O potencial conceitual que “Paul” possui pouco produz boas piadas, bons personagens ou uma boa história, sendo levemente engraçado e divertido apenas por alguns aspectos isolados de seu roteiro e da eficiente direção de Greg Mottola, além de seu ato final que apresenta algumas boas surpresas, mas que tampouco é capaz de ajudar por completo um filme em que se falta muita solidez e inspiração. Prestando diversas referências a histórias ficcionais sobre alienígenas, bem como os preceitos mitológicos construídos envolta de suas figuras, o roteiro de “Paul” recorre a este artifício não apenas para incrementar o caráter nerd de seus protagonistas, mas para também evocar algumas inesperadas e impagáveis alusões - como a participação de Sigourney Weaver, interpretando uma mulher robusta assim como fizera em “Alien”, surgindo como uma referência clara ao seu filme e sua personagem; além da divertida cena que por meio de um flashback nos revela o alienígena Paul dando ideias para Steven Spielberg conceber seu aclamado “E.T.”. Porém, o roteiro de “Paul” não consegue se sustentar o tempo todo com suas aspirações referenciais, e assim recorre a muitas referências óbvias e manufaturadas, que brincam com o senso-comum sobre a mitologia dos aliens da exata forma como poderíamos imaginar ao já entendermos o conceito do longa. Além disso, é incômodo e no mínimo desinpirado as recorrentes piadas fáceis envolvendo palavrões, ervas e o fato dos protagonistas parecerem gays. Outra grande deficiência que o roteiro do filme revela ao longo do caminho fica por conta do desenvolvimento de seus personagens, investindo sempre nos trâmites narrativos mais convenientes para eles, os ajustando conforme a trama antevê e acabando por artificializá-los e nunca buscar neles a profundidade necessária para uma melhor exposição de suas personalidades - o que os deixa todos desinteressantes. Em determinada circunstância, os poderes especiais de Paul mudam completamente a personalidade religiosa de Ruth, surgindo no momento como uma piada interessante, mas soando posteriormente apenas como uma maneira fácil de se livrar do problema de ter uma personagem religiosa confrontando as ideias dos amigos nerds e seu companheiro alienígena - e algo semelhante acontece no final do longa, quando o momento dramático em que Graeme leva um tiro é completamente empalidecido devido ao nosso conhecimento de que Paul, com seus poderes, pode curá-lo sem muitas dificuldades (e já conhecendo a falta de imaginação e obviedade narrativa do longa, a previsão de que tudo ali ficaria bem foi ainda mais reforçada). Alguns personagens, no entanto, se salvam de serem desinteressantes; é o caso do agente interpretado por Jason Bateman, um oficial ridiculamente canastrão que ainda assim demonstra comportamentos bastante hilários e particulares, bem como a dupla de agentes servis que o acompanha e que revela uma igualmente engraçada interpretação de Bill Hader. E se os personagens principais, Graeme, Clive, Paul e Ruth ainda oferecem alguns momentos divertidos e engraçados, não é errado imaginar que isso se deva aos ótimos Simon Pegg, Nick Frost, Kristen Wigg e - no caso de Paul - à dublagem de Seth Rogen juntamente com o desenho de produção de seu personagem, que apesar de ainda pecar por não parecer completamente orgânico em tela, não compromete a interação do elenco em carne e osso com sua figura. Apostando em um ato final empolgante, ainda que convencional, “Paul” desperta a atenção pelas cenas de ação concebidas por Greg Mottola, desempenhando uma direção competente e eficaz durante todo o filme e especialmente no fim dele. Ainda surgindo com reviravoltas agradáveis em um desfecho que só peca pela dramatização frágil em um momento, “Paul” é convencional até o seu fim, e sequer consegue aproveitar sua condição satírica para amenizar os clichês narrativos, porém ainda tem seus pequenos e isolados méritos, que entretanto não são suficientes para proporcionar algo inteiramente satisfatório.
“Zizek!”, o documentário, opera-se estritamente em função de seu protagonista, o filósofo moderno Slavoj Zizek, uma figura relativamente popular e de absoluta excentricidade - não apenas por suas ideias e elucubrações intermináveis, mas pela combinação delas com seus tiques e seu verdadeiro eu, aquele que ele é, ao contrário do que representa. Talvez o maior mérito do documentário seja o de intrometer na vida pessoal do filósofo ao mesmo tempo em que dedica partes de seu tempo para absorver o que Zizek tem para falar diretamente para a câmera ou para seu público presente nas diversas palestras que ministra ao redor do mundo. Essa invasão proposta pelo filme é naturalmente curiosa; um filósofo, geralmente encoberto por suas ideologias e filosofias, é quase que invisível no sentido do íntimo, do pessoal, do cotidiano. Assim, conhecer o modesto apartamento de Zizek, seus bens pessoais, seu dia-a-dia e até mesmo seu pequeno filho, revela-se como um interessantíssimo material de exploração e exposição. Só é uma pena que o documentário “Zizek!”, com sua total ausência de narrativa e completa inclinação às divagações filosóficas e sistêmicas de seu personagem principal, jamais se preocupa em estabelecer uma trama coesa, ainda que coerente no sentido de apresentar as ideias do filósofo Slavoj. Mas o escopo do documentário, embora claro, não é executado com organização, tampouco montado com raciocínio, e, portanto, os recortes da vida de Zizek são remendados de forma arbitrária e desconexa, comprometendo a apreciação narrativa do longa, que como disse, é inexistente. Logo, o interesse e envolvimento do espectador com este documentário depende essencialmente de sua apreciação e/ou interesse por seu protagonista e/ou as ideias que abrange. De uma imperativa eloquência, acompanhada por uma retórica enganosamente prolixa (enganosa por, apesar de complexa, conseguir fazer sentido) e por um sotaque truncado e cacofônico, além da coleção de tiques e a postura hiperativa, Slavoj Zizek recebe da diretora uma quantidade grande de closes a fim de salientar sua agitação. Também interessante é a forma como o documentário, embora (propositalmente) egocentricamente centrado em Zizek, consegue expor, sem pudores ou regalias, o filósofo no meio cotidiano e como lida – e pensa – sobre, por exemplo, fãs, ou como costumar criar e conviver com seu filho. Dessa forma, podemos testemunhar a confissão de seu ódio incondicional pelas abordagens públicas que sofre de seus fãs (compartilhado pelo filósofo pouco antes – e ratificado após – autografar o livro de uma fã que o abordara) e como leva seu filho ao McDonald’s para deixá-lo feliz ou ainda porque cultiva um pôster de Stalin bem na entrada de seu apartamento apenas para espantar as pessoas que lá o visitam. Fascinante por sua mistura de proposições lacanianas com a teoria marxista para compor a essência de seu pensamento intelectual, Slavoj Zizek é um filósofo a ser cultivado, apesar de, particularmente, não concordar com tudo o que ele diz (ou nem ousar contestar ideias que dele provêm e que sequer tenho bagagem para argumentar). E se há algo que “Zizek!” nos faz imaginar, é como o adentro, a exposição, o intrometimento na vida de um filósofo poderia resultar em trabalhos mais complexos e virtuosos. Infelizmente, este documentário da diretora Astra Taylor (que também aparece durante o filme - que inclusive abarca alguns recortes de “making of” para compor sua “narrativa”, o que o torna ainda menos coeso e demasiadamente despojado), apenas serve como introdução ao filósofo e intelectual Slavoj Zizek, e não como um estudo aprofundado ou organizado de sua pessoa e suas ideias. Em “The Pervert's Guide to Cinema”, outro documentário protagonizado por Zizek, o filósofo, comandado por outra diretora, se apresenta da mesma forma eloquente que aqui, mas tendo o cinema como assunto principal e ideias mais bem definidas e apresentadas em cima deste tema - exatamente o que faltou para “Zizek!” ser um documentário mais do que interessante; um documentário realmente bom e produtivo.
Os contornos humorísticos que “Hall Pass” logo estabelece em sua narrativa são típicos e capciosos. Típicos pois aqui somos apresentados ao que costumeiramente nos é oferecido pelas comédias americanas cujos roteiros brincam com temas como as observações e percalços matrimoniais, os fetiches e o sexismo masculino e, cá e lá, as situações escatológicas - tudo isso sem rejeitar o comumente pano de fundo moral que é enrustido pelas piadas e brota quando é conveniente para a sensibilização dos personagens. E finalmente, os contornos humorísticos de “Hall Pass” são capciosos pois problematizam o funcionamento das piadas - que raramente saem do lugar-comum e geralmente são, por suas próprias naturezas, forçadas e de gosto duvidoso - e as induz ao fracasso. Porém, é sempre importante ressaltar que nada no humor é uma regra, e portanto nunca será o conteúdo que necessariamente levará o espectador ao riso, mas sim o modo como este conteúdo é manejado e conduzido até o efeito da piada - o que, no caso deste filme dos irmãos Farrelly, se torna justamente o problema e principal agente do insucesso do longa. Há pontualmente no roteiro de “Hall Pass”, entretanto, algumas cenas que acolhem um humor bem sucedido, mas estas são suprimidas pelo roteiro acentuadamente previsível que coíbe tanto o êxito da maioria das piadas quanto o desenvolvimento de seus personagens, já que em absolutamente todas as cenas ocorre uma espécie de inversão de situação: se um personagem toma uma atitude convicta, ele certamente será mostrado como equivocado; se um personagem se dá bem, ele inevitavelmente se dará mal logo após; se os personagens comem bolinhos de maconha, eles, sem dúvida, não se safarão dos problemas que isso pode os causar. Quando há uma pausa para o personagem pensar no que faz, talvez até de uma forma emotiva, pode-se saber que o humor virá logo em seguida para quebrar o clima da cena e desconjuntar o que o personagem tinha dito. Dessa forma, podemos sempre, sem exceções, esperar por um insucesso dos personagens ou um equívoco deles diante de situações em que as coisas parecem dar certo, tornando a experiência do filme demasiadamente previsível. E se não bastasse essa falha viciosa e sistemática do roteiro, como podemos vislumbrar uma fuga da previsibilidade quando a moral e o clichê típico da trama permeiam o filme de tal forma que quando o personagem de Owen Wilson se envolve com a simpática garota do café, não conseguimos depositar olhares crédulos no casal, já sabendo, ao invés, que no final ele muito provavelmente irá repensar no seu relacionamento e voltar contente e determinado para os braços de sua mulher? Não há, perceptivelmente, um arrisque dos roteiristas, uma tendência para reviravoltas que não soem apenas como situações passageiras para que no final tudo termine exatamente como imaginamos que terminaria. Ainda se revelando altamente desinspirado ao criar personagens secundários (o amigo gordo que só pensa em fazer suas necessidades é clichê, ao passo que o personagem de Richard Jenkins, um velho despojado e manhoso com as mulheres, não só é clichê como também artificial), “Hall Pass” ainda se safa com a boa e natural interpretação de Owen Wilson (Rick), embora não obtenha o mesmo êxito com Jason Sudeikis (Fred), cujo personagem é posto como equivalente ao de Wilson, porém passa longe de ser tão bom quanto o mesmo, comprometendo a performance de Sudeikis e se revelando como mais um pecado do filme, que apesar de querer igualar os dois personagens (embora dedique muito mais tempo para introduzir o personagem de Wilson - o que também é um erro), sempre se vê melhor servido com Rick do que com Fred. Depois de muito prenunciada, a previsibilidade acaba por dominar o filme ao seu fim (sem antes deixar de apostar em um ato final exagerado e comum que eleva as ações dos personagens para níveis catastróficos), com seu desfecho típico e moral que acaba por atestar a tremenda falta de ousadia dos irmãos nessa comédia que já assistimos antes, mas que fora repetida aqui com atores diferentes e uma historinha levemente diferenciada, porém igualmente e quase inteiramente sem graça.
Em “Rio” nós presenciamos uma Rio de Janeira encantadora, colorida, intensamente regada de práticas esportivas, pessoas em praias, músicas e carnaval - basicamente tudo o que a cidade tem de verdadeiramente maravilhosa, porém acentuada convenientemente para as óticas de uma animação cuja proposta é, acima de tudo, divertir. Por outro lado, “Rio” também não se esconde completamente por trás do glamour das tão exaltadas qualidades da cidade e faz questão de incluir em sua história pequenas passagens na favela - ao demonstrar pela superfície como o local é diferente das entusiásticas praias, do corcovado e afins -, além de ter como vilões de sua trama uma quadrilha que contrabandeia aves. Ainda que apresente um grande número de discrepâncias em relação ao que é realmente a cidade do Rio de Janeiro, o roteiro de “Rio” o faz com temperança, não soando desrespeitoso, tampouco ridículo. E mesmo quando somos apresentados a momentos aparentemente embaraçosos e mal-sugestivos, como quando macacos arremedam os ladrões de turistas ao roubarem seus pertences e quando brasileiros falam inglês fluente, é fácil indultá-los, uma vez que os personagens bilíngues surgem como uma alternativa (preguiçosa, sim, mas vá lá...) para o enredo fluir sem ter de se preocupar com traduções, e os macacos são divertidos e representam de uma maneira inocente o que realmente acontece no Rio de Janeiro - e, francamente, não caberia ao longa de Carlos Saldanha perfazer comentários sociais apropriados, portanto, as meras sugestões espirituosas do diretor acabam funcionando na medida certa. E talvez seja por isso que em circunstâncias onde o diretor tenta criar algum tipo de drama com a situação de um pobre garoto da favela (inclusive revelando a desnecessária desconfiança de um dos personagens para com o menino para ressaltar seu ponto), o filme incomode tanto; além de ser piegas e demasiadamente óbvio, o personagem do garoto é tão mal desenvolvido que vê-lo ao final do filme em certa cena junto dos personagens Túlio e Linda chega a ser banal e ridículo. O balanço da caracterização da história (que usa dos elementos de cena característicos da cultura brasileira e do Rio de Janeiro como interessantes formas de desenvolver sua trama), no entanto, acaba por ser positivo no fim das contas. Só não é positiva a história do longa em si, que carece de bons personagens, reviravoltas e até de humor (embora o filme não tente ser engraçado o tempo todo, ele peca em muitas de suas piadas, enquanto noutras acerta, mas sem tirar mais do que um simples riso do espectador). A narrativa de “Rio” segue uma linha convencional, e seus personagens nunca conquistam empatia o suficiente para cativarem ou nos fazer importar com suas questões. Na mesma marcha anda a trilha instrumental de John Powell, que figura por entre os toques de ação e melodrama sem transpor o padrão de filmes aventurescos. Já as canções do longa surgem sempre divertidas para compor a atmosfera de determinadas sequências (incluindo passagens musicais aqui e acolá; sempre boas em si, mas pouco marcantes e relevantes para o desenvolvimento da história), misturando toques conhecidos da bossa nova e do carnaval com letras originais em inglês. Se aliado às músicas e revelando-se como o verdadeiro mérito do filme está a fotografia e o desenho de produção, que ajudam a compor o deslumbrante e adulador visual do longa, abrilhantando o cenário do Rio de Janeiro tanto durante o dia quanto durante a noite, seja na favela, na praia, no meio urbano ou na floresta. Basicamente, “Rio” é um filme que fica aquém do que propõe. Embora esbanje competência visual, pouco se importa em construir melhores personagens - que sendo aves ou humanos nunca se mostram como figuras fortes e de personalidade - ou uma história desafiadora, original e de momentos dramáticos e cômicos mais refinados. É, ao contrário de muitas animações atuais, cuja emoção e apuro visual andam juntos, um filme que funciona totalmente envolta de uma cidade apenas para tirar dela os mais pertinentes destaques sonoros e visuais e compor um passatempo de diversão vazia, porém minimamente lúdico.
Qualquer um pode dizer que a personagem de Bess era louca. Mas o retrato desta complexa personagem feito por Lars von Trier questiona a todo o tempo sua sanidade, levando-nos a pensar que ao invés de ser um fruto de sua natureza psicológica, é na verdade um produto de seu meio profundamente e rigorosamente religioso. E é por isso que, no exato fim do filme, quando sinos surgem no céu, em uma cena completamente fantasiosa, von Trier não apenas dá um salto absoluto e repentino para fora de seu terreno natural e realístico, como também coloca em dúvida a integridade do retrato de sua protagonista (e, eu diria, quase põe a perder, se é que suas intenções tenham sido mesmo as que aparentavam) - e ainda que, em primeira instância, essa última cena surja como um momento de transgressão ousada e inesperada (e de aparente simbolismo), ela não apresenta, entretanto, dignidade para com o restante deste excelente filme que “Breaking the Waves” é. A abordagem cinematográfica de von Trier, se restringindo a câmera constantemente na mão e a uma fotografia que confere um tom de vídeo amador ao filme, adere uma crueza e objetividade profunda à narrativa, beneficiando o longa em diversos momentos onde a intensificação e falta de pudor da trama necessitam ser evocados. Já a narrativa do filme, que se divide em capítulos intitulados, funciona de maneira orgânica ao trabalhar com o título-tema sem jamais se revelar estruturalmente cansativo ou arrastado. Pelo contrário: a trama de “Breaking the Waves” toma o crescente sufoco de Bess por seu marido invalido e a necessidade de ajudá-lo como princípio para ritmar a narrativa e desenvolver a agonia e tensão nela presentes. Bess, quando casa-se com Jan, ainda é uma moça retraída cuja rígida influência religiosa de seu meio contribuiu para seu estado psicológico irreparável. Assim, amando Jan de forma incondicional e obsessiva, Bass entra em um estado de quase depressão quando este parte para trabalhar em uma plataforma de petróleo, e piora ainda mais quando Jan sofre um acidente de trabalho que o deixa sem nenhum movimento corporal. A protagonista conversa com Deus inventando a fala do “todo-poderoso”, pronunciando o que ele diz e recebendo suas próprias palavras como verdades divinas - o que ressalta que ela possui consciência tanto de seus desejos e receios “pecadores” quanto da burocracia e perniciosidade divina. Mas Bess é também devota do amor de seu marido, e quando este pensa de uma forma radicalmente racional, mandando-a ir atrás de outros homens pra se satisfazer sexualmente, Bess leva isso ao pé da letra e fundamenta-se nos poderes divinos para assim evitar a morte de seu marido ao se sacrificar cada vez mais por ele. É óbvio que a insanidade de Bess chega a espantar, sua atitude de voltar ao barco onde anteriormente quase fora violentada demonstra um estado psicológico muito além de influências negativas (portanto, realmente disfuncional), porém as repreensões acerca de suas ações para salvar Jan corroboram seu declínio. E assim, até o momento de sua morte, Lars von Trier concebe um drama denso e impressionante. Quando Jan volta a andar depois da tragédia, isso não passa de uma ironia dramática, como se Bass de fato tivesse razão por traz de tudo o que fez. E como se seu sacrifício realmente tivesse recebido um auxílio divino. No final, após Jan furtar o corpo de Bess para dar a ela um funeral mais digno (e eventualmente se despedir dela), é acordado por seu amigo para ver os sinos mágicos tocando no céu, como se estivessem reverenciando o sacrifício de Bess, “Breaking the Waves” ignora o que pautava e perfaz uma conclusão simbólica e fantasiosa, infelizmente enfraquecendo o realismo de seu drama e a excelente construção da protagonista Bess, como se desse razão a todo o miserável e infeliz sofrimento que a personagem enfrentou para salvar seu amado (embora o sinal de Deus tenha sido favorável a este sacrifício, ao contrário do que os “verdadeiros” homens de Deus acreditavam), ou apenas tentasse causar uma desnecessária e provocante reação no espectador. Todavia, mesmo que a intenção de von Trier com este final seja entendível, porém repreensível, “Breaking the Waves” ainda se garante por sua completude, sendo, sem dúvida, um longa-metragem excepcional.
O que se pode tirar de um filme como “Country Strong”? Particularmente, acho difícil tirar algo de sua história. Este longa protagonizado por Gwyneth Paltrow pode ser sumariamente definido como um romance onde quatro personagens se envolvem em um quadrado amoroso mal resolvido. Mas não seria “Country Strong” um retrato sobre a fama? Sobre uma figura da música country? Um superficial - e até convencional -, sim. E é basicamente isso que o filme nos oferece. É verdade que a narrativa do filme não se entrega a caminhos claramente óbvios, mas tampouco surpreendentes, já que seu roteiro nunca se dispõe a explorar o que seria pertinente e interessante, deixando toda sua trama e seus personagens inertes na superfície. Gwyneth Paltrow, encarnando uma cantora de country de grande sucesso, porém atualmente em baixa devido à perda de seu bebê em um show em Dallas, consequência de seu alcoolismo (o que a levou para a reabilitação), faz um trabalho competente, mas não tem a oportunidade de surpreender, já que sua personagem, Kelly, jamais atravessa o arquétipo da estrela em crise, e quando não age como uma estrela instável e por vezes irritante, tem seus momentos mais dramáticos e “profundos” quando se envolve com falas sobre amor, sucesso; quando se mostrar incapaz de executar uma performance durante um show lotado; ou quando canta para um garotinho, seu fã, com leucemia. Ou seja: nada que denote algum esforço dos roteiristas para dramatizar Kelly além do convencional e do superficial. Parte desta falta de esforço e aprofundamento dos roteiristas também reflete em outros personagens. Suas fraquezas nunca são exploradas com seriedade, embora todas surjam em determinados momentos, porém desaparecem ao não serem mais revisitadas, ou “resolvidas” de maneiras... Bem, apenas serem resolvidas de alguma forma. A personagem de Leighton Meester, por exemplo, se apresenta no início da trama para um público consideravelmente pequeno, em um bar qualquer, e não consegue desempenhar sua música, sendo consumida pelo medo, que logo passa quando, em uma cena bastante típica, o personagem boa pinta de Garrett Hedlund resolve subir ao palco e ajudá-la a vencer seu medo. Logo depois disso, a cantora em ascensão já consegue enfrentar uma platéia gigantesca e executar uma competente performance, sendo rapidamente considerada pela imprensa uma das promessas da música country. Semelhante irregularidade na escrita dos personagens acontece quando Kelly, ao ter uma recaída repentina causada por um presente provocativo que recebe e que a faz lembrar de seu bebê perdido, rapidamente aparece consumindo álcool - algo que é feito sem muito alarde, considerando o destaque dado anteriormente ao fato dela estar capacitada para deixar a reabilitação e sóbria, e que tampouco compele os demais personagens a tomarem atitudes sobre isso; eles, especialmente seu marido, James, apenas acumpliciam sua volta ao álcool para manterem viva sua turnê altamente esperada por seus fãs. E não é uma surpresa que as atitudes de seu marido, que se revelam sempre em prol de sua relação com Kelly, mesmo sabendo de sua infidelidade conjugal e instabilidade emocional, também não são devidamente exploradas - o que seria de grande pertinência, já que isso permitiria com que o filme estudasse mais os interesses por traz da persistência e conformismo de James. (Afinal, ele fazia tudo isso porque amava Kelly ou porque simplesmente não poderia abrir mão de uma estrela que o gerava lucros?). Dispondo de praticamente toda sua narrativa para trabalhar em cima do quadrado amoroso que rapidamente se forma na trama, “Country Strong” nunca consegue decolar; ficamos a maior parte da projeção tentando descobrir o que se passa na cabeça do personagem de Hedlund e de quem ele gosta, afinal - o que também desvia toda a atenção principal do filme para outros personagens que não a de Paltrow. O amor e o sucesso são trazidos à tona sempre que é conveniente, e o filme se encerra com um clímax forçadamente trágico - e esperado - que definitivamente deixa o amor como resposta de tudo; sem, no entanto, se empenhar em maiores meditações sobre ele ou sobre a fama, ou sobre como os dois não podem viver no mesmo lugar (palavras de Kelly). E é por isso que, mais uma vez, cabe a pergunta: o que se pode tirar de um filme como “Country Strong”?
“This Film is Not Yet Rated” é um filme necessário. É um filme que a indústria cinematográfica precisa no sentido de revelar, denunciar e protestar contra um sistema tão ridículo e prejudicial à liberdade artística e de expressão chamada de MPAA, a entidade responsável por censurar tudo o que é produzido em Hollywood no âmbito cinematográfico. “This Film is Not Yet Rated” ainda é um documentário de espírito irônico e jocoso, se revelando apropriado ao seu risível alvo. Mas, infelizmente, “This Film is Not Yet Rated” é também um longa que apesar de importante, acaba se passando por desnecessário ao criar uma narrativa irregular que se desconcentra do assunto principal apenas para estabelecer eventos envolventes, porém dispensáveis, e incrementar o humor do filme. Buscando equilibrar a narrativa habitual de um documentário - com os depoimentos e arquivos de foto e vídeo surgindo em tela - com uma investigação particular contratada pelo próprio diretor do filme, Kirby Dick, o longa acaba sendo, na maior parte de seu tempo, um divertido documentário sobre o ofício de uma investigadora particular. O problema é que ao gastar tanto tempo exibindo os processos da investigação (e até explorado a vida da investigadora contratada, o que era completamente desnecessário), o documentário desvia completamente sua atenção do foco essencial - e por mais lúdico que seja acompanhar o serviço de investigação particular, este não passa de uma distração, já que o assunto principal do filme é rebaixado para segundo plano, dando lugar a uma espécie de jornalismo gonzo de humor escrachado (algo que jamais se acerta dentro da narrativa do filme). E é importante ressaltar que o propósito da investigação, embora tenha de fato ajudado a revelar pertinentes informações que são exploradas no final do filme, nunca deixa de soar infantil, sendo que as perseguições aos membros da comissão julgadora da MPAA mais parecem com atos de provocação do que de pesquisa jornalística. Mas ainda assim há de ser relevada a completa falta de noção do diretor ao inserir as investigações particulares no filme, pois ainda que não fosse necessário exibi-las, estas resultaram em valiosas informações que deram um toque final precioso ao documentário. E desmerecer a importância deste documentário é quase um crime. Seu caráter questionador é fundamental para expor as discrepâncias e podres de uma organização moralista, tendenciosa e preconceituosa como a MPAA. É de se espantar, por exemplo, com a clara discriminação da entidade ao homossexualismo, quando se mostra propensa a classificar filmes com relações homossexuais com mais rigor do que os heterossexuais, como se o sexo gay (mais do que o heterossexual) fosse uma afronta aos “bons costumes” americanos e prejudicial às crianças. Aliás, as questões levantadas pelo filme em cima do sexo no cinema, que é o conteúdo principal para que um filme possa ganhar classificação máxima (e assim estar mais sujeito a um fracasso comercial), são interessantíssimas; permitindo que seus entrevistados possam questionar o porquê do sexo ser algo mais restrito do que a violência, e o porquê da violência crua e realista (que mostra as consequências reais do ato violento) serem mais rigidamente censuradas do que a violência branda, que expõe um forma de violência nem sempre condizente com a gravidade real do ato. Se menos tempo fosse perdido com as investigações, “This Film is Not Yet Rated” ainda poderia explorar mais seu assunto-tema; questões como o que fazer para melhorar o sistema de classificação ou se ele ao menos deveria existir seriam bem-vindas e relevantes, bem como a opinião de especialistas sobre as influências que os filmes causam na sociedade (sobretudo nas crianças), já que é um sub-tema que chega a ser levantado pelo filme, mas pouco aprofundado; e o consumo de drogas como elemento determinante para as duras censuras também deveria ser evocado com maiores reflexões. Mas apesar de ainda deixar a desejar em alguns pontos, é certo que as denúncias e ironias que este documentário pratica na direção da MPAA o classifica como um documentário “ainda não censurado”, porém definitivamente importante e indispensável para a busca da preservação da liberdade artística no cinema americano que é sorrateiramente repreendida por este câncer chamado MPAA.
Unindo uma simpatia absoluta de uma simples dona de casa, Elvira (uma ótima e natural Ana Lúcia Torre), e seu amigo liquidificador (um excelente Selton Mello na dublagem), uma máquina pensante e entendida por sua amiga, com o bizarro e inesperado crime cometido pelos dois, “Reflexões de um Liquidificar” se revela um filme despretensioso que surpreende pela forma como conduz sua narrativa, como lida com o surreal de sua trama e como ainda assim concede espaço para uma máquina fazer interessantes elucubrações sobre a vida humana, sendo esta máquina, o liquidificador, uma ótica quase pura e inocente de tudo o que acontece com nós. Investindo na aparência inocente e insuspeita de sua protagonista, a trama não hesita em jogar indícios da origem do desaparecimento do marido de Elvira, logo relatado pela mesma no início do longa, embora jamais soe denunciador a ponto de nos entregar de uma vez o acontecido. É por isso que, quando chega ao momento de nos abismar com a revelação, o filme provoca um efeito de eficácia plena, e surte ainda mais reação quando nos damos conta de tudo o que antes fora sinalizado em direção à culpa de Dona Elvira e seu cúmplice liquidificador. O momento de revelação, aliás, além de proporcionar uma sequência que choca e conquista por seu espírito perversamente feliz, surge em um instante estratégico, pouco antes da investigação conduzida pelo hilário investigador Fuinha (um homem caricato, de desconfiança excessiva e capcioso - atributos que o faz engraçado) chegar perto de desvendar o crime cometido por Dona Elvira. Neste momento da narrativa, passamos a nos importar mais com o futuro de Dona Elvira e do liquidificador, já que agora, não menos apegados ao carisma da dupla e cientes de que eles são, de fato, os autores da morte do sujeito, a intensificação da investigação que Fuinha faz com tamanha desconfiança passa a finalmente fazer sentido e ameaçar muito mais, criando um clima eficiente de apreensão. E por falar em clima, é pertinente ressaltar o quão interessante é a manipulação deste elemento durante a trama; que jamais deixa de manifestar um tom particular de jocosidade e cinismo (sempre presente em sua trilha-sonora), não impedindo porém que o filme tramite com eficácia por entre um leve drama e momentos pontuais de tensão - além de sair-se bem sempre que se dispõe a trabalhar seus aspectos cômicos. Mas o que mais chama atenção em um filme intitulado de “Reflexões de um Liquidificador” é justamente o tal do liquidificador, que aqui possui uma vida que estende a simples imaginação (ou loucura) de sua protagonista, sendo peça fundamental para determinar os caminhos seguidos pela estória, apresentando certos comportamentos que não poderiam simplesmente se originar da mente da protagonista. A partir de hábeis tangenciamentos que nos contam de forma curiosa e fluida o passado do objeto com vida, “Reflexões de um Liquidificador” nos oferece um personagem único que é sabiamente escolhido para sumarizar a trama do filme ao seu final, quando em um desfecho enganosamente anticlimático, nos deixa com mais uma reflexão do liquidificador ao invés de continuar a desenvolver a possível conclusão que a história ainda poderia ter tido. Sua perspicaz observação sobre o ser humano, este que acabou intelectualmente se tornando, nos guia até as entrelinhas do filme ao dizer que, depois de desfrutar de toda essa consciência humana que adquiriu, é preferível, no fim das contas, tê-la e usufruí-la, uma vez que o pensamento é viciante e a intriga de paixão e medo é fascinante - explicando como a conduta expressa pelos personagens (como se assanhar pelos lados de um homem peludo ou de uma mulher mais sensível e que dá prazer; ou a simples entrega ao medo em consequência do maléfico troco para cima do marido traidor) é condizente com o conflito que é o homem; um homem cuja sorte que o espera, é um mistério, uma ameaça (como também diz o próprio liquidificador). Assim, o final do longa se livra da convenção de concluir seu enredo de forma típica (já que também é um filme de premissa bastante atípica), simbolizando de certa forma o misto de divergências que é o ser humano, apenas esperando pela intrigante e excitante sorte que o assaltará; uma espera que é essencial para que a experiência de se viver seja interessante.
Ditando sua narrativa a partir de uma cronologia levemente aparente, “Vinicius” ainda introduz conceitos expositivos interessantes durante suas duas horas de duração, com o fim de trabalhar da maneira mais fiel e contempladora a figura e extensa obra deste fabuloso artista. Como Vinicius de Moraes foi um homem de mais filosofia do que feitos, é natural que a narrativa deste documentário não tenha muitos fatos a pontuar na trajetória de vida do poeta, apenas o que pessoas intimamente ligadas a ele têm a dizer sobre como era, o que pensava, o que fazia e como fazia, revelando como se deu a cria de várias de suas importantes obras musicais e algumas poesias, que de uma forma interessante e eficaz, sucedendo suas devidas contextualizações, são entoadas e recitadas pelos atores (Camila Morgado, excelente e sensível; e Ricardo Blat, também bastante competente) e cantores convidados, que oferecem performances a altura das letras e lirismo das músicas de Moraes. Este recurso empregado durante a trama acaba funcionando como uma espécie de mini-show(s), e se mostra fundamental para tratar de um artista cuja filosofia, paixão e expressão viviam nas músicas e nos poemas que concebeu. Jamais monótonos ou burocratas, as interrupções surgem sempre de maneira compassada, permanecendo como parte de uma estrutura invariável do filme, que eventualmente alia os tradicionais depoimentos com seu resto; depoimentos que surgem para revelar e discorrer a pessoa Vinicius de Moraes, contando com analises pessoais sobre sua figura, feitas por pessoas que foram próximas a ele, e características curiosas de sua personalidade ímpar, às vezes confessadas de maneira divertida e bem-humorada nos depoimentos. Ressaltando a exaltação pela vida e pelo amor possuído por Vinicius e o cansaço adquirido por ele no fim de sua vida, o documentário de Miguel Faria Jr. não explora e nem cita com exatidão a causa de sua morte, apenas deixa a entender - para aqueles que não sabem - que fora vítima de sua vida boêmia; vida esta que segundo ele mesmo era preferível a ser feliz, uma vez que para buscar a felicidade - algo que Vinicius incansavelmente fazia, segundo cita Chico Buarque -, era preciso, primeiramente, viver. Mas por outro lado, a boemia da vida de Vinicius e seu jeito despojado era o que o mantinha vívido e ávido pela vida, felicidade e paixões, algo que o poeta nunca deixou de ter e buscar, tendo se casado nove vezes. Admirável, Vinicius é tratado e reverenciado aqui de uma forma que, imagino, seja a exata forma com que ele mesmo iria querer ser abordado. Os documentos em vídeo com Moraes são resgatados e espalhados pela trama (sempre de maneira coesa com o contexto discutido) nos revelando momentos espirituosos e sublimes do artista, tais como suas hilárias conversas com Tom Jobim (parceiro importante na vida de Vinicius e que também tem seu considerável espaço no filme) e sua interpretação da bela música “Canto de Ossanha” junto de Baden Powell (que aparece falando sobre Vinicius e os afro-sambas por meio de um antigo depoimento resgatado) e outras pessoas, no que parecia ser uma das “casas abertas” do poeta. Harmonizando seu refinado intelecto erudita com sua raiz popular e cultural, assim como harmonizava tão bem suas belas canções, Vinicius de Moraes foi um gênio no âmbito artístico e uma admirável figura no âmbito da vida, que se fundia com seu trabalho (um conceito que Vinicius parecia ter como algo muito menos pragmático) como se não houvesse distinção entre um e outro - e não deveria mesmo haver. Seu legado consiste em um amplo conjunto de perfeitas expressões sobre a busca e vivência do amor e sua indiscutível importância para a vida, que parece ter sido tão bem e sabiamente vivida pelo poeta. “Vinicius”, o filme, é essencial para se conhecer, lembrar, analisar, admirar e se deleitar com tudo o que Vinicius de Moraes fez e foi na vida. E que sua obra seja infinita enquanto dure. E certamente durará.
“The Pink Panther” é uma comédia pastelão que se revela cuidadosa ao nos entregar o cerne de seu humor, apostando quase que exclusivamente na destreza de Peter Sellers com a comédia física para isso. As trapalhadas do Inspetor Clouseau, uma vez que surgem em cena, nunca deixam de ser engraçadas, e se tornam cada vez mais esperadas. Mas esperar por elas é o que torna a experiência de se assistir o filme boa; esperar por um riso decorrido de uma porta que bate na cara do personagem, por exemplo, é saudável, é prazeroso; não pela surpresa em si, já que ela aqui é quase inexistente, mas pela maneira como suas balbúrdias serão recebidas pelos outros personagens - assim como a cena com o velhinho, próximo ao final do filme, tanto nos diz: um homem, não antes visto na história, surge para presenciar a confusão mor da trama, quando o Inspetor e seus companheiros emplacam uma perseguição maluca com o tio e sobrinho ladrões (um deles, o Fantasma). A presença e destaque dado para o velho homem ali é bastante significativa e determinante. A piada, uma versão grandiloquente de todo o humor físico e de mal-entendidos gerados durante a trama, funciona especialmente por saber colocar o espectador no papel do velhinho, fazendo com que imaginemos o que se passa na mente dele ao testemunhar logo de cara a culminação de toda a confusão do filme; uma perseguição onde falta, no mínimo, inteligência de seus envolvidos, e ainda seja protagonizada por homens vestidos de gorilas, um grupo de policiais risíveis em fantasias idem, e até uma zebra correndo no meio disso tudo. A sequência é longa e incrementa gargalhadas depois de gargalhadas, para só mais tarde dar seguimento à narrativa. Sendo a única figura engraçada por ações, personalidade e trejeitos, o Inspetor Clouseau conquista facilmente o espectador, e vê-lo perdendo toda a sua credibilidade (mas não seriedade), conferida por sua autoridade, diante das pessoas é outro ponto trabalhado pelo filme para que seu protagonista surja com sucesso. Quando a piada reside no simples fato do Inspetor se inclinar e derrubar o copo de leite que conseguira para a sua mulher, a graça vem porquanto voltamos nossa atenção para o elemento de expectativa da cena, quando o Inspetor, sem se revelar, observa com olhares suspeitos a passagem de Sir Charles. Quando falamos dos outros personagens, porém, “The Pink Panther” se mostra charmoso e envolvente ao invés de engraçado, sendo que nenhuma das outras figuras da história possuem um espírito bem humorado, mas definitivamente têm o poder de nos envolver no enredo policial do filme, tão bem engendrado e executado - e muito bem atuado por todos do elenco. Ao cruzarem o caminho do personagem de Peter Sellers, contudo, somos presenteados com cenas impagáveis em que o humor brota em sua melhor forma, como na extensa cena da suíte do Inspetor e de sua mulher, quando esta tenta manter, com muita dificuldade, seus três interesses amorosos distantes um do outro, mesmo estando todos no mesmo espaço. Com o icônico, cínico e provocativo tema musical composto por Henry Mancini surgindo pontualmente em tela, “The Pink Panther” ainda investe em um desfecho que só nos faz sentir mais por seu pobre protagonista, como se ao ostentar a pateticidade de sua figura, sem dar a ele um final propriamente feliz, mas que de alguma forma estúpida o traz satisfação, seu caráter pessoal que rendeu tantos momentos hilários possa permanecer intacto e conservado - até, pelo menos, a continuação de sua aventura, que viria no segundo filme.
A filosofia análoga embutida em "O Sétimo Selo" oferece um discurso direto, porém pormenorizado sobre a crença e a morte (para dizer em termos simplificados), resultando em uma produção de imagens impressivas, simbólicas, icônicas e imunes de qualquer indiferença reflexiva, mas que poderia, sim, ser um filme mais correto, centrado e especialmente mais consistente ao trabalhar com a irreverência que promove ao tratar de seu tema. A comicidade muitas vezes evocada por Ingmar Bergman não funciona muito bem; sua insistência em manipular o humor como parte inerente do tema não convence, ainda que surja em momentos pontuais como algo interessante e adequado, como na cena em que a descontraída apresentação cênica do casal do filme é interrompida por um grupo de flagelantes fundamentalistas - aqui, Ingmar Bergman invoca um contraste abrupto e impressionante, que fortalece o aspecto tétrico de sua trama. Além disso, os personagens, apesar de agradáveis, não desempenham a mesma profundidade dramática de Antonius Block, o principal; suas cenas jogando xadrez com a Morte e seus conflitos teológicos aparecem como as partes mais interessantes e pungentes do longa, ao contrário dos outros, que embora sejam personagens conceitualmente interessantes e até simpáticos, não apresentam tanta significância para a trama e soam bastante deslocados na narrativa (mas talvez seja o excesso de simbolismo que eles carregam, o que evidentemente os prejudica aqui). Mas se há algo que realmente mereça ser reconhecido em “O Sétimo Selo” é o poder de Bergman e seu fotógrafo Gunnar Fischer de criar cenas cuja poesia e lirismo - quando não inquietação - invadem a tela e provocam sensações imediatas no espectador. (A cena da dança em uma taverna; do sereno piquenique; dos já citados flagelantes e, é claro, da cena final, que é visualmente marcante, são exemplo de momentos em que a técnica e a temática desenvolvida pelo diretor se alinham e criam imagens isentas de depreciações). A avidez por conhecimento de Antonius, para encarar seu dilema, é de alguma forma tocante, por refletir mais uma vez o recorrente tema do silêncio de Deus que Bergman costuma comentar; sua dúvida sobre o existir daquele ser benevolente e divino vai de encontro com a certeza da existência da morte, aquela para o qual o destino leva todos os consumidos pela horrível praga e que curiosamente tem sua certeza aqui acentuada por de fato ser representada como um personagem - já Deus, permanece escondido, oculto, não se sabe onde. A mulher marcada para a morte sente o Diabo como alguns sentem Deus, e esta é levada para o fim da vida como se fosse a maior punição que pudesse sofrer, como se fosse definitivamente entregue para o inferno, para o Diabo por quem ela se identifica. A morte representa a dualidade, a ambiguidade, a incerteza para onde ela nos levará, e se a vida pode ser tão alegre, como mostrada em alguns momentos do filme, ela infelizmente tem um final trágico por si só, e ainda pior quando finalizada através de meios nada agradáveis. Portanto, é entendível como a morte, ao ser inevitavelmente associada ao pior e último estágio de nossas vidas, não dá a Antonius perspectivas positivas para poder “enxergar” aquela figura boa que possivelmente se encontra depois dela: Deus.
“Apenas o Fim” pode muito bem ser definido como uma produção de aspecto experimental e indie criado por um nerd que emula o formato dialogal de “Before the Sunrise/Before the Sunset” e emprega um personagem à la Woody Allen em sua história - tudo isso para conceber um romance sobre fim de relacionamento arraigado fortemente na cultura popular da geração atual. Toda essa mistura parece bastante típica para um cineasta jovem e afoito para construir algo simples, porém pessoal e de fácil identificação, o que consequentemente gera uma enorme empatia de seus espectadores por tudo o que ocorre no filme. E é, de fato, um longa familiar, de natural identificação e engraçado não por fazer humor, mas por compartilhar com o espectador o humor de seus personagens, que surge espontaneamente das conversas que têm um com o outro. Ou seja: é o tipo de filme em que não se ri dos personagens, mas com os personagens. Matheus Souza, o diretor, se revela muito bem sucedido ao criar um clima de aconchego e familiaridade, exceto pelo detalhe que corrói o personagem de Gregório Duvivier, e que torna tudo muito desconfortável (no bom sentido): a súbita decisão de sua namorada de abandoná-lo. Ora com movimentos de câmera que acompanham os personagens, ora com a câmera estática, apenas observando suas interações, Matheus aplica aqui uma abordagem eficaz e envolvente, mas que reflete seu próprio caráter experimental ao não apresentar coerência o tempo todo. Enquanto a câmera estática e distante geralmente surge para captar os momentos em que o casal é interrompido por alguém externo a eles ou quando estão afastados um do outro - sugerindo a quebra de suas intimidades -, a câmera na mão e sempre próxima aos personagens é geralmente usada para ressaltar suas intimidades e o quanto, por mais que a situação não seja das melhores, curtem ficar juntos, jogando conversa fora. No entanto, essa lógica não é mantida o tempo todo, preferindo optar por ângulos diferenciados e desafiadores, o que acaba quebrando um pouco do clima das cenas. E se Matheus evoca as lembranças dos personagens com o conveniente preto-e-branco, surgindo casualmente e aleatoriamente (apesar de fazerem sentido) durante a trama, ele também se mostra divertidamente sugestivo ao misteriosamente empregar o preto-e-branco em apenas uma das telas que se dividem quando seus personagens se separam brevemente, condizendo com suas personalidades e com o que é dito no final do filme. (Ele, em preto-e-branco, é expressado como uma lembrança de Ela, que chora naquele momento por provavelmente já imaginá-lo como o passado; enquanto Ela, ainda em colorido, é imaginada por ele como ainda parte do seu futuro, já que ainda não consiga acreditar que ela o deixará). É uma pena, no entanto, que ao aplicar o mesmo raciocínio visual no final do filme, Matheus se entregue a uma série de cenas que distorcem essa lógica e que perdem sua elegância, apenas para encerrar o filme, digamos, de uma forma mais “bacana”. O roteiro de “Apenas o Fim”, que se mostra completamente aberto ao improviso dos atores, não estabelece exatamente uma ideia, um objetivo narrativo além do de relatar dois personagens que não deixam de parecer personagens de filmes, mas que curiosamente refletem muitos personagens da vida real, seja pelos gostos e histórias comuns que compartilham, por suas posturas naturais ou simplesmente por sua história de amor, que acentua a importância das lembranças depois do (apenas) fim. As indiretas metalinguísticas do filme (que referenciam o próprio diretor Matheus Souza) são cabíveis ao universo dos personagens, mas parecem surgir aqui principalmente como lembretes ao próprio espectador, que absorve o contraste entre a realidade do filme e por vezes sua artificialidade - algo que os atores tomam para si algumas vezes, seja isso proposital ou não - para ser divertidamente convidado ao jogo entre o condizente com o real e o condizente com o cinematográfico. A história de “Apenas o Fim” pode não parecer muito consistente, a direção nem sempre perfeita, mas o filme, como um todo, brinca com o espectador e o abarca de forma eficiente a partir de sua proximidade cultural e a ternura que brota de seus protagonistas. É um pequeno bom filme que nunca deixa de ser interessante.
“The Roommate” tinha tudo para ser um bom thriller de horror. A premissa, envolvendo a psicopatia da colega de quarto da protagonista possui todos os elementos básicos para compor o que um terror deste gênero precisa. Mas o longa falha veemente em executar seus pontos essenciais, que qualificam o filme em uma embaraçosa besteira ao invés de um thriller barato porém eficiente. Minka Kelly, encarnando a protagonista Sara, demonstra um charme e carisma irretocáveis, mas sua personagem é absolutamente subestimada pelo roteiro precário, que aposta apenas na beleza e encanto da atriz para que nos importemos com ela; e de certa forma, até nos importamos, mas mais por nos imaginarmos em sua situação do que por ela mesma. Sara acaba sendo apenas uma peça, uma protagonista genérica para sofrer nas mãos de sua maligna e obsessiva colega de quarto, e quando ela corre risco de vida, não há porque temermos sua morte, já que tanto faz se ela continua viva ou não. Já a personagem de Leighton Meester, a colega de quarto Rebecca, surge como uma figura irritantemente ameaçadora exatamente por ser genérica, assim como Sara. Ainda assim, há uma preocupação em desenvolver sua personagem, que carrega um mistério consigo mesma, mas que rapidamente deixa de ser um enigma, passando a ser óbvio para o espectador o que se passa com ela. Dessa forma, com o mistério acabado, só podemos esperar por suas cada vez mais perversas ações. Em dado momento, porém, somos intrigados por seus comportamentos e aparições, que chegam a sugerir um pano de fundo sobrenatural para a história, mas que no final não passa mesmo da loucura da personagem. Ou seja: o despiste funciona até certo nível, mas para isso precisa soar inverossímil, barato e trapaceiro. Também não há como não ignorar a estereotipização dos personagens em “The Roommate”: enquanto Sara surge como uma típica jovem do interior que chega à cidade grande para estudar (assim como é comentado quando a própria se compara com a protagonista de “Devil Wears Prada” - uma semelhança que mesmo reconhecida, não convence), seu namorado vivido pelo boa pinta Cam Gigandet parece não entrar no personagem, sendo apenas ele mesmo com excesso de “mocinho esperto e bem humorado” em seus diálogos. Além deles, Rebecca é apresentada como uma louca clichê, que tem seu psicológico agravado ao ponto de não hesitar em matar ou afastar uma pessoa apenas para ter a exclusividade de sua amiga (mesmo que essa não hesitação caia em contradição quando Rebecca parece deixar o namorado de Sara vivo apenas porque sua presença é conveniente para o restante da trama) - e por mais indícios que o roteiro tente fornecer (como suas orelhas não furadas, seus desenhos, os eventos que ocorrem durante a estadia na casa de seus pais), sua figura nunca convence e seu problema psicológico nunca é explorado, ele apenas existe e serve como pretexto para conceber uma personagem ambígua e que causa ameaça para a protagonista e todos ao seu redor. “The Roommate”, infelizmente, ainda encontra espaço para dispor de diversas convenções de filmes de horror, como a trilha sonora, que é mal utilizada tanto quando tenta sair do comum e ser moderna, ao empregar músicas pops nas cenas, quanto quando emprega toques incidentais gritantes e genéricos, nos determinando os momentos de suspense e apreensão sem nenhuma sutileza. Podemos testemunhar também sequências e comportamentos de personagens tirados sem nenhuma alteração de outros filmes de terror (como as sequências na biblioteca e no banheiro nos dizem), além de um típico clímax que apela para uma culminação agitada dos eventos, soando clichê e ridículo demais. O final do filme ainda sugere um trauma (apesar de não parecer) da protagonista após todos os acontecimentos. Mas com um namorado daqueles ela provavelmente esquecerá de tudo o que aconteceu. Pelo menos é essa a impressão que fica quando chegamos aos créditos. Passageiro como um andarilho, este “The Roommate”.
Palavras como “estranho”, “curioso” e “peculiar” são perfeitamente apropriadas para uma definição sintetizada de “Attenberg”; são aquelas que rapidamente surgem em nossas cabeças durante e depois do filme. E realmente o filme é estranho, curioso e peculiar, mas isto não é necessariamente bom nem ruim, depende. Aqui, a direção da também roteirista Athina Rachel Tsangari se mostra hábil ao conceber tomadas frias, cruas e objetivas, que eficientemente traçam o arquétipo da relação entre seus três personagens principais - a garota de ingenuidade sexual, sua amiga promíscua e seu pai moribundo -, além de estabelecer um bom clima e abarcar o interesse do espectador com seus enquadramentos atenciosos e por vezes atípicos. Mas ainda que promova uma abordagem adequada e eficiente, a diretora tende a conceber cenas que não se justificam narrativamente, como toda uma sequência musical entoada por duas personagens, que, embora conceitualmente interessante e bem executada, parece ter sido realizada apenas pelo simples prazer lúdico da cineasta. O mesmo vale para as cenas em que as duas personagens, Marina e Bella, protagonizam uma série de dancinhas esquisitas, que não fazem absolutamente nenhum sentido contextual e que mesmo as olhando como apenas cenas avulsas com algum tipo de comentário, tampouco demonstram ter algum propósito além do aparente objetivo com a qual foram executadas: acentuar a esquisitice do longa. E é este o grande problema de “Attenberg”, os objetivos, que parecem enrustidos em demasia, chegando a não fazer sentido pleno quando meditamos sobre suas intenções. Da metade de seu segundo ato em diante, por exemplo, o filme entra em um laço de cenas que não deixam de sugerir, porém nunca concluir um pensamente. O filme se torna repetitivo, desconcentra-se do que antes dera atenção e conclui-se de uma maneira desafiadora para o espectador, que de alguma forma deve desvendar a metáfora incitada pelo final, mas que quando realmente refletida e considerada, acaba não justificando a falta de sentido narrativo que a roteirista Athina Rachel Tsangari atribui à história. Sugerindo uma série de associações entre o primitivo e o animalesco com os condicionamentos sexuais de sua protagonista - que apesar de concernir o sexo como inerente ao ser humano, tem dificuldades para manifestá-lo em si mesmo, chegando até a cogitar possuir uma espécie de assexualidade -, a diretora cria uma personagem instantaneamente interessante, mas que perde todo o sentido de sua idiossincrasia conforme dá andamento à trama, que se vira para o tema da morte (o pai de Marina está prestes a morrer) e deixa seus problemas sexuais de lado. O fato de pouco definir a maneira como a doutrinação de Marina a deixou daquela forma e como suas ações e complexos se relacionam com o quadro geral da trama, distanciam o comportamento da personagem do palpável e comprometem a aparente proposta do filme - a de criar um ensaio comportamental humano. Não há como considerar “Attenberg” um estudo de comportamento humano, pois qual o fundamento dos condicionamentos de Marina, afinal? Qual é o ponto que o filme quer firmar, afinal? Marina sente uma fascinação pelas condutas animais; foi repreensivamente educada por seu pai; vive em uma cidade uniforme e tudo isso a moldou - o que é posto de forma a nos impressionar e dizer algo, mas não há nenhum vínculo com o tangível, então, qual o sentido? No fim, Marina é apenas uma personagem estranha e arbitrária, em um filme narrativamente desconexo e confuso que falha ao não estabelecer uma conexão com o real. Apesar disso tudo, o ritmo de “Attenberg” é uma surpresa deveras agradável, e a junção do apático, do atípico e do terno mantém filme sempre fresco e conceitualmente interessante. Porém, passa longe de recompensar o espectador após assisti-lo, seja pelo falho desenvolvimento de sua história ou pelas inconsistentes reflexões que propõe gerar com ela.
Mesmo com tamanha profundidade, “Lilja 4-Ever” não deixa de tomar caminhos narrativos comuns; o tema de sua história logo entrega os próximos passos dela, e com exceção do ato final corajoso e intenso, o restante do filme é bem aquilo que podemos prever enquanto o assistimos. Mas considerando suas aspirações dramáticas, a reprodução sem muitas inovações do submundo da personagem Lilja é seca e bastante legítima às consequências que suas submissões podem acarretar. E nada mais adequado para retratar a decadência e miséria de uma adolescente com poucas chances na vida do que uma personagem como Lilja. Ao contrário do que podemos encontrar em filmes de temática semelhante, Lilja é uma figura fascinante não por, apesar de sua condição de vida precária e humilhante, ser inteligente, astuta e persistente, mas justamente pelo contrário de tudo isso. Lilja é uma adolescente cujo apoio materno fora insuficiente durante seu crescimento, e suas condições sociais tampouco a favoreceram para evoluir bem; sua indisposição para pelo menos acrescer intelectualmente é uma eventual causa do meio em que vivia, onde curtir com os jovens de sua idade sem nenhum senso de moderação parece muito mais divertido do que a aborrecedora escola. A garota Lilja se mantinha presa ao que fora feito dela e ao que a cercava, fazendo com que sua vontade de fugir, de sair daquele país, fosse o maior sonho a ser cultivado pela mesma. Portanto, a ingenuidade e ignorância inerentes em Lilja surgem como elementos absolutamente naturais da personagem - e o filme merece reconhecimento por manter tais características da protagonista intactas e salientes até o seu exato fim. A jovem Lilja também divide momentos de penúria e alegria passageira com um garoto, Volodya , que se torna um eventual amigo e companheiro, demonstrando que a desgraça compartilhada, apesar de fazê-la dupla, acaba sendo mais suportável. Assim, é interessante como quando Lilja deixa Volodya (em um ato que imediatamente nos remete ao da mãe da garota abandonando a mesma), este se entrega à morte como se ela fosse a maneira mais fácil e imediata de cessar a angústia que o corroia e que fora intensificada depois de perder a companheira com a qual enfrentava as dificuldades. Aliás, caminhos fáceis são percorridos por todos os personagens; na falta de comida, cheiram cola para inibir a fome; na falta de dinheiro para pagar as contas e poder comprar algum alimento, a prostituição surge como meio acessível e bem remunerado - e é por explorar os restritos caminhos e decisões tomados pelos personagens, que “Lilja 4-Ever” ao mesmo tempo em que nos apresenta o esperado, também nos apresenta o real. Satisfatoriamente, o ato final do longa assume uma postura ainda mais intensa; a armadilha que Lilja perigava cair, na mais pura e ingênua esperança de poder mudar de vida, foi confirmada, e o receio que as cenas provocam no espectador é tangível. Surpreendendo com enquadramentos que ressaltam a morbidez que Lilja passa a encarar em seu trabalho como prostituta na Suécia (os que focalizam, sob o ponto de vista da personagem, seus clientes durante o ato sexual), Lukas Moodysson aplica uma abordagem completamente apropriada ao seu filme, com a câmera na mão, sempre investindo em movimentos, a fim de transmitir a inquietação das situações e dos personagens e conferir realismo às imagens (o que também é obra da natural fotografia) - e com muita segurança, mantém os pés no chão e o realismo de seu filme até mesmo quando aposta em sequências não reais, sequências essas que desempenham um papel importantíssimo no final da trama, traçando com coerência, profundidade e emoção as últimas linhas da história da fascinante e real personagem que é Lilja e - por que não? - tantas outras como ela.
Retratando a vida de uma família setentista de aspirações politizadas e ideológicas, Lukas Moodysson cria com este “Tillsammans” (Bem-Vindos) um drama familiar que tem a capacidade de gerar múltiplas sensações, se mostrando bem sucedido tanto no humor pessoal que possui quanto no comovente drama, arraigado pelos valores e pelas inclinações políticas da geração que trata. A narrativa de “Tillsammans” se mostra interessante desde o seu princípio ao introduzir de forma eficiente e curiosa a dessemelhante para os dias atuais, mas casualmente cabível para a época, família que passamos a acompanhar pelo restante do filme. Curvando seus ideais para os valores socialistas e contraculturais, parecendo uma grande comunidade de hippies, a família do filme é formada pelas mais diversas figuras: a recém “transformada” em lésbica; o neurótico político que defende com afinco seus ideais; o casal que mantém um relacionamento aberto; uma mulher que acabara de deixar o marido; seus dois filhos pequenos e curiosos; e por fora, não constituindo o ambiente em que vivem, o próprio pai deles, um homem instável que sente a amargura por estar longe de seus filhos e esposa; entre outros. Com tantos personagens, Moodysson trata de conceder espaço para todos eles mostrarem quem realmente são, criando sub-tramas para cada um deles e as desenvolvendo de maneira eficiente e fluida. Lukas distribui as tramas dos personagens em espécies de segmentos, sempre revezando a atenção e voltando a eles, progredindo suas histórias com sensibilidade e eficácia (a sub-trama paralela do pai abandonado pela esposa e seus filhos jamais compromete o ritmo da narrativa, sendo ela a única que se passa fora da casa onde os demais personagens moram), e permitindo também com que a peculiaridade do ambiente familiar em que vivem frequentemente espaireça um humor espontâneo de apreciação inevitável.
Já o drama da família se intensifica de uma forma curiosa: prezando pela liberdade e pela vida em comunhão, constantemente expondo seus recém chegados membros (inclusive as crianças) ao liberalismo sexual e aos princípios tipicamente hippies que aspiram, como o vegetarianismo e a reclusão dos produtos de alienação capitalista (como a televisão, a coca-cola, etc.), os alicerces familiares dos personagens se desestabilizam quando são cada vez mais atraídos pelos tradicionais costumes de outras famílias, integrando os produtos e hábitos comumente mantidos por elas (como a própria televisão). E dessa forma, a esposa que abandonara o marido e se aproximara da lésbica liberal, se sente atentada pela persistência do marido em voltar para sua vida, da mesma forma que seu irmão, o que vivia em um relacionamento aberto com uma promíscua jovem, expulsa esta imediatamente de casa em uma cena que assusta pelo ímpeto impulsivo que o personagem tem - e que é estimulado pelo comportamento de sua própria irmã. Aos poucos, ainda que não inteiramente, esta deliciosa família regressa aos eixos da realidade, mas não deixando de ilustrar a vida em conjunto - possível justamente pela discordância e descompromisso que um possui pelo ideal do outro; pelo conformismo e inconformismo pelo meio social existindo juntos, de uma forma em que todos se sintam bem-vindos, e não pressionados por um convívio discordante de suas ideologias. Lukas Moodysson trama a história de cada personagem com precisão, e conclui sua narrativa com um plano terno, simpático e que resplandece a temática do filme; também elevando pertinentemente o volume de uma revigorante canção e integrando não só os personagens, como também o espectador ao mágico instante final de sua história que representa toda a satisfação que a louca vida em conjunto mostrada aqui proporciona.
Embora não se possa discutir com o fato de Zack Snyder criar aqui uma animação de gráfico apurado que vez ou outra invoca a atenção e admiração do espectador, é muito difícil dar créditos para "Legend of the Guardians", pois mesmo merecendo as poucas ressalvas positivas a respeito de seu visual, este se torna um componente mísero e praticamente insignificante do filme, já que ele nunca deixa de incomodar o espectador com seu roteiro medíocre, clichê, convencional e totalmente oposto, em questão de inventividade, ao seu visual. E mesmo quando se fala de visual, "Legend of the Guardian" é um filme de erros e acertos: o vicioso uso da câmera lenta (mais vicioso pelo excesso de uso na filmografia de Snyder, não neste filme particularmente) soa arbitrário demais e custa surgir em tela como um artifício eficiente e empolgante; o mesmo vale ser dito sobre a fotografia, que ao mesmo tempo em que cria cenas cujo contraste de cores impressiona (como quando o protagonista voa em meio ao fogo, realçado pela cor laranja, até adentrar nos realçados raios azuis), também opta pela obviedade visualística ao empregar em certa cena dois personagens mal intencionados discutindo um plano secreto enquanto seus semblantes são parcialmente cobertos pela sombra. Mas analisar o visual de "Legend of the Guardian" é quase um exercício sem sentido quando lembramos de seu roteiro, que coloca tudo no filme a perder. Além de uma trama convencional e vergonhosamente previsível, o roteiro do longa ainda conta com lemas e pensamentos pueris e batidos em excesso (pra não dizer ridículos em excesso). Coisas como "nós somos o que sonhamos" e "honra é mais uma palavra para 'fraqueza'" surgem como bordões maniqueístas risíveis e ainda mais ridículos por serem utilizados como verdadeiros motes para amarrar a temática do filme. “Legend of the Guardians” peca também no desenvolvimento dos personagens, que recebem uma introdução corrida e nunca chegam a conquistar a empatia do espectador, servindo como meras peças que parecem se comportar apenas de acordo com as necessidades da trama. (Além de jamais convencer ou dar razões o suficiente para o fato do irmão do protagonista atuar ao lado dos vilões, o roteiro passa por cima das dificuldades do personagem principal de forma completamente inorgânica e conveniente - como quando ele e sua companheira (ambos péssimos voadores até então) simplesmente saem voando com destreza ao terem de fugir de uma situação perigosa). Também nunca desenvolvendo e explorando sua mitologia com clareza ou um mínimo de brilho, fazendo da boba jornada fantasiosa dos personagens um completo desperdício do universo que os acerca, “Legend of the Guardians” não consegue nem ser bem sucedido nas poucas oportunidades que encontra para arrancar alguma risada do espectador (que são realmente poucas, é verdade, mas todas tão forçadas que rir é a última coisa que passa pela cabeça de quem assiste). Absolutamente dispensável por seus clichês, convenções narrativas, personagens destemperados, trilha sonora genérica e - o que destoa - o bom, porém nem tão espetacular visual, “Legend of the Guardians” passa incrivelmente longe do divertimento e significância que ao menos deseja ter.
"Fucking Amal" retrata um pedaço bastante íntimo da vida de jovens na exata fase da "crise de adolescência". E o filme firma a ideia de que uma típica crise de adolescência não deve ser encarada apenas como uma mudança natural e efêmera na personalidade de quem a tem, mas algo significante para o ser pro resto de sua vida, podendo até mesmo determinar princípios futuros ou até levar os jovens a terem trágicos destinos precocemente. Por entre estas visões, o diretor e roteirista Lukas Moodysson desenvolve um drama juvenil que ao mesmo tempo em que surpreende e comporta com fidelidade todos os elementos mais preocupantes e mórbidos dessa fase da vida, também abarca o espectador em um romance angustiante que, já diferencial pelas sexualidades controvérsias e oposições populares de duas garotas, ainda consegue ser belo e provocador sem apelar para os exageros. Aliando uma fotografia de textura granulada - conferindo um ar de filme caseiro - com a câmera sempre em mãos, o diretor Moodysson ainda lança mão de enquadramentos sempre estreitos, em um estilo de filmagem próximo ao do documental, reforçando assim a expressividade dos personagens e a verossimilhança de suas figuras, dos ambientes ao seus redores e dos acontecimentos que os atingem. Aliás, os acontecimentos de “Fucking Amal” são inteiramente palpáveis, reproduzindo a rotina e evocando os sentimentos de seus jovens personagens como realmente costumam ser na realidade; já a trama se desenvolve dentro de um espaço de tempo bastante curto (algo em torno de três, quatro dias), sempre se passando em ambientes fechados, condizendo com o que basicamente a vida dos jovens abrange e também ressaltando um dos assuntos levantados pelo filme (e que é de total influência para a maneira como os adolescentes aqui são): a sensação de claustrofobia social, sexual e territorial. O próprio título do filme, por sinal, reflete o ódio da garota Elin (e demais de sua idade) pela cidade em que vive, pelos sonhos repreendidos que obviamente se expandem para muito além de uma pacata e pequena localidade onde nada de interessante e excitante parece acontecer (além, é claro, das inúmeras festas frequentadas por adolescentes, que no final acabam sendo meras festas regadas de bebida, drogas e azaração. Ou seja: nada que satisfaça os ambiciosos sonhos adolescentes). Lukas Moodysson também é inteligente ao abordar com sutileza mas clareza a omissão sexual das garotas do filme, que com exceção das eventuais brincadeiras vindas dos colegas de escola, não sofrem de repreensões explicitas por suas naturezas sexuais, mas sim pelo receio em admitirem isso para os outros e até para elas mesmas (no caso de Elin). E mesmo assim, o diretor não deixa de comentar, ainda que breve, o preconceito e desconcerto que pessoas ainda têm sobre o assunto, mesmo quando dizem não o ter - como fica claro na cena em que a mãe de Agnes, demonstrando complacência pelo tema, explica para o filho mais novo o que é ser “lésbica”, para logo depois ficar claramente incerta diante da revelação de que sua própria filha é uma homossexual. Ainda desenvolvendo seus personagens coadjuvantes de forma eficaz e simples, não se limitando apenas às duas protagonistas, porém tampouco desviando a atenção delas, o diretor Lukas Moodysson demonstra com este “Fucking Anal” um olhar admirável e realista sobre uma geração e uma capacidade tremenda de manipular seus dramas e dar devida atenção às nuances inclusas neles, servindo ao filme não apenas para chocar, mas para nos expor a necessidade latente que qualquer jovem - e, talvez, qualquer ser humano, de qualquer idade - de se dispersar nas mais variadas formas. Afinal, muito do que há dentro de nós e além de onde vivemos pode ser muito mais interessante e gratificante do que o que comumente vivenciamos; reprimindo e limitando o que sentimos e o que podemos.
Encarnando um nerd de baixa auto-estima, inexperiente com relacionamentos amorosos (o filme nos apresenta apenas uma ex-namorada do personagem - que o deixara) e que leva uma vida longe do ideal que gostaria (aliás, nem sequer gostaria, pois nem os sonhos passam por sua cabeça), Jay Baruchel compõe um tipo real e amigável de protagonista. Seu personagem, Kirk, se beneficia como o principal desta comédia romântica sobretudo pela atuação de Baruchel, que se mostra extremamente à vontade no papel e espontâneo para explorar tiques e trajeitos nervosos que jamais parecem forçados. E é justamente por Jay e seu Kirk que She's Out of My League funciona nos níveis que propõe trabalhar: ele é casualmente engraçado quando investe nos desajustes de Kirk (a cena em que ele acidentalmente se passa por um garçom do restaurante onde estava é engraçadíssima), é envolvente com sua paranóica trama amorosa e por instantes até nos faz sonhar junto de seu protagonista, que pode ou pelo menos poderia se parecer com qualquer um de nós. Todavia, She's Out of My League não se mostra totalmente satisfatório em demais aspectos; a trama formulaica, por exemplo, não é evidente durante quase toda a primeira hora do filme - coberto pelos momentos mais engraçados e inusitados da história -, mas no momento em que os segmentos habituais de seu gênero passam a ser mais notáveis do que seu humor ou a história em si de seus personagens, sabemos que a diversão do filme está sendo sabotada pelas repetições narrativas que não deixam de ser empregadas aqui. É de suma importância - e de extrema justiça -, mais uma vez, ressaltar a atuação de Jay Baruchel no longa, sendo o personagem que interpreta uma figura comumente vista em comédias românticas modernas (aquelas que tratam do sujeito “nerd”), porém destoante pela composição vivaz de Baruchel que, no entanto, não esconde o senso de inferioridade que seu arquétipo possui (mas também não o denota a todo o instante e não o faz artificial); na verdade, Kirk é um rapaz que parece até curtir se auto-ironizar, talvez como forma de defesa ou até como forma de alivio por se considerar realmente inferior aos outros e, principalmente, às belas mulheres - e esse conjunto de características é um aspecto muito bem-vindo que o roteiro traz para que Baruchel possa trabalhar em cima. (Enfim, Kirk é nota cinco; já a bela personagem de Alice Eve, Molly, é definitivamente uma nota dez). Dito isso sobre Kirk e Baruchel é interessante notar que seus amigos surgem como figuras típicas, apoiando o humor que ronda o protagonista, porém ora surgem com boas piadas ora com piadas um pouco forçadas - e no final a proporção de erros/acertos é relativamente negativa, e durante vários momentos apenas torcemos para que Kirk possa sair logo de perto deles, ainda que seja compreensível a importância que têm para o personagem e para o desenrolar da história. O mesmo não pode ser dito dos personagens de sua família, no entanto, já que aparecem em pontuais momentos onde demonstram não só a falta de confiança e apoio moral que têm por Kirk, como também a capacidade que têm para constranger o rapaz diante de uma nova e “acima da média” namorada. O ato final de She’s Out of My League é certamente o que mais deixa a desejar, não só por realçar sua trama formulaica como também por deixá-la incrivelmente clichê e até mesmo exagerada (os acontecimentos apressados e forçados no aeroporto extrapolaram o bom-senso que a trama tinha até então). Mas é só surgir Baruchel em tela que se torna fácil indultar todas as falhas do longa por uns instantes e apreciarmos um final mais comédia romântica impossível. Jay Baruchel tem definitivamente um excelente olhar para o humor, e quando bem apoiado pelo roteiro, consegue arrancar muito de uma simples e ordinária comédia romântica como essa. Só é uma pena o filme que já tem muito dele não ter ainda mais.
A única maneira de realmente engolirmos a puerilidade do roteiro de “The Green Hornet” é encará-lo como uma paródia sobre uma dupla de heróis noturnos. Mas quem dera fosse tão simples encará-lo dessa forma, pois “The Green Hornet” pouco sabe se quer ser uma paródia (mas definitivamente quer ser engraçado) e pouco sabe se quer ser também um longa de ação eficiente (mas definitivamente quer apelar para a destruição massiva de seus sets de filmagens para assim causar alguma empolgação em quem assiste). Pode-se dizer que o filme de Michel Gondry quer ser os dois, mas infelizmente não cria boas ironias ou situações minimamente engraçadas (salvando-se algumas falas engraçadas aqui e ali) e assume uma trama esquemática que termina de cair no abismo quando nem ao menos consegue criar bons personagens para acompanharmos durante sua aventura. Temos no filme a companhia do milionário Britt como o Besouro Verde, um herói completamente estúpido e infantil; e por assim ser, Britt não é um personagem que oferece ao espectador um olhar engraçado sobre sua idiossincrasia em contraste com seu almejo em ser um herói, mas sim um profundo desgosto por nunca ser interessante e carismático - o que é um grande malfeito, já que Seth Rogen, seu interprete, possui um carisma natural inegável. E não só Britt é um péssimo protagonista, nulo em personalidade e complexidade, como também é prejudicado pela interpretação do próprio Rogen, que encara o seu tipo habitual, não trazendo nenhuma variedade para uma figura já ruim. Seth Rogen ainda lança mão de uma inexpressividade evidente nos momentos em que seu personagem deve sentir algum pesar e apenas sabe proferir os diálogos engraçados com um tom sem personalidade e infantil. Aliás, a infantilidade é regente neste longa, revelando ainda mais personagens desinteressantes, como o vilão canastrão encarnado por Christoph Waltz, que é ridículo em objetivos e ações; o mesmo vale para o companheiro do Besouro Verde, Kato, que apesar das várias facetas que possui, se entrega à estupidez junto de seu parceiro Britt e sai pelas ruas causando alvoroço como se não possuísse um mísero relance de inteligência. “The Green Hornet” ainda tem seus momentos satisfatórios quando concebe algumas cenas de combates visualmente impressivas e outras que acabam se tornando, eventualmente, engraçadas (como aquela em que Britt e Kato brigam na mansão do primeiro, destruindo tudo o que veem pela frente). Mas mesmo se saindo bem nessas pouquíssimas cenas, com que pretexto as temos? Pois “The Green Hornet” parece atropelar qualquer senso de bom desenvolvimento para ir direto ao que lhe interessa, especialmente em seu início, o que já expõe seu aspecto pueril. E para piorar, por trás disso tudo, o roteiro ainda nos faz aturar uma forma totalmente esquemática de avançar com sua narrativa, passando pelas gastas etapas como: o desentendimento entre os parceiros; o romance incrustado na história através da dispensável personagem de Cameron Diaz; a rendição do protagonista (efetuada em uma cena ridícula e forçada em que Britt se lembra/decifra as ações de seu pai - e que não funciona nem como uma piada); e, finalmente, o clímax cheio de ação, explosões, tiros e que aposta em cenas como a de um carro pela metade destruindo repartições no décimo andar de um edifício para provocar entusiasmo e excitação no espectador - entretanto, a aparência sem imaginação da trama e os risíveis comportamentos dos personagens impedem o nosso envolvimento com o clímax do filme e de extrairmos qualquer sensação dele. O diretor Michel Gondry acaba não devendo, mas pouco contribuindo com sua direção convencional para este “The Green Hornet”, e o roteiro de Seth Rogen e Evan Goldberg é um completo desastre, tanto em termos narrativos quanto em aspirações cômicas. O Besouro Verde não empolga, não traz graça, não traz interesse e passa batido com este longa metragem pouco apreciável.
O ritmo vagaroso empregado desde o início de "Año bisiesto" jamais denuncia a inquietação dramática que sua narrativa aos poucos passa a adquirir - o que não só surpreende em termos de direções diegéticas, como também nos revela um filme que, sendo já interessante e reflexivo desde o seu principio, se desenvolve para uma peça visceral e impressionante; um drama corajoso e que não se atém aos pudores para expor o drama de sua incrível protagonista. Utilizando-se de uma câmera sempre estática, que não induz absolutamente nenhum movimento, o diretor Michael Rowe apresenta uma lógica de direção adequada ao tom de seu filme, e elaborando enquadramentos estratégicos, permite com que seus personagens e cenas se acomodem com naturalidade diante da câmera para que possamos enxergar e entender tudo o que se passa na tela. Aliás, a naturalidade presente em "Año bisiesto" é digna de atenção: além da fotografia modesta, dispondo-se apenas da iluminação ambiente para compor suas cenas, a soberba e corajosa atuação da principal Monica del Carmen fortifica ainda mais a simplicidade do longa - e que também pode ser observada em seu humilde, comum e praticamente imutável cenário: o apartamento da protagonista Laura. Assim, trabalhando com enfoque em cima da rotina extremamente monótona de sua protagonista, o diretor traça de forma econômica e sutil a complexidade da protagonista, trazendo para a narrativa sua óbvia personalidade depressiva resultante de sua imperfeita vida amorosa, que ao invés de amor e relações seguras, são abastadas de sexo descartável com estranhos e fantasias eróticas perigosas. Para chegar a este ponto, o diretor Michael Rowe intensifica o ritmo da narrativa, gastando menos tempo com cada plano e exibindo de forma invariável o contraste do cotidiano vazio de Laura com seus frequentes encontros com um específico homem, que, diferente dos outros, se interessa pela moça e passa a realizar com ela experiências sexuais gradativas em termos de extremidades fisiológicas, envolvendo sadomasoquismo e seus mais perturbadores variantes - algo que ambos os personagens, especialmente Laura, parecem realizar a fim de expurgar suas profundas insatisfações com a vida, tendo aqueles únicos momentos de prazer como, embora arriscados, brevemente saciáveis às suas fantasias sexuais e falta de sucesso amorosos. Ainda apresentando como eixo do drama pessoal de Laura o fato de esta sentir imensamente a morte de seu pai, que no último dia do mês de fevereiro, há alguns anos atrás, viera a morrer, “Año bisiesto” eleva sua trama a um ponto de apreensão tão grande que chegamos a sentir um verdadeiro mal-estar pelos intentos psicológicos de Laura, além de um grande pesar pelo destino insano (porém ainda aplicável ao realismo do filme) que esta pode seguir. O final do filme, embora não solucione por completo a situação psicológica da protagonista, a puxa de volta para a sanidade através de duas causas pontuais, fazendo-nos reconhecer a admirável competência com que o diretor e roteirista Michael Rowe desenvolveu e encerrou este filme de abordagem comovente e difícil.
"Rubber" é um filme esperto, pois logo no início de sua projeção, cria um escudo envolto de si mesmo que não só tem o poder de defendê-lo das esperadas rejeições que seu argumento está sujeito a receber, como também de disparar uma arrogante metalinguagem na direção do espectador, insultando sua inteligência e se opondo às objeções vindas dele. Logo, o filme age o tempo inteiro sob um presunçoso modo, e criticá-lo automaticamente nos define como os estúpidos espectadores retratados na trama, e adorá-lo é o mais seguro e "inteligente" a ser feito. O longa, dirigido por Quentin Dupieux, propõe uma escapatória do cinema racional, e seu primeiro grande pecado reside em sua abertura: quebrando descaradamente a quarta parede cinematográfica, um personagem do filme fala diretamente para o espectador (nós e os que participam da história), explicando o propósito do filme e já se justificando por qualquer irracionalidade que possamos testemunhar ao longo de sua narrativa - o que falha duas vezes por: 1) subestimar a inteligência de quem assiste, como se precisassemos de uma explicação inserida na diegese do filme para que possamos perceber a proposta dele e apreciar (e indultar) o que este tem a nos oferecer; e 2) por usar exemplos de irracionalidade em famosos títulos do cinema completamente contestáveis (se a irracionalidade de “Rubber” pelo menos se comparasse aos exemplos de “falta de razão” encontrados em filmes como “E.T.” e “The Pianist”, eu certamente não estaria aqui julgando este detalhe). Em seguida, somos introduzidos ao que de mais dadaísta tem o filme: o pneu andante, de personalidade e matador; e é justamente focando-se nas peripécias do pneu que o filme oferece um valor lúdico, intrigante e até mesmo engraçado. A composição das cenas em que o pneu simplesmente rola e rola pelos terrenos do deserto e pela estrada, sempre contando com uma música de fundo debochada e intencionalmente extrovertida, é a única porção realmente apreciável de “Rubber”. É curioso como (ainda que tenda a repetir-se e burocratizar-se ao desenvolver o personagem do pneu) o diretor retrata suas naturezas e características - e o fato de este carregar certa semelhança com as naturezas humanas (impulsos, desejos, necessidades), porém ser obviamente limitado por sua forma física redonda e constituída por borracha, faz dele um personagem interessante e cativante (além, é claro, de bizarro, o que o deixa ainda melhor). Mas é uma pena, entretanto, que o filme nos lembre aos poucos que a irracionalidade é o ponto a ser pregado aqui, e assim insira características sobrenaturais ao pneu (desconsiderando a já sobrenatural origem do objeto), que possui poderes psicocinéticos e dessa forma explode a cabeça de suas vítimas (o que ainda é perdoável, visto que os poderes mentais surgem como uma alternativa para transformá-lo em uma ameaça à vida humana). Enquanto isso, a trama do filme não cansa de nos aborrecer com as sequências em que os espectadores contestam (e às vezes até explicam) o que vêm no filme - o que os ridiculariza ainda mais, com exceção de um bravo espectador que permanece até o final, mas que eventualmente tem sua cabeça explodida antes do filme acabar. Da metade até o seu fim, “Rubber” percorre um caminho ainda mais intragável: o pneu não é mais o centro das atenções; as situações metalinguísticas/auto-reflexivas/auto-indulgentes protagonizadas por outros personagens reforçam sua arrogância e ressaltam sua falta de lógica; é um diálogo com o espectador que cansa pela pretensão, pela insistência e pela ridiculez. Mas e se, na verdade, “Rubber” não passar de uma sátira ao excesso de razão hollywoodiano (como pode ser observado na última cena) ou até à mania de alguns artistas de rejeitá-la? Bom, eu digo que mesmo encarando “Rubber” como uma sátira, o filme falha, já que não é divertido e nem engraçado. E aí você me pergunta o porquê dele não ser divertido e engraçado. E aí eu respondo: por nenhuma razão. Dessa forma é tudo tão simples e incontestável, não?
Com exceção de algumas falhas, que parecem apenas cumprir o objetivo de abrir espaço para a trama se desenvolver (uma delas é o fato dos pais de Gabe e Rosemary estarem sempre ausentes de alguma forma), "Little Manhattan" é uma demonstração adorável, esporadicamente engraçada e genuinamente contemplativa do surgimento do amor entre um garoto e uma garota de dez e onze anos, respectivamente - um conceito que ainda soa fresco, justamente por se tratar de um casal tão jovem, mas que ainda assim perigava recair no "mais do mesmo" se não fosse a abordagem dinâmica e direta do roteiro. A narração do garoto Gabe e o ritmo aplicado na narrativa certamente beneficiam seus personagens e o desenrolar da trama; e por narrar, Gabe é quem proporciona o ponto de vista de seu gradativo apaixonamento por Rosemay. Todos os anseios, dúvidas e afobações são graciosamente abordados pelo garoto, e embora os dois pré-adolescentes se mostrem bem mais maduros do que de costume entre os jovens de suas idades, o filme permanece fiel às suas imaturidades amorosas e assim retrata o amor entre os dois de uma forma verdadeira. Já a garota Rosemay, apesar de ser uma personagem da história de seu amigo Gabe, jamais parece uma mera idealização do garoto - embora algumas sequências nunca deixem de exaltar a beleza da menina sob os olhos dele, o que é natural -, e exerce uma personalidade tão forte quanto a de Gabe, fazendo com que o espectador se simpatize por ambos os componentes desta comédia romântica. E não é apenas no pequeno casal que "Little Manhattan" manifesta seu romance: concebendo uma Nova York de atmosfera fulgurante, alegre e charmosa (tudo isso cabível para a imaginação de duas crianças), as locações respiram o conto que os garotos vivem - e ainda investe em divertidas sequências imaginárias do garoto Gabe, sem nunca extrapolar o bom senso visual. “Little Manhattan” é uma comédia romântica (mais romântica do que comédia) que vai direto ao ponto e apresenta um resultado final satisfatório, especialmente por não se entregar à ilusão do próprio tema e finalizar sua trama com uma reflexão espirituosa, não inteiramente feliz, mas bastante autêntica do danado do “primeiro amor”.
A insanidade que cresce na mente de Travis Bickle parte de uma natureza que todo cidadão ordinário talvez tenha: a solidão e o desejo de interferir ou contribuir de alguma forma para reverter a imoralidade e sujeira do meio em que vive - ou, simplesmente, fazer algo de valor para si mesmo. Explorando um personagem com este potencial, Martin Scorsese, juntamente com um excepcional Robert DeNiro, concebem um retrato conturbado do cidadão comum. Mas mais do que isso, suprem o anseio de revolução inconsciente do espectador que se simpatiza com a revolta de Travis - mesmo que ainda não admita isso (ou que ainda reprove a prática dela) -, e sente ao lado do personagem toda a angústia e agitação psicológica prestes a resultar em uma execução sanguinária. A trilha sonora de “Taxi Driver”, aliada às tomadas sempre concentradas no semblante de Travis, geram um tom de ameaça - mas ainda que saliente a quase todo o instante a podridão social de pontuais localidades de Nova York, a ameaça parece ser, curiosamente, oriunda do protagonista que acompanhamos, e não do mundo ao seu redor, pois vemos tudo através de seu olhar. É claro que, como o homem que adentra o táxi de Travis (que é interpretado pelo próprio Scorsese) apenas para esperar pelo momento em que assassinará a sua mulher, há a provocação do perigo iminente por todos os lados, colocando o personagem de DeNiro em um estado que compromete sua vida. Porém, as expressões e visões de DeNiro moldam um Travis que parece sempre nos prometer uma virada de jogo; um Travis mais forte do que os outros, ainda que reprimido - e dessa forma presenciamos a tensão crescer conforme a insanidade do personagem cresce. Seus atos, digamos, insanos, não parecem muito racionais, mas precisamente emocionais e morais, o que contradiz com suas próprias medidas para fazer alguma diferença. Ao final de “Taxi Driver”, nós testemunhamos um Travis alcunhado de herói pela sociedade, mas um herói imoral; um herói que compra armas ilegais e despeja balas em malfeitores para subverter o mal; um herói que, para o mundo real, é parte verdade, parte ficção (assim como é revelado em um diálogo entre Travis e a personagem Betsy). Ou seja: Travis é verdadeiro por representar um grande número de pessoas com sentimentos semelhantes ao dele, mas ficcional pelas formas erradas com que toma suas atitudes. Ele é uma contradição, e por pouco, executando cafetões ao invés de um candidato à presidência, Travis se consagra como herói, especialmente por sua postura bem mais ativa do que aquele que pretende consertar tudo por meios políticos - e o excelente fim do filme deste herói nos dá a oportunidade de sentir o mesmo prazer que o personagem obtém: a satisfação por uma diferença feita, principalmente, para si mesmo.
Paul: O Alien Fugitivo
3.4 758 Assista AgoraO potencial conceitual que “Paul” possui pouco produz boas piadas, bons personagens ou uma boa história, sendo levemente engraçado e divertido apenas por alguns aspectos isolados de seu roteiro e da eficiente direção de Greg Mottola, além de seu ato final que apresenta algumas boas surpresas, mas que tampouco é capaz de ajudar por completo um filme em que se falta muita solidez e inspiração. Prestando diversas referências a histórias ficcionais sobre alienígenas, bem como os preceitos mitológicos construídos envolta de suas figuras, o roteiro de “Paul” recorre a este artifício não apenas para incrementar o caráter nerd de seus protagonistas, mas para também evocar algumas inesperadas e impagáveis alusões - como a participação de Sigourney Weaver, interpretando uma mulher robusta assim como fizera em “Alien”, surgindo como uma referência clara ao seu filme e sua personagem; além da divertida cena que por meio de um flashback nos revela o alienígena Paul dando ideias para Steven Spielberg conceber seu aclamado “E.T.”. Porém, o roteiro de “Paul” não consegue se sustentar o tempo todo com suas aspirações referenciais, e assim recorre a muitas referências óbvias e manufaturadas, que brincam com o senso-comum sobre a mitologia dos aliens da exata forma como poderíamos imaginar ao já entendermos o conceito do longa. Além disso, é incômodo e no mínimo desinpirado as recorrentes piadas fáceis envolvendo palavrões, ervas e o fato dos protagonistas parecerem gays. Outra grande deficiência que o roteiro do filme revela ao longo do caminho fica por conta do desenvolvimento de seus personagens, investindo sempre nos trâmites narrativos mais convenientes para eles, os ajustando conforme a trama antevê e acabando por artificializá-los e nunca buscar neles a profundidade necessária para uma melhor exposição de suas personalidades - o que os deixa todos desinteressantes. Em determinada circunstância, os poderes especiais de Paul mudam completamente a personalidade religiosa de Ruth, surgindo no momento como uma piada interessante, mas soando posteriormente apenas como uma maneira fácil de se livrar do problema de ter uma personagem religiosa confrontando as ideias dos amigos nerds e seu companheiro alienígena - e algo semelhante acontece no final do longa, quando o momento dramático em que Graeme leva um tiro é completamente empalidecido devido ao nosso conhecimento de que Paul, com seus poderes, pode curá-lo sem muitas dificuldades (e já conhecendo a falta de imaginação e obviedade narrativa do longa, a previsão de que tudo ali ficaria bem foi ainda mais reforçada). Alguns personagens, no entanto, se salvam de serem desinteressantes; é o caso do agente interpretado por Jason Bateman, um oficial ridiculamente canastrão que ainda assim demonstra comportamentos bastante hilários e particulares, bem como a dupla de agentes servis que o acompanha e que revela uma igualmente engraçada interpretação de Bill Hader. E se os personagens principais, Graeme, Clive, Paul e Ruth ainda oferecem alguns momentos divertidos e engraçados, não é errado imaginar que isso se deva aos ótimos Simon Pegg, Nick Frost, Kristen Wigg e - no caso de Paul - à dublagem de Seth Rogen juntamente com o desenho de produção de seu personagem, que apesar de ainda pecar por não parecer completamente orgânico em tela, não compromete a interação do elenco em carne e osso com sua figura. Apostando em um ato final empolgante, ainda que convencional, “Paul” desperta a atenção pelas cenas de ação concebidas por Greg Mottola, desempenhando uma direção competente e eficaz durante todo o filme e especialmente no fim dele. Ainda surgindo com reviravoltas agradáveis em um desfecho que só peca pela dramatização frágil em um momento, “Paul” é convencional até o seu fim, e sequer consegue aproveitar sua condição satírica para amenizar os clichês narrativos, porém ainda tem seus pequenos e isolados méritos, que entretanto não são suficientes para proporcionar algo inteiramente satisfatório.
Zizek!
4.0 13“Zizek!”, o documentário, opera-se estritamente em função de seu protagonista, o filósofo moderno Slavoj Zizek, uma figura relativamente popular e de absoluta excentricidade - não apenas por suas ideias e elucubrações intermináveis, mas pela combinação delas com seus tiques e seu verdadeiro eu, aquele que ele é, ao contrário do que representa. Talvez o maior mérito do documentário seja o de intrometer na vida pessoal do filósofo ao mesmo tempo em que dedica partes de seu tempo para absorver o que Zizek tem para falar diretamente para a câmera ou para seu público presente nas diversas palestras que ministra ao redor do mundo. Essa invasão proposta pelo filme é naturalmente curiosa; um filósofo, geralmente encoberto por suas ideologias e filosofias, é quase que invisível no sentido do íntimo, do pessoal, do cotidiano. Assim, conhecer o modesto apartamento de Zizek, seus bens pessoais, seu dia-a-dia e até mesmo seu pequeno filho, revela-se como um interessantíssimo material de exploração e exposição. Só é uma pena que o documentário “Zizek!”, com sua total ausência de narrativa e completa inclinação às divagações filosóficas e sistêmicas de seu personagem principal, jamais se preocupa em estabelecer uma trama coesa, ainda que coerente no sentido de apresentar as ideias do filósofo Slavoj. Mas o escopo do documentário, embora claro, não é executado com organização, tampouco montado com raciocínio, e, portanto, os recortes da vida de Zizek são remendados de forma arbitrária e desconexa, comprometendo a apreciação narrativa do longa, que como disse, é inexistente. Logo, o interesse e envolvimento do espectador com este documentário depende essencialmente de sua apreciação e/ou interesse por seu protagonista e/ou as ideias que abrange. De uma imperativa eloquência, acompanhada por uma retórica enganosamente prolixa (enganosa por, apesar de complexa, conseguir fazer sentido) e por um sotaque truncado e cacofônico, além da coleção de tiques e a postura hiperativa, Slavoj Zizek recebe da diretora uma quantidade grande de closes a fim de salientar sua agitação. Também interessante é a forma como o documentário, embora (propositalmente) egocentricamente centrado em Zizek, consegue expor, sem pudores ou regalias, o filósofo no meio cotidiano e como lida – e pensa – sobre, por exemplo, fãs, ou como costumar criar e conviver com seu filho. Dessa forma, podemos testemunhar a confissão de seu ódio incondicional pelas abordagens públicas que sofre de seus fãs (compartilhado pelo filósofo pouco antes – e ratificado após – autografar o livro de uma fã que o abordara) e como leva seu filho ao McDonald’s para deixá-lo feliz ou ainda porque cultiva um pôster de Stalin bem na entrada de seu apartamento apenas para espantar as pessoas que lá o visitam. Fascinante por sua mistura de proposições lacanianas com a teoria marxista para compor a essência de seu pensamento intelectual, Slavoj Zizek é um filósofo a ser cultivado, apesar de, particularmente, não concordar com tudo o que ele diz (ou nem ousar contestar ideias que dele provêm e que sequer tenho bagagem para argumentar). E se há algo que “Zizek!” nos faz imaginar, é como o adentro, a exposição, o intrometimento na vida de um filósofo poderia resultar em trabalhos mais complexos e virtuosos. Infelizmente, este documentário da diretora Astra Taylor (que também aparece durante o filme - que inclusive abarca alguns recortes de “making of” para compor sua “narrativa”, o que o torna ainda menos coeso e demasiadamente despojado), apenas serve como introdução ao filósofo e intelectual Slavoj Zizek, e não como um estudo aprofundado ou organizado de sua pessoa e suas ideias. Em “The Pervert's Guide to Cinema”, outro documentário protagonizado por Zizek, o filósofo, comandado por outra diretora, se apresenta da mesma forma eloquente que aqui, mas tendo o cinema como assunto principal e ideias mais bem definidas e apresentadas em cima deste tema - exatamente o que faltou para “Zizek!” ser um documentário mais do que interessante; um documentário realmente bom e produtivo.
Passe Livre
2.8 657 Assista AgoraOs contornos humorísticos que “Hall Pass” logo estabelece em sua narrativa são típicos e capciosos. Típicos pois aqui somos apresentados ao que costumeiramente nos é oferecido pelas comédias americanas cujos roteiros brincam com temas como as observações e percalços matrimoniais, os fetiches e o sexismo masculino e, cá e lá, as situações escatológicas - tudo isso sem rejeitar o comumente pano de fundo moral que é enrustido pelas piadas e brota quando é conveniente para a sensibilização dos personagens. E finalmente, os contornos humorísticos de “Hall Pass” são capciosos pois problematizam o funcionamento das piadas - que raramente saem do lugar-comum e geralmente são, por suas próprias naturezas, forçadas e de gosto duvidoso - e as induz ao fracasso. Porém, é sempre importante ressaltar que nada no humor é uma regra, e portanto nunca será o conteúdo que necessariamente levará o espectador ao riso, mas sim o modo como este conteúdo é manejado e conduzido até o efeito da piada - o que, no caso deste filme dos irmãos Farrelly, se torna justamente o problema e principal agente do insucesso do longa. Há pontualmente no roteiro de “Hall Pass”, entretanto, algumas cenas que acolhem um humor bem sucedido, mas estas são suprimidas pelo roteiro acentuadamente previsível que coíbe tanto o êxito da maioria das piadas quanto o desenvolvimento de seus personagens, já que em absolutamente todas as cenas ocorre uma espécie de inversão de situação: se um personagem toma uma atitude convicta, ele certamente será mostrado como equivocado; se um personagem se dá bem, ele inevitavelmente se dará mal logo após; se os personagens comem bolinhos de maconha, eles, sem dúvida, não se safarão dos problemas que isso pode os causar. Quando há uma pausa para o personagem pensar no que faz, talvez até de uma forma emotiva, pode-se saber que o humor virá logo em seguida para quebrar o clima da cena e desconjuntar o que o personagem tinha dito. Dessa forma, podemos sempre, sem exceções, esperar por um insucesso dos personagens ou um equívoco deles diante de situações em que as coisas parecem dar certo, tornando a experiência do filme demasiadamente previsível. E se não bastasse essa falha viciosa e sistemática do roteiro, como podemos vislumbrar uma fuga da previsibilidade quando a moral e o clichê típico da trama permeiam o filme de tal forma que quando o personagem de Owen Wilson se envolve com a simpática garota do café, não conseguimos depositar olhares crédulos no casal, já sabendo, ao invés, que no final ele muito provavelmente irá repensar no seu relacionamento e voltar contente e determinado para os braços de sua mulher? Não há, perceptivelmente, um arrisque dos roteiristas, uma tendência para reviravoltas que não soem apenas como situações passageiras para que no final tudo termine exatamente como imaginamos que terminaria. Ainda se revelando altamente desinspirado ao criar personagens secundários (o amigo gordo que só pensa em fazer suas necessidades é clichê, ao passo que o personagem de Richard Jenkins, um velho despojado e manhoso com as mulheres, não só é clichê como também artificial), “Hall Pass” ainda se safa com a boa e natural interpretação de Owen Wilson (Rick), embora não obtenha o mesmo êxito com Jason Sudeikis (Fred), cujo personagem é posto como equivalente ao de Wilson, porém passa longe de ser tão bom quanto o mesmo, comprometendo a performance de Sudeikis e se revelando como mais um pecado do filme, que apesar de querer igualar os dois personagens (embora dedique muito mais tempo para introduzir o personagem de Wilson - o que também é um erro), sempre se vê melhor servido com Rick do que com Fred. Depois de muito prenunciada, a previsibilidade acaba por dominar o filme ao seu fim (sem antes deixar de apostar em um ato final exagerado e comum que eleva as ações dos personagens para níveis catastróficos), com seu desfecho típico e moral que acaba por atestar a tremenda falta de ousadia dos irmãos nessa comédia que já assistimos antes, mas que fora repetida aqui com atores diferentes e uma historinha levemente diferenciada, porém igualmente e quase inteiramente sem graça.
Rio
3.6 2,7K Assista AgoraEm “Rio” nós presenciamos uma Rio de Janeira encantadora, colorida, intensamente regada de práticas esportivas, pessoas em praias, músicas e carnaval - basicamente tudo o que a cidade tem de verdadeiramente maravilhosa, porém acentuada convenientemente para as óticas de uma animação cuja proposta é, acima de tudo, divertir. Por outro lado, “Rio” também não se esconde completamente por trás do glamour das tão exaltadas qualidades da cidade e faz questão de incluir em sua história pequenas passagens na favela - ao demonstrar pela superfície como o local é diferente das entusiásticas praias, do corcovado e afins -, além de ter como vilões de sua trama uma quadrilha que contrabandeia aves. Ainda que apresente um grande número de discrepâncias em relação ao que é realmente a cidade do Rio de Janeiro, o roteiro de “Rio” o faz com temperança, não soando desrespeitoso, tampouco ridículo. E mesmo quando somos apresentados a momentos aparentemente embaraçosos e mal-sugestivos, como quando macacos arremedam os ladrões de turistas ao roubarem seus pertences e quando brasileiros falam inglês fluente, é fácil indultá-los, uma vez que os personagens bilíngues surgem como uma alternativa (preguiçosa, sim, mas vá lá...) para o enredo fluir sem ter de se preocupar com traduções, e os macacos são divertidos e representam de uma maneira inocente o que realmente acontece no Rio de Janeiro - e, francamente, não caberia ao longa de Carlos Saldanha perfazer comentários sociais apropriados, portanto, as meras sugestões espirituosas do diretor acabam funcionando na medida certa. E talvez seja por isso que em circunstâncias onde o diretor tenta criar algum tipo de drama com a situação de um pobre garoto da favela (inclusive revelando a desnecessária desconfiança de um dos personagens para com o menino para ressaltar seu ponto), o filme incomode tanto; além de ser piegas e demasiadamente óbvio, o personagem do garoto é tão mal desenvolvido que vê-lo ao final do filme em certa cena junto dos personagens Túlio e Linda chega a ser banal e ridículo. O balanço da caracterização da história (que usa dos elementos de cena característicos da cultura brasileira e do Rio de Janeiro como interessantes formas de desenvolver sua trama), no entanto, acaba por ser positivo no fim das contas. Só não é positiva a história do longa em si, que carece de bons personagens, reviravoltas e até de humor (embora o filme não tente ser engraçado o tempo todo, ele peca em muitas de suas piadas, enquanto noutras acerta, mas sem tirar mais do que um simples riso do espectador). A narrativa de “Rio” segue uma linha convencional, e seus personagens nunca conquistam empatia o suficiente para cativarem ou nos fazer importar com suas questões. Na mesma marcha anda a trilha instrumental de John Powell, que figura por entre os toques de ação e melodrama sem transpor o padrão de filmes aventurescos. Já as canções do longa surgem sempre divertidas para compor a atmosfera de determinadas sequências (incluindo passagens musicais aqui e acolá; sempre boas em si, mas pouco marcantes e relevantes para o desenvolvimento da história), misturando toques conhecidos da bossa nova e do carnaval com letras originais em inglês. Se aliado às músicas e revelando-se como o verdadeiro mérito do filme está a fotografia e o desenho de produção, que ajudam a compor o deslumbrante e adulador visual do longa, abrilhantando o cenário do Rio de Janeiro tanto durante o dia quanto durante a noite, seja na favela, na praia, no meio urbano ou na floresta. Basicamente, “Rio” é um filme que fica aquém do que propõe. Embora esbanje competência visual, pouco se importa em construir melhores personagens - que sendo aves ou humanos nunca se mostram como figuras fortes e de personalidade - ou uma história desafiadora, original e de momentos dramáticos e cômicos mais refinados. É, ao contrário de muitas animações atuais, cuja emoção e apuro visual andam juntos, um filme que funciona totalmente envolta de uma cidade apenas para tirar dela os mais pertinentes destaques sonoros e visuais e compor um passatempo de diversão vazia, porém minimamente lúdico.
Ondas do Destino
4.2 335 Assista AgoraQualquer um pode dizer que a personagem de Bess era louca. Mas o retrato desta complexa personagem feito por Lars von Trier questiona a todo o tempo sua sanidade, levando-nos a pensar que ao invés de ser um fruto de sua natureza psicológica, é na verdade um produto de seu meio profundamente e rigorosamente religioso. E é por isso que, no exato fim do filme, quando sinos surgem no céu, em uma cena completamente fantasiosa, von Trier não apenas dá um salto absoluto e repentino para fora de seu terreno natural e realístico, como também coloca em dúvida a integridade do retrato de sua protagonista (e, eu diria, quase põe a perder, se é que suas intenções tenham sido mesmo as que aparentavam) - e ainda que, em primeira instância, essa última cena surja como um momento de transgressão ousada e inesperada (e de aparente simbolismo), ela não apresenta, entretanto, dignidade para com o restante deste excelente filme que “Breaking the Waves” é. A abordagem cinematográfica de von Trier, se restringindo a câmera constantemente na mão e a uma fotografia que confere um tom de vídeo amador ao filme, adere uma crueza e objetividade profunda à narrativa, beneficiando o longa em diversos momentos onde a intensificação e falta de pudor da trama necessitam ser evocados. Já a narrativa do filme, que se divide em capítulos intitulados, funciona de maneira orgânica ao trabalhar com o título-tema sem jamais se revelar estruturalmente cansativo ou arrastado. Pelo contrário: a trama de “Breaking the Waves” toma o crescente sufoco de Bess por seu marido invalido e a necessidade de ajudá-lo como princípio para ritmar a narrativa e desenvolver a agonia e tensão nela presentes. Bess, quando casa-se com Jan, ainda é uma moça retraída cuja rígida influência religiosa de seu meio contribuiu para seu estado psicológico irreparável. Assim, amando Jan de forma incondicional e obsessiva, Bass entra em um estado de quase depressão quando este parte para trabalhar em uma plataforma de petróleo, e piora ainda mais quando Jan sofre um acidente de trabalho que o deixa sem nenhum movimento corporal. A protagonista conversa com Deus inventando a fala do “todo-poderoso”, pronunciando o que ele diz e recebendo suas próprias palavras como verdades divinas - o que ressalta que ela possui consciência tanto de seus desejos e receios “pecadores” quanto da burocracia e perniciosidade divina. Mas Bess é também devota do amor de seu marido, e quando este pensa de uma forma radicalmente racional, mandando-a ir atrás de outros homens pra se satisfazer sexualmente, Bess leva isso ao pé da letra e fundamenta-se nos poderes divinos para assim evitar a morte de seu marido ao se sacrificar cada vez mais por ele. É óbvio que a insanidade de Bess chega a espantar, sua atitude de voltar ao barco onde anteriormente quase fora violentada demonstra um estado psicológico muito além de influências negativas (portanto, realmente disfuncional), porém as repreensões acerca de suas ações para salvar Jan corroboram seu declínio. E assim, até o momento de sua morte, Lars von Trier concebe um drama denso e impressionante. Quando Jan volta a andar depois da tragédia, isso não passa de uma ironia dramática, como se Bass de fato tivesse razão por traz de tudo o que fez. E como se seu sacrifício realmente tivesse recebido um auxílio divino. No final, após Jan furtar o corpo de Bess para dar a ela um funeral mais digno (e eventualmente se despedir dela), é acordado por seu amigo para ver os sinos mágicos tocando no céu, como se estivessem reverenciando o sacrifício de Bess, “Breaking the Waves” ignora o que pautava e perfaz uma conclusão simbólica e fantasiosa, infelizmente enfraquecendo o realismo de seu drama e a excelente construção da protagonista Bess, como se desse razão a todo o miserável e infeliz sofrimento que a personagem enfrentou para salvar seu amado (embora o sinal de Deus tenha sido favorável a este sacrifício, ao contrário do que os “verdadeiros” homens de Deus acreditavam), ou apenas tentasse causar uma desnecessária e provocante reação no espectador. Todavia, mesmo que a intenção de von Trier com este final seja entendível, porém repreensível, “Breaking the Waves” ainda se garante por sua completude, sendo, sem dúvida, um longa-metragem excepcional.
Onde o Amor Está
3.6 396 Assista AgoraO que se pode tirar de um filme como “Country Strong”? Particularmente, acho difícil tirar algo de sua história. Este longa protagonizado por Gwyneth Paltrow pode ser sumariamente definido como um romance onde quatro personagens se envolvem em um quadrado amoroso mal resolvido. Mas não seria “Country Strong” um retrato sobre a fama? Sobre uma figura da música country? Um superficial - e até convencional -, sim. E é basicamente isso que o filme nos oferece. É verdade que a narrativa do filme não se entrega a caminhos claramente óbvios, mas tampouco surpreendentes, já que seu roteiro nunca se dispõe a explorar o que seria pertinente e interessante, deixando toda sua trama e seus personagens inertes na superfície. Gwyneth Paltrow, encarnando uma cantora de country de grande sucesso, porém atualmente em baixa devido à perda de seu bebê em um show em Dallas, consequência de seu alcoolismo (o que a levou para a reabilitação), faz um trabalho competente, mas não tem a oportunidade de surpreender, já que sua personagem, Kelly, jamais atravessa o arquétipo da estrela em crise, e quando não age como uma estrela instável e por vezes irritante, tem seus momentos mais dramáticos e “profundos” quando se envolve com falas sobre amor, sucesso; quando se mostrar incapaz de executar uma performance durante um show lotado; ou quando canta para um garotinho, seu fã, com leucemia. Ou seja: nada que denote algum esforço dos roteiristas para dramatizar Kelly além do convencional e do superficial. Parte desta falta de esforço e aprofundamento dos roteiristas também reflete em outros personagens. Suas fraquezas nunca são exploradas com seriedade, embora todas surjam em determinados momentos, porém desaparecem ao não serem mais revisitadas, ou “resolvidas” de maneiras... Bem, apenas serem resolvidas de alguma forma. A personagem de Leighton Meester, por exemplo, se apresenta no início da trama para um público consideravelmente pequeno, em um bar qualquer, e não consegue desempenhar sua música, sendo consumida pelo medo, que logo passa quando, em uma cena bastante típica, o personagem boa pinta de Garrett Hedlund resolve subir ao palco e ajudá-la a vencer seu medo. Logo depois disso, a cantora em ascensão já consegue enfrentar uma platéia gigantesca e executar uma competente performance, sendo rapidamente considerada pela imprensa uma das promessas da música country. Semelhante irregularidade na escrita dos personagens acontece quando Kelly, ao ter uma recaída repentina causada por um presente provocativo que recebe e que a faz lembrar de seu bebê perdido, rapidamente aparece consumindo álcool - algo que é feito sem muito alarde, considerando o destaque dado anteriormente ao fato dela estar capacitada para deixar a reabilitação e sóbria, e que tampouco compele os demais personagens a tomarem atitudes sobre isso; eles, especialmente seu marido, James, apenas acumpliciam sua volta ao álcool para manterem viva sua turnê altamente esperada por seus fãs. E não é uma surpresa que as atitudes de seu marido, que se revelam sempre em prol de sua relação com Kelly, mesmo sabendo de sua infidelidade conjugal e instabilidade emocional, também não são devidamente exploradas - o que seria de grande pertinência, já que isso permitiria com que o filme estudasse mais os interesses por traz da persistência e conformismo de James. (Afinal, ele fazia tudo isso porque amava Kelly ou porque simplesmente não poderia abrir mão de uma estrela que o gerava lucros?). Dispondo de praticamente toda sua narrativa para trabalhar em cima do quadrado amoroso que rapidamente se forma na trama, “Country Strong” nunca consegue decolar; ficamos a maior parte da projeção tentando descobrir o que se passa na cabeça do personagem de Hedlund e de quem ele gosta, afinal - o que também desvia toda a atenção principal do filme para outros personagens que não a de Paltrow. O amor e o sucesso são trazidos à tona sempre que é conveniente, e o filme se encerra com um clímax forçadamente trágico - e esperado - que definitivamente deixa o amor como resposta de tudo; sem, no entanto, se empenhar em maiores meditações sobre ele ou sobre a fama, ou sobre como os dois não podem viver no mesmo lugar (palavras de Kelly). E é por isso que, mais uma vez, cabe a pergunta: o que se pode tirar de um filme como “Country Strong”?
Este Filme Ainda Não Foi Classificado
4.0 30“This Film is Not Yet Rated” é um filme necessário. É um filme que a indústria cinematográfica precisa no sentido de revelar, denunciar e protestar contra um sistema tão ridículo e prejudicial à liberdade artística e de expressão chamada de MPAA, a entidade responsável por censurar tudo o que é produzido em Hollywood no âmbito cinematográfico. “This Film is Not Yet Rated” ainda é um documentário de espírito irônico e jocoso, se revelando apropriado ao seu risível alvo. Mas, infelizmente, “This Film is Not Yet Rated” é também um longa que apesar de importante, acaba se passando por desnecessário ao criar uma narrativa irregular que se desconcentra do assunto principal apenas para estabelecer eventos envolventes, porém dispensáveis, e incrementar o humor do filme. Buscando equilibrar a narrativa habitual de um documentário - com os depoimentos e arquivos de foto e vídeo surgindo em tela - com uma investigação particular contratada pelo próprio diretor do filme, Kirby Dick, o longa acaba sendo, na maior parte de seu tempo, um divertido documentário sobre o ofício de uma investigadora particular. O problema é que ao gastar tanto tempo exibindo os processos da investigação (e até explorado a vida da investigadora contratada, o que era completamente desnecessário), o documentário desvia completamente sua atenção do foco essencial - e por mais lúdico que seja acompanhar o serviço de investigação particular, este não passa de uma distração, já que o assunto principal do filme é rebaixado para segundo plano, dando lugar a uma espécie de jornalismo gonzo de humor escrachado (algo que jamais se acerta dentro da narrativa do filme). E é importante ressaltar que o propósito da investigação, embora tenha de fato ajudado a revelar pertinentes informações que são exploradas no final do filme, nunca deixa de soar infantil, sendo que as perseguições aos membros da comissão julgadora da MPAA mais parecem com atos de provocação do que de pesquisa jornalística. Mas ainda assim há de ser relevada a completa falta de noção do diretor ao inserir as investigações particulares no filme, pois ainda que não fosse necessário exibi-las, estas resultaram em valiosas informações que deram um toque final precioso ao documentário. E desmerecer a importância deste documentário é quase um crime. Seu caráter questionador é fundamental para expor as discrepâncias e podres de uma organização moralista, tendenciosa e preconceituosa como a MPAA. É de se espantar, por exemplo, com a clara discriminação da entidade ao homossexualismo, quando se mostra propensa a classificar filmes com relações homossexuais com mais rigor do que os heterossexuais, como se o sexo gay (mais do que o heterossexual) fosse uma afronta aos “bons costumes” americanos e prejudicial às crianças. Aliás, as questões levantadas pelo filme em cima do sexo no cinema, que é o conteúdo principal para que um filme possa ganhar classificação máxima (e assim estar mais sujeito a um fracasso comercial), são interessantíssimas; permitindo que seus entrevistados possam questionar o porquê do sexo ser algo mais restrito do que a violência, e o porquê da violência crua e realista (que mostra as consequências reais do ato violento) serem mais rigidamente censuradas do que a violência branda, que expõe um forma de violência nem sempre condizente com a gravidade real do ato. Se menos tempo fosse perdido com as investigações, “This Film is Not Yet Rated” ainda poderia explorar mais seu assunto-tema; questões como o que fazer para melhorar o sistema de classificação ou se ele ao menos deveria existir seriam bem-vindas e relevantes, bem como a opinião de especialistas sobre as influências que os filmes causam na sociedade (sobretudo nas crianças), já que é um sub-tema que chega a ser levantado pelo filme, mas pouco aprofundado; e o consumo de drogas como elemento determinante para as duras censuras também deveria ser evocado com maiores reflexões. Mas apesar de ainda deixar a desejar em alguns pontos, é certo que as denúncias e ironias que este documentário pratica na direção da MPAA o classifica como um documentário “ainda não censurado”, porém definitivamente importante e indispensável para a busca da preservação da liberdade artística no cinema americano que é sorrateiramente repreendida por este câncer chamado MPAA.
Reflexões de um Liquidificador
3.8 583 Assista AgoraUnindo uma simpatia absoluta de uma simples dona de casa, Elvira (uma ótima e natural Ana Lúcia Torre), e seu amigo liquidificador (um excelente Selton Mello na dublagem), uma máquina pensante e entendida por sua amiga, com o bizarro e inesperado crime cometido pelos dois, “Reflexões de um Liquidificar” se revela um filme despretensioso que surpreende pela forma como conduz sua narrativa, como lida com o surreal de sua trama e como ainda assim concede espaço para uma máquina fazer interessantes elucubrações sobre a vida humana, sendo esta máquina, o liquidificador, uma ótica quase pura e inocente de tudo o que acontece com nós. Investindo na aparência inocente e insuspeita de sua protagonista, a trama não hesita em jogar indícios da origem do desaparecimento do marido de Elvira, logo relatado pela mesma no início do longa, embora jamais soe denunciador a ponto de nos entregar de uma vez o acontecido. É por isso que, quando chega ao momento de nos abismar com a revelação, o filme provoca um efeito de eficácia plena, e surte ainda mais reação quando nos damos conta de tudo o que antes fora sinalizado em direção à culpa de Dona Elvira e seu cúmplice liquidificador. O momento de revelação, aliás, além de proporcionar uma sequência que choca e conquista por seu espírito perversamente feliz, surge em um instante estratégico, pouco antes da investigação conduzida pelo hilário investigador Fuinha (um homem caricato, de desconfiança excessiva e capcioso - atributos que o faz engraçado) chegar perto de desvendar o crime cometido por Dona Elvira. Neste momento da narrativa, passamos a nos importar mais com o futuro de Dona Elvira e do liquidificador, já que agora, não menos apegados ao carisma da dupla e cientes de que eles são, de fato, os autores da morte do sujeito, a intensificação da investigação que Fuinha faz com tamanha desconfiança passa a finalmente fazer sentido e ameaçar muito mais, criando um clima eficiente de apreensão. E por falar em clima, é pertinente ressaltar o quão interessante é a manipulação deste elemento durante a trama; que jamais deixa de manifestar um tom particular de jocosidade e cinismo (sempre presente em sua trilha-sonora), não impedindo porém que o filme tramite com eficácia por entre um leve drama e momentos pontuais de tensão - além de sair-se bem sempre que se dispõe a trabalhar seus aspectos cômicos. Mas o que mais chama atenção em um filme intitulado de “Reflexões de um Liquidificador” é justamente o tal do liquidificador, que aqui possui uma vida que estende a simples imaginação (ou loucura) de sua protagonista, sendo peça fundamental para determinar os caminhos seguidos pela estória, apresentando certos comportamentos que não poderiam simplesmente se originar da mente da protagonista. A partir de hábeis tangenciamentos que nos contam de forma curiosa e fluida o passado do objeto com vida, “Reflexões de um Liquidificador” nos oferece um personagem único que é sabiamente escolhido para sumarizar a trama do filme ao seu final, quando em um desfecho enganosamente anticlimático, nos deixa com mais uma reflexão do liquidificador ao invés de continuar a desenvolver a possível conclusão que a história ainda poderia ter tido. Sua perspicaz observação sobre o ser humano, este que acabou intelectualmente se tornando, nos guia até as entrelinhas do filme ao dizer que, depois de desfrutar de toda essa consciência humana que adquiriu, é preferível, no fim das contas, tê-la e usufruí-la, uma vez que o pensamento é viciante e a intriga de paixão e medo é fascinante - explicando como a conduta expressa pelos personagens (como se assanhar pelos lados de um homem peludo ou de uma mulher mais sensível e que dá prazer; ou a simples entrega ao medo em consequência do maléfico troco para cima do marido traidor) é condizente com o conflito que é o homem; um homem cuja sorte que o espera, é um mistério, uma ameaça (como também diz o próprio liquidificador). Assim, o final do longa se livra da convenção de concluir seu enredo de forma típica (já que também é um filme de premissa bastante atípica), simbolizando de certa forma o misto de divergências que é o ser humano, apenas esperando pela intrigante e excitante sorte que o assaltará; uma espera que é essencial para que a experiência de se viver seja interessante.
Vinícius
4.3 101Ditando sua narrativa a partir de uma cronologia levemente aparente, “Vinicius” ainda introduz conceitos expositivos interessantes durante suas duas horas de duração, com o fim de trabalhar da maneira mais fiel e contempladora a figura e extensa obra deste fabuloso artista. Como Vinicius de Moraes foi um homem de mais filosofia do que feitos, é natural que a narrativa deste documentário não tenha muitos fatos a pontuar na trajetória de vida do poeta, apenas o que pessoas intimamente ligadas a ele têm a dizer sobre como era, o que pensava, o que fazia e como fazia, revelando como se deu a cria de várias de suas importantes obras musicais e algumas poesias, que de uma forma interessante e eficaz, sucedendo suas devidas contextualizações, são entoadas e recitadas pelos atores (Camila Morgado, excelente e sensível; e Ricardo Blat, também bastante competente) e cantores convidados, que oferecem performances a altura das letras e lirismo das músicas de Moraes. Este recurso empregado durante a trama acaba funcionando como uma espécie de mini-show(s), e se mostra fundamental para tratar de um artista cuja filosofia, paixão e expressão viviam nas músicas e nos poemas que concebeu. Jamais monótonos ou burocratas, as interrupções surgem sempre de maneira compassada, permanecendo como parte de uma estrutura invariável do filme, que eventualmente alia os tradicionais depoimentos com seu resto; depoimentos que surgem para revelar e discorrer a pessoa Vinicius de Moraes, contando com analises pessoais sobre sua figura, feitas por pessoas que foram próximas a ele, e características curiosas de sua personalidade ímpar, às vezes confessadas de maneira divertida e bem-humorada nos depoimentos. Ressaltando a exaltação pela vida e pelo amor possuído por Vinicius e o cansaço adquirido por ele no fim de sua vida, o documentário de Miguel Faria Jr. não explora e nem cita com exatidão a causa de sua morte, apenas deixa a entender - para aqueles que não sabem - que fora vítima de sua vida boêmia; vida esta que segundo ele mesmo era preferível a ser feliz, uma vez que para buscar a felicidade - algo que Vinicius incansavelmente fazia, segundo cita Chico Buarque -, era preciso, primeiramente, viver. Mas por outro lado, a boemia da vida de Vinicius e seu jeito despojado era o que o mantinha vívido e ávido pela vida, felicidade e paixões, algo que o poeta nunca deixou de ter e buscar, tendo se casado nove vezes. Admirável, Vinicius é tratado e reverenciado aqui de uma forma que, imagino, seja a exata forma com que ele mesmo iria querer ser abordado. Os documentos em vídeo com Moraes são resgatados e espalhados pela trama (sempre de maneira coesa com o contexto discutido) nos revelando momentos espirituosos e sublimes do artista, tais como suas hilárias conversas com Tom Jobim (parceiro importante na vida de Vinicius e que também tem seu considerável espaço no filme) e sua interpretação da bela música “Canto de Ossanha” junto de Baden Powell (que aparece falando sobre Vinicius e os afro-sambas por meio de um antigo depoimento resgatado) e outras pessoas, no que parecia ser uma das “casas abertas” do poeta. Harmonizando seu refinado intelecto erudita com sua raiz popular e cultural, assim como harmonizava tão bem suas belas canções, Vinicius de Moraes foi um gênio no âmbito artístico e uma admirável figura no âmbito da vida, que se fundia com seu trabalho (um conceito que Vinicius parecia ter como algo muito menos pragmático) como se não houvesse distinção entre um e outro - e não deveria mesmo haver. Seu legado consiste em um amplo conjunto de perfeitas expressões sobre a busca e vivência do amor e sua indiscutível importância para a vida, que parece ter sido tão bem e sabiamente vivida pelo poeta. “Vinicius”, o filme, é essencial para se conhecer, lembrar, analisar, admirar e se deleitar com tudo o que Vinicius de Moraes fez e foi na vida. E que sua obra seja infinita enquanto dure. E certamente durará.
A Pantera Cor-de-Rosa
3.6 90 Assista Agora“The Pink Panther” é uma comédia pastelão que se revela cuidadosa ao nos entregar o cerne de seu humor, apostando quase que exclusivamente na destreza de Peter Sellers com a comédia física para isso. As trapalhadas do Inspetor Clouseau, uma vez que surgem em cena, nunca deixam de ser engraçadas, e se tornam cada vez mais esperadas. Mas esperar por elas é o que torna a experiência de se assistir o filme boa; esperar por um riso decorrido de uma porta que bate na cara do personagem, por exemplo, é saudável, é prazeroso; não pela surpresa em si, já que ela aqui é quase inexistente, mas pela maneira como suas balbúrdias serão recebidas pelos outros personagens - assim como a cena com o velhinho, próximo ao final do filme, tanto nos diz: um homem, não antes visto na história, surge para presenciar a confusão mor da trama, quando o Inspetor e seus companheiros emplacam uma perseguição maluca com o tio e sobrinho ladrões (um deles, o Fantasma). A presença e destaque dado para o velho homem ali é bastante significativa e determinante. A piada, uma versão grandiloquente de todo o humor físico e de mal-entendidos gerados durante a trama, funciona especialmente por saber colocar o espectador no papel do velhinho, fazendo com que imaginemos o que se passa na mente dele ao testemunhar logo de cara a culminação de toda a confusão do filme; uma perseguição onde falta, no mínimo, inteligência de seus envolvidos, e ainda seja protagonizada por homens vestidos de gorilas, um grupo de policiais risíveis em fantasias idem, e até uma zebra correndo no meio disso tudo. A sequência é longa e incrementa gargalhadas depois de gargalhadas, para só mais tarde dar seguimento à narrativa. Sendo a única figura engraçada por ações, personalidade e trejeitos, o Inspetor Clouseau conquista facilmente o espectador, e vê-lo perdendo toda a sua credibilidade (mas não seriedade), conferida por sua autoridade, diante das pessoas é outro ponto trabalhado pelo filme para que seu protagonista surja com sucesso. Quando a piada reside no simples fato do Inspetor se inclinar e derrubar o copo de leite que conseguira para a sua mulher, a graça vem porquanto voltamos nossa atenção para o elemento de expectativa da cena, quando o Inspetor, sem se revelar, observa com olhares suspeitos a passagem de Sir Charles. Quando falamos dos outros personagens, porém, “The Pink Panther” se mostra charmoso e envolvente ao invés de engraçado, sendo que nenhuma das outras figuras da história possuem um espírito bem humorado, mas definitivamente têm o poder de nos envolver no enredo policial do filme, tão bem engendrado e executado - e muito bem atuado por todos do elenco. Ao cruzarem o caminho do personagem de Peter Sellers, contudo, somos presenteados com cenas impagáveis em que o humor brota em sua melhor forma, como na extensa cena da suíte do Inspetor e de sua mulher, quando esta tenta manter, com muita dificuldade, seus três interesses amorosos distantes um do outro, mesmo estando todos no mesmo espaço. Com o icônico, cínico e provocativo tema musical composto por Henry Mancini surgindo pontualmente em tela, “The Pink Panther” ainda investe em um desfecho que só nos faz sentir mais por seu pobre protagonista, como se ao ostentar a pateticidade de sua figura, sem dar a ele um final propriamente feliz, mas que de alguma forma estúpida o traz satisfação, seu caráter pessoal que rendeu tantos momentos hilários possa permanecer intacto e conservado - até, pelo menos, a continuação de sua aventura, que viria no segundo filme.
O Sétimo Selo
4.4 1,0KA filosofia análoga embutida em "O Sétimo Selo" oferece um discurso direto, porém pormenorizado sobre a crença e a morte (para dizer em termos simplificados), resultando em uma produção de imagens impressivas, simbólicas, icônicas e imunes de qualquer indiferença reflexiva, mas que poderia, sim, ser um filme mais correto, centrado e especialmente mais consistente ao trabalhar com a irreverência que promove ao tratar de seu tema. A comicidade muitas vezes evocada por Ingmar Bergman não funciona muito bem; sua insistência em manipular o humor como parte inerente do tema não convence, ainda que surja em momentos pontuais como algo interessante e adequado, como na cena em que a descontraída apresentação cênica do casal do filme é interrompida por um grupo de flagelantes fundamentalistas - aqui, Ingmar Bergman invoca um contraste abrupto e impressionante, que fortalece o aspecto tétrico de sua trama. Além disso, os personagens, apesar de agradáveis, não desempenham a mesma profundidade dramática de Antonius Block, o principal; suas cenas jogando xadrez com a Morte e seus conflitos teológicos aparecem como as partes mais interessantes e pungentes do longa, ao contrário dos outros, que embora sejam personagens conceitualmente interessantes e até simpáticos, não apresentam tanta significância para a trama e soam bastante deslocados na narrativa (mas talvez seja o excesso de simbolismo que eles carregam, o que evidentemente os prejudica aqui). Mas se há algo que realmente mereça ser reconhecido em “O Sétimo Selo” é o poder de Bergman e seu fotógrafo Gunnar Fischer de criar cenas cuja poesia e lirismo - quando não inquietação - invadem a tela e provocam sensações imediatas no espectador. (A cena da dança em uma taverna; do sereno piquenique; dos já citados flagelantes e, é claro, da cena final, que é visualmente marcante, são exemplo de momentos em que a técnica e a temática desenvolvida pelo diretor se alinham e criam imagens isentas de depreciações). A avidez por conhecimento de Antonius, para encarar seu dilema, é de alguma forma tocante, por refletir mais uma vez o recorrente tema do silêncio de Deus que Bergman costuma comentar; sua dúvida sobre o existir daquele ser benevolente e divino vai de encontro com a certeza da existência da morte, aquela para o qual o destino leva todos os consumidos pela horrível praga e que curiosamente tem sua certeza aqui acentuada por de fato ser representada como um personagem - já Deus, permanece escondido, oculto, não se sabe onde. A mulher marcada para a morte sente o Diabo como alguns sentem Deus, e esta é levada para o fim da vida como se fosse a maior punição que pudesse sofrer, como se fosse definitivamente entregue para o inferno, para o Diabo por quem ela se identifica. A morte representa a dualidade, a ambiguidade, a incerteza para onde ela nos levará, e se a vida pode ser tão alegre, como mostrada em alguns momentos do filme, ela infelizmente tem um final trágico por si só, e ainda pior quando finalizada através de meios nada agradáveis. Portanto, é entendível como a morte, ao ser inevitavelmente associada ao pior e último estágio de nossas vidas, não dá a Antonius perspectivas positivas para poder “enxergar” aquela figura boa que possivelmente se encontra depois dela: Deus.
Apenas o Fim
3.7 1,1K Assista Agora“Apenas o Fim” pode muito bem ser definido como uma produção de aspecto experimental e indie criado por um nerd que emula o formato dialogal de “Before the Sunrise/Before the Sunset” e emprega um personagem à la Woody Allen em sua história - tudo isso para conceber um romance sobre fim de relacionamento arraigado fortemente na cultura popular da geração atual. Toda essa mistura parece bastante típica para um cineasta jovem e afoito para construir algo simples, porém pessoal e de fácil identificação, o que consequentemente gera uma enorme empatia de seus espectadores por tudo o que ocorre no filme. E é, de fato, um longa familiar, de natural identificação e engraçado não por fazer humor, mas por compartilhar com o espectador o humor de seus personagens, que surge espontaneamente das conversas que têm um com o outro. Ou seja: é o tipo de filme em que não se ri dos personagens, mas com os personagens. Matheus Souza, o diretor, se revela muito bem sucedido ao criar um clima de aconchego e familiaridade, exceto pelo detalhe que corrói o personagem de Gregório Duvivier, e que torna tudo muito desconfortável (no bom sentido): a súbita decisão de sua namorada de abandoná-lo. Ora com movimentos de câmera que acompanham os personagens, ora com a câmera estática, apenas observando suas interações, Matheus aplica aqui uma abordagem eficaz e envolvente, mas que reflete seu próprio caráter experimental ao não apresentar coerência o tempo todo. Enquanto a câmera estática e distante geralmente surge para captar os momentos em que o casal é interrompido por alguém externo a eles ou quando estão afastados um do outro - sugerindo a quebra de suas intimidades -, a câmera na mão e sempre próxima aos personagens é geralmente usada para ressaltar suas intimidades e o quanto, por mais que a situação não seja das melhores, curtem ficar juntos, jogando conversa fora. No entanto, essa lógica não é mantida o tempo todo, preferindo optar por ângulos diferenciados e desafiadores, o que acaba quebrando um pouco do clima das cenas. E se Matheus evoca as lembranças dos personagens com o conveniente preto-e-branco, surgindo casualmente e aleatoriamente (apesar de fazerem sentido) durante a trama, ele também se mostra divertidamente sugestivo ao misteriosamente empregar o preto-e-branco em apenas uma das telas que se dividem quando seus personagens se separam brevemente, condizendo com suas personalidades e com o que é dito no final do filme. (Ele, em preto-e-branco, é expressado como uma lembrança de Ela, que chora naquele momento por provavelmente já imaginá-lo como o passado; enquanto Ela, ainda em colorido, é imaginada por ele como ainda parte do seu futuro, já que ainda não consiga acreditar que ela o deixará). É uma pena, no entanto, que ao aplicar o mesmo raciocínio visual no final do filme, Matheus se entregue a uma série de cenas que distorcem essa lógica e que perdem sua elegância, apenas para encerrar o filme, digamos, de uma forma mais “bacana”. O roteiro de “Apenas o Fim”, que se mostra completamente aberto ao improviso dos atores, não estabelece exatamente uma ideia, um objetivo narrativo além do de relatar dois personagens que não deixam de parecer personagens de filmes, mas que curiosamente refletem muitos personagens da vida real, seja pelos gostos e histórias comuns que compartilham, por suas posturas naturais ou simplesmente por sua história de amor, que acentua a importância das lembranças depois do (apenas) fim. As indiretas metalinguísticas do filme (que referenciam o próprio diretor Matheus Souza) são cabíveis ao universo dos personagens, mas parecem surgir aqui principalmente como lembretes ao próprio espectador, que absorve o contraste entre a realidade do filme e por vezes sua artificialidade - algo que os atores tomam para si algumas vezes, seja isso proposital ou não - para ser divertidamente convidado ao jogo entre o condizente com o real e o condizente com o cinematográfico. A história de “Apenas o Fim” pode não parecer muito consistente, a direção nem sempre perfeita, mas o filme, como um todo, brinca com o espectador e o abarca de forma eficiente a partir de sua proximidade cultural e a ternura que brota de seus protagonistas. É um pequeno bom filme que nunca deixa de ser interessante.
Colega de Quarto
2.7 1,1K Assista Agora“The Roommate” tinha tudo para ser um bom thriller de horror. A premissa, envolvendo a psicopatia da colega de quarto da protagonista possui todos os elementos básicos para compor o que um terror deste gênero precisa. Mas o longa falha veemente em executar seus pontos essenciais, que qualificam o filme em uma embaraçosa besteira ao invés de um thriller barato porém eficiente. Minka Kelly, encarnando a protagonista Sara, demonstra um charme e carisma irretocáveis, mas sua personagem é absolutamente subestimada pelo roteiro precário, que aposta apenas na beleza e encanto da atriz para que nos importemos com ela; e de certa forma, até nos importamos, mas mais por nos imaginarmos em sua situação do que por ela mesma. Sara acaba sendo apenas uma peça, uma protagonista genérica para sofrer nas mãos de sua maligna e obsessiva colega de quarto, e quando ela corre risco de vida, não há porque temermos sua morte, já que tanto faz se ela continua viva ou não. Já a personagem de Leighton Meester, a colega de quarto Rebecca, surge como uma figura irritantemente ameaçadora exatamente por ser genérica, assim como Sara. Ainda assim, há uma preocupação em desenvolver sua personagem, que carrega um mistério consigo mesma, mas que rapidamente deixa de ser um enigma, passando a ser óbvio para o espectador o que se passa com ela. Dessa forma, com o mistério acabado, só podemos esperar por suas cada vez mais perversas ações. Em dado momento, porém, somos intrigados por seus comportamentos e aparições, que chegam a sugerir um pano de fundo sobrenatural para a história, mas que no final não passa mesmo da loucura da personagem. Ou seja: o despiste funciona até certo nível, mas para isso precisa soar inverossímil, barato e trapaceiro. Também não há como não ignorar a estereotipização dos personagens em “The Roommate”: enquanto Sara surge como uma típica jovem do interior que chega à cidade grande para estudar (assim como é comentado quando a própria se compara com a protagonista de “Devil Wears Prada” - uma semelhança que mesmo reconhecida, não convence), seu namorado vivido pelo boa pinta Cam Gigandet parece não entrar no personagem, sendo apenas ele mesmo com excesso de “mocinho esperto e bem humorado” em seus diálogos. Além deles, Rebecca é apresentada como uma louca clichê, que tem seu psicológico agravado ao ponto de não hesitar em matar ou afastar uma pessoa apenas para ter a exclusividade de sua amiga (mesmo que essa não hesitação caia em contradição quando Rebecca parece deixar o namorado de Sara vivo apenas porque sua presença é conveniente para o restante da trama) - e por mais indícios que o roteiro tente fornecer (como suas orelhas não furadas, seus desenhos, os eventos que ocorrem durante a estadia na casa de seus pais), sua figura nunca convence e seu problema psicológico nunca é explorado, ele apenas existe e serve como pretexto para conceber uma personagem ambígua e que causa ameaça para a protagonista e todos ao seu redor. “The Roommate”, infelizmente, ainda encontra espaço para dispor de diversas convenções de filmes de horror, como a trilha sonora, que é mal utilizada tanto quando tenta sair do comum e ser moderna, ao empregar músicas pops nas cenas, quanto quando emprega toques incidentais gritantes e genéricos, nos determinando os momentos de suspense e apreensão sem nenhuma sutileza. Podemos testemunhar também sequências e comportamentos de personagens tirados sem nenhuma alteração de outros filmes de terror (como as sequências na biblioteca e no banheiro nos dizem), além de um típico clímax que apela para uma culminação agitada dos eventos, soando clichê e ridículo demais. O final do filme ainda sugere um trauma (apesar de não parecer) da protagonista após todos os acontecimentos. Mas com um namorado daqueles ela provavelmente esquecerá de tudo o que aconteceu. Pelo menos é essa a impressão que fica quando chegamos aos créditos. Passageiro como um andarilho, este “The Roommate”.
Attenberg
3.3 74 Assista AgoraPalavras como “estranho”, “curioso” e “peculiar” são perfeitamente apropriadas para uma definição sintetizada de “Attenberg”; são aquelas que rapidamente surgem em nossas cabeças durante e depois do filme. E realmente o filme é estranho, curioso e peculiar, mas isto não é necessariamente bom nem ruim, depende. Aqui, a direção da também roteirista Athina Rachel Tsangari se mostra hábil ao conceber tomadas frias, cruas e objetivas, que eficientemente traçam o arquétipo da relação entre seus três personagens principais - a garota de ingenuidade sexual, sua amiga promíscua e seu pai moribundo -, além de estabelecer um bom clima e abarcar o interesse do espectador com seus enquadramentos atenciosos e por vezes atípicos. Mas ainda que promova uma abordagem adequada e eficiente, a diretora tende a conceber cenas que não se justificam narrativamente, como toda uma sequência musical entoada por duas personagens, que, embora conceitualmente interessante e bem executada, parece ter sido realizada apenas pelo simples prazer lúdico da cineasta. O mesmo vale para as cenas em que as duas personagens, Marina e Bella, protagonizam uma série de dancinhas esquisitas, que não fazem absolutamente nenhum sentido contextual e que mesmo as olhando como apenas cenas avulsas com algum tipo de comentário, tampouco demonstram ter algum propósito além do aparente objetivo com a qual foram executadas: acentuar a esquisitice do longa. E é este o grande problema de “Attenberg”, os objetivos, que parecem enrustidos em demasia, chegando a não fazer sentido pleno quando meditamos sobre suas intenções. Da metade de seu segundo ato em diante, por exemplo, o filme entra em um laço de cenas que não deixam de sugerir, porém nunca concluir um pensamente. O filme se torna repetitivo, desconcentra-se do que antes dera atenção e conclui-se de uma maneira desafiadora para o espectador, que de alguma forma deve desvendar a metáfora incitada pelo final, mas que quando realmente refletida e considerada, acaba não justificando a falta de sentido narrativo que a roteirista Athina Rachel Tsangari atribui à história. Sugerindo uma série de associações entre o primitivo e o animalesco com os condicionamentos sexuais de sua protagonista - que apesar de concernir o sexo como inerente ao ser humano, tem dificuldades para manifestá-lo em si mesmo, chegando até a cogitar possuir uma espécie de assexualidade -, a diretora cria uma personagem instantaneamente interessante, mas que perde todo o sentido de sua idiossincrasia conforme dá andamento à trama, que se vira para o tema da morte (o pai de Marina está prestes a morrer) e deixa seus problemas sexuais de lado. O fato de pouco definir a maneira como a doutrinação de Marina a deixou daquela forma e como suas ações e complexos se relacionam com o quadro geral da trama, distanciam o comportamento da personagem do palpável e comprometem a aparente proposta do filme - a de criar um ensaio comportamental humano. Não há como considerar “Attenberg” um estudo de comportamento humano, pois qual o fundamento dos condicionamentos de Marina, afinal? Qual é o ponto que o filme quer firmar, afinal? Marina sente uma fascinação pelas condutas animais; foi repreensivamente educada por seu pai; vive em uma cidade uniforme e tudo isso a moldou - o que é posto de forma a nos impressionar e dizer algo, mas não há nenhum vínculo com o tangível, então, qual o sentido? No fim, Marina é apenas uma personagem estranha e arbitrária, em um filme narrativamente desconexo e confuso que falha ao não estabelecer uma conexão com o real. Apesar disso tudo, o ritmo de “Attenberg” é uma surpresa deveras agradável, e a junção do apático, do atípico e do terno mantém filme sempre fresco e conceitualmente interessante. Porém, passa longe de recompensar o espectador após assisti-lo, seja pelo falho desenvolvimento de sua história ou pelas inconsistentes reflexões que propõe gerar com ela.
Para Sempre Lilya
4.2 868Mesmo com tamanha profundidade, “Lilja 4-Ever” não deixa de tomar caminhos narrativos comuns; o tema de sua história logo entrega os próximos passos dela, e com exceção do ato final corajoso e intenso, o restante do filme é bem aquilo que podemos prever enquanto o assistimos. Mas considerando suas aspirações dramáticas, a reprodução sem muitas inovações do submundo da personagem Lilja é seca e bastante legítima às consequências que suas submissões podem acarretar. E nada mais adequado para retratar a decadência e miséria de uma adolescente com poucas chances na vida do que uma personagem como Lilja. Ao contrário do que podemos encontrar em filmes de temática semelhante, Lilja é uma figura fascinante não por, apesar de sua condição de vida precária e humilhante, ser inteligente, astuta e persistente, mas justamente pelo contrário de tudo isso. Lilja é uma adolescente cujo apoio materno fora insuficiente durante seu crescimento, e suas condições sociais tampouco a favoreceram para evoluir bem; sua indisposição para pelo menos acrescer intelectualmente é uma eventual causa do meio em que vivia, onde curtir com os jovens de sua idade sem nenhum senso de moderação parece muito mais divertido do que a aborrecedora escola. A garota Lilja se mantinha presa ao que fora feito dela e ao que a cercava, fazendo com que sua vontade de fugir, de sair daquele país, fosse o maior sonho a ser cultivado pela mesma. Portanto, a ingenuidade e ignorância inerentes em Lilja surgem como elementos absolutamente naturais da personagem - e o filme merece reconhecimento por manter tais características da protagonista intactas e salientes até o seu exato fim. A jovem Lilja também divide momentos de penúria e alegria passageira com um garoto, Volodya , que se torna um eventual amigo e companheiro, demonstrando que a desgraça compartilhada, apesar de fazê-la dupla, acaba sendo mais suportável. Assim, é interessante como quando Lilja deixa Volodya (em um ato que imediatamente nos remete ao da mãe da garota abandonando a mesma), este se entrega à morte como se ela fosse a maneira mais fácil e imediata de cessar a angústia que o corroia e que fora intensificada depois de perder a companheira com a qual enfrentava as dificuldades. Aliás, caminhos fáceis são percorridos por todos os personagens; na falta de comida, cheiram cola para inibir a fome; na falta de dinheiro para pagar as contas e poder comprar algum alimento, a prostituição surge como meio acessível e bem remunerado - e é por explorar os restritos caminhos e decisões tomados pelos personagens, que “Lilja 4-Ever” ao mesmo tempo em que nos apresenta o esperado, também nos apresenta o real. Satisfatoriamente, o ato final do longa assume uma postura ainda mais intensa; a armadilha que Lilja perigava cair, na mais pura e ingênua esperança de poder mudar de vida, foi confirmada, e o receio que as cenas provocam no espectador é tangível. Surpreendendo com enquadramentos que ressaltam a morbidez que Lilja passa a encarar em seu trabalho como prostituta na Suécia (os que focalizam, sob o ponto de vista da personagem, seus clientes durante o ato sexual), Lukas Moodysson aplica uma abordagem completamente apropriada ao seu filme, com a câmera na mão, sempre investindo em movimentos, a fim de transmitir a inquietação das situações e dos personagens e conferir realismo às imagens (o que também é obra da natural fotografia) - e com muita segurança, mantém os pés no chão e o realismo de seu filme até mesmo quando aposta em sequências não reais, sequências essas que desempenham um papel importantíssimo no final da trama, traçando com coerência, profundidade e emoção as últimas linhas da história da fascinante e real personagem que é Lilja e - por que não? - tantas outras como ela.
Bem-Vindos
4.0 47Retratando a vida de uma família setentista de aspirações politizadas e ideológicas, Lukas Moodysson cria com este “Tillsammans” (Bem-Vindos) um drama familiar que tem a capacidade de gerar múltiplas sensações, se mostrando bem sucedido tanto no humor pessoal que possui quanto no comovente drama, arraigado pelos valores e pelas inclinações políticas da geração que trata. A narrativa de “Tillsammans” se mostra interessante desde o seu princípio ao introduzir de forma eficiente e curiosa a dessemelhante para os dias atuais, mas casualmente cabível para a época, família que passamos a acompanhar pelo restante do filme. Curvando seus ideais para os valores socialistas e contraculturais, parecendo uma grande comunidade de hippies, a família do filme é formada pelas mais diversas figuras: a recém “transformada” em lésbica; o neurótico político que defende com afinco seus ideais; o casal que mantém um relacionamento aberto; uma mulher que acabara de deixar o marido; seus dois filhos pequenos e curiosos; e por fora, não constituindo o ambiente em que vivem, o próprio pai deles, um homem instável que sente a amargura por estar longe de seus filhos e esposa; entre outros. Com tantos personagens, Moodysson trata de conceder espaço para todos eles mostrarem quem realmente são, criando sub-tramas para cada um deles e as desenvolvendo de maneira eficiente e fluida. Lukas distribui as tramas dos personagens em espécies de segmentos, sempre revezando a atenção e voltando a eles, progredindo suas histórias com sensibilidade e eficácia (a sub-trama paralela do pai abandonado pela esposa e seus filhos jamais compromete o ritmo da narrativa, sendo ela a única que se passa fora da casa onde os demais personagens moram), e permitindo também com que a peculiaridade do ambiente familiar em que vivem frequentemente espaireça um humor espontâneo de apreciação inevitável.
Já o drama da família se intensifica de uma forma curiosa: prezando pela liberdade e pela vida em comunhão, constantemente expondo seus recém chegados membros (inclusive as crianças) ao liberalismo sexual e aos princípios tipicamente hippies que aspiram, como o vegetarianismo e a reclusão dos produtos de alienação capitalista (como a televisão, a coca-cola, etc.), os alicerces familiares dos personagens se desestabilizam quando são cada vez mais atraídos pelos tradicionais costumes de outras famílias, integrando os produtos e hábitos comumente mantidos por elas (como a própria televisão). E dessa forma, a esposa que abandonara o marido e se aproximara da lésbica liberal, se sente atentada pela persistência do marido em voltar para sua vida, da mesma forma que seu irmão, o que vivia em um relacionamento aberto com uma promíscua jovem, expulsa esta imediatamente de casa em uma cena que assusta pelo ímpeto impulsivo que o personagem tem - e que é estimulado pelo comportamento de sua própria irmã. Aos poucos, ainda que não inteiramente, esta deliciosa família regressa aos eixos da realidade, mas não deixando de ilustrar a vida em conjunto - possível justamente pela discordância e descompromisso que um possui pelo ideal do outro; pelo conformismo e inconformismo pelo meio social existindo juntos, de uma forma em que todos se sintam bem-vindos, e não pressionados por um convívio discordante de suas ideologias. Lukas Moodysson trama a história de cada personagem com precisão, e conclui sua narrativa com um plano terno, simpático e que resplandece a temática do filme; também elevando pertinentemente o volume de uma revigorante canção e integrando não só os personagens, como também o espectador ao mágico instante final de sua história que representa toda a satisfação que a louca vida em conjunto mostrada aqui proporciona.
A Lenda dos Guardiões
3.6 1,2K Assista AgoraEmbora não se possa discutir com o fato de Zack Snyder criar aqui uma animação de gráfico apurado que vez ou outra invoca a atenção e admiração do espectador, é muito difícil dar créditos para "Legend of the Guardians", pois mesmo merecendo as poucas ressalvas positivas a respeito de seu visual, este se torna um componente mísero e praticamente insignificante do filme, já que ele nunca deixa de incomodar o espectador com seu roteiro medíocre, clichê, convencional e totalmente oposto, em questão de inventividade, ao seu visual. E mesmo quando se fala de visual, "Legend of the Guardian" é um filme de erros e acertos: o vicioso uso da câmera lenta (mais vicioso pelo excesso de uso na filmografia de Snyder, não neste filme particularmente) soa arbitrário demais e custa surgir em tela como um artifício eficiente e empolgante; o mesmo vale ser dito sobre a fotografia, que ao mesmo tempo em que cria cenas cujo contraste de cores impressiona (como quando o protagonista voa em meio ao fogo, realçado pela cor laranja, até adentrar nos realçados raios azuis), também opta pela obviedade visualística ao empregar em certa cena dois personagens mal intencionados discutindo um plano secreto enquanto seus semblantes são parcialmente cobertos pela sombra. Mas analisar o visual de "Legend of the Guardian" é quase um exercício sem sentido quando lembramos de seu roteiro, que coloca tudo no filme a perder. Além de uma trama convencional e vergonhosamente previsível, o roteiro do longa ainda conta com lemas e pensamentos pueris e batidos em excesso (pra não dizer ridículos em excesso). Coisas como "nós somos o que sonhamos" e "honra é mais uma palavra para 'fraqueza'" surgem como bordões maniqueístas risíveis e ainda mais ridículos por serem utilizados como verdadeiros motes para amarrar a temática do filme. “Legend of the Guardians” peca também no desenvolvimento dos personagens, que recebem uma introdução corrida e nunca chegam a conquistar a empatia do espectador, servindo como meras peças que parecem se comportar apenas de acordo com as necessidades da trama. (Além de jamais convencer ou dar razões o suficiente para o fato do irmão do protagonista atuar ao lado dos vilões, o roteiro passa por cima das dificuldades do personagem principal de forma completamente inorgânica e conveniente - como quando ele e sua companheira (ambos péssimos voadores até então) simplesmente saem voando com destreza ao terem de fugir de uma situação perigosa). Também nunca desenvolvendo e explorando sua mitologia com clareza ou um mínimo de brilho, fazendo da boba jornada fantasiosa dos personagens um completo desperdício do universo que os acerca, “Legend of the Guardians” não consegue nem ser bem sucedido nas poucas oportunidades que encontra para arrancar alguma risada do espectador (que são realmente poucas, é verdade, mas todas tão forçadas que rir é a última coisa que passa pela cabeça de quem assiste). Absolutamente dispensável por seus clichês, convenções narrativas, personagens destemperados, trilha sonora genérica e - o que destoa - o bom, porém nem tão espetacular visual, “Legend of the Guardians” passa incrivelmente longe do divertimento e significância que ao menos deseja ter.
Amigas de Colégio
3.4 216"Fucking Amal" retrata um pedaço bastante íntimo da vida de jovens na exata fase da "crise de adolescência". E o filme firma a ideia de que uma típica crise de adolescência não deve ser encarada apenas como uma mudança natural e efêmera na personalidade de quem a tem, mas algo significante para o ser pro resto de sua vida, podendo até mesmo determinar princípios futuros ou até levar os jovens a terem trágicos destinos precocemente. Por entre estas visões, o diretor e roteirista Lukas Moodysson desenvolve um drama juvenil que ao mesmo tempo em que surpreende e comporta com fidelidade todos os elementos mais preocupantes e mórbidos dessa fase da vida, também abarca o espectador em um romance angustiante que, já diferencial pelas sexualidades controvérsias e oposições populares de duas garotas, ainda consegue ser belo e provocador sem apelar para os exageros. Aliando uma fotografia de textura granulada - conferindo um ar de filme caseiro - com a câmera sempre em mãos, o diretor Moodysson ainda lança mão de enquadramentos sempre estreitos, em um estilo de filmagem próximo ao do documental, reforçando assim a expressividade dos personagens e a verossimilhança de suas figuras, dos ambientes ao seus redores e dos acontecimentos que os atingem. Aliás, os acontecimentos de “Fucking Amal” são inteiramente palpáveis, reproduzindo a rotina e evocando os sentimentos de seus jovens personagens como realmente costumam ser na realidade; já a trama se desenvolve dentro de um espaço de tempo bastante curto (algo em torno de três, quatro dias), sempre se passando em ambientes fechados, condizendo com o que basicamente a vida dos jovens abrange e também ressaltando um dos assuntos levantados pelo filme (e que é de total influência para a maneira como os adolescentes aqui são): a sensação de claustrofobia social, sexual e territorial. O próprio título do filme, por sinal, reflete o ódio da garota Elin (e demais de sua idade) pela cidade em que vive, pelos sonhos repreendidos que obviamente se expandem para muito além de uma pacata e pequena localidade onde nada de interessante e excitante parece acontecer (além, é claro, das inúmeras festas frequentadas por adolescentes, que no final acabam sendo meras festas regadas de bebida, drogas e azaração. Ou seja: nada que satisfaça os ambiciosos sonhos adolescentes). Lukas Moodysson também é inteligente ao abordar com sutileza mas clareza a omissão sexual das garotas do filme, que com exceção das eventuais brincadeiras vindas dos colegas de escola, não sofrem de repreensões explicitas por suas naturezas sexuais, mas sim pelo receio em admitirem isso para os outros e até para elas mesmas (no caso de Elin). E mesmo assim, o diretor não deixa de comentar, ainda que breve, o preconceito e desconcerto que pessoas ainda têm sobre o assunto, mesmo quando dizem não o ter - como fica claro na cena em que a mãe de Agnes, demonstrando complacência pelo tema, explica para o filho mais novo o que é ser “lésbica”, para logo depois ficar claramente incerta diante da revelação de que sua própria filha é uma homossexual. Ainda desenvolvendo seus personagens coadjuvantes de forma eficaz e simples, não se limitando apenas às duas protagonistas, porém tampouco desviando a atenção delas, o diretor Lukas Moodysson demonstra com este “Fucking Anal” um olhar admirável e realista sobre uma geração e uma capacidade tremenda de manipular seus dramas e dar devida atenção às nuances inclusas neles, servindo ao filme não apenas para chocar, mas para nos expor a necessidade latente que qualquer jovem - e, talvez, qualquer ser humano, de qualquer idade - de se dispersar nas mais variadas formas. Afinal, muito do que há dentro de nós e além de onde vivemos pode ser muito mais interessante e gratificante do que o que comumente vivenciamos; reprimindo e limitando o que sentimos e o que podemos.
Ela é Demais pra Mim
3.1 736 Assista AgoraEncarnando um nerd de baixa auto-estima, inexperiente com relacionamentos amorosos (o filme nos apresenta apenas uma ex-namorada do personagem - que o deixara) e que leva uma vida longe do ideal que gostaria (aliás, nem sequer gostaria, pois nem os sonhos passam por sua cabeça), Jay Baruchel compõe um tipo real e amigável de protagonista. Seu personagem, Kirk, se beneficia como o principal desta comédia romântica sobretudo pela atuação de Baruchel, que se mostra extremamente à vontade no papel e espontâneo para explorar tiques e trajeitos nervosos que jamais parecem forçados. E é justamente por Jay e seu Kirk que She's Out of My League funciona nos níveis que propõe trabalhar: ele é casualmente engraçado quando investe nos desajustes de Kirk (a cena em que ele acidentalmente se passa por um garçom do restaurante onde estava é engraçadíssima), é envolvente com sua paranóica trama amorosa e por instantes até nos faz sonhar junto de seu protagonista, que pode ou pelo menos poderia se parecer com qualquer um de nós. Todavia, She's Out of My League não se mostra totalmente satisfatório em demais aspectos; a trama formulaica, por exemplo, não é evidente durante quase toda a primeira hora do filme - coberto pelos momentos mais engraçados e inusitados da história -, mas no momento em que os segmentos habituais de seu gênero passam a ser mais notáveis do que seu humor ou a história em si de seus personagens, sabemos que a diversão do filme está sendo sabotada pelas repetições narrativas que não deixam de ser empregadas aqui. É de suma importância - e de extrema justiça -, mais uma vez, ressaltar a atuação de Jay Baruchel no longa, sendo o personagem que interpreta uma figura comumente vista em comédias românticas modernas (aquelas que tratam do sujeito “nerd”), porém destoante pela composição vivaz de Baruchel que, no entanto, não esconde o senso de inferioridade que seu arquétipo possui (mas também não o denota a todo o instante e não o faz artificial); na verdade, Kirk é um rapaz que parece até curtir se auto-ironizar, talvez como forma de defesa ou até como forma de alivio por se considerar realmente inferior aos outros e, principalmente, às belas mulheres - e esse conjunto de características é um aspecto muito bem-vindo que o roteiro traz para que Baruchel possa trabalhar em cima. (Enfim, Kirk é nota cinco; já a bela personagem de Alice Eve, Molly, é definitivamente uma nota dez). Dito isso sobre Kirk e Baruchel é interessante notar que seus amigos surgem como figuras típicas, apoiando o humor que ronda o protagonista, porém ora surgem com boas piadas ora com piadas um pouco forçadas - e no final a proporção de erros/acertos é relativamente negativa, e durante vários momentos apenas torcemos para que Kirk possa sair logo de perto deles, ainda que seja compreensível a importância que têm para o personagem e para o desenrolar da história. O mesmo não pode ser dito dos personagens de sua família, no entanto, já que aparecem em pontuais momentos onde demonstram não só a falta de confiança e apoio moral que têm por Kirk, como também a capacidade que têm para constranger o rapaz diante de uma nova e “acima da média” namorada. O ato final de She’s Out of My League é certamente o que mais deixa a desejar, não só por realçar sua trama formulaica como também por deixá-la incrivelmente clichê e até mesmo exagerada (os acontecimentos apressados e forçados no aeroporto extrapolaram o bom-senso que a trama tinha até então). Mas é só surgir Baruchel em tela que se torna fácil indultar todas as falhas do longa por uns instantes e apreciarmos um final mais comédia romântica impossível. Jay Baruchel tem definitivamente um excelente olhar para o humor, e quando bem apoiado pelo roteiro, consegue arrancar muito de uma simples e ordinária comédia romântica como essa. Só é uma pena o filme que já tem muito dele não ter ainda mais.
O Besouro Verde
2.7 1,1K Assista AgoraA única maneira de realmente engolirmos a puerilidade do roteiro de “The Green Hornet” é encará-lo como uma paródia sobre uma dupla de heróis noturnos. Mas quem dera fosse tão simples encará-lo dessa forma, pois “The Green Hornet” pouco sabe se quer ser uma paródia (mas definitivamente quer ser engraçado) e pouco sabe se quer ser também um longa de ação eficiente (mas definitivamente quer apelar para a destruição massiva de seus sets de filmagens para assim causar alguma empolgação em quem assiste). Pode-se dizer que o filme de Michel Gondry quer ser os dois, mas infelizmente não cria boas ironias ou situações minimamente engraçadas (salvando-se algumas falas engraçadas aqui e ali) e assume uma trama esquemática que termina de cair no abismo quando nem ao menos consegue criar bons personagens para acompanharmos durante sua aventura. Temos no filme a companhia do milionário Britt como o Besouro Verde, um herói completamente estúpido e infantil; e por assim ser, Britt não é um personagem que oferece ao espectador um olhar engraçado sobre sua idiossincrasia em contraste com seu almejo em ser um herói, mas sim um profundo desgosto por nunca ser interessante e carismático - o que é um grande malfeito, já que Seth Rogen, seu interprete, possui um carisma natural inegável. E não só Britt é um péssimo protagonista, nulo em personalidade e complexidade, como também é prejudicado pela interpretação do próprio Rogen, que encara o seu tipo habitual, não trazendo nenhuma variedade para uma figura já ruim. Seth Rogen ainda lança mão de uma inexpressividade evidente nos momentos em que seu personagem deve sentir algum pesar e apenas sabe proferir os diálogos engraçados com um tom sem personalidade e infantil. Aliás, a infantilidade é regente neste longa, revelando ainda mais personagens desinteressantes, como o vilão canastrão encarnado por Christoph Waltz, que é ridículo em objetivos e ações; o mesmo vale para o companheiro do Besouro Verde, Kato, que apesar das várias facetas que possui, se entrega à estupidez junto de seu parceiro Britt e sai pelas ruas causando alvoroço como se não possuísse um mísero relance de inteligência. “The Green Hornet” ainda tem seus momentos satisfatórios quando concebe algumas cenas de combates visualmente impressivas e outras que acabam se tornando, eventualmente, engraçadas (como aquela em que Britt e Kato brigam na mansão do primeiro, destruindo tudo o que veem pela frente). Mas mesmo se saindo bem nessas pouquíssimas cenas, com que pretexto as temos? Pois “The Green Hornet” parece atropelar qualquer senso de bom desenvolvimento para ir direto ao que lhe interessa, especialmente em seu início, o que já expõe seu aspecto pueril. E para piorar, por trás disso tudo, o roteiro ainda nos faz aturar uma forma totalmente esquemática de avançar com sua narrativa, passando pelas gastas etapas como: o desentendimento entre os parceiros; o romance incrustado na história através da dispensável personagem de Cameron Diaz; a rendição do protagonista (efetuada em uma cena ridícula e forçada em que Britt se lembra/decifra as ações de seu pai - e que não funciona nem como uma piada); e, finalmente, o clímax cheio de ação, explosões, tiros e que aposta em cenas como a de um carro pela metade destruindo repartições no décimo andar de um edifício para provocar entusiasmo e excitação no espectador - entretanto, a aparência sem imaginação da trama e os risíveis comportamentos dos personagens impedem o nosso envolvimento com o clímax do filme e de extrairmos qualquer sensação dele. O diretor Michel Gondry acaba não devendo, mas pouco contribuindo com sua direção convencional para este “The Green Hornet”, e o roteiro de Seth Rogen e Evan Goldberg é um completo desastre, tanto em termos narrativos quanto em aspirações cômicas. O Besouro Verde não empolga, não traz graça, não traz interesse e passa batido com este longa metragem pouco apreciável.
Ano Bissexto
2.9 41O ritmo vagaroso empregado desde o início de "Año bisiesto" jamais denuncia a inquietação dramática que sua narrativa aos poucos passa a adquirir - o que não só surpreende em termos de direções diegéticas, como também nos revela um filme que, sendo já interessante e reflexivo desde o seu principio, se desenvolve para uma peça visceral e impressionante; um drama corajoso e que não se atém aos pudores para expor o drama de sua incrível protagonista. Utilizando-se de uma câmera sempre estática, que não induz absolutamente nenhum movimento, o diretor Michael Rowe apresenta uma lógica de direção adequada ao tom de seu filme, e elaborando enquadramentos estratégicos, permite com que seus personagens e cenas se acomodem com naturalidade diante da câmera para que possamos enxergar e entender tudo o que se passa na tela. Aliás, a naturalidade presente em "Año bisiesto" é digna de atenção: além da fotografia modesta, dispondo-se apenas da iluminação ambiente para compor suas cenas, a soberba e corajosa atuação da principal Monica del Carmen fortifica ainda mais a simplicidade do longa - e que também pode ser observada em seu humilde, comum e praticamente imutável cenário: o apartamento da protagonista Laura. Assim, trabalhando com enfoque em cima da rotina extremamente monótona de sua protagonista, o diretor traça de forma econômica e sutil a complexidade da protagonista, trazendo para a narrativa sua óbvia personalidade depressiva resultante de sua imperfeita vida amorosa, que ao invés de amor e relações seguras, são abastadas de sexo descartável com estranhos e fantasias eróticas perigosas. Para chegar a este ponto, o diretor Michael Rowe intensifica o ritmo da narrativa, gastando menos tempo com cada plano e exibindo de forma invariável o contraste do cotidiano vazio de Laura com seus frequentes encontros com um específico homem, que, diferente dos outros, se interessa pela moça e passa a realizar com ela experiências sexuais gradativas em termos de extremidades fisiológicas, envolvendo sadomasoquismo e seus mais perturbadores variantes - algo que ambos os personagens, especialmente Laura, parecem realizar a fim de expurgar suas profundas insatisfações com a vida, tendo aqueles únicos momentos de prazer como, embora arriscados, brevemente saciáveis às suas fantasias sexuais e falta de sucesso amorosos. Ainda apresentando como eixo do drama pessoal de Laura o fato de esta sentir imensamente a morte de seu pai, que no último dia do mês de fevereiro, há alguns anos atrás, viera a morrer, “Año bisiesto” eleva sua trama a um ponto de apreensão tão grande que chegamos a sentir um verdadeiro mal-estar pelos intentos psicológicos de Laura, além de um grande pesar pelo destino insano (porém ainda aplicável ao realismo do filme) que esta pode seguir. O final do filme, embora não solucione por completo a situação psicológica da protagonista, a puxa de volta para a sanidade através de duas causas pontuais, fazendo-nos reconhecer a admirável competência com que o diretor e roteirista Michael Rowe desenvolveu e encerrou este filme de abordagem comovente e difícil.
Rubber
3.2 307"Rubber" é um filme esperto, pois logo no início de sua projeção, cria um escudo envolto de si mesmo que não só tem o poder de defendê-lo das esperadas rejeições que seu argumento está sujeito a receber, como também de disparar uma arrogante metalinguagem na direção do espectador, insultando sua inteligência e se opondo às objeções vindas dele. Logo, o filme age o tempo inteiro sob um presunçoso modo, e criticá-lo automaticamente nos define como os estúpidos espectadores retratados na trama, e adorá-lo é o mais seguro e "inteligente" a ser feito. O longa, dirigido por Quentin Dupieux, propõe uma escapatória do cinema racional, e seu primeiro grande pecado reside em sua abertura: quebrando descaradamente a quarta parede cinematográfica, um personagem do filme fala diretamente para o espectador (nós e os que participam da história), explicando o propósito do filme e já se justificando por qualquer irracionalidade que possamos testemunhar ao longo de sua narrativa - o que falha duas vezes por: 1) subestimar a inteligência de quem assiste, como se precisassemos de uma explicação inserida na diegese do filme para que possamos perceber a proposta dele e apreciar (e indultar) o que este tem a nos oferecer; e 2) por usar exemplos de irracionalidade em famosos títulos do cinema completamente contestáveis (se a irracionalidade de “Rubber” pelo menos se comparasse aos exemplos de “falta de razão” encontrados em filmes como “E.T.” e “The Pianist”, eu certamente não estaria aqui julgando este detalhe). Em seguida, somos introduzidos ao que de mais dadaísta tem o filme: o pneu andante, de personalidade e matador; e é justamente focando-se nas peripécias do pneu que o filme oferece um valor lúdico, intrigante e até mesmo engraçado. A composição das cenas em que o pneu simplesmente rola e rola pelos terrenos do deserto e pela estrada, sempre contando com uma música de fundo debochada e intencionalmente extrovertida, é a única porção realmente apreciável de “Rubber”. É curioso como (ainda que tenda a repetir-se e burocratizar-se ao desenvolver o personagem do pneu) o diretor retrata suas naturezas e características - e o fato de este carregar certa semelhança com as naturezas humanas (impulsos, desejos, necessidades), porém ser obviamente limitado por sua forma física redonda e constituída por borracha, faz dele um personagem interessante e cativante (além, é claro, de bizarro, o que o deixa ainda melhor). Mas é uma pena, entretanto, que o filme nos lembre aos poucos que a irracionalidade é o ponto a ser pregado aqui, e assim insira características sobrenaturais ao pneu (desconsiderando a já sobrenatural origem do objeto), que possui poderes psicocinéticos e dessa forma explode a cabeça de suas vítimas (o que ainda é perdoável, visto que os poderes mentais surgem como uma alternativa para transformá-lo em uma ameaça à vida humana). Enquanto isso, a trama do filme não cansa de nos aborrecer com as sequências em que os espectadores contestam (e às vezes até explicam) o que vêm no filme - o que os ridiculariza ainda mais, com exceção de um bravo espectador que permanece até o final, mas que eventualmente tem sua cabeça explodida antes do filme acabar. Da metade até o seu fim, “Rubber” percorre um caminho ainda mais intragável: o pneu não é mais o centro das atenções; as situações metalinguísticas/auto-reflexivas/auto-indulgentes protagonizadas por outros personagens reforçam sua arrogância e ressaltam sua falta de lógica; é um diálogo com o espectador que cansa pela pretensão, pela insistência e pela ridiculez. Mas e se, na verdade, “Rubber” não passar de uma sátira ao excesso de razão hollywoodiano (como pode ser observado na última cena) ou até à mania de alguns artistas de rejeitá-la? Bom, eu digo que mesmo encarando “Rubber” como uma sátira, o filme falha, já que não é divertido e nem engraçado. E aí você me pergunta o porquê dele não ser divertido e engraçado. E aí eu respondo: por nenhuma razão. Dessa forma é tudo tão simples e incontestável, não?
ABC do Amor
3.8 1,1KCom exceção de algumas falhas, que parecem apenas cumprir o objetivo de abrir espaço para a trama se desenvolver (uma delas é o fato dos pais de Gabe e Rosemary estarem sempre ausentes de alguma forma), "Little Manhattan" é uma demonstração adorável, esporadicamente engraçada e genuinamente contemplativa do surgimento do amor entre um garoto e uma garota de dez e onze anos, respectivamente - um conceito que ainda soa fresco, justamente por se tratar de um casal tão jovem, mas que ainda assim perigava recair no "mais do mesmo" se não fosse a abordagem dinâmica e direta do roteiro. A narração do garoto Gabe e o ritmo aplicado na narrativa certamente beneficiam seus personagens e o desenrolar da trama; e por narrar, Gabe é quem proporciona o ponto de vista de seu gradativo apaixonamento por Rosemay. Todos os anseios, dúvidas e afobações são graciosamente abordados pelo garoto, e embora os dois pré-adolescentes se mostrem bem mais maduros do que de costume entre os jovens de suas idades, o filme permanece fiel às suas imaturidades amorosas e assim retrata o amor entre os dois de uma forma verdadeira. Já a garota Rosemay, apesar de ser uma personagem da história de seu amigo Gabe, jamais parece uma mera idealização do garoto - embora algumas sequências nunca deixem de exaltar a beleza da menina sob os olhos dele, o que é natural -, e exerce uma personalidade tão forte quanto a de Gabe, fazendo com que o espectador se simpatize por ambos os componentes desta comédia romântica. E não é apenas no pequeno casal que "Little Manhattan" manifesta seu romance: concebendo uma Nova York de atmosfera fulgurante, alegre e charmosa (tudo isso cabível para a imaginação de duas crianças), as locações respiram o conto que os garotos vivem - e ainda investe em divertidas sequências imaginárias do garoto Gabe, sem nunca extrapolar o bom senso visual. “Little Manhattan” é uma comédia romântica (mais romântica do que comédia) que vai direto ao ponto e apresenta um resultado final satisfatório, especialmente por não se entregar à ilusão do próprio tema e finalizar sua trama com uma reflexão espirituosa, não inteiramente feliz, mas bastante autêntica do danado do “primeiro amor”.
Taxi Driver
4.2 2,6K Assista AgoraA insanidade que cresce na mente de Travis Bickle parte de uma natureza que todo cidadão ordinário talvez tenha: a solidão e o desejo de interferir ou contribuir de alguma forma para reverter a imoralidade e sujeira do meio em que vive - ou, simplesmente, fazer algo de valor para si mesmo. Explorando um personagem com este potencial, Martin Scorsese, juntamente com um excepcional Robert DeNiro, concebem um retrato conturbado do cidadão comum. Mas mais do que isso, suprem o anseio de revolução inconsciente do espectador que se simpatiza com a revolta de Travis - mesmo que ainda não admita isso (ou que ainda reprove a prática dela) -, e sente ao lado do personagem toda a angústia e agitação psicológica prestes a resultar em uma execução sanguinária. A trilha sonora de “Taxi Driver”, aliada às tomadas sempre concentradas no semblante de Travis, geram um tom de ameaça - mas ainda que saliente a quase todo o instante a podridão social de pontuais localidades de Nova York, a ameaça parece ser, curiosamente, oriunda do protagonista que acompanhamos, e não do mundo ao seu redor, pois vemos tudo através de seu olhar. É claro que, como o homem que adentra o táxi de Travis (que é interpretado pelo próprio Scorsese) apenas para esperar pelo momento em que assassinará a sua mulher, há a provocação do perigo iminente por todos os lados, colocando o personagem de DeNiro em um estado que compromete sua vida. Porém, as expressões e visões de DeNiro moldam um Travis que parece sempre nos prometer uma virada de jogo; um Travis mais forte do que os outros, ainda que reprimido - e dessa forma presenciamos a tensão crescer conforme a insanidade do personagem cresce. Seus atos, digamos, insanos, não parecem muito racionais, mas precisamente emocionais e morais, o que contradiz com suas próprias medidas para fazer alguma diferença. Ao final de “Taxi Driver”, nós testemunhamos um Travis alcunhado de herói pela sociedade, mas um herói imoral; um herói que compra armas ilegais e despeja balas em malfeitores para subverter o mal; um herói que, para o mundo real, é parte verdade, parte ficção (assim como é revelado em um diálogo entre Travis e a personagem Betsy). Ou seja: Travis é verdadeiro por representar um grande número de pessoas com sentimentos semelhantes ao dele, mas ficcional pelas formas erradas com que toma suas atitudes. Ele é uma contradição, e por pouco, executando cafetões ao invés de um candidato à presidência, Travis se consagra como herói, especialmente por sua postura bem mais ativa do que aquele que pretende consertar tudo por meios políticos - e o excelente fim do filme deste herói nos dá a oportunidade de sentir o mesmo prazer que o personagem obtém: a satisfação por uma diferença feita, principalmente, para si mesmo.