"Não há nada como a falta de liberdade para proporcionar momentos de alegria."
Existem coincidências absurdas demais para se crerem reais e que quando acontecem parecem sugerir uma ordem inabalável no Universo. Eis uma delas: assisti a esse maravilhoso filme franco-italiano, «La prima notte di quiete», do Valerio Zurlini, um dia após terminar a leitura de «O Quarto de Giovanni», obra-prima do escritor estadunidense James Baldwin, que devorei em uma sentada de tão bom. No livro, uma das passagens que ficou ecoando em mim foi esta:
"E aquelas noites eram vividas sob um céu estrangeiro, sem pessoa alguma a observar, sem penalidades ou castigos — e foi este último fato a causa de nossa ruína, pois nada se mostra mais insuportável do que a liberdade, depois de a possuirmos."
A conexão desse paradoxo com o aforismo do camusiano personagem do Alain Delon no filme foi surreal pra mim. É como se o Cosmos estivesse descortinando-me uma Verdade: a vida é mesmo um absurdo, mas hey, não há felicidade sem o sofrimento como referência; não há excitação sem a melancolia; liberdade sem opressão; sucesso sem fracasso; amor sem desprezo; sabedoria sem ignorância, vida sem morte. É como se ele me dissesse: você precisa atravessar tudo isso, por isso desconfie de gente feliz demais, livre demais, grata demais; o ócio, o infortúnio, a miséria são inevitáveis e sabendo disso, é mais fácil dominá-los — como as sombras que carregamos e aprendemos a domesticar.
A nossa insatisfação crônica talvez resida neste erro, de acharmos que tais estados são permanentes ou um "lugar" que a gente consiga alcançar.
É lindo quando o cinema e a literatura convergem dessa forma. E pelo amor de Deus: o que foi a cena da boate? Os olhares do Alain Delon pareciam lâminas de tristeza e melancolia. Revi esta cena várias vezes.
A parceria do Tsai Ming-Liang com Lee Kang-Sheng começou em 1989, ano em que nasci. Apraz-me a ideia de que vim ao mundo no mesmo intervalo tempo-espacial em que essas duas almas decidiram se encontrar, por mero acaso, para nunca mais se separarem, entregando-nos obras-primas como O Buraco, Vive L'Amour, Rebeldes do Deus Neon, Eu Não Quero Dormir Sozinho e Cães Errantes — todas indiscutivelmente obrigatórias para os lobos solitários deste mundo. Ouso dizer que essa prolífica relação que já atravessa três décadas não possua precedentes comparáveis (no máximo, talvez, aquela entre o Cassavetes e a Rowlands, o Bergman e a Ullmann).
A habilidade vocacional de conseguir concatenar algo grandioso de forma simples é restrita a poucos gênios em qualquer área, seja no reino artístico ou do pensamento. Tsai é um desses gênios. Seu cinema menos é mais, tão desprovido de ornamentos e opulências, surpreende-me com sua profundidade emocional e atravessa-me feito trem bala. Ouso dizer que é o único cineasta com calibre e estirpe hoje pra conseguir fazer um filme existencial sobre incomunicabilidade tão contemplativo, tão cheio de silêncios, de esperas, sem diálogos, com cenas longuíssimas e pouquíssimos cortes e com mais de duas horas de duração sem que a mão pese, sem ser críptico demais, ou sem que tudo não pareça um mero exercício autocongratulatório de estilo.
Dias (日子, 2020) é um filme difícil, feito sob medida para o ano caótico e pandêmico de 2020: a dor física que o protagonista carrega o filme inteiro estampada em seu olhar errático, o isolamento/alienação urbana, a explosão de ternura dos corpos quando finalmente se encontram, as vidas que seguem separadas. Todo o existencialismo articulado de maneira não-pedagógica, de modo a nos causar o mesmo desconforto, a mesma agonia, como se fôssemos nós ali na tela, tocando nossas rotinas e carregando nossas angústias, insuficiências e incapacidades.
Esperava tudo deste filme. E ele foi o abraço que eu precisava.
“Fui ler o Hermann Hesse aos treze anos e tomei um choque. O Lobo da Estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava mais. Terminei rasgando e jogando fora.” (Clarice Lispector, 1977).
O magnum opus do célebre escritor alemão parece mesmo ter um poder acachapante sobre nós. Hesse, entretanto, julgava “O Lobo” seu trabalho mais incompreendido, frustração que lhe foi bastante cara em vida, pois viu sua obra ser acolhida não propriamente pelo que ele pretendia. Logo no início, Hesse nos alertava: a história trata não de um homem em desespero, «mas de um homem que Crê», razão primordial do seu torvelinho. Foi uma tentativa de nos guiar pela história, de evitar que não nos distraíssemos da angústia elementar que atravessava seu texto.
Mas assim que a atira no mundo, o autor não mais detém o “comando” da sua própria obra, especialmente quando se trata de algo tão alegórico e aberto a interpretações, como é o caso do livro, que flerta o tempo inteiro com a psicanálise e o onírico. Isso explicaria, por exemplo, o fato de quarenta anos depois de sua primeira publicação, “O Lobo” ter caído no gosto da geração hippie, fascinada pela oposição à beligerância política do protagonista, o pacifista Harry Heller. A abertura do personagem à experimentação, seu desencanto com os dias ordinários, sua rejeição à burguesia e seu conflito pessoal com a formação rigidamente cristã foram material de sobra para acalentar os corações e mentes da geração paz & amor da década de 60.
Mas Heller era mesmo uma figura fascinante: solitário e triste, o eremita passava os dias lendo clássicos, ouvindo música erudita e sentindo pena de si mesmo. De repente, descobre que há dentro de si um lobo – o lobo da estepe – que é o extremo oposto do seu lado retraído e metódico: o lobo é caótico, violento, destemido. Resolve então entregar-se à sua versão lupina, avistando um suicídio que cometeria ao completar 50 anos, prazo para além do qual julgou que a vida não mais valia a pena ser vivida. E é nessa jornada pouco usual, nessa batalha incessante entre as várias facetas de sua personalidade (e, por conseguinte, de suas crenças), que ele encontra, por fim, a si mesmo.
“O Lobo” é uma obra exemplar porque Hesse delineia os contornos e contradições da perturbada alma do protagonista com bastante destreza, quando poderia facilmente ter romantizado sua ruptura para o lado selvagem, resvalando em um personagem tolo e autoindulgente. Mas não: Heller se vê perdido o tempo inteiro entre si mesmo e o lobo, entre o sagrado e o profano, entre a miséria e a alegria que para ele eram estados facilmente cambiáveis. Quem nunca teve um arroubo de tristeza ou se sentiu irremediavelmente sozinho no meio de uma festa? Esse permanente autoexame de consciência do personagem – o grosso do livro – é de uma profundidade e densidade emocionais absurdas. Seu tormento espiritual, sua dor existencial, a natureza dual e conflitante de sua moralidade, o senso de inadequação, a reverência ao Eterno, à Verdade e ao cânone artístico ocidental, a necessidade de ordem, seu constante estado de busca e compreensão: tudo isso gritou-me diretamente e a experiência que senti folheando as páginas do livro jamais me escapará.
Infelizmente, não há como dizer o mesmo da adaptação cinematográfica dirigida pelo Fred Haines, «Steppenwolf» (1974), que me frustrou sobremaneira. No filme há pouquíssimos momentos de poesia no delinear da personalidade do Harry porque o diretor não se arvora nessa preocupação, mas em capturar a lisergia que era atraente à época da contracultura. Começa de forma apressada e faltam-lhe a introspecção e subjetividade que são as marcas do livro. É muito mais uma colcha de retalhos de passagens do livro apresentadas sem unidade e sem coesão (embora o livro também não seja todo linear). Ironicamente, todas as cenas importantes do livro estão lá (Harry sentado na escada, intoxicado pelo asseio e ordem do apartamento burguês ao lado; o diálogo com Pablo sobre música erudita vs. popular; o diálogo com Hermínia sobre o Eterno em oposição à satisfação imediata; o baile de máscaras; o diálogo com Mozart), mas são jogadas de forma tão desarticulada que o sentimento foi de absoluto desgosto. É o assassinato do que há de mais belo na obra.
Lembro que, no livro, foi a chegada da misteriosa Hermínia, com tudo o que ela representava, um dos momentos visualmente mais cativantes da história. Ela é introduzida de tal maneira que, em minha mente, o livro ganhou, literalmente, outra cor e outra cadência, tamanha a ruptura do universo austero e solitário do Harry com o dela – luminoso, vivaz, passional, sensual, jazzístico. E o erro crasso do filme foi a terrível escolha e péssima desenvoltura da atriz que a interpreta: desenxabida, apática, sem carisma, de expressão morta e sem luz. Evidentemente, não há de se esperar que o desenvolvimento dos personagens numa obra literária equipare-se à sua transposição para a linguagem cinematográfica, mas a falta de um esforço nesse sentido foi terminal. Até os personagens secundários, como Maria e Pablo, ambos imprescindíveis, foram pouco explorados.
“De repente uma pessoa, uma pessoa viva percute a campânula de cristal da minha apatia e me estende a mão, uma mão boa, bela, cálida! De repente, voltam a surgir coisas que me afetam, nas quais posso pensar com alegria, com preocupação, com interesse! De repente, uma porta que se abre e por ela entra a vida para mim! Talvez possa voltar a viver, talvez possa voltar a ser gente. Minha alma, que havia tombado adormecida no frio e quase se enregela, respira de novo e volta a bater sonolenta as pequenas asas débeis.”
Dito tudo isso, o filme possui, sim, seus acertos, como a presença do Max von Sydow, a atmosfera noturna e o surrealismo que o permeia (o riso sardônico do distribuidor de panfletos é algo que mereceu ser adicionado ao meu imaginário da história). Do mesmo modo, todo o segmento do Teatro Mágico, embora muito mais lisérgico do que imaginei, é bastante surreal e criativo dadas as limitações da época (a escolha visual para a cena simbólica do domador é brilhante). Mesmo que não tenham envelhecido bem, esses momentos possuem um apelo interessante, lembrando as obras de Salvador Dalí e Terry Gilliam e do filme-ópera The Wall.
Mas o que mais me saltou aos olhos – e ainda não vi ninguém apontando isso – é sua inambígua semelhança com «Mulholland Drive», do David Lynch, o que me chocou muito, pois este é meu filme de cabeceira. Quando uma voz, no Teatro, diz ao Harry "É apenas uma ilusão. O Teatro Mágico não é realidade.", veio-me, imediatamente, a cena do Clube Silêncio, onde as mesmas palavras são ditas pelo apresentador: “Não há orquestra: É tudo uma gravação; é tudo ilusão.”. Ambas as frases são a peça-chave para a compreensão da história no livro do Hesse e no filme do Lynch, profundamente simbólicos e metafóricos. Há outra cena do filme, anterior à do Teatro, visualmente idêntica à Cidade dos Sonhos: quando Hermínia e Maria beijam-se no bar e olham de forma provocativa para o Harry. A mesmíssima cena é vista na obra-prima do Lynch envolvendo as duas Camilla Rhodes numa dinner party.
No fim das contas, confesso que minhas expectativas para a adaptação de O Lobo da Estepe eram altíssimas, o que pode explicar meu descontentamento com o resultado desse filme como um todo. Resolvi esperar algumas semanas após ler o livro para assisti-lo – de modo a consolidar as imagens que criei em minha mente sem poluí-las com outra visão, o que vejo agora como uma decisão acertadíssima, pois são aquelas que sobreviverão para sempre.
"Aprenda o que deve ser levado a sério e ria do resto."
A sensação que se tem ao término de «L'amant double» é que François Ozon parece-me incapaz de sair da média, o que se agrava quando tenta a todo custo fazê-lo – caso deste filme. Ainda que reconheça um certo zelo estético do diretor, bem como reverencie sua intrepidez em retratar traços sombrios e violentos da psique humana e suas misteriosas pulsões, ele não soube concatenar os elementos constitutivos da obra: é uma mistura de pornô softcore noventista com terror psicossexual que simplesmente não dialogam um com o outro e que foram pouco ajudados com o roteiro excessivamente obscuro.
Tal falta de unidade e de coesão torna-se evidente com a assepsia das cenas de sexo que consistem em 2/3 do filme quando contrastadas com os momentos mais sinistros e viscerais da trama. Não há erotismo, não há sensualidade alguma – o que é um crime. «Inverno de Sangue em Veneza», que deveria ser a pedra de toque para todas as cenas de sexo que o sucederam, não ensinou nada aqui: não há suor, não há entrega, não há verdade; os belos corpos nus de Jérémie Renier e Marine Vatch repousam na tela apenas para a contemplação do espectador e lembram mais comercial de perfumaria de grife que qualquer outra coisa.
Essa dissonância, inclusive, impossibilitou-me de sentir-me investido na trama, que pareceu ter o dobro da duração. Reconhecer, no decorrer do filme, a mão invisível e onipresente de tantos outros diretores tampouco ajudou: as influências de Verhoeven, Polanski, Zulawski, de Palma, Cronenberg e Villeneuve saltam aos olhos o tempo inteiro. Ter visto algumas dessas referências recentemente (como «The Rosemary's Baby», «Elle» e «Desd Ringers») apenas reforçou o abissal distanciamento entre elas e o Ozon.
De modo geral, uma pena, pois o filme é inteligente, o tema muito me interessa e os minutos derradeiros foram, de fato, perturbadores, o que quase me demoveu da minha insatisfação. Tarde demais.
Vez ou outra tenho aventurado-me numa nasty business que me é muito custosa, porém necessária: rever, com certo desprendimento, filmes que nutro em alta estima com os meus "olhos" de hoje e em melhores condições (versões restauradas ou em alta definição). O resultado é incerto: pode ser de completa desilusão, como a minha experiência com «Interview with The Vampire», que me causou abjeção, ou de absoluta reverência, êxtase e espanto, como foi revisitar o fenômeno cult «Rosemary's Baby».
Mesmo tendo-o visto, anteriormente, em duas oportunidades (no cinema, em uma das saudosas Sessões Notívagos onde varávamos a madrugada na sala de cinema; e na versão em DVD que possuo), tudo me pareceu novo, com um frescor intoxicante. Da belíssima abertura (que agora me remeteu ao clássico «The Innocents») ao olhar ambíguo da Mia Farrow na cena final, a sensação é a de que eu estava vendo o filme pela primeira vez, mesmo que todo o desenrolar se antecipasse em minha mente.
Prova disso é só agora ter-me apercebido da aparição de "El Aquelarre", de Goya; ou da cuidadosa evolução dos cortes de cabelo da Ro. Chamou-me a atenção, também, o profundo rigor estético do Polanski no uso dos espaços e da mise-en-scène como um elemento primal do filme. Como a ambivalência de «Rosemary's Baby» é um de seus pontos nevrálgicos, reforçada nos momentos oníricos, há esse pequeno detalhe do "sonho/violação" da Ro que me saltou aos olhos: a sutil transição do papel de parede amarelado e confortante da casa para a inscrição de pinturas nas paredes, remetendo ao seu passado de formação cristã.
Elementar, acima de tudo, é perceber o quão angustiante e perturbador o filme continua sendo nos dias de hoje. Afinal estamos falando de gaslighting e estupro (pelo Satã? Pelo marido?) em uma era onde a cancel culture está a pleno vapor, o que, somado às controvérsias ligadas ao diretor, contaminará a apreciação da obra por muitos. O filme possui, no entanto, um dos momentos mais "feministas" de que me recordo: são as amigas da Ro, vendo-a sofrer, que a recomendam ver um segundo médico, promovendo uma importante ruptura no desenrolar da trama, no que pode ser lido como um aliviante momento de sororidade entre elas. Mas digrido.
O filme é todo arvorado em cima dessa sensação perturbadora de ser desacreditado diante de algo tenebroso, que é o calvário da protagonista ao suspeitar que seu marido, médico e vizinhos estão mancomunando com o Satã para se apropriar do bebê que cresce em seu ventre. Todo o processo é de pura aflição: as dores lancinantes, a presença cada vez mais pervasiva dos vizinhos, a figura cada vez mais dúbia do marido (Cassavetes, brilhante), a exsudação cada vez mais intensa da Rosemary. O horror que ela sente ao perceber um homem parar ao seu lado na cabine telefônica (e que pode ser visto em seus olhos pelo reflexo do vidro) não é somente credível – é aterrorizante mesmo!
Vi-me fisgado o tempo inteiro pelas camadas psicológicas, pela paranoia constante e pelas pequenas nuances desse filme, o que me leva a concluir que se ele permanece imarcescível desta forma, significa apenas uma coisa: que sua qualidade é inapelável. Sinto-me obrigado a rever os demais filmes da trilogia porque isso aqui me empolgou demais.
– What daring! What outrageousness! What insolance! What arrogance! – I salute you!
Fui completamente desavisado assistir a <Conan the Barbarian>, clássico sword & sorcery do John Milius que não sei por qual razão não havia visto na infância e eis que me deparo com um filme com tremenda potência narrativa e visual. Arnold Schwarzenegger está magnético com seu carisma e sua presença física absurda, ajudado pelas também fortes presenças de James Earl Jones e Max Von Sydow.
O bom uso da violência/gore, as influências do cinema asiático (<Kwaidan> e <Shichinin no Samurai>) e o roteiro cuidadoso nos mantém envolvidos durante todo o tempo. Até que ponto o desejo por vingança – ou, por extensão, qualquer sentimento negativo (inveja, culpa, remorso) – pode moldar o indivíduo? O que é mais poderoso: uma espada ou as motivações daquele que a empunha, seja vingança ou fé cega?
Para além disso, visualmente o filme é deslumbrante, desde os planos abertos nas paisagens desérticas da Espanha aos cenários suntuosos perfeitamente elaborados pela caríssima produção. Em uma cena – a minha favorita–, corpos eviscerados aparecem sendo preparados para um banquete/orgia dionisíaca que ocorrerá na sequência. É um pesadelo infernal que, ajudado pela magistral e energética trilha do Basil Poledouris, parece ter saído da pintura mais grotesca do Hieronymus Bosch.
Qualquer nota abaixo de ⭐⭐⭐⭐⭐ me parece um equívoco.
Só mesmo o Irandhir Santos e a Hermila Guedes para emprestarem um sopro de dignidade a essa atrocidade dirigida pelo Hilton Lacerda. Um "murder mystery"/"buddy cop movie" ambientado no pós-Carnaval de uma Recife sorumbática e acinzentada, cujo som do frevo ainda parece ecoar nas ruas junto ao glitter ubíquo e o cheiro de urina, cerveja quente e loló? Eu vi muito potencial aí, mas <Fim de Festa> é um arremedo disforme do que gostaria de ser, um desfile de cacoetes e uma procissão de escolhas formulaicas e equivocadas.
É visível que Lacerda quis trazer uma narrativa diferente ao rico cinema pernambucano, mirando em uma atmosfera mais pesada, carregada, para reforçar a ideia de normalidade, de vazio com o gosto acre dos dias que sucedem a farra carnavalesca, mas o resultado é desastroso: a insipidez na forma de conduzir a história, na decupação das cenas, dos planos, na direção de atores. Tudo é anacrônico e maneirista demais.
Mas o pior ele reservou aos personagens: o retrato da esquerda-cirandeira-burguesinha-maconheira-panssexual-free-spirit-respeita-as-mina-trans-mostro-o-mamilo-não-fode-meu-rolê aparece não com um viés crítico, mas celebratório, da maneira mais artificial e ridícula possível, dando-lhes um verniz de autoimportância que simplesmente lhes falta. A troca de vitupérios entre a Polícia ("instituiçãozinha“) com a garota fazendo topless (cujo TCC é filmar os corpos no Carnaval, num retrato horrivelmente fidedigno da banalidade dessas pessoas na Academia), intendido como um ato libertário de "resistência" e afronta à escalada conservadora no país, é de um histrionismo tão forçado que chegou a doer-me fisicamente.
Ah, o que falar do marasmo de quem não precisa trabalhar depois da quarta-feira de cinzas e pode permitir-se ficar na praia de ressaca e chapado citando Nelson Rodrigues? Ao menos fica a caricatura fiel desses jovens presunçosos, pós-modernésimos, descoladíssimos, que não contribuem em porra nenhuma ao país e acham, em sua húbris e delírios coletivos, que estão vencendo a batalha contra o inominável conservadorismo malvadão.
A famigerada e embaraçosa cena da Revista Veja em <O Som Ao Redor> não ensinou nada a essa trupe sobre nuance? Tristemente, um filme baixo de alguém que tinha potencial para muito mais.
"Because of the mantle of glittering snow that covered everything, the three-hundred-meter ellipse of the track could not be distinguished from the undulating field it enclosed. In a corner of the field two great zelkova trees stood close together, and their shadows, greatly elongated in the morning sun, fell across the snow, lending meaning to the scene, providing the happy imperfection with which Nature always accents grandeur".
O lirismo e a indisputável destreza prosaica do Yukio Mishima nesse pequeno excerto de Confissões de Uma Máscara me fez compreender porque ele é considerado o Ernest Hemingway do Japão. Sua descrição visual do efeito das estações é tão cinematográfica que foi o suficiente para me jogar em um espiral ascendente de fascínio pela cultura nipônica: suas paisagens, seu passado, sua História, seus valores. É por causa dele que tenho me aventurado no cinema nipônico, particularmente pelo período feudal, dos samurais, com suas lições sobre heroísmo e honra; e tem sido uma das experiências mais enriquecedoras da minha vida — porém não sem suas provações.
Aos poucos vou superando uma dificuldade muito cara a nós ocidentais: o ritmo, a cadência e o estilo do cinema japonês dos anos 60 é completamente diferente para a nossa mente acelerada, imergida na ubiquidade de gadgets, notificações instantâneas, binge-watching e uma mixórdia de estímulos. Notei essa dificuldade inicial com os magníficos "Onibaba", "Kumonosu-jō" e agora com o magistral "Kwaidan", antologia folclórica do Masaki Kobayashi, com suas intimidadoras três horas de duração. Como um álbum que precisa de duas ou três ouvidas para engatar (os growers), tais filmes demandam mais do espectador — e não digo, com isso, que é um cinema cerebral, mas desapressado, meticuloso, calcado em sua habilidade de ir nos conquistando aos poucos.
O prêmio são as imagens assombrosamente belas de Kwaidan, com um poder quase hipnótico, petrificante. Os contos "A Mulher da Neve" e "Hoichi, o Sem Orelhas" são, basicamente, dois filmes cada um e provavelmente duas das coisas mais bem filmadas por qualquer ser humano — eu mesmo pausei o filme várias vezes apenas para ficar olhando para as imagens: do céu carmesim, aos céus oníricos com seus olhos que parecem acompanhar cada passo dos personagens em suas jornadas. O uso da paleta de cores e a elaborada construção fantasmagórica dos contos dão o tom para essa obra de arte do Kobayashi, capaz de restaurar nossos sentidos.
Existe filme ruim e existe aquele tipo bem específico de cinema estéril, sem personalidade, que parece existir só para entrar nesses festivais mixurucas de filme francês que as pessoas vão ver arrastadas por falta de uma programação cultural mais atrativa na cidade. Eu nunca gostei do Ira Sachs, mas me aventurei em "Frankie" pois: Isabelle Huppert; Jérémie Renier; Sintra. Não tinha como dar errado. Tinha. O errado fui eu.
Frankie é uma estrela de cinema que descobre que está com câncer e decide reunir a família para um último momento caloroso juntos — cada um com seus traumas e draminhas paralelos. A partir daí o espectador, já calejado com esse tipo de filme, antecipa vários cenários, mas Sachs — originalíssimo que é — opta por nenhum deles e o filme apenas existe, carente de unidade, de coerência, de uma proposta dramática efetiva. Não comove. Não cativa. Até os planos abertos com as belas paisagens portuguesas parecem carentes de um olhar que lhes dê algum sentido, a não ser reforçar a disfunção da família.
Parece que o filme quer apenas se gabar do elenco estelar e por ter sido gravado numa charmosa cidade estrangeira; e que o Sachs ativou o piloto automático e deixou a coisa andar sozinha, sem qualquer senso de direção. Ele sequer sabe quem está emulando: Rohmer? Linklater? Haneke? Green? Não sabe se é mumblecore ou cinema europeu. Notadamente, não sabe de porra nenhuma, porque falha até no que é mais elementar.
Personagens andam à deriva, se encontrando da forma mais irracionalmente conveniente possível como se a cidade fosse um simples vilarejo. Todos orbitam ao redor da personagem da Huppert, mas são tão porcamente construídos que qualquer resquício de nuance lhes escapa e você simplesmente não se importa com nenhum deles. A única coisa palpável nessa patifaria acaba sendo o conspícuo desconforto dos atores em cena.
Tem esse momento onde um rapaz — ao paquerar a mocinha — resolve lhe contar uma história da infância, mas o faz com um senso de grandeza e magnanimade tão grandes que soa como um velho sábio recitando uma parábola milenar ou um poema do Camões. É tão desconcertante que penso que o filme poderia ter sido uma paródia. Mas nem isso.
Não há nada mais fatal que um cineasta se sentindo confortável em seu ofício — ainda mais grave quando esse senso de autorrealização não passa de um delírio.
O cinema do Jean-Claude Brisseau surgiu-me por acaso, mas, desde o primeiro filme, me atravessou e me prendeu quase que instantaneamente. Sua busca inequívoca por compreender os mecanismos do desejo e da psique humana, temas que sempre costurou com primorosos diálogos, mistério e algum elemento místico/sobrenatural, o consolidou como um dos grandes nomes do Cinema Francês. Julgado controverso pelo uso explícito da nudez feminina, um dos grandes méritos do diretor foi, ironicamente, retratar as mulheres (de quem é claramente devoto) como agentes do seu próprio destino, inteligentes, dominadoras do jogo sexual e autoconscientes dos plenos poderes que exercem sobre o sexo oposto. Soube navegar pelo mar ardiloso do erotismo e da sexualidade como nenhum outro cineasta de que me recordo.
Brisseau foi acusado de assédio na gravação de "Choses secrètes" (2002) por duas das atrizes rejeitadas pro filme, tendo sido condenado, em 2005, à prisão — acontecimento este retratado no seu ótimo "Les anges exterminateurs" (2006), onde “conta” sua versão dos fatos, comprovando não sua inocência, nem a das garotas, mas a ambiguidade pantanosa do caso, de cuja verdade nunca saberemos. O evento fatídico não o impediu de fazer filmes, mas lhe custou caro: dificuldade em ser patrocinado, a pecha de machista adicionada, equivocadamente, à sua obra, além de tentativas reiteradas de apagarem-no da esteira da Sétima Arte.
Em "La fille de nulle part" (2012), seu penúltimo filme (meu favorito até então), rodado quase que inteiramente em seu apartamento (minimalismo “à fórceps”), prova, mais uma vez, seu alto cacife. Em seu ensaio sobre solidão, velhice e a necessidade da arte e da criação como únicas instâncias capazes de nos salvar da loucura na modernidade, Brisseau não abdica dos seus elementos constitutivos, mas — indesculpável que é — apenas os reforça, aproximando as fronteiras do sagrado e do profano, do real e do fantástico, da ciência e da religião. É seu filme mais bonito e filosófico e, por este feito, foi coroado com o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno em 2012.
Brisseau foi um cineasta brilhante, corajoso e, acima de tudo, de uma integridade à sua arte que considero sem precedentes. Morreu ano passado tendo sua retrospectiva censurada pela Cinemateca Francesa, em 2018, em resposta às pressões de movimentos feministas; e sem ninguém lhe prestar homenagem em Cannes, o que comoveu até sua viúva, Lisa Hérédia, companheira do diretor e editora de seus filmes por quase meio século.
Certamente, seu legado sobreviverá a esses tempos sombrios de dogmatismo e censura vindos do "progressismo" reacionário e puritano — muito bem disfarçado com suas boas intenções.
Sempre desconfio de filmes excepcionalmente belos; o hype sobre "Portrait de la jeune fille en feu" pôde ser ouvido das luas de Saturno, o que pode ser fatal (razão pela qual só esse ano fui ver "Call Me By Your Name"). Confesso, o filme quase me seduziu: paixão slow-burn, olhares furtivos, longos silêncios, cenários idílicos e cenas encantadoras, como quando Héloïse olha para Marianne pela primeira vez, ou quando aquela parece inabalada com seu vestido em chamas.
No entanto, o que tem de belo, tem de plano. Ao término da sessão, embora inebriado com a catarse final, um gosto amargo prevaleceu e eu sabia que se fosse comentar acerca do filme, o dissabor apenas tomaria mais contornos. O primeiro incômodo: o filme tenta a todo tempo ser perfeito, refinado, Francês: a beleza desconcertante das atrizes, os enquadramentos, a luz que tenta emular Rembrandt, as cores, a ausência de trilha sonora não-diegética, os simbolismos. Como consequência o conflito dramático é inexistente, não há urgência. O segundo: o encanto que se quebra quando o "olhar feminino" é reforçado como oposição revanchista ao "olhar masculino" (inerentemente fetichista e insensível), transfigurando-se em manifesto, com elementos muito bem calculados para cativar audiências e identidades bem específicas.
O filme semeia a dúvida logo de início: Marianne atira-se ao mar para recuperar uma pintura e nenhum dos homens no barco a ajuda. Que indiferentes! Após isso, toda presença masculina é erradicada do filme e Marianne desembarca numa ilha misteriosamente povoada só por mulheres. O século era 18, mas o espírito feminista não poderia ser mais 2019: "só homens pintam, somos silenciadas", "meu suvaco é cabeludo, vou esfregar essa droga aqui nele", "sou filha de aristocrata, mas ajudo a empregada a fazer um aborto e acho o momento lindo, vou celebrar numa pintura"; "vamos ali entoar cânticos em uníssono na calada da noite e celebrar nossa sororidade". A cena do aborto é enfiada de forma tão gratuita e perversa que o filme arrefece naquele instante.
Céline Sciamma é uma boa diretora: "Lírios d'água" e "Tomboy" são bons filmes e trazem um importante olhar feminino sobre seus temas. É uma pena que tenha fracassado neste que tinha tudo para ser sua obra-prima.
"A Hora do Amor": a breguice do título em português devia ter servido como aviso, um presságio.
Bergman, você é um gênio e eu te amo de joelhos, mas que fraquejada, hein? De longe o filme menos inspirado do diretor sueco, estranhamente falado em Inglês e com uma sucessão de péssimas escolhas que vão da edição e câmera atípicas à chocante banalidade da trama de paixão/traição, coroada com diálogos sofríveis, uma inexplicável falta de desenvolvimento dos personagens e um desfecho nada menos que horroroso.
Uma esposa e dona de casa adúltera sem apreço algum pelas consequências de sua aventurazinha extraconjugal (vulgo: quenga); um amante débil, irritantemente atormentado pela auto-aversão — manifestada em seus surtos repentinos de bipolaridade – e que cuja perfidia é inteiramente intragável (aka boy lixo); e um marido que labuta o dia inteiro para bancar uma mulher safada dentro de casa (o velho cuckold ou, no bom português, corno manso). Todos batalhando para decidir quem é o mais detestável ou menos patético.
Coitados da Bibi Anderssen (que ao menos está belíssima – nunca vi seios tão bonitos na vida?) e do subaproveitado Max Von Sydow, cujo brilhantismo, embora bem-vindo, de nada serviu. Sofri pra entender como o Bergman deu ok pra isso. Tampouco – e felizmente – me pareceu uma possível crítica ao núcleo familiar upper-middle-class (isso é fetiche?) ou retrato da incomunicabilidade matrimonial. Tire tudo de bom que há em "La Belle de Jour" (Bunuel) ou "Damage" (Malle) e o resultado é um filme ruim do Woody Allen.
"The Touch", ao menos, tem algumas cenas bonitas (obrigado Elliott Gould barbudo e de robe) e pode ser entendido como um ensaio frustrado para o seu magnum opus "Scener ur ett äktenskap", que viria dois anos depois.
Século 14, Japão, duas mulheres. As adversidades da guerra as levam a um caminho de decadência moral: matam soldados para trocar seus bens por comida; até que a chegada de um homem abala completamente essa dinâmica e o filme assuma uma tensão tanto psicológica quanto sexual, algo audacioso para o Japão conservador dos anos 60. Aliás, há algo sensual — poético, até — não somente nos corpos nus mostrados aqui em um naturalismo assombroso, mas também na forma como o Kaneto Shindô capta o balançar dos juncos e o som fantasmagórico do vento à noite. Com o apelo de terror psicológico, a trama é muito mais sobre solidão, desespero e moralismo sexual. Um classicão nipônico que foi muito além das minhas expectativas.
"Cai a neve. Cai debilmente no universo, cai debilmente como o final inevitável, sobre todos os vivos e os mortos."
Há algo sobre a iminência da morte, para além de sua inexorável inevitabilidade, que parece aguçar no âmago de certos artistas um outro olhar, uma percepção mais elevada e contemplativa sobre a nossa presença aqui na Terra. É como se apenas antevendo a hora derradeira, tornando-se dolorosamente mais conscientes da própria natureza, esses artistas pudessem canalizar esse profundo senso de mortalidade e efemeridade em suas criações. Basta olhar para as últimas obras de artistas como Leonard Cohen (You Want It Darker), David Bowie (Blackstar) ou Charles Bukowski (The Captain Is Out to Lunch and the Sailors Have Taken Over the Ship), para citar alguns: é manifesto o caráter introspectivo que povoa essas obras, deixadas para nós como verdadeiras elegias e, felizmente, testemunhos de seus respectivos talentos.
"Melhor passar bravamente para o outro mundo enquanto ainda se possui toda a paixão do que ir apagando-se pouco a pouco, murchando com a idade."
É o que ocorre em "The Dead", adaptação da obra de James Joyce e o último filme do lendário diretor estadunidense John Huston, que deixou no cânone obras-primas como "The Treasure of the Sierra Madre" e "The Maltese Falcon". Tendo dirigido "The Dead" em sua cadeira de rodas, Huston acabou morrendo poucos meses antes de ver o seu lançamento; e, por partir de um lugar que lhe era tão íntimo (Irlanda, terra que decidiu passar o resto de sua vida), o filme vai-nos preparando para um tom cada vez mais intimista e elegíaco.
Praticamente toda a trama se passa em um lar irlandês, em 1904, na Noite de Reis, quando membros de uma família aristocrática reúnem-se para um tradicional jantar, onde dançam, bebem, leem poesia, discutem música erudita e relembram, calorosamente, dos bons momentos de outrora – o que acaba desencadeando uma melancólica nostalgia. Afinal, não há algo terrivelmente melancólico em festas de família? Todas aquelas expectativas, memórias, arrependimentos, aflições e lembretes de nossas próprias falibilidades reunidos em um só lugar?
Embora nada extraordinário pareça acontecer do ponto de vista enredístico, o filme parte dessa melancolia que foi construída aos poucos e consegue capturar essas emoções muito bem – algumas bem pungentes. E são elas que irão nos levar a um dos desfechos mais bonitos do cinema, onde o diretor parece revitalizar na tela toda a carga poética da obra de onde advém. A solidão narrada pelo protagonista, desencadeada por uma trágica memória de sua esposa, é um daqueles raros momentos no cinema quando o testemunho da beleza faz com que lágrimas vertam dos nossos olhos. Lindo demais.
Um consolo vindo em boa hora para esse ano tão desesperançoso: com A Hidden Life, Terrence Malick acerta a mão e faz um filme daqueles que a gente fica prostado quando os créditos sobem — em reverência —como foi com Tree of Life e Days of Heaven.
Aqui, finalmente, o diretor consegue conciliar o que parecia inconciliável depois dos sofríveis Knight of Cups e Song to Song: seu estilo cada vez mais idiossincrático e autoconsciente de filmar com um arco narrativo que ofereça uma dramaticidade efetiva.
Não é fácil fazer um filme profundamente religioso, isento de proselitismo e com forte apelo emocional em um mundo cada vez mais secular. Na história do cinema, poucos (Dreyer, Bresson, Bergman...) conseguiram essa proeza e com tanta coerência. Quando "Silentium" do Arvo Pärt irrompe em um momento de teste de fé do protagonista, ou quando a bondade é manifestada por pequenos gestos, o coração, não sendo de pedra, ficou em frangalhos.
Na primeira vez que vi «Bram's Stoker Dracula», julguei o filme esquecível, mas ao revê-lo ano passado apaixonei-me e fiquei fascinado com sua verve artística. Com o mesmo propósito, decidi rever o clássico «Interview with The Vampire», do Neil Jordan, que considerava uma obra-prima (assim como o magnífico «The Crying Game», do diretor, visto recentemente), e a sensação foi — para minha triste surpresa — a inversa: o filme é terrivelmente monótono, a direção é insípida, a trama é covarde e não assume o homoerotismo entre os protagonistas, mascarando-se numa sugestão que NÃO funciona em nenhum momento. Portanto, não há sensualidade! E o pior, o personagem do Brad Pitt não tem nuance alguma, se leva a sério demais escondendo-se numa melancolia e pesar existenciais que não convencem, além de ficar choramingando durante toda a eternidade por conta de uma dualidade moral bobinha: ele é um vampiro bom demais para matar um ser humano. Assim, falha onde Herzog acerta em seu «Nosferatu»: a solidão e o deslocamento que afligem o vampiro do Kinski são pungentes — poéticos, até — e causam empatia. Aqui, as emoções parecem vazias e o filme carece de uma força motriz que o governe. No fim, parece uma ópera de mau gosto que não deu muito certo.
É possível separar um filme da intenção do seu diretor? Há essa ideia defendida pelo Nick Cave, em sua carta aberta ao Morrissey: uma obra, ao deixar as mãos do artista, entra num terreno mais abstrato, ficando seu significado a critério daquele que a aprecia, sob sua ótica infinitamente particular. Defendo, de forma ferrenha, tal ideia.
Passei anos sem ver «Funny Games», do Haneke, temendo que fosse mais "torture porn" (que não me agrada) que "home invasion" (que adoro). Tal receio dava-se não pelo uso da violência em si, pois acho fascinante seu uso no cinema como mecanismo para entendermos a psiquê e o comportamento humanos, mas porque sou fresco e prefiro o sobrenatural à carnificina. De todo modo, nunca li nada a respeito e por essa mesma razão não sabia quais eram as intenções do diretor.
Eis que vejo o filme e fico aterrorizado com o quão brilhante, eficaz e provocativo ele é: sua escolha de não mostrar as cenas brutais, apenas os atos pré e pós-violência, deixou muito espaço para o espectador, que, inclusive, torna-se cúmplice de tudo aquilo. Cenas letárgicas, beirando ao sadismo, que são sua marca, nunca funcionaram tão bem em seu potencial angustiante de tensão psicológica. Termino o filme irradiado de satisfação, arrependido de não o ter feito antes.
Aí decido ler a respeito e vejo os comentários em uníssono louvando a proposta do filme em criticar o uso e a banalização da violência na mídia, forçando-nos a uma autocrítica sobre o que nós consumimos, visão esta reiterada pelo próprio Haneke em entrevistas. A partir daí, veio um incômodo: tudo que o Haneke queria era mandar um sermão retrógrado pra cacete? E todo mundo aplaudiu isso?
Surge a frustração: não foi assim que vi a obra. A entendi como uma provocação sobre o nosso interesse mórbido por atos de brutalidade, inclusive no cotidiano. São pulsões que desconhecemos, por isso nos fascinam. Eis, aí, meu conflito. Achar um filme brilhante pelo que ele foi como experiência subjetiva, mas condená-lo pelas intenções do seu idealizador. Talvez o seu pecado tenha não ter sido dirigido pelo Paul Verhoeven, que parece ter mais habilidade para explorar esse terreno tão pantanoso sem a pedagogia do Haneke.
Senti-me cooptado por este filme como qualquer notívago quando chega o manto da noite. Genial como embora tenhamos apenas fragmentos dos personagens e das situações, a linha narrativa flua tão bem, tão serenamente e com tanta espontaneidade. Talvez porque a noite seja, de fato, a protagonista, e Chantal Akerman saiba explorá-la tão bem nos gestos e nos espaços. É a noite quem testemunha todos em seus momentos de grande vulnerabilidade lucífuga: encontros, desencontros, reencontros, o ímpeto do toque, do abraço, a dor da partida, a saudade que não tem fim, o anseio, a espera, as noites em claro, portas que se abrem, que se fecham, cômodos vazios, a ausência que martela, olhar o amante enquanto ele dorme percebendo que o amor se foi há muito tempo ou que nunca esteve tão vivo, a chuva caindo, as ruas desertas e mal iluminadas, solidão, desolação, acalento, dançar num bar vazio; a alvorada. "Toute une nuit" é como ler um bom livro de contos numa noite chuvosa, ouvindo o barulho dos gatos revirando as latas de lixo e uma sirene ecoando no infinito distante. Lindo e singelo demais isso aqui.
Esse é um momento em que muita gente que não está habituada a ficar só — e ver uma certa paz nisso tudo — se vê obrigada a ter que lidar com a própria companhia e consciência. Um processo terrível pra muitos, especialmente àqueles que projetam a paz interior e satisfação em algum elemento exterior a si. Será que têm medo desse encontro consigo mesmos?
Ver um filme tão sensorial e contemplativo em um momento de "introspecção à fórceps" deve ter feito toda a diferença pra mim. Será que estou mais emocional e vulnerável por causa do isolamento? Ou o Gus Van Sant é mesmo um gênio?
Bom, não tenho muito apreço por filmes que romantizam o "larguei tudo e pus o pé na estrada, sem rumo e sem direção". Acho que essa é uma jornada muito mais dolorosa e cheia de perrengues que glamurosa. Há quem o faça em busca de respostas, significado, para libertar-se, curar feridas, autoconhecer-se ou qualquer outra abobrinha que inventamos pra nos fazer sentir melhor consigo mesmos. A resposta pode ser libertadora, a verdade universal, ou um silêncio retumbante. Talvez seja isso que o Gus Van Sant queira dizer.
Ninguém sabe bem o que acontece em Gerry (2002), apenas que dois amigos, ambos chamados Gerry, decidem caminhar pela região desértica da Califórnia conhecida como Vale da Morte, em busca de não sei do quê. O filme acompanha essa peregrinação sem nos dar quaisquer indícios do que seus personagens erráticos buscam. Nunca saberemos.
Os longos planos sequência dos atores indo do nada a lugar algum remetem à Tsai Ming-Liang e seus personagens solitários e alienados na selva de pedra. Mas aqui a natureza primal também é indiferente às nossas angústias e anseios — e me parece ser essa a razão da tristeza lancinante evocada na sequência circular inesquecível do Casey Affleck ao som de Arvo Part. Onde está a resposta? No outro? Na natureza? Na religião? Em nós mesmos?
Um filme duramente criticado por tomar caminhos arriscados, por sua subjetividade exacerbada, mas que pra mim funcionou de forma arrebatadora. 10/10.
Eu vivo reclamando que as produções britânicas estão obcecadas com Black Mirror e ficam tentando emular sua modernidade o tempo inteiro, com resultados cada vez mais capengas. Aí vem a Netflix e comprova isso da pior maneira possível com esse terceiro episódio absolutamente horroroso, que ofusca fatalmente os dois primeiros, o que é inadmissível e revoltante. Eu estava prestes a recomendar a série para amigos: atmosfera gótica convincente, um Drácula charmoso e irônico que não deveu muito ao Gary Oldman, diálogos deliciosamente sarcásticos e blasfêmicos, violência gráfica corajosa e gore na medida. Aí vem os diretores e simplesmente sepultam a série. Bram Stoker deve estar se revirando com essa tentativa desastrosa de dar uma roupagem nova a estória, como se isso não já tivesse sido feito antes. Até a brilhante sacada de trazer Dr. Van Helsing em uma personagem feminina tão original foi ofuscada com o Drácula usando... Tinder e dizendo "See you, later". Personagens sem aprofundamento algum enfiados na trama, falando em slut-shaming e direitos sociais... Já não basta o feminismo radical de Sabrina? Quem porra escreveu esse episódio tão lamentável? Primeira grande decepção do ano.
“Vejo-o sorrir, mas você está triste. Quer que lhe traga um pouco de palavras?”, diz o menino Albanês a um combalido e solitário Bruno Ganz, no papel de Alexander, um poeta doente que decide recapitular sua vida no leito de morte.
Um filme com cenas tão belas, que quando me pego pensando nelas, os olhos põem-se a marejar – feito este que o grego Theo Angelopoulos já havia alcançado com Paisagem na Neblina, sua obra-prima. Eternidade e Um Dia é o tipo de filme que inevitavelmente eleva o nosso nível de exigência sobre cinema, porque fico refletindo como alguém por trás das câmeras consegue articular momentos visuais tão bonitos. Aqui, tanto o lendário Ganz, como o ator mirim, dão uma nota emocional muito forte ao filme. Este, um refugiado órfão; aquele, sem pátria. Um vive com a promessa do futuro em sua terra natal, o outro carrega nos ombros o peso do não pertencimento a lugar algum. Ambos estrangeiros de si mesmos, repletos de medos, vagueiam pelo filme em busca de algo, resgatando um ao outro.
O filme tem muito de Morangos Silvestres, do Bergman. Na iminência da morte, inauditos, arrependidos e sozinhos, ambos protagonistas refletem sobre o passado e o caráter irremediável do tempo, o que poderia despencar num fatalismo autoindulgente e piegas, evitado pela inquestionável habilidade diretiva dos seus corifeus.
“Meu único pesar, Anna... é não ter terminado nada. Deixei tudo como um rascunho, espalhando palavras lá e aqui.”. Como não lembrar de Elliott Smith? “Ninguém partiu seu coração, você mesmo o fez, porque nunca termina aquilo que começou”.
Mas talvez um dos maiores trunfos do Angelopoulos é como ele consegue costurar a narrativa tão bem, num perfeito fluxo de memórias onde os escombros do passado se misturam e se fundem com os do presente. Com um olhar albatroziano dos espaços por onde seus personagens peregrinam, sempre os vemos em planos abertos, andando rumo ao desconhecido. As transições são igualmente brilhantes. Em uma cena, todas as pessoas vestem preto e caminham, indiferentes, na orla à beira-mar num dia cinza. Alexander caminha, pesaroso, e de repente estamos em um barco, numa tarde ensolarada, onde todos vestem branco e sorriem, exceto ele, que ainda está de preto. Estamos dentro de uma lembrança: o “um dia” do título, preso na eternidade de todos os outros dias.
Na cena mais bonita do filme, Alexandre e o menino têm pouco tempo juntos e decidem vagar de ônibus pela madrugada, para descer no mesmo lugar de onde saíram. O que lhes sucede nesse efêmero passeio é um consolo para a alma. O que mais esperar de um filme cuja poesia nunca arrefece, mas só encandece? Arroubos e gratidão.
Gostaria de dar um soco em todo mundo comparando esse filme água de chuchu a God’s Own Country ou Weekend. E, francamente, só tenho a lamentar porque o filme tinha muito potencial: 1. Zona rural finlandesa. 2. Cabana de madeira. 3. Faz-tudo barbudo-peludo-sírio. 4: Tensão sexual. Mas as atuações são horrorosas, a iluminação é malfeita, os diálogos insípidos e os dois personagens são bastante desinteressantes e chatos, especialmente o loiro – pretensioso, antipático e que maltrata o pai ao invés de aproveitar a experiência no mato para tentar alguma conexão com ele. O filme poderia ter mergulhado mais na relação entre eles, mas preferiu negligenciar e reduzir o patriarca a um estereótipo de xenófobo. Sem mencionar que tudo acontece muito rápido, então, quando aconteceu, não me impressionou.
Cheguei à conclusão de que esse tipo de filme mais íntimo e contemplativo funciona melhor com pouco ou nenhum diálogo (Gradiente Luminoso, Havaí, A Colheita); portanto, se você quiser enfiar algumas falas, certifique-se de ser muito bom nisso porque, se não for, você vai matar a experiência. Eu não quero ouvir sobre pegações no Grindr, teses sobre sexismo e “performance” de gênero (revirando os olhos) em um filme ambientado no meio da porra da floresta escandinava. Obrigado.
O equivalente cinematográfico a Dead Can Dance. Êxtase define o lirismo trágico desse filme. Eu nunca imaginei que A Cor da Romã seria destronado, mas Sombras dos Ancestrais Esquecidos me deixou em um estado de transe com sua verve poética e sua narrativa não convencional. Não apenas um deleite visual, com suas escolhas inusitadas de câmera, cores e texturas, mas também uma obra-prima musical: os cantos parecem emanar da Terra e do núcleo profundo de seus habitantes. Eu te amo, Parajanov.
A Primeira Noite de Tranquilidade
4.1 54"Não há nada como a falta de liberdade para proporcionar momentos de alegria."
Existem coincidências absurdas demais para se crerem reais e que quando acontecem parecem sugerir uma ordem inabalável no Universo. Eis uma delas: assisti a esse maravilhoso filme franco-italiano, «La prima notte di quiete», do Valerio Zurlini, um dia após terminar a leitura de «O Quarto de Giovanni», obra-prima do escritor estadunidense James Baldwin, que devorei em uma sentada de tão bom. No livro, uma das passagens que ficou ecoando em mim foi esta:
"E aquelas noites eram vividas sob um céu estrangeiro, sem pessoa alguma a observar, sem penalidades ou castigos — e foi este último fato a causa de nossa ruína, pois nada se mostra mais insuportável do que a liberdade, depois de a possuirmos."
A conexão desse paradoxo com o aforismo do camusiano personagem do Alain Delon no filme foi surreal pra mim. É como se o Cosmos estivesse descortinando-me uma Verdade: a vida é mesmo um absurdo, mas hey, não há felicidade sem o sofrimento como referência; não há excitação sem a melancolia; liberdade sem opressão; sucesso sem fracasso; amor sem desprezo; sabedoria sem ignorância, vida sem morte. É como se ele me dissesse: você precisa atravessar tudo isso, por isso desconfie de gente feliz demais, livre demais, grata demais; o ócio, o infortúnio, a miséria são inevitáveis e sabendo disso, é mais fácil dominá-los — como as sombras que carregamos e aprendemos a domesticar.
A nossa insatisfação crônica talvez resida neste erro, de acharmos que tais estados são permanentes ou um "lugar" que a gente consiga alcançar.
É lindo quando o cinema e a literatura convergem dessa forma. E pelo amor de Deus: o que foi a cena da boate? Os olhares do Alain Delon pareciam lâminas de tristeza e melancolia. Revi esta cena várias vezes.
Dias
3.8 20A parceria do Tsai Ming-Liang com Lee Kang-Sheng começou em 1989, ano em que nasci. Apraz-me a ideia de que vim ao mundo no mesmo intervalo tempo-espacial em que essas duas almas decidiram se encontrar, por mero acaso, para nunca mais se separarem, entregando-nos obras-primas como O Buraco, Vive L'Amour, Rebeldes do Deus Neon, Eu Não Quero Dormir Sozinho e Cães Errantes — todas indiscutivelmente obrigatórias para os lobos solitários deste mundo. Ouso dizer que essa prolífica relação que já atravessa três décadas não possua precedentes comparáveis (no máximo, talvez, aquela entre o Cassavetes e a Rowlands, o Bergman e a Ullmann).
A habilidade vocacional de conseguir concatenar algo grandioso de forma simples é restrita a poucos gênios em qualquer área, seja no reino artístico ou do pensamento. Tsai é um desses gênios. Seu cinema menos é mais, tão desprovido de ornamentos e opulências, surpreende-me com sua profundidade emocional e atravessa-me feito trem bala. Ouso dizer que é o único cineasta com calibre e estirpe hoje pra conseguir fazer um filme existencial sobre incomunicabilidade tão contemplativo, tão cheio de silêncios, de esperas, sem diálogos, com cenas longuíssimas e pouquíssimos cortes e com mais de duas horas de duração sem que a mão pese, sem ser críptico demais, ou sem que tudo não pareça um mero exercício autocongratulatório de estilo.
Dias (日子, 2020) é um filme difícil, feito sob medida para o ano caótico e pandêmico de 2020: a dor física que o protagonista carrega o filme inteiro estampada em seu olhar errático, o isolamento/alienação urbana, a explosão de ternura dos corpos quando finalmente se encontram, as vidas que seguem separadas. Todo o existencialismo articulado de maneira não-pedagógica, de modo a nos causar o mesmo desconforto, a mesma agonia, como se fôssemos nós ali na tela, tocando nossas rotinas e carregando nossas angústias, insuficiências e incapacidades.
Esperava tudo deste filme. E ele foi o abraço que eu precisava.
Tsai não decepciona.
O Lobo da Estepe
3.6 56“Fui ler o Hermann Hesse aos treze anos e tomei um choque. O Lobo da Estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava mais. Terminei rasgando e jogando fora.” (Clarice Lispector, 1977).
O magnum opus do célebre escritor alemão parece mesmo ter um poder acachapante sobre nós. Hesse, entretanto, julgava “O Lobo” seu trabalho mais incompreendido, frustração que lhe foi bastante cara em vida, pois viu sua obra ser acolhida não propriamente pelo que ele pretendia. Logo no início, Hesse nos alertava: a história trata não de um homem em desespero, «mas de um homem que Crê», razão primordial do seu torvelinho. Foi uma tentativa de nos guiar pela história, de evitar que não nos distraíssemos da angústia elementar que atravessava seu texto.
Mas assim que a atira no mundo, o autor não mais detém o “comando” da sua própria obra, especialmente quando se trata de algo tão alegórico e aberto a interpretações, como é o caso do livro, que flerta o tempo inteiro com a psicanálise e o onírico. Isso explicaria, por exemplo, o fato de quarenta anos depois de sua primeira publicação, “O Lobo” ter caído no gosto da geração hippie, fascinada pela oposição à beligerância política do protagonista, o pacifista Harry Heller. A abertura do personagem à experimentação, seu desencanto com os dias ordinários, sua rejeição à burguesia e seu conflito pessoal com a formação rigidamente cristã foram material de sobra para acalentar os corações e mentes da geração paz & amor da década de 60.
Mas Heller era mesmo uma figura fascinante: solitário e triste, o eremita passava os dias lendo clássicos, ouvindo música erudita e sentindo pena de si mesmo. De repente, descobre que há dentro de si um lobo – o lobo da estepe – que é o extremo oposto do seu lado retraído e metódico: o lobo é caótico, violento, destemido. Resolve então entregar-se à sua versão lupina, avistando um suicídio que cometeria ao completar 50 anos, prazo para além do qual julgou que a vida não mais valia a pena ser vivida. E é nessa jornada pouco usual, nessa batalha incessante entre as várias facetas de sua personalidade (e, por conseguinte, de suas crenças), que ele encontra, por fim, a si mesmo.
“O Lobo” é uma obra exemplar porque Hesse delineia os contornos e contradições da perturbada alma do protagonista com bastante destreza, quando poderia facilmente ter romantizado sua ruptura para o lado selvagem, resvalando em um personagem tolo e autoindulgente. Mas não: Heller se vê perdido o tempo inteiro entre si mesmo e o lobo, entre o sagrado e o profano, entre a miséria e a alegria que para ele eram estados facilmente cambiáveis. Quem nunca teve um arroubo de tristeza ou se sentiu irremediavelmente sozinho no meio de uma festa? Esse permanente autoexame de consciência do personagem – o grosso do livro – é de uma profundidade e densidade emocionais absurdas. Seu tormento espiritual, sua dor existencial, a natureza dual e conflitante de sua moralidade, o senso de inadequação, a reverência ao Eterno, à Verdade e ao cânone artístico ocidental, a necessidade de ordem, seu constante estado de busca e compreensão: tudo isso gritou-me diretamente e a experiência que senti folheando as páginas do livro jamais me escapará.
Infelizmente, não há como dizer o mesmo da adaptação cinematográfica dirigida pelo Fred Haines, «Steppenwolf» (1974), que me frustrou sobremaneira. No filme há pouquíssimos momentos de poesia no delinear da personalidade do Harry porque o diretor não se arvora nessa preocupação, mas em capturar a lisergia que era atraente à época da contracultura. Começa de forma apressada e faltam-lhe a introspecção e subjetividade que são as marcas do livro. É muito mais uma colcha de retalhos de passagens do livro apresentadas sem unidade e sem coesão (embora o livro também não seja todo linear). Ironicamente, todas as cenas importantes do livro estão lá (Harry sentado na escada, intoxicado pelo asseio e ordem do apartamento burguês ao lado; o diálogo com Pablo sobre música erudita vs. popular; o diálogo com Hermínia sobre o Eterno em oposição à satisfação imediata; o baile de máscaras; o diálogo com Mozart), mas são jogadas de forma tão desarticulada que o sentimento foi de absoluto desgosto. É o assassinato do que há de mais belo na obra.
Lembro que, no livro, foi a chegada da misteriosa Hermínia, com tudo o que ela representava, um dos momentos visualmente mais cativantes da história. Ela é introduzida de tal maneira que, em minha mente, o livro ganhou, literalmente, outra cor e outra cadência, tamanha a ruptura do universo austero e solitário do Harry com o dela – luminoso, vivaz, passional, sensual, jazzístico. E o erro crasso do filme foi a terrível escolha e péssima desenvoltura da atriz que a interpreta: desenxabida, apática, sem carisma, de expressão morta e sem luz. Evidentemente, não há de se esperar que o desenvolvimento dos personagens numa obra literária equipare-se à sua transposição para a linguagem cinematográfica, mas a falta de um esforço nesse sentido foi terminal. Até os personagens secundários, como Maria e Pablo, ambos imprescindíveis, foram pouco explorados.
“De repente uma pessoa, uma pessoa viva percute a campânula de cristal da minha apatia e me estende a mão, uma mão boa, bela, cálida! De repente, voltam a surgir coisas que me afetam, nas quais posso pensar com alegria, com preocupação, com interesse! De repente, uma porta que se abre e por ela entra a vida para mim! Talvez possa voltar a viver, talvez possa voltar a ser gente. Minha alma, que havia tombado adormecida no frio e quase se enregela, respira de novo e volta a bater sonolenta as pequenas asas débeis.”
Dito tudo isso, o filme possui, sim, seus acertos, como a presença do Max von Sydow, a atmosfera noturna e o surrealismo que o permeia (o riso sardônico do distribuidor de panfletos é algo que mereceu ser adicionado ao meu imaginário da história). Do mesmo modo, todo o segmento do Teatro Mágico, embora muito mais lisérgico do que imaginei, é bastante surreal e criativo dadas as limitações da época (a escolha visual para a cena simbólica do domador é brilhante). Mesmo que não tenham envelhecido bem, esses momentos possuem um apelo interessante, lembrando as obras de Salvador Dalí e Terry Gilliam e do filme-ópera The Wall.
Mas o que mais me saltou aos olhos – e ainda não vi ninguém apontando isso – é sua inambígua semelhança com «Mulholland Drive», do David Lynch, o que me chocou muito, pois este é meu filme de cabeceira. Quando uma voz, no Teatro, diz ao Harry "É apenas uma ilusão. O Teatro Mágico não é realidade.", veio-me, imediatamente, a cena do Clube Silêncio, onde as mesmas palavras são ditas pelo apresentador: “Não há orquestra: É tudo uma gravação; é tudo ilusão.”. Ambas as frases são a peça-chave para a compreensão da história no livro do Hesse e no filme do Lynch, profundamente simbólicos e metafóricos. Há outra cena do filme, anterior à do Teatro, visualmente idêntica à Cidade dos Sonhos: quando Hermínia e Maria beijam-se no bar e olham de forma provocativa para o Harry. A mesmíssima cena é vista na obra-prima do Lynch envolvendo as duas Camilla Rhodes numa dinner party.
No fim das contas, confesso que minhas expectativas para a adaptação de O Lobo da Estepe eram altíssimas, o que pode explicar meu descontentamento com o resultado desse filme como um todo. Resolvi esperar algumas semanas após ler o livro para assisti-lo – de modo a consolidar as imagens que criei em minha mente sem poluí-las com outra visão, o que vejo agora como uma decisão acertadíssima, pois são aquelas que sobreviverão para sempre.
"Aprenda o que deve ser levado a sério e ria do resto."
"Não posso dar-lhe nada que já não haja em você."
O Amante Duplo
3.3 108A sensação que se tem ao término de «L'amant double» é que François Ozon parece-me incapaz de sair da média, o que se agrava quando tenta a todo custo fazê-lo – caso deste filme. Ainda que reconheça um certo zelo estético do diretor, bem como reverencie sua intrepidez em retratar traços sombrios e violentos da psique humana e suas misteriosas pulsões, ele não soube concatenar os elementos constitutivos da obra: é uma mistura de pornô softcore noventista com terror psicossexual que simplesmente não dialogam um com o outro e que foram pouco ajudados com o roteiro excessivamente obscuro.
Tal falta de unidade e de coesão torna-se evidente com a assepsia das cenas de sexo que consistem em 2/3 do filme quando contrastadas com os momentos mais sinistros e viscerais da trama. Não há erotismo, não há sensualidade alguma – o que é um crime. «Inverno de Sangue em Veneza», que deveria ser a pedra de toque para todas as cenas de sexo que o sucederam, não ensinou nada aqui: não há suor, não há entrega, não há verdade; os belos corpos nus de Jérémie Renier e Marine Vatch repousam na tela apenas para a contemplação do espectador e lembram mais comercial de perfumaria de grife que qualquer outra coisa.
Essa dissonância, inclusive, impossibilitou-me de sentir-me investido na trama, que pareceu ter o dobro da duração. Reconhecer, no decorrer do filme, a mão invisível e onipresente de tantos outros diretores tampouco ajudou: as influências de Verhoeven, Polanski, Zulawski, de Palma, Cronenberg e Villeneuve saltam aos olhos o tempo inteiro. Ter visto algumas dessas referências recentemente (como «The Rosemary's Baby», «Elle» e «Desd Ringers») apenas reforçou o abissal distanciamento entre elas e o Ozon.
De modo geral, uma pena, pois o filme é inteligente, o tema muito me interessa e os minutos derradeiros foram, de fato, perturbadores, o que quase me demoveu da minha insatisfação. Tarde demais.
O Bebê de Rosemary
3.9 1,9K Assista AgoraVez ou outra tenho aventurado-me numa nasty business que me é muito custosa, porém necessária: rever, com certo desprendimento, filmes que nutro em alta estima com os meus "olhos" de hoje e em melhores condições (versões restauradas ou em alta definição). O resultado é incerto: pode ser de completa desilusão, como a minha experiência com «Interview with The Vampire», que me causou abjeção, ou de absoluta reverência, êxtase e espanto, como foi revisitar o fenômeno cult «Rosemary's Baby».
Mesmo tendo-o visto, anteriormente, em duas oportunidades (no cinema, em uma das saudosas Sessões Notívagos onde varávamos a madrugada na sala de cinema; e na versão em DVD que possuo), tudo me pareceu novo, com um frescor intoxicante. Da belíssima abertura (que agora me remeteu ao clássico «The Innocents») ao olhar ambíguo da Mia Farrow na cena final, a sensação é a de que eu estava vendo o filme pela primeira vez, mesmo que todo o desenrolar se antecipasse em minha mente.
Prova disso é só agora ter-me apercebido da aparição de "El Aquelarre", de Goya; ou da cuidadosa evolução dos cortes de cabelo da Ro. Chamou-me a atenção, também, o profundo rigor estético do Polanski no uso dos espaços e da mise-en-scène como um elemento primal do filme. Como a ambivalência de «Rosemary's Baby» é um de seus pontos nevrálgicos, reforçada nos momentos oníricos, há esse pequeno detalhe do "sonho/violação" da Ro que me saltou aos olhos: a sutil transição do papel de parede amarelado e confortante da casa para a inscrição de pinturas nas paredes, remetendo ao seu passado de formação cristã.
Elementar, acima de tudo, é perceber o quão angustiante e perturbador o filme continua sendo nos dias de hoje. Afinal estamos falando de gaslighting e estupro (pelo Satã? Pelo marido?) em uma era onde a cancel culture está a pleno vapor, o que, somado às controvérsias ligadas ao diretor, contaminará a apreciação da obra por muitos. O filme possui, no entanto, um dos momentos mais "feministas" de que me recordo: são as amigas da Ro, vendo-a sofrer, que a recomendam ver um segundo médico, promovendo uma importante ruptura no desenrolar da trama, no que pode ser lido como um aliviante momento de sororidade entre elas. Mas digrido.
O filme é todo arvorado em cima dessa sensação perturbadora de ser desacreditado diante de algo tenebroso, que é o calvário da protagonista ao suspeitar que seu marido, médico e vizinhos estão mancomunando com o Satã para se apropriar do bebê que cresce em seu ventre. Todo o processo é de pura aflição: as dores lancinantes, a presença cada vez mais pervasiva dos vizinhos, a figura cada vez mais dúbia do marido (Cassavetes, brilhante), a exsudação cada vez mais intensa da Rosemary. O horror que ela sente ao perceber um homem parar ao seu lado na cabine telefônica (e que pode ser visto em seus olhos pelo reflexo do vidro) não é somente credível – é aterrorizante mesmo!
Vi-me fisgado o tempo inteiro pelas camadas psicológicas, pela paranoia constante e pelas pequenas nuances desse filme, o que me leva a concluir que se ele permanece imarcescível desta forma, significa apenas uma coisa: que sua qualidade é inapelável. Sinto-me obrigado a rever os demais filmes da trilogia porque isso aqui me empolgou demais.
Conan, o Bárbaro
3.5 371 Assista Agora– What daring! What outrageousness! What insolance! What arrogance!
– I salute you!
Fui completamente desavisado assistir a <Conan the Barbarian>, clássico sword & sorcery do John Milius que não sei por qual razão não havia visto na infância e eis que me deparo com um filme com tremenda potência narrativa e visual. Arnold Schwarzenegger está magnético com seu carisma e sua presença física absurda, ajudado pelas também fortes presenças de James Earl Jones e Max Von Sydow.
O bom uso da violência/gore, as influências do cinema asiático (<Kwaidan> e <Shichinin no Samurai>) e o roteiro cuidadoso nos mantém envolvidos durante todo o tempo. Até que ponto o desejo por vingança – ou, por extensão, qualquer sentimento negativo (inveja, culpa, remorso) – pode moldar o indivíduo? O que é mais poderoso: uma espada ou as motivações daquele que a empunha, seja vingança ou fé cega?
Para além disso, visualmente o filme é deslumbrante, desde os planos abertos nas paisagens desérticas da Espanha aos cenários suntuosos perfeitamente elaborados pela caríssima produção. Em uma cena – a minha favorita–, corpos eviscerados aparecem sendo preparados para um banquete/orgia dionisíaca que ocorrerá na sequência. É um pesadelo infernal que, ajudado pela magistral e energética trilha do Basil Poledouris, parece ter saído da pintura mais grotesca do Hieronymus Bosch.
Qualquer nota abaixo de ⭐⭐⭐⭐⭐ me parece um equívoco.
Fim de Festa
3.2 54Cinema como metáfora da nossa época™.
Só mesmo o Irandhir Santos e a Hermila Guedes para emprestarem um sopro de dignidade a essa atrocidade dirigida pelo Hilton Lacerda. Um "murder mystery"/"buddy cop movie" ambientado no pós-Carnaval de uma Recife sorumbática e acinzentada, cujo som do frevo ainda parece ecoar nas ruas junto ao glitter ubíquo e o cheiro de urina, cerveja quente e loló? Eu vi muito potencial aí, mas <Fim de Festa> é um arremedo disforme do que gostaria de ser, um desfile de cacoetes e uma procissão de escolhas formulaicas e equivocadas.
É visível que Lacerda quis trazer uma narrativa diferente ao rico cinema pernambucano, mirando em uma atmosfera mais pesada, carregada, para reforçar a ideia de normalidade, de vazio com o gosto acre dos dias que sucedem a farra carnavalesca, mas o resultado é desastroso: a insipidez na forma de conduzir a história, na decupação das cenas, dos planos, na direção de atores. Tudo é anacrônico e maneirista demais.
Mas o pior ele reservou aos personagens: o retrato da esquerda-cirandeira-burguesinha-maconheira-panssexual-free-spirit-respeita-as-mina-trans-mostro-o-mamilo-não-fode-meu-rolê aparece não com um viés crítico, mas celebratório, da maneira mais artificial e ridícula possível, dando-lhes um verniz de autoimportância que simplesmente lhes falta. A troca de vitupérios entre a Polícia ("instituiçãozinha“) com a garota fazendo topless (cujo TCC é filmar os corpos no Carnaval, num retrato horrivelmente fidedigno da banalidade dessas pessoas na Academia), intendido como um ato libertário de "resistência" e afronta à escalada conservadora no país, é de um histrionismo tão forçado que chegou a doer-me fisicamente.
Ah, o que falar do marasmo de quem não precisa trabalhar depois da quarta-feira de cinzas e pode permitir-se ficar na praia de ressaca e chapado citando Nelson Rodrigues? Ao menos fica a caricatura fiel desses jovens presunçosos, pós-modernésimos, descoladíssimos, que não contribuem em porra nenhuma ao país e acham, em sua húbris e delírios coletivos, que estão vencendo a batalha contra o inominável conservadorismo malvadão.
A famigerada e embaraçosa cena da Revista Veja em <O Som Ao Redor> não ensinou nada a essa trupe sobre nuance? Tristemente, um filme baixo de alguém que tinha potencial para muito mais.
Kwaidan: As Quatro Faces do Medo
4.2 74"Because of the mantle of glittering snow that covered everything, the three-hundred-meter ellipse of the track could not be distinguished from the undulating field it enclosed. In a corner of the field two great zelkova trees stood close together, and their shadows, greatly elongated in the morning sun, fell across the snow, lending meaning to the scene, providing the happy imperfection with which Nature always accents grandeur".
O lirismo e a indisputável destreza prosaica do Yukio Mishima nesse pequeno excerto de Confissões de Uma Máscara me fez compreender porque ele é considerado o Ernest Hemingway do Japão. Sua descrição visual do efeito das estações é tão cinematográfica que foi o suficiente para me jogar em um espiral ascendente de fascínio pela cultura nipônica: suas paisagens, seu passado, sua História, seus valores. É por causa dele que tenho me aventurado no cinema nipônico, particularmente pelo período feudal, dos samurais, com suas lições sobre heroísmo e honra; e tem sido uma das experiências mais enriquecedoras da minha vida — porém não sem suas provações.
Aos poucos vou superando uma dificuldade muito cara a nós ocidentais: o ritmo, a cadência e o estilo do cinema japonês dos anos 60 é completamente diferente para a nossa mente acelerada, imergida na ubiquidade de gadgets, notificações instantâneas, binge-watching e uma mixórdia de estímulos. Notei essa dificuldade inicial com os magníficos "Onibaba", "Kumonosu-jō" e agora com o magistral "Kwaidan", antologia folclórica do Masaki Kobayashi, com suas intimidadoras três horas de duração. Como um álbum que precisa de duas ou três ouvidas para engatar (os growers), tais filmes demandam mais do espectador — e não digo, com isso, que é um cinema cerebral, mas desapressado, meticuloso, calcado em sua habilidade de ir nos conquistando aos poucos.
O prêmio são as imagens assombrosamente belas de Kwaidan, com um poder quase hipnótico, petrificante. Os contos "A Mulher da Neve" e "Hoichi, o Sem Orelhas" são, basicamente, dois filmes cada um e provavelmente duas das coisas mais bem filmadas por qualquer ser humano — eu mesmo pausei o filme várias vezes apenas para ficar olhando para as imagens: do céu carmesim, aos céus oníricos com seus olhos que parecem acompanhar cada passo dos personagens em suas jornadas. O uso da paleta de cores e a elaborada construção fantasmagórica dos contos dão o tom para essa obra de arte do Kobayashi, capaz de restaurar nossos sentidos.
Foda!
Frankie
2.9 22Existe filme ruim e existe aquele tipo bem específico de cinema estéril, sem personalidade, que parece existir só para entrar nesses festivais mixurucas de filme francês que as pessoas vão ver arrastadas por falta de uma programação cultural mais atrativa na cidade. Eu nunca gostei do Ira Sachs, mas me aventurei em "Frankie" pois: Isabelle Huppert; Jérémie Renier; Sintra. Não tinha como dar errado. Tinha. O errado fui eu.
Frankie é uma estrela de cinema que descobre que está com câncer e decide reunir a família para um último momento caloroso juntos — cada um com seus traumas e draminhas paralelos. A partir daí o espectador, já calejado com esse tipo de filme, antecipa vários cenários, mas Sachs — originalíssimo que é — opta por nenhum deles e o filme apenas existe, carente de unidade, de coerência, de uma proposta dramática efetiva. Não comove. Não cativa. Até os planos abertos com as belas paisagens portuguesas parecem carentes de um olhar que lhes dê algum sentido, a não ser reforçar a disfunção da família.
Parece que o filme quer apenas se gabar do elenco estelar e por ter sido gravado numa charmosa cidade estrangeira; e que o Sachs ativou o piloto automático e deixou a coisa andar sozinha, sem qualquer senso de direção. Ele sequer sabe quem está emulando: Rohmer? Linklater? Haneke? Green? Não sabe se é mumblecore ou cinema europeu. Notadamente, não sabe de porra nenhuma, porque falha até no que é mais elementar.
Personagens andam à deriva, se encontrando da forma mais irracionalmente conveniente possível como se a cidade fosse um simples vilarejo. Todos orbitam ao redor da personagem da Huppert, mas são tão porcamente construídos que qualquer resquício de nuance lhes escapa e você simplesmente não se importa com nenhum deles. A única coisa palpável nessa patifaria acaba sendo o conspícuo desconforto dos atores em cena.
Tem esse momento onde um rapaz — ao paquerar a mocinha — resolve lhe contar uma história da infância, mas o faz com um senso de grandeza e magnanimade tão grandes que soa como um velho sábio recitando uma parábola milenar ou um poema do Camões. É tão desconcertante que penso que o filme poderia ter sido uma paródia. Mas nem isso.
Não há nada mais fatal que um cineasta se sentindo confortável em seu ofício — ainda mais grave quando esse senso de autorrealização não passa de um delírio.
A Garota de Lugar Nenhum
3.7 23O cinema do Jean-Claude Brisseau surgiu-me por acaso, mas, desde o primeiro filme, me atravessou e me prendeu quase que instantaneamente. Sua busca inequívoca por compreender os mecanismos do desejo e da psique humana, temas que sempre costurou com primorosos diálogos, mistério e algum elemento místico/sobrenatural, o consolidou como um dos grandes nomes do Cinema Francês. Julgado controverso pelo uso explícito da nudez feminina, um dos grandes méritos do diretor foi, ironicamente, retratar as mulheres (de quem é claramente devoto) como agentes do seu próprio destino, inteligentes, dominadoras do jogo sexual e autoconscientes dos plenos poderes que exercem sobre o sexo oposto. Soube navegar pelo mar ardiloso do erotismo e da sexualidade como nenhum outro cineasta de que me recordo.
Brisseau foi acusado de assédio na gravação de "Choses secrètes" (2002) por duas das atrizes rejeitadas pro filme, tendo sido condenado, em 2005, à prisão — acontecimento este retratado no seu ótimo "Les anges exterminateurs" (2006), onde “conta” sua versão dos fatos, comprovando não sua inocência, nem a das garotas, mas a ambiguidade pantanosa do caso, de cuja verdade nunca saberemos. O evento fatídico não o impediu de fazer filmes, mas lhe custou caro: dificuldade em ser patrocinado, a pecha de machista adicionada, equivocadamente, à sua obra, além de tentativas reiteradas de apagarem-no da esteira da Sétima Arte.
Em "La fille de nulle part" (2012), seu penúltimo filme (meu favorito até então), rodado quase que inteiramente em seu apartamento (minimalismo “à fórceps”), prova, mais uma vez, seu alto cacife. Em seu ensaio sobre solidão, velhice e a necessidade da arte e da criação como únicas instâncias capazes de nos salvar da loucura na modernidade, Brisseau não abdica dos seus elementos constitutivos, mas — indesculpável que é — apenas os reforça, aproximando as fronteiras do sagrado e do profano, do real e do fantástico, da ciência e da religião. É seu filme mais bonito e filosófico e, por este feito, foi coroado com o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno em 2012.
Brisseau foi um cineasta brilhante, corajoso e, acima de tudo, de uma integridade à sua arte que considero sem precedentes. Morreu ano passado tendo sua retrospectiva censurada pela Cinemateca Francesa, em 2018, em resposta às pressões de movimentos feministas; e sem ninguém lhe prestar homenagem em Cannes, o que comoveu até sua viúva, Lisa Hérédia, companheira do diretor e editora de seus filmes por quase meio século.
Certamente, seu legado sobreviverá a esses tempos sombrios de dogmatismo e censura vindos do "progressismo" reacionário e puritano — muito bem disfarçado com suas boas intenções.
Retrato de uma Jovem em Chamas
4.4 901 Assista AgoraSempre desconfio de filmes excepcionalmente belos; o hype sobre "Portrait de la jeune fille en feu" pôde ser ouvido das luas de Saturno, o que pode ser fatal (razão pela qual só esse ano fui ver "Call Me By Your Name"). Confesso, o filme quase me seduziu: paixão slow-burn, olhares furtivos, longos silêncios, cenários idílicos e cenas encantadoras, como quando Héloïse olha para Marianne pela primeira vez, ou quando aquela parece inabalada com seu vestido em chamas.
No entanto, o que tem de belo, tem de plano. Ao término da sessão, embora inebriado com a catarse final, um gosto amargo prevaleceu e eu sabia que se fosse comentar acerca do filme, o dissabor apenas tomaria mais contornos. O primeiro incômodo: o filme tenta a todo tempo ser perfeito, refinado, Francês: a beleza desconcertante das atrizes, os enquadramentos, a luz que tenta emular Rembrandt, as cores, a ausência de trilha sonora não-diegética, os simbolismos. Como consequência o conflito dramático é inexistente, não há urgência. O segundo: o encanto que se quebra quando o "olhar feminino" é reforçado como oposição revanchista ao "olhar masculino" (inerentemente fetichista e insensível), transfigurando-se em manifesto, com elementos muito bem calculados para cativar audiências e identidades bem específicas.
O filme semeia a dúvida logo de início: Marianne atira-se ao mar para recuperar uma pintura e nenhum dos homens no barco a ajuda. Que indiferentes! Após isso, toda presença masculina é erradicada do filme e Marianne desembarca numa ilha misteriosamente povoada só por mulheres. O século era 18, mas o espírito feminista não poderia ser mais 2019: "só homens pintam, somos silenciadas", "meu suvaco é cabeludo, vou esfregar essa droga aqui nele", "sou filha de aristocrata, mas ajudo a empregada a fazer um aborto e acho o momento lindo, vou celebrar numa pintura"; "vamos ali entoar cânticos em uníssono na calada da noite e celebrar nossa sororidade". A cena do aborto é enfiada de forma tão gratuita e perversa que o filme arrefece naquele instante.
Céline Sciamma é uma boa diretora: "Lírios d'água" e "Tomboy" são bons filmes e trazem um importante olhar feminino sobre seus temas. É uma pena que tenha fracassado neste que tinha tudo para ser sua obra-prima.
A Hora do Amor
3.4 16"A Hora do Amor": a breguice do título em português devia ter servido como aviso, um presságio.
Bergman, você é um gênio e eu te amo de joelhos, mas que fraquejada, hein? De longe o filme menos inspirado do diretor sueco, estranhamente falado em Inglês e com uma sucessão de péssimas escolhas que vão da edição e câmera atípicas à chocante banalidade da trama de paixão/traição, coroada com diálogos sofríveis, uma inexplicável falta de desenvolvimento dos personagens e um desfecho nada menos que horroroso.
Uma esposa e dona de casa adúltera sem apreço algum pelas consequências de sua aventurazinha extraconjugal (vulgo: quenga); um amante débil, irritantemente atormentado pela auto-aversão — manifestada em seus surtos repentinos de bipolaridade – e que cuja perfidia é inteiramente intragável (aka boy lixo); e um marido que labuta o dia inteiro para bancar uma mulher safada dentro de casa (o velho cuckold ou, no bom português, corno manso). Todos batalhando para decidir quem é o mais detestável ou menos patético.
Coitados da Bibi Anderssen (que ao menos está belíssima – nunca vi seios tão bonitos na vida?) e do subaproveitado Max Von Sydow, cujo brilhantismo, embora bem-vindo, de nada serviu. Sofri pra entender como o Bergman deu ok pra isso. Tampouco – e felizmente – me pareceu uma possível crítica ao núcleo familiar upper-middle-class (isso é fetiche?) ou retrato da incomunicabilidade matrimonial. Tire tudo de bom que há em "La Belle de Jour" (Bunuel) ou "Damage" (Malle) e o resultado é um filme ruim do Woody Allen.
"The Touch", ao menos, tem algumas cenas bonitas (obrigado Elliott Gould barbudo e de robe) e pode ser entendido como um ensaio frustrado para o seu magnum opus "Scener ur ett äktenskap", que viria dois anos depois.
Onibaba: A Mulher Demônio
4.1 117Século 14, Japão, duas mulheres. As adversidades da guerra as levam a um caminho de decadência moral: matam soldados para trocar seus bens por comida; até que a chegada de um homem abala completamente essa dinâmica e o filme assuma uma tensão tanto psicológica quanto sexual, algo audacioso para o Japão conservador dos anos 60. Aliás, há algo sensual — poético, até — não somente nos corpos nus mostrados aqui em um naturalismo assombroso, mas também na forma como o Kaneto Shindô capta o balançar dos juncos e o som fantasmagórico do vento à noite. Com o apelo de terror psicológico, a trama é muito mais sobre solidão, desespero e moralismo sexual. Um classicão nipônico que foi muito além das minhas expectativas.
Os Vivos e os Mortos
3.8 29"Cai a neve. Cai debilmente no universo, cai debilmente como o final inevitável, sobre todos os vivos e os mortos."
Há algo sobre a iminência da morte, para além de sua inexorável inevitabilidade, que parece aguçar no âmago de certos artistas um outro olhar, uma percepção mais elevada e contemplativa sobre a nossa presença aqui na Terra. É como se apenas antevendo a hora derradeira, tornando-se dolorosamente mais conscientes da própria natureza, esses artistas pudessem canalizar esse profundo senso de mortalidade e efemeridade em suas criações. Basta olhar para as últimas obras de artistas como Leonard Cohen (You Want It Darker), David Bowie (Blackstar) ou Charles Bukowski (The Captain Is Out to Lunch and the Sailors Have Taken Over the Ship), para citar alguns: é manifesto o caráter introspectivo que povoa essas obras, deixadas para nós como verdadeiras elegias e, felizmente, testemunhos de seus respectivos talentos.
"Melhor passar bravamente para o outro mundo enquanto ainda se possui toda a paixão do que ir apagando-se pouco a pouco, murchando com a idade."
É o que ocorre em "The Dead", adaptação da obra de James Joyce e o último filme do lendário diretor estadunidense John Huston, que deixou no cânone obras-primas como "The Treasure of the Sierra Madre" e "The Maltese Falcon". Tendo dirigido "The Dead" em sua cadeira de rodas, Huston acabou morrendo poucos meses antes de ver o seu lançamento; e, por partir de um lugar que lhe era tão íntimo (Irlanda, terra que decidiu passar o resto de sua vida), o filme vai-nos preparando para um tom cada vez mais intimista e elegíaco.
Praticamente toda a trama se passa em um lar irlandês, em 1904, na Noite de Reis, quando membros de uma família aristocrática reúnem-se para um tradicional jantar, onde dançam, bebem, leem poesia, discutem música erudita e relembram, calorosamente, dos bons momentos de outrora – o que acaba desencadeando uma melancólica nostalgia. Afinal, não há algo terrivelmente melancólico em festas de família? Todas aquelas expectativas, memórias, arrependimentos, aflições e lembretes de nossas próprias falibilidades reunidos em um só lugar?
Embora nada extraordinário pareça acontecer do ponto de vista enredístico, o filme parte dessa melancolia que foi construída aos poucos e consegue capturar essas emoções muito bem – algumas bem pungentes. E são elas que irão nos levar a um dos desfechos mais bonitos do cinema, onde o diretor parece revitalizar na tela toda a carga poética da obra de onde advém. A solidão narrada pelo protagonista, desencadeada por uma trágica memória de sua esposa, é um daqueles raros momentos no cinema quando o testemunho da beleza faz com que lágrimas vertam dos nossos olhos. Lindo demais.
"Um a um, todos nos convertemos em sombras."
Uma Vida Oculta
3.9 154Um consolo vindo em boa hora para esse ano tão desesperançoso: com A Hidden Life, Terrence Malick acerta a mão e faz um filme daqueles que a gente fica prostado quando os créditos sobem — em reverência —como foi com Tree of Life e Days of Heaven.
Aqui, finalmente, o diretor consegue conciliar o que parecia inconciliável depois dos sofríveis Knight of Cups e Song to Song: seu estilo cada vez mais idiossincrático e autoconsciente de filmar com um arco narrativo que ofereça uma dramaticidade efetiva.
Não é fácil fazer um filme profundamente religioso, isento de proselitismo e com forte apelo emocional em um mundo cada vez mais secular. Na história do cinema, poucos (Dreyer, Bresson, Bergman...) conseguiram essa proeza e com tanta coerência. Quando "Silentium" do Arvo Pärt irrompe em um momento de teste de fé do protagonista, ou quando a bondade é manifestada por pequenos gestos, o coração, não sendo de pedra, ficou em frangalhos.
O mundo precisa desse filme.
Entrevista Com o Vampiro
4.1 2,2K Assista AgoraNa primeira vez que vi «Bram's Stoker Dracula», julguei o filme esquecível, mas ao revê-lo ano passado apaixonei-me e fiquei fascinado com sua verve artística. Com o mesmo propósito, decidi rever o clássico «Interview with The Vampire», do Neil Jordan, que considerava uma obra-prima (assim como o magnífico «The Crying Game», do diretor, visto recentemente), e a sensação foi — para minha triste surpresa — a inversa: o filme é terrivelmente monótono, a direção é insípida, a trama é covarde e não assume o homoerotismo entre os protagonistas, mascarando-se numa sugestão que NÃO funciona em nenhum momento. Portanto, não há sensualidade! E o pior, o personagem do Brad Pitt não tem nuance alguma, se leva a sério demais escondendo-se numa melancolia e pesar existenciais que não convencem, além de ficar choramingando durante toda a eternidade por conta de uma dualidade moral bobinha: ele é um vampiro bom demais para matar um ser humano. Assim, falha onde Herzog acerta em seu «Nosferatu»: a solidão e o deslocamento que afligem o vampiro do Kinski são pungentes — poéticos, até — e causam empatia. Aqui, as emoções parecem vazias e o filme carece de uma força motriz que o governe. No fim, parece uma ópera de mau gosto que não deu muito certo.
A Religiosa Portuguesa
4.0 18"Tudo que amares, amar-te-á a ti."
Green faz os filmes mais lindos do mundo.
Violência Gratuita
3.8 739 Assista AgoraÉ possível separar um filme da intenção do seu diretor? Há essa ideia defendida pelo Nick Cave, em sua carta aberta ao Morrissey: uma obra, ao deixar as mãos do artista, entra num terreno mais abstrato, ficando seu significado a critério daquele que a aprecia, sob sua ótica infinitamente particular. Defendo, de forma ferrenha, tal ideia.
Passei anos sem ver «Funny Games», do Haneke, temendo que fosse mais "torture porn" (que não me agrada) que "home invasion" (que adoro). Tal receio dava-se não pelo uso da violência em si, pois acho fascinante seu uso no cinema como mecanismo para entendermos a psiquê e o comportamento humanos, mas porque sou fresco e prefiro o sobrenatural à carnificina. De todo modo, nunca li nada a respeito e por essa mesma razão não sabia quais eram as intenções do diretor.
Eis que vejo o filme e fico aterrorizado com o quão brilhante, eficaz e provocativo ele é: sua escolha de não mostrar as cenas brutais, apenas os atos pré e pós-violência, deixou muito espaço para o espectador, que, inclusive, torna-se cúmplice de tudo aquilo. Cenas letárgicas, beirando ao sadismo, que são sua marca, nunca funcionaram tão bem em seu potencial angustiante de tensão psicológica. Termino o filme irradiado de satisfação, arrependido de não o ter feito antes.
Aí decido ler a respeito e vejo os comentários em uníssono louvando a proposta do filme em criticar o uso e a banalização da violência na mídia, forçando-nos a uma autocrítica sobre o que nós consumimos, visão esta reiterada pelo próprio Haneke em entrevistas. A partir daí, veio um incômodo: tudo que o Haneke queria era mandar um sermão retrógrado pra cacete? E todo mundo aplaudiu isso?
Surge a frustração: não foi assim que vi a obra. A entendi como uma provocação sobre o nosso interesse mórbido por atos de brutalidade, inclusive no cotidiano. São pulsões que desconhecemos, por isso nos fascinam. Eis, aí, meu conflito. Achar um filme brilhante pelo que ele foi como experiência subjetiva, mas condená-lo pelas intenções do seu idealizador. Talvez o seu pecado tenha não ter sido dirigido pelo Paul Verhoeven, que parece ter mais habilidade para explorar esse terreno tão pantanoso sem a pedagogia do Haneke.
Toda Uma Noite
3.9 7 Assista AgoraSenti-me cooptado por este filme como qualquer notívago quando chega o manto da noite. Genial como embora tenhamos apenas fragmentos dos personagens e das situações, a linha narrativa flua tão bem, tão serenamente e com tanta espontaneidade. Talvez porque a noite seja, de fato, a protagonista, e Chantal Akerman saiba explorá-la tão bem nos gestos e nos espaços. É a noite quem testemunha todos em seus momentos de grande vulnerabilidade lucífuga: encontros, desencontros, reencontros, o ímpeto do toque, do abraço, a dor da partida, a saudade que não tem fim, o anseio, a espera, as noites em claro, portas que se abrem, que se fecham, cômodos vazios, a ausência que martela, olhar o amante enquanto ele dorme percebendo que o amor se foi há muito tempo ou que nunca esteve tão vivo, a chuva caindo, as ruas desertas e mal iluminadas, solidão, desolação, acalento, dançar num bar vazio; a alvorada. "Toute une nuit" é como ler um bom livro de contos numa noite chuvosa, ouvindo o barulho dos gatos revirando as latas de lixo e uma sirene ecoando no infinito distante. Lindo e singelo demais isso aqui.
Gerry
3.3 92Que porrada, hein? Tô tentando levantar ainda.
Esse é um momento em que muita gente que não está habituada a ficar só — e ver uma certa paz nisso tudo — se vê obrigada a ter que lidar com a própria companhia e consciência. Um processo terrível pra muitos, especialmente àqueles que projetam a paz interior e satisfação em algum elemento exterior a si. Será que têm medo desse encontro consigo mesmos?
Ver um filme tão sensorial e contemplativo em um momento de "introspecção à fórceps" deve ter feito toda a diferença pra mim. Será que estou mais emocional e vulnerável por causa do isolamento? Ou o Gus Van Sant é mesmo um gênio?
Bom, não tenho muito apreço por filmes que romantizam o "larguei tudo e pus o pé na estrada, sem rumo e sem direção". Acho que essa é uma jornada muito mais dolorosa e cheia de perrengues que glamurosa. Há quem o faça em busca de respostas, significado, para libertar-se, curar feridas, autoconhecer-se ou qualquer outra abobrinha que inventamos pra nos fazer sentir melhor consigo mesmos. A resposta pode ser libertadora, a verdade universal, ou um silêncio retumbante. Talvez seja isso que o Gus Van Sant queira dizer.
Ninguém sabe bem o que acontece em Gerry (2002), apenas que dois amigos, ambos chamados Gerry, decidem caminhar pela região desértica da Califórnia conhecida como Vale da Morte, em busca de não sei do quê. O filme acompanha essa peregrinação sem nos dar quaisquer indícios do que seus personagens erráticos buscam. Nunca saberemos.
Os longos planos sequência dos atores indo do nada a lugar algum remetem à Tsai Ming-Liang e seus personagens solitários e alienados na selva de pedra. Mas aqui a natureza primal também é indiferente às nossas angústias e anseios — e me parece ser essa a razão da tristeza lancinante evocada na sequência circular inesquecível do Casey Affleck ao som de Arvo Part. Onde está a resposta? No outro? Na natureza? Na religião? Em nós mesmos?
Um filme duramente criticado por tomar caminhos arriscados, por sua subjetividade exacerbada, mas que pra mim funcionou de forma arrebatadora. 10/10.
Drácula (1ª Temporada)
3.1 419Eu vivo reclamando que as produções britânicas estão obcecadas com Black Mirror e ficam tentando emular sua modernidade o tempo inteiro, com resultados cada vez mais capengas. Aí vem a Netflix e comprova isso da pior maneira possível com esse terceiro episódio absolutamente horroroso, que ofusca fatalmente os dois primeiros, o que é inadmissível e revoltante. Eu estava prestes a recomendar a série para amigos: atmosfera gótica convincente, um Drácula charmoso e irônico que não deveu muito ao Gary Oldman, diálogos deliciosamente sarcásticos e blasfêmicos, violência gráfica corajosa e gore na medida. Aí vem os diretores e simplesmente sepultam a série. Bram Stoker deve estar se revirando com essa tentativa desastrosa de dar uma roupagem nova a estória, como se isso não já tivesse sido feito antes. Até a brilhante sacada de trazer Dr. Van Helsing em uma personagem feminina tão original foi ofuscada com o Drácula usando... Tinder e dizendo "See you, later". Personagens sem aprofundamento algum enfiados na trama, falando em slut-shaming e direitos sociais... Já não basta o feminismo radical de Sabrina? Quem porra escreveu esse episódio tão lamentável? Primeira grande decepção do ano.
A Eternidade e Um Dia
4.2 66“Vejo-o sorrir, mas você está triste. Quer que lhe traga um pouco de palavras?”, diz o menino Albanês a um combalido e solitário Bruno Ganz, no papel de Alexander, um poeta doente que decide recapitular sua vida no leito de morte.
Um filme com cenas tão belas, que quando me pego pensando nelas, os olhos põem-se a marejar – feito este que o grego Theo Angelopoulos já havia alcançado com Paisagem na Neblina, sua obra-prima. Eternidade e Um Dia é o tipo de filme que inevitavelmente eleva o nosso nível de exigência sobre cinema, porque fico refletindo como alguém por trás das câmeras consegue articular momentos visuais tão bonitos. Aqui, tanto o lendário Ganz, como o ator mirim, dão uma nota emocional muito forte ao filme. Este, um refugiado órfão; aquele, sem pátria. Um vive com a promessa do futuro em sua terra natal, o outro carrega nos ombros o peso do não pertencimento a lugar algum. Ambos estrangeiros de si mesmos, repletos de medos, vagueiam pelo filme em busca de algo, resgatando um ao outro.
O filme tem muito de Morangos Silvestres, do Bergman. Na iminência da morte, inauditos, arrependidos e sozinhos, ambos protagonistas refletem sobre o passado e o caráter irremediável do tempo, o que poderia despencar num fatalismo autoindulgente e piegas, evitado pela inquestionável habilidade diretiva dos seus corifeus.
“Meu único pesar, Anna... é não ter terminado nada. Deixei tudo como um rascunho, espalhando palavras lá e aqui.”. Como não lembrar de Elliott Smith? “Ninguém partiu seu coração, você mesmo o fez, porque nunca termina aquilo que começou”.
Mas talvez um dos maiores trunfos do Angelopoulos é como ele consegue costurar a narrativa tão bem, num perfeito fluxo de memórias onde os escombros do passado se misturam e se fundem com os do presente. Com um olhar albatroziano dos espaços por onde seus personagens peregrinam, sempre os vemos em planos abertos, andando rumo ao desconhecido. As transições são igualmente brilhantes. Em uma cena, todas as pessoas vestem preto e caminham, indiferentes, na orla à beira-mar num dia cinza. Alexander caminha, pesaroso, e de repente estamos em um barco, numa tarde ensolarada, onde todos vestem branco e sorriem, exceto ele, que ainda está de preto. Estamos dentro de uma lembrança: o “um dia” do título, preso na eternidade de todos os outros dias.
Na cena mais bonita do filme, Alexandre e o menino têm pouco tempo juntos e decidem vagar de ônibus pela madrugada, para descer no mesmo lugar de onde saíram. O que lhes sucede nesse efêmero passeio é um consolo para a alma. O que mais esperar de um filme cuja poesia nunca arrefece, mas só encandece? Arroubos e gratidão.
Amor Entre os Juncos
3.1 96 Assista AgoraEsse filme foi ruim ao ponto de me enfurecer.
Gostaria de dar um soco em todo mundo comparando esse filme água de chuchu a God’s Own Country ou Weekend. E, francamente, só tenho a lamentar porque o filme tinha muito potencial: 1. Zona rural finlandesa. 2. Cabana de madeira. 3. Faz-tudo barbudo-peludo-sírio. 4: Tensão sexual. Mas as atuações são horrorosas, a iluminação é malfeita, os diálogos insípidos e os dois personagens são bastante desinteressantes e chatos, especialmente o loiro – pretensioso, antipático e que maltrata o pai ao invés de aproveitar a experiência no mato para tentar alguma conexão com ele. O filme poderia ter mergulhado mais na relação entre eles, mas preferiu negligenciar e reduzir o patriarca a um estereótipo de xenófobo. Sem mencionar que tudo acontece muito rápido, então, quando aconteceu, não me impressionou.
Cheguei à conclusão de que esse tipo de filme mais íntimo e contemplativo funciona melhor com pouco ou nenhum diálogo (Gradiente Luminoso, Havaí, A Colheita); portanto, se você quiser enfiar algumas falas, certifique-se de ser muito bom nisso porque, se não for, você vai matar a experiência. Eu não quero ouvir sobre pegações no Grindr, teses sobre sexismo e “performance” de gênero (revirando os olhos) em um filme ambientado no meio da porra da floresta escandinava. Obrigado.
Os Cavalos de Fogo
4.1 36 Assista AgoraO equivalente cinematográfico a Dead Can Dance. Êxtase define o lirismo trágico desse filme. Eu nunca imaginei que A Cor da Romã seria destronado, mas Sombras dos Ancestrais Esquecidos me deixou em um estado de transe com sua verve poética e sua narrativa não convencional. Não apenas um deleite visual, com suas escolhas inusitadas de câmera, cores e texturas, mas também uma obra-prima musical: os cantos parecem emanar da Terra e do núcleo profundo de seus habitantes. Eu te amo, Parajanov.