 2,2K Assista Agora"O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus." (Lord Acton)
Maravilhoso. Sabe o que acho melhor nessa conclusão espetacular de GoT? Os criadores da série não tiveram (e nem deveriam ter) nenhum compromisso com as expectativas dos "fãs", mas tão somente com a própria criação artística. Culhão, caralho! Completamente indiferentes à recepção negativa da fanbase mais insuportável e birrenta da história (que aprendeu a taxar de "bad writing" qualquer arco que fugisse às suas vãs expectativas), eles foram lá e escreveram o final que mais pareceu justo. E assim o foi: amargo, melancólico, sombrio, mas justo e dolorosamente coerente— sobretudo quanto à Dany, que se tornou uma vilã complexa (e não uma heroína falha) para quem, fatalmente, os fins justificavam os meios. Paralelos com a História há aos montes: Pol Pot, Mao... toda a trupe. Pena que não consigam curtir um produto de entretenimento tão genial e bem feito como Game of Thrones por causa de abobrinhas e baboseiras como "pontas soltas" e "falhas no roteiro" e "perguntas não respondidas". Foi tudo meio corrido? Talvez. Mas foi feito com muita competência, afinco e qualidade cinematográfica. Hands down.
Ah, e Brienne! Digna e altiva até o fim! Que mulher.
Sob o Sol de Satã
3.7 22"As pessoas desejam somente o que é agradável e útil. A vida interior de hoje é um campo de batalha dos instintos".
Pialat, como sempre nunca menos que um primor.
Game of Thrones (8ª Temporada)
3.0 2,2K Assista AgoraAgora não pode mais ter mulher louca nas telas porque a patrulha feminista tá de plantão esperando personagens femininas fortes, edificantes e exemplares, como se a própria Dany não fosse uma personagem rica e complexa justamente por ser moralmente ambígua (meio tirana, meio libertadora). É esse complexo paternalista e birrento das feministas 3.0 que a Camille Paglia tanto critica em seus ensaios. Não pode ter histeria, nem descontrole emocional, afinal, mulher é um ser perfeito, canônico. Precisam de uma boa dose de Gena Rowlands, Gloria Swanson, Elizabeth Taylor, Vivian Leigh e Isabelle Huppert pra apaziguar seus chiliques. Ah, mas foram todas dirigidas por homens! Tá explicado...
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista AgoraPensei que não fizessem mais obras assim. Inclusive gostei muito mais desse que o Suspiria do Argento. Imagine o Andrzej Żuławski dirigindo uma biografia endiabrada da Pina Bausch? Seria algo próximo desse filme. O desfecho é deliciosamente macabro.
Cléo das 5 às 7
4.2 200 Assista Agora"Mas minha cor vem do meu alto céu.
E só me encontro quando de mim fujo."
Isso é Bethânia cantando Pessoa, mas também podia ser Cléo, da Agnès Varda, quando tem seu pequeno arroubo de epifania ao olhar-se no espelho uma última vez, percebendo que viveu a vida em função dos outros e das próprias vaidades. Deste ponto em diante, a protagonista renasce, liberta de sua auto-indulgência: é apenas fugindo de si que ela não somente se encontra, mas é capaz de se conectar com o outro. Um filme que não cabe em si de tão maravilhoso.
1964: O Brasil Entre Armas e Livros
3.1 332A esquerda, cada vez mais fechada em suas pautas identitárias e sua bolha hermética, precisa descer de uma vez do auto-erigido pedestal de superioridade moral e intelectual e de monopólio da virtude, aprender a olhar pra trás, assumir as barbaridades que cometeu na busca do sonho socialista e, com isso, reinventar-se— do contrário, cairá moribunda (esfacelada e moralmente fracassada, já está). Que o avanço da direita no mundo e no Brasil, traduzido no rápido sucesso virtual desse documentário, sirva como exemplo e alerta. Ainda que desonesto, dolorosamente parcial e eivado de técnicas rasteiras e manipulativas, além de ser porcamente editado (a edição sonora é uma catástrofe), o documentário ao menos suscita uma reflexão importante (dolorosa para alguns): o de derrubar mitos costurados no tecido social pela esquerda que possui há décadas o domínio intelectual nas universidades e nas Artes. Até hoje não compreendo o apego e romantização, por pessoas ditas libertárias, a terroristas assassinos ou a indefensáveis regimes totalitários incompetentes, corruptos e genocidas só porque servem aos fins da revolução (será que já leram sobre o Khmer Vermelho do Pol Pot?).
Digressão à parte, o filme não se propõe a analisar as atrocidades do regime militar (isso já foi muito bem documentado nas artes e na academia, respeitando as famílias, e a memorialística é vasta), mas a questionar o papel da esquerda comunista e mostrar o termômetro da Guerra Fria no Brasil antes e durante o regime para além de um viés de resistência aos milicos. Surpreendi-me com as críticas à linha dura e ao autoritarismo do regime (especialmente do AI-5) por parte de alguns dos entrevistados, mas, fatalmente, todos eles são figuras carimbadas com clara inclinação à direita e à extrema-direita, de modo que não há isenção, nem debate, mas demonização absoluta do espectro oposto, acirramento do tribalismo ideológico e da polarização. Com isso, vai alimentar ainda mais a narrativa pró-golpe com seu negacionismo histórico (feito pelo alto escalão do Governo). Por fim, assombroso perceber como em pleno 2019 a busca pela verdade seja um esforço tão árduo— por vezes, improfícuo. Para quem não segue ideologias, modelos econômicos falidos, nem é seduzido por líderes com discursos bonitos e inflamados, a tarefa é 10 vezes mais hercúlea. Ainda mais triste é perceber como a história de um país pode ser contada de formas tão díspares a depender de quem a narre.
F1: Dirigir para Viver (1ª Temporada)
4.4 60 Assista AgoraDocumentário sensacional, mesmo com os excessos. A edição é porreta, realçando os melhores momentos das corridas de 2018 com muito material gravado nos bastidores, o que lhe dá uma dimensão do quão complexa é a Fórmula 1, com suas disputas políticas milionárias, o trabalho em equipe, a rivalidade entre os pilotos. É realmente uma montanha-russa de emoções, onde tudo pode mudar em questão de segundos. Escolha muito acertada em focalizar as equipes intermediárias (Haas, Renault, Red Bull), que é onde a emoção e a verdadeira ação realmente acontecem. Apenas senti falta do Bottas, acho que ele não apareceu em momento algum. Pra quem sempre gostou do esporte, mas nunca tinha se aprofundado, Drive to Survive funciona perfeitamente como um guia completo pro campeonato de 2019.
A Favorita
3.9 1,2K Assista AgoraMelhor cena de 2019:
Did you look at me? Did you?? Look at me!! Look at meee!! How dare you!! Close your eyes!!
Duas Rainhas
3.4 344 Assista AgoraDramas de época sobre as disputas epopeicas da família real sempre despertarão meu interesse, mas esse novo Mary Queen of Scots, como esperado (infelizmente), não adiciona nada aos vários filmes anteriores sobre a trágica história da monarca escocesa que foi à forca sob o mando da sua prima protestante, a Rainha Virgem, Elizabeth. Historicamente, o filme é preguiçoso e descuidado e tenta compensar fazendo uma leitura feminista da rivalidade compulsória entre as duas monarcas, mas não sucede o tanto quanto gostaria. Somente no final o filme consegue entregar algum arroubo emocional, mas aí já é tarde demais. Esteticamente, porém, o filme é um primor. A composição em chiaroscuro da cena onde os membros da corte fazem seus usuais complôs para usurpar o trono dá vida às obras do Caravaggio e do van Honthorst com notória competência. No fim, ficam as belas paisagens abertas da Escócia, os belos vestidos e o válido esforço das protagonistas, com a árdua missão de dar vida a personagens brilhantemente interpretadas no passado por Vanessa Redgrave, Glenda Jackson, Katherine Hepburn e Cate Blanchett.
De Olhos Bem Fechados
3.9 1,5K Assista AgoraO foguete caindo em Koyaanisqatsi, o Clube Silêncio em Mulholland Drive e toda a sequência da orgia ritualística em Eyes Wide Shut são as três cenas absolutas e irretocáveis do cinema para este séquito aqui. Três cenas para imergir de corpo e alma na madrugada, acompanhado tão somente de sua solitude e do silêncio sinfônico das ruas. Três cenas para levar ao túmulo com a convicção de que o cinema não me deixou na mão nesta vida - melhor ainda, seu poder me proporcionou os momentos mais inesquecíveis. Obrigado, Kubrick.
Mary Stuart, Rainha da Escócia
3.5 17“Madam, if your head had matched your heart, I would be the one awaiting death.”
Maurice
4.0 190"Sou um indizível. Como Oscar Wilde."
Percebo que muitos, como eu, no ímpeto febril de consumir o máximo de cinema gay quando jovem, acabou vendo este filme e se decepcionou bastante com o quão contido ele foi, poupando-nos de cenas mais tórridas entres os personagens. Afinal, um dos protagonistas é um galã bastante estabelecido e nosso imaginário inquieto adoraria vê-lo entregue à lascívia nos braços de outro. Tolice juvenil.
No fundo eu sabia que, ao revê-lo hoje, estaria vendo um filme completamente diferente. Dito e certo: não só é o filme mais lírico e poético da produção Merchant/Ivory (competindo com Remains of The Day, Howards End e A Room With a View) como é, mesmo com o seu recorte aristocrático, um tratado magnífico do que era ser homossexual na Inglaterra eduardiana, onde você poderia ser preso, perder títulos e ser excluído da família ou círculo de amigos apenas por ser quem você é – uma das cenas, dentre várias, explica isso muito bem, quando o hipnotizador diz que "a Inglaterra não está preparada para aceitar a natureza humana”. É um filme que acaba dialogando muito conosco hoje em dia, especialmente para quem já esteve em uma situação onde há negação (partindo de si ou do outro) com medo de represálias da família ou de colegas de trabalho. Isso é um elemento autodestrutivo em qualquer relação, mesmo que aja silenciosamente. E o filme trata dessas escolhas difíceis que temos que fazer na vida.
O protagonista Maurice sofre uma montanha russa de emoções no decorrer do filme: descoberta, conflito, negação, medo, [tentativa de] conversão, aceitação, entrega sem desculpas. Mas sempre à luz de algo que lhe era basilar: amar e ser amado, irremediavelmente. Um encanto de personagem, do início ao fim. O peito estalou de tristeza e alegria inúmeras vezes. E claro, eu vivo para todas as trocas de olhares, todo o desejo contido e gestos insinuados do Maurice no filme. Quer coisa mais bela e sutil que ele e o Clive tirando as abotoaduras um do outro? Puro êxtase a cena em que temos um zoom-out no rosto do Hugh Grant e notamos que ele está, na verdade, repousando na coxa de alguém e que esse alguém começa a tocar o seu cabelo graciosa, mas timidamente. Descobrimos que esse alguém é o Maurice e então eles abraçam-se calorosamente como se tivessem esperado por aquele momento por toda a vida. Ao fundo, continuamos a ouvir um dos mais famosos cânticos cristãos, “Miserere mei, Deus”, do Allegri, iniciado cenas antes. Não é uma composição qualquer. Trata-se de um salmo cantado que fala sobre moral e transgressão: “E segundo sua compaixão, apaga minhas transgressões. Lava-me inteiro da minha iniquidade: e purifica-me do meu pecado.”. Como já era familiarizado com a música, quase tive um troço com a pertinência dela na cena. Que toque genial, de elegante e deliciosa ironia.
Gosto especialmente do terço final do filme, no qual o autor afasta o Maurice de sua atmosfera aristocrática, aproximando-o de uma realidade mais crua, sem sacrificar, contudo, o lirismo romântico do início do filme.
Sinto agora uma vontade extraordinária de iniciar uma campanha virtual implorando às pessoas para revisitarem essa celebração da beleza, em alta definição, o quanto antes. É um filme completo, um ode à dor e à delícia de ser quem você é e de não se curvar às normas cegamente. Obrigado por existir, James Ivory. Quero viver no calor dos seus filmes idílicos pra sempre.