Certamente, um dos filmes mais polêmicos do Século XX, sobretudo com relação às denúncias de assédio sexual que permearam sua produção. Entretanto, baseando-se estritamente na fruição do filme, é possível extasiar-se com obra-prima que Bertolucci constrói em “Último Tango em Paris”. Excessivamente reconhecido por suas cenas de sexo até mesmo entre aqueles que nunca assistiram ao filme, “Último Tango em Paris” não é, ironicamente, uma obra que gira em torno disso; o sexo, para aquele casal – dois estranhos que se encontram por acaso num apartamento vazio e, imediatamente, se entregam a um relacionamento puramente sexual – funciona como sintoma de uma profunda inquietação e também como seu remédio. Mais importante que o sexo em si, é a dinâmica psicológica e emocional entre os dois e que já começa a se desenvolver no instante em que se encontram pela primeira vez: ele, enlutado e portando uma profunda necessidade de evadir, tenta se esconder na escuridão; enquanto ela, do alto de sua jovialidade e vigor, insiste em abrir as janelas, permitindo que a luz tome conta do ambiente (uma imagem que parece repercutir numa canção de Vinicius de Moraes – “quero as janelas abrir / para que o sol possa vir / iluminar nosso amor...”).
Estruturalmente, há que se notar o excepcional trabalho de atuação realizado por Marlon Brando; sem render-se a maneirismos, ele frequentemente evoca a condição emocional do protagonista Paul, através de suspiros, hesitações, pequenas exclamações ou movimentos com a cabeça. A estreante Maria Schneider, por sua vez, também permanece visível e apresenta atuação elogiável, mesmo contracenando com um ator da envergadura de Brando; sua Jeanne transita fluidamente de uma completa vulnerabilidade – sobretudo nas cenas em que se entrega sem resistência a Paul; ou quando assistimos ao seu inerte noivado com o cineasta Tom (Jean-Pierre Léaud) – a uma força incontestável, que certamente culminará na impactante sequência final. Bertolucci é quem concatena a força dessas duas atuações através de um enredo recheado de simbolismos e referências, e privilegiando mais a composição das cenas e a direção de atores que a palavra falada em si mesma.
Inscrevendo-se na mesma linhagem de filmes como “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998) e “Snatch: Porcos e Diamantes” (2000) – suspenses policiais repletos de reviravoltas e desfechos inesperados –, James Foley constrói “Confidence”, um filme povoado por personagens inteligentes, interpretados por um elenco de primeira categoria, mas que, entretanto, não alcança um resultado excepcional. Em alguns momentos, o filme até engrena num espetáculo mais bem elaborado, mas, lamentavelmente, o roteirista Doug Jung acabou cometendo um erro fulcral: debruçando-se imensamente na elaboração de uma trama cheia de surpresas e reviravoltas, o desenvolvimento dos personagens acaba passando ao largo. Consequentemente, admiramos a engenhosidade e surpreendemos com o tal “golpe perfeito”, mas não nos importamos muito com seus resultados, justamente porque os personagens envolvidos na trapaça não nos inspiram carisma ou admiração.
No filme, não faltam clichês: Jake Vig (Edward Burns) é um trapaceiro sedutor que, junto com sua gangue de ‘atuadores’, acabou de roubar milhares de dólares do contador Lionel Dolby (Leland Orser). Embora tudo pareça ter dado certo, tão cedo Jake descobrirá que o dinheiro pertencia a um chefão do crime organizado de Los Angeles, o excêntrico Winston King (Dustin Hoffman; sem dúvidas, o melhor do filme). Para tentar acertar as contas com King, Jake aceita liderar uma missão com o objetivo de roubar cinco milhões de dólares de Morgan Price (Robert Forster), um advogado e banqueiro ligado à máfia. Juntam-se ao bando Lupus (Franky G), um homem de confiança de King, e Lily (Rachel Weisz), uma femme fatale por quem Jake se apaixona. Porém, em sua cola, ressurge um incansável e igualmente excêntrico agente do FBI, Gunther Butan (Andy Garcia).
Baseando-se num romance de Sérgio Sant’Anna, Beto Brant entrega um drama potente no qual desenvolve uma reflexão muito pessoal acerca da arte e do ofício do artista, do desejo e do fetichismo. Tal como em seus filmes anteriores, a história parte de um ato de violência: porém, neste caso, não se trata de uma afirmação, mas de uma interrogação. Da mesma forma que o leitor de Sérgio Sant’Anna é conduzido através de um labirinto de dúvidas por um narrador em primeira pessoa, o motor do filme de Brant são as interrogações; embora, neste caso, o veredicto seja mostrado claramente numa cena que evidencia a violência sexual consumada. Estruturalmente, o filme é montado de modo a ressaltar as fronteiras: ficção e documentário, cor e P&B, teatro e cinema, desejo e controle, crime e delicadeza, etc. Numa das cenas que reproduzem peças teatrais, o personagem de Mateus Nachtergaele diz uma fala que talvez seja uma das chaves que melhor conduzem à interpretação do filme: “todo homem é um abismo; a gente fica tonto quando olha pra dentro dele”.
Em “Crime Delicado”, o jornalista Antônio Martins (Marco Ricca) é um respeitado crítico teatral que leva uma vida solitária e autossuficiente. Enquanto crítico, ele deve ter domínio sobre as artimanhas da narrativa, além de separar com destreza a realidade da ficção. Porém, certa noite num bar, ele conhece Inês (Lilian Taublib), uma mulher atraente, desinibida e sem uma das pernas. Desenvolve-se a partir deste momento, um envolvimento sexual entre os dois. Porém, a imagem de Inês transforma-se logo numa obsessão para Antônio; e quando ele descobre que ela serve de modelo às pinturas eróticas de José Torres Campana (Felipe Ehrenberg), um pintor mexicano radicado no Brasil, tem uma crise de ciúmes que o levará à ruína. Através da devoção à musa Inês, cada qual (Campana e Antônio) a seu modo fará entrever sua visão sobre a arte e o processo de gestação artística.
A pandemia do novo coronavírus, decretada a nível global pela OMS em 2020, suspendeu a “ordem natural” das coisas, impondo restrições, isolamentos, além de perdas inesperadas e muito sofrimento. No começo, enquanto os cientistas e pesquisadores se desdobravam para determinar as melhores medidas sanitárias para se lidar com o vírus, além de debruçarem-se na busca pela vacina, a população cedia ao caos da desinformação e do medo. É justamente neste contexto espaço-temporal – os primeiros meses da pandemia, quando o lockdown foi decretado nas principais capitais do mundo – que se ambienta o novo filme de Dany Boon, uma comédia hilariante original da Netflix, que tem dividido opiniões entre o público e a crítica. O filme contempla o dia-a-dia de sete famílias que vivem num mesmo edifício em Paris; condenados ao isolamento, o lockdown revelará o que há de melhor e de pior entre eles.
Em defesa de “Mais que Amigos: Vizinhos”: no filme, a comédia de situações se vale do exagero como recurso narrativo para alcançar o elemento cômico. Dessa forma, uma série de estereótipos revelados durante a pandemia vem à tona de maneira muito convincente, justamente porque, da parte da audiência, é possível reconhecer tais estereótipos em nosso próprio círculo social: por exemplo, há o neurótico hipocondríaco que suspeita dos mínimos sintomas, o personal trainer que engordou excessivamente nos meses de isolamento, a senhora que foi obrigada a fechar o seu comércio, o sujeito que acredita em fake news e medicamentos sem eficácia comprovada (muito semelhante aquele tiozão bolsonarista que não se vacinou e que acredita na eficiência da hidroxicloroquina, ivermectina, etc.). Nesse sentido, o filme se apresenta como uma crônica bem-humorada e despretensiosa de um momento histórico muito recente, que embora ainda nos assombre, nos faz reconhecer nós mesmos nos personagens e nas situações de graça, ternura e emoção. Ao final do filme, ainda se ensaia uma lição moral: afinal, o isolamento, que colocou a todos na mesma situação, acabou aproximando vizinhos que, outrora, não conheciam nem o nome uns dos outros.
O caráter de “Pink Flamingos” já vinha estampado em seu cartaz: “um exercício de mau gosto”. E é exatamente isto que John Waters e seu Dreamlanders (o grupo queer de amigos excêntricos que ele liderava em Baltimore) entregam e, assim, arrombam o esfíncter da “boa moral” estadunidense. O questionamento à cartilha do comportamento “normal” vem na forma da exacerbação do desvio: a perversão é a regra e o valor primordial diz respeito a ser considerada “a pessoa mais grotesca do mundo”. A musa desse universo desviante não poderia ser outra: Divine, uma travesti sem escrúpulos e orgulhosa de ostentar o referido título. A proposta estético-política de John Waters transcende as verdades heterosexistas que têm sustentado historicamente as relações entre corpo, gênero e sexualidade; assim, através do exploitation de temáticas-tabu, ele manda pelos ares a “boa” moral e os “bons” costumes.
Filmado nos arredores da cidade natal de Waters, Baltimore, “Pink Flamingos” descreve a vitória inevitável de Divine, que atende pelo pseudônimo de Babs Johnson e vive num trailer com sua família igualmente excêntrica – a qual inclui seu filho hippie e delinquente, Crackers (Danny Mills), sua mãe obesa que vive num berço e é obcecada por ovos, Edie (Edith Massey), e sua companheira de viagem, Cotton (Mary Vivian Pearce). A disputa é travada contra o casal Connie (Mink Stole) e Raymond Marble (David Lochary), conscientes e orgulhosamente anormais em termos de comportamento desviante e imoral, pela conquista do título de “a pessoa mais grotesca viva”. Obviamente, de ambos os lados, a defesa do argumento se dá através das práticas mais perversas, bizarras e nojentas que se possa imaginar.
A filmagem granulada e de aspecto caseiro ressalta a experiência de se ver o filme como uma obra-prima trash, talvez o “melhor pior” filme já feito.
Condensando o espírito hollywoodiano clássico, “O Grande Motim”, lançado pela MGM em 1935, é uma obra-prima do cinema de estúdio. O cuidado impecável com a cenografia, o caráter de diário de viagem e a moral resultante da ação central (a do enfrentamento à autocracia de um capitão tirânico e cruel) tornam-no em uma aventura de extraordinária beleza. O filme consiste numa adaptação do romance histórico escrito por Charles Nordhoff e James Norman Hall com base no famoso motim liderado pelo comandante Fletcher Christian contra Sir William Bligh, capitão do HMS Bounty, um pequeno navio mercante da Marinha Real Britânica, no final do século XVIII. Em 1936, este épico marítimo de Frank Lloyd venceu o Oscar de Melhor Filme, além de ter contabilizado 3 indicações ao prêmio de Melhor Ator (para Clark Gable, Charles Laughton e Franchot Tone) – feito jamais repetido posteriormente. Aqui, Clark Gable aparece despido de seu icônico bigode (a fim de realçar a verossimilhança, uma vez que a Marinha Britânica proibia o uso de pelagens faciais), e o olhar penetrante de Charles Laughton transmite a rígida disciplina da oficialidade britânica. Em meio a isso, existe ainda uma série de subtramas; porém, o aspecto mais memorável de “O Grande Motim” talvez seja o trabalho impecável da direção de arte, que reproduz com fidelidade a atmosfera nauseante das aventuras marítimas do Século XVIII.
No final do Século XVIII, auge do controle do Império Britânico sobre sua Marinha, a tripulação do HMS Bounty se amotina depois de meses de maus tratos. A verve tirânica do capitão Bligh (Charles Laughton) submetia seus subordinados a chibatadas, fome e morte por excesso de trabalho. Os amotinados são liderados pelo subcomandante Fletcher Christian (Clark Gable); eles atiram Bligh ao mar e assumem o controle da embarcação. Bligh, por sua vez, sobrevive e retorna a terra após meses navegando num pequeno bote, num esforço espetacular. Decidido, ele empreende uma nova jornada no encalço de Fletcher Christian, na intenção de captura-lo para seja condenado à morte por insubordinação.
Paulo Betti nasceu no interior de São Paulo, na zona rural; e passou a infância e adolescência em Sorocaba. Certamente, como boa parte dos habitantes dos confins do Brasil de dentro, vivenciou a devoção popular, baseada não em dogmas institucionalizados, mas na fé pura e simples. Não por acaso, seu debute na direção de longas-metragens (ao lado do também paulistano Clovis Bueno) se deu através da homenagem e devoção a João Camargo, um ex-escravizado baseado em Sorocaba que criou fama de preto velho milagreiro, conquistou fieis e atiçou a ira da Igreja Católica por professar uma crença sincrética (de santos, encantados e orixás) no final do Século XIX e início do XX. O título do filme, “Cafundó”, baseia-se na organização quilombola que nutriu João Camargo de dons, a “África imaginada” e resistente em território brasileiro.
Lázaro Ramos é quem interpreta João Camargo. A narrativa do filme tem início em suas vivências pré-messiânicas. Tropeiro e ex-escravizado, João se deslumbra com o mundo que se transforma em seu redor (Abolição, República, etc.). Após desiludir-se com o amor que nutria pela magnética Rosário (Leona Cavalli), chega ao fundo do poço. Derrotado, ele se abandona nos braços da inspiração e, num momento de alucinação, tem uma epifania; em sonho, o Padre João Soares (Luís Melo) lhe segreda uma missão: ir ao auxílio das pessoas. Uma visão em que se misturam a ancestralidade mágica de suas raízes africanas e o aporte glorioso do cristianismo. João se crê capaz de curar, e efetivamente cura. Sua morte, nos anos 40, transforma-o numa das lendas míticas que compõe a alma brasileira e, até hoje, nas lojas de produtos afro-religiosos, encontramos sua imagem: a do Preto Velho, João de Camargo.
Através de uma narrativa linear, o filme nos vai revelando a sacralidade de um santo de devoção popular. Lázaro Ramos entrega uma atuação magnética, que transmite a veracidade dos milagres do povo. As representações dos orixás – aparecem no filme, entre outros, Exu, Xangô e Omolu – estão entre as mais belas já registradas em filmes brasileiros.
“Marighella” é um filme histórico: não apenas por retratar com veracidade “uma página infeliz da nossa história”, mas também porque dialoga diretamente com nosso tempo presente e, mais do isso, nos conclama a reagir contra as arbitrariedades e as ameaças à democracia.
A escalação de Seu Jorge como Carlos Marighella funciona como uma transubstanciação: Marighella negro é Zumbi, é um filho de Oxóssi de corpo fechado, um verdadeiro herói brasileiro; um mártir da nossa liberdade, tão necessário em 1964 quanto no nosso tempo presente. A trilha sonora – potente – rasura a narrativa realçando o teor combativo: o “Monólogo ao Pé do Ouvido”, de Chico Science & Nação Zumbi inicia o filme com uma saudação aos revolucionários – "Viva' Zapata, Sandino, Lampião, Marighella, todos os Panteras Negras etc.; a “Pequena Memória para um Tempo sem Memórias”, de Gonzaguinha, ressalta a necessidade de não se esquecer daquele “tempo onde lutar por seus direitos é um defeito que mata”; as “Mil Faces de um Homem Leal”, do Racionais MC’s traça o perfil do “homem leal” segundo o evangelho negro-marginal e de periferia. Por fim, embora não esteja presente no filme, é Caetano quem nos diz que “os comunistas guardavam sonhos”.
"Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias, De-dia não seremos nada e as ambições convulsivas Nos turbilhonarão com as malícias da poeira Em que o sol chapeará torvelins uniformes."
Esse filme me lembrou tanto esses versos de Mário de Andrade
À primeira vista, “Disque Butterfield 8” é um melodrama romântico que não resistiu bem ao teste do tempo. Apesar de operar com tópicas tabus para a época, como prostituição, machismo e abuso, o filme se coaduna a uma perspectiva predominantemente machista e conservadora, afinal ele é produto de seu tempo e espaço, o final da década de 1950 pré-revolução dos costumes. Considerando-o no âmbito de seu lançamento, pode-se identificar no filme um sentimento saudosista de uma forma de se fazer cinema que se anunciava obsoleta ante o prenuncio da renovação que os anos 1960 trariam às formas de se fazer filmes. E, nesse sentido, “Disque Butterfield 8” não teme o patético do folhetim, assumindo claramente essa forma e conquistando o espectador pela ternura aparentemente inocente (só aparentemente) e pela carga excessivamente dramática e trágica de sentimentos à flor da pele.
A trama gira em torno de Glória Wondrous (Elizabeth Taylor, esplêndida), uma mulher que aparentemente ganha a vida como acompanhante de luxo (embora o filme nos apresente isso subliminarmente; em partes, devido à censura corrente da época). Inserida, porém, num ambiente dominado e determinado pelo sexo masculino, Gloria tenta sobreviver às intempéries à custa de discriminação e desrespeito. Liz Taylor constrói uma personagem complexa, profundamente marcada pela tragédia do passado e que busca, pelas vias tortas (na perspectiva do filme, ressalta-se), um porto seguro que lhe permita apenas amar e ser amada. Ela acaba, porém, se apaixonando por Weston Ligget (Laurence Harvey, belíssimo), um homem rico e casado, mas que se encaixa perfeitamente no arquétipo do homem canalha e que somente acrescentará mais tragédia à vida de Gloria. Entre as idas e vindas da personagem, “Disque Butterfield 8” focaliza a jornada de uma mulher condenada por tudo e todos em seu redor. Ao final, o peso de uma revelação e a tragédia absoluta definem um desfecho desesperançoso e cruel.
Em 1969, George A. Romero nos apresentava ao alvorecer pandêmico da ressureição de mortos-vivos sedentos por carne humana fresca, era a madrugada dos mortos, o mundo ocidental sobrepujava covardemente o Oriente numa Guerra infame e na América, a reação conservadora resistia às conquistas dos Movimentos pelos Direitos Civis. O mundo em ebulição aparecia no écran filtrado e ressignificado pela lente de Romero: ao final do filme, os militares assassinavam o protagonista negro que havia bravamente resistido à madrugada dos mortos-vivos. Na sequência, em 1978, os zumbis despertados já haviam tomado toda a América e os poucos sobreviventes se enfrentavam e se destruíam no afã de sorver dos poucos recursos que restavam. Embora na ocasião Romero lançasse uma tentativa mítica de explicar o fenômeno, era no consumo desenfreado que consistiam os zumbis zanzando reificados pelos corredores de um shopping center.
No terceiro episódio da trilogia de Romero, “Dia dos Mortos”, de 1985, o autor embaralha os conceitos de morte e vida. Os “vivos” se protegem enterrados num bunker militar; enquanto os “mortos” formam a maioria que perambula sobre a terra. Dentre os viventes, um pequeno grupo de cientistas, liderados por um médico sugestivamente conhecido por Dr. Frankenstein, procura aferir as causas da epidemia num laboratório subterrâneo. Frankenstein, no entanto, acredita na possibilidade de educar os mortos-vivos para se adequarem a uma civilidade humana (o método que ele usa, aliás, tem muito em comum como o behaviorismo de Skinner). Romero, porém, subverte os papéis narrativos, uma vez que são os militares e não os zumbis os verdadeiros vilões da história. Enquanto os mortos-vivos agem por instinto, os militares deliberadamente se aproveitam da patente para impor um autoritarismo violento sobre os outros (bastante semelhante, inclusive, com a tendência militarista que assolava partes do mundo, apoiada financeira e ideologicamente pelos EUA, diga-se de passagem). Ao final do filme – o mais gore dentre os três, ressalta-se – o dia dos mortos chega ao fim, numa cena que simboliza uma espécie de retorno ao paraíso original.
Dez anos depois de ter rodado “A Noite dos Mortos-Vivos”, George A. Romero entregou uma espécie de sequência – mais estética e autoral que narrativa – do filme de 1968. Dessa vez, os mortos-vivos são nomeadamente referidos como “zumbis” e até existe uma tentativa de explicação que os associa diretamente à mitologia vodu de Trinidad e Tobago: um dos personagens menciona a crença de que “quando o inferno estivesse cheio, os mortos caminhariam sobre a terra”. Em “Despertar dos Mortos”, os zumbis continuam a se proliferarem, contaminando humanos vivos na sanha voraz pela carne fresca. Eles andam em bando e tomaram conta dos grandes centros urbanos. Os vivos, por sua vez, devido à incapacidade de organização coletiva, tentam fugir em grupos pequenos, mas acabam padecendo.
Logo no início do filme, Romero já alude a uma interessante oposição: enquanto a ciência intenciona esclarecer protocolos de sobrevivência, o respaldo crítico vai de encontro ao senso comum da população (qualquer semelhança com o Brasil de 2021 é mera coincidência). Os EUA estão consumidos pela epidemia e existem poucas possibilidades de sobrevivência. Nesse cenário, um grupo de quatro pessoas – os policiais Peter (Ken Foree) e Roger (Scott H. Reiniger), a jornalista Fran (Gaylen Ross) e seu namorado Stephen (David Emge) – encontra abrigo num shopping center tomado por zumbis. E eis que Romero se utiliza dessa premissa para desenvolver uma inteligente crítica à sociedade do consumo que reifica os seres humanos através de um mecanismo de sedução. A imagem do shopping center tomado por zumbis que vagam estupidamente pelos corredores ilustra metaforicamente esse processo de zumbificação do homem. Mas, não são apenas os mortos-vivos; os refugiados, que delimitaram uma área segura dentro do shopping, vivem também a sua espécie de “sonho americano”, podendo pilhar à vontade as lojas abandonadas e suprirem o fetiche pela mercadoria. A segurança do consumo, porém, é ilusória, porque do lado de fora do shopping cavernoso existe o perigo iminente, não apenas o da massa de mortos-vivos, mas também o da humanidade, capaz de devorar a si própria na ânsia de sobrevivência.
“Garotas Selvagens” é uma história de personagens sórdidos. Assumindo a forma de um suspense erótico, o filme de John McNaughton, roteirizado por Stephen Peters, funciona como uma espécie de pastiche na medida em que joga o tempo todo com a presunção do espectador (explorando à exaustação as possibilidades do “whodunit”). A trama trabalha com a oposição entre aparência e realidade e se empenha o tempo todo em desconstruir deduções e intuições, acrescentando elementos surpreendentes ao núcleo da narrativa. Porém, “Garotas Selvagens” não vai além da camada mais superficial de significação (e, francamente, nem tem essa pretensão). É um filme que surpreende pelas incontáveis e inesperadas reviravoltas e, por isso mesmo, diverte a audiência, mas que dispensa qualquer olhar mais crítico ou reflexivo.
Na história do cinema, a cena de Marilyn Monroe tendo seu vestido branco levantado pela refrescante brisa que saí do respiro do metrô é tão emblemática quanto Gene Kelly cantando e dançando na chuva ou Audrey Hepburn tomando seu desjejum diante da vitrina da Tiffany’s, por exemplo. A famosa cena de Monroe, de alguma forma habita o inconsciente coletivo ocidental, não apenas pela condição de Marilyn Monroe como sexy symbol absoluto e atemporal, mas também pela maneira simbólica como Billy Wilder apela para a imaginação do espectador e, em enfrentamento ao Código Hays (a autocensura hollywoodiana), nos brinda com uma deliciosa comédia romântica ousada e sensual sem revelar mais que as pernas da divina loura.
“O Pecado Mora ao Lado” (e, vale ressaltar, esse título brasileiro é horroroso e inadequado, na medida em que força uma associação entre o pecado e a figura da mulher) é, indiscutivelmente, uma comédia sobre desejo sexual. O título original – “The Seven Years Icht” (ou, “A coceira do sétimo ano”) – dialoga com a concepção de um personagem psicanalista que defende a tese de que o homem ao sétimo ano de matrimônio padece de um ímpeto de adultério. E é dessa tal “coceira” que sofre o protagonista do filme: o ordinário e patético Richard Sherman (Tom Ewell), um editor de livros de Manhattan, cuja imaginação frutífera o faz criar conjecturas e habitar um universo fantasioso muito particular. Durante um verão escaldante na ilha de Manhattan, ele despacha a esposa e o filho para as montanhas, sob o pretexto de permanecer na cidade a trabalho. Porém, na primeira noite de “solteiro de ocasião” ele se defronta com uma loura deslumbrante – ninguém menos que Marilyn Monroe – que acabara de se mudar para o mesmo prédio onde ele vive. A partir daí, a garota de Monroe transforma-se em mote para as maiores fantasias do Sr. Sherman, que se dividirá deliciosamente entre a vazão ao desejo e a culpa cristã.
Recheado de tiradas, frases e situações engraçadíssimas (beirando o pastelão em alguns momentos), além de uma sensualidade inerente à própria forma do filme, “O Pecado Mora ao Lado” é um filme divertidíssimo e que não perdeu o seu brilho com o passar do tempo.
A lição impressionista tomada desde a infância observando o trabalho do pai, o mestre Pierre Auguste Renoir, influenciou na concepção cinematográfica de Jean Renoir. A maneira como ele se vale de iluminações, fotografias e cenários naturais para construir significações que refletem e procuram interpretar o espírito humano é um belo exemplo da influência impressionista. Aproveitando-se da profunda desilusão que pairava no horizonte do entre-guerras – entre os destroços da Primeira e a iminência da Segunda – Jean Renoir construiu um dos mais belos e poéticos tratados de paz de todo o cinema, a obra-prima “A Grande Ilusão”. No contexto do filme, os sentidos de “ilusão” suscitados pelo título possibilitam inúmeras significações, a principal delas relaciona-se à ilusão maior de que, enfim, o mundo viveria em paz. Ponderação irônica e amarga ante o fato histórico de que, no futuro imediato, o terror maior do holocausto e da Segunda Grande Guerra assombraria o mundo.
Embora seja um filme de guerra, o interesse de Renoir não está no espaço do front em si, mas nos aspectos psicológicos e emocionais dos sujeitos que, voluntaria ou involuntariamente, ocupam esse espaço. Texto e câmera procuram se aprofundar nesses sujeitos explorando seus conflitos interiores e exteriores, buscando compreender seus papéis e interpretar a maneira como cada qual se adapta ou resiste à situação. Neste percurso, conflitos de classes e patentes vêm à tona; um oficial francês de alta-patente não é tão diferente de um oficial alemão de alta-patente: mas ambos são tornados inimigos pela imposição do dever militar. Sujeitos ordinários são vestidos de farda pelo amor à pátria ou cumprimento de protocolos militares impostos. E quando parece não haver espaço para a paz, Renoir nos brinda com a fraternidade entre sujeitos diferentes em suas vivências civis pré-guerra, mas equalizados pelo atual contexto bélico (enfim, outra grande ilusão).
“A Grande Ilusão” é uma obra absoluta não apenas pelo seu conteúdo, mas também pela primazia formal com que se nos apresenta. O filme é belíssimo em termos visuais e sonoros. Enfim, um libelo utópico pela paz que o peso da História espezinhou.
Após descobrirem que não herdariam um centavo da herança da mãe adotiva, a magnânima realeza de Hollywood Joan Crawford, Christopher Crawford ponderou: “a última palavra sempre foi a dela”, ao que Christina Crawford respondeu numa interrogação um tanto quanto ressentida: “Será?”. O fato é que um ano após a morte de Joan, Christina publicou o polêmico “Mamãezinha Querida”, livro autobiográfico no qual desconstrói a imagem de “mãe cuidadosa e amorosa” construída por Joan frente às câmeras e a apresenta como uma mulher tirânica e autodestrutiva. Obviamente, o conteúdo do livro transformou-se numa enorme polêmica: muitas pessoas saíram em defesa de Joan Crawford alegando que Christina queria apenas lucrar com uma história sensacionalista e fantasiosa. Em 1981, o conteúdo do livro foi vertido ao cinema e o filme, protagonizado esplendidamente por Faye Dunaway no papel de Joan, foi um dos mais polêmicos da década de 1980 e um divisor de águas na carreira da atriz. Embora não tenha fracassado nas bilheterias, o filme foi malhado pela crítica, mais pelo aspecto ideológico ante a desconstrução de um mito que pela qualidade estética propriamente.
Polêmicas e fatos biográficos à parte, “Mamãezinha Querida”, o filme, perfaz um vigoroso e intenso estudo de personagem. Mesmo que não corresponda inteiramente à Joan Crawford factual, a personagem de Faye Dunaway se apresenta como uma mulher amarga, frágil, consumida pelo orgulho e megalomania e profundamente dependente de emoções e sentimentos. Embora tenha sido premiada com a Framboesa de Ouro (injustamente, devido ao ressentimento causado em Hollywood pela desconstrução do mito), Faye Dunaway se apropria devotamente de trejeitos e expressões de Crawford, num trabalho brilhante que se assemelha em muito ao de Gloria Swanson em “Crepúsculo dos Deuses”. A ausência deliberada, no filme, das outras duas filmes de Joan – as gêmeas Cindy e Cathy – respaldam o fato de que, afinal, os aspectos biográficos nem são tão relevantes para a história. Acreditando ou não na narrativa de Christina, o fato é que “Mamãezinha Querida” é um filme extremamente competente, mas que foi mal-visto e mal-compreendido pela crítica especializada à época de seu lançamento.
O arco dramático / romântico da narrativa é muito bom e bem desenvolvido; o elenco principal não deixa por menos e entrega atuações satisfatórias. As cenas de batalha, com muitas explosões - no melhor estilho Michael Bay - tampouco decepcionam...
No entanto, o discurso celebratório que o filme assume com relação ao exército estadunidense é intragável. Aquele papo de que "vejam como o sofrimento pelas mortes em Pearl Harbor nos fizeram mais fortes e vitoriosos...", como se o sacrifício e a bravura de alguns "patriotas" tivesse valido à pena. Esse papo é um verdadeiro pé no saco... sem contar nos erros históricos pelos quais o enredo deliberadamente incursiona para reforçar maniqueísmos onde os EUA são sempre "mocinhos"...
Assistível somente pela trilha sonora e pela beleza do protagonista; de resto, o filme precisa melhorar uns 90% para começar a ficar ruim... A trama até que não é de toda desinteressante, mas se perde num drama romântico totalmente sem química... e o que dizer daquele CGI sofrível?: efeitos do Instagram são melhores!
... e até agora eu estou aguardando os outros dragões, conforme sugerido no título do filme...
O profetismo barroco e (pós)tropicalista de Glauber Rocha prevê uma sublevação do terceiro mundo encabeçada pelos quatro cavaleiros do apocalipse: o redentor indígena-pescador (Jece Valadão), filho da mãe-Amazonas; Dom Sebastião encarnado no messias português (Tarcísio Meira); o belíssimo Cristo-Negro de Pitanga e o Ogum-Guerreiro de Geraldo del Rey.
A hermética resposta de Glauber ao belíssimo samba-enredo apresentado pela União da Ilha do Governador em 1978 (do qual, fragmentos do desfile são apresentados no início do filme).
As entregas de José Wilker, Marieta Severo e Cláudia Abreu a seus respectivos personagens são verdadeiras aulas de atuação; Paulo Betti também está excelente. A produção, seguramente pretensiosa, expõe-nos com convicção a uma das maiores covardias da República brasileira. O filme, de inclinação épica - o que, de certa maneira justifica a longa duração - apresenta todos os elementos de uma obra bem realizada. E uma menção especial à magnífica trilha sonora assinada por Edu Lobo.
A homoafetividade entre Aquiles e Pátroclo foi completamente ignorada pelo enredo do filme... é como se Hollywood não admitisse a possibilidade de que o guerreiro-mor da literatura ocidental tivesse um relacionamento afetivo-sexual com outro homem.
Pobre ocidentalismo cristão... tantos tabus por serem superados... tantas inspirações a serem tomadas das antigas civilizações...
O professor e crítico musical Walter Garcia dizia em sala aula que o samba é uma experiência coletiva em que a dor e o sofrimento do povo negro se transubstanciam em música e dança. E é exatamente por isso que o samba é inerentemente triste - "mas pra fazer um samba com beleza / é preciso um bocado de tristeza...", ou ainda, "a tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim...", etc. Vinicius de Moraes, um dos grandes revolucionários da modernização do samba, apesar de branco, apreendia muito bem esta relação, que foi quase como que didatizada em "A Felicidade": "tristeza não tem fim... / felicidade sim /(...)/ a felicidade do pobre parece / a grande ilusão do carnaval... / a gente trabalha o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia / de rei ou de pirata ou jardineira / pra tudo se acabar na quarta-feira..." (composição de Vinicius e Tom Jobim). No argumento da peça "Orfeu da Conceição", escrita por Vinicius em 1954, a tragédia mitológica de Orfeu e Eurídice é transposta, espaço-temporalmente, para um morro carioca às vésperas do carnaval. Neste sentido, acompanhamos a organização coletiva de um desfile de escola de samba e a materialização imagética do sentido dos versos: "a gente trabalha o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia". Quando Marcel Camus, em 1959, vem ao Brasil para filmar a peça de Vinicius, além de toda a transposição do mito órfico, existe também um interesse antropológico, quase etnográfico, de representar experiências sociais a partir de uma visão estrangeira (Aí consiste, talvez, o único deslize do filme: o de generalizar sobre uma experiência social localizada). Isto fica claro, por exemplo, na cena em que Orfeu participa de um ritual religioso de matriz afro-brasileira - não por acaso, estabelecendo uma relação direta com o mito, Orfeu fora conduzido ao terreiro por uma espécie de transposição da personagem do barqueiro Caronte. Tecnicamente, é necessário ressaltar a influência do neorrealismo italiano na produção do filme - muito bem aproveitada, por sinal: locações abertas, elenco amadorístico, etc. "Orfeu do Carnaval" também é revolucionário por ter sido um dos primeiros filmes de arte a ter todo o elenco composto por atores negros. A musicalização do filme também é um aspecto positivo: a maravilhosa voz de Agostinho dos Santos dublando o personagem principal nas cenas de cantoria provoca impacto, sobretudo quando canta "Manhã de Carnaval", na cena em que Orfeu faz o sol levantar apenas com o poder da música. E apesar de o enredo ser conhecido por todos:
Eurídice morre, Orfeu desce à morada de Hades para recuperar o corpo da amada e, desolado, é brutalmente assassinado pelas mênades enciumadas (as cabrochas do morro, numa livre transposição das figura das bacantes), o filme emociona ternamente. O final, no entanto, é esperançoso na medida em que um garotinho, possível sucessor de Orfeu, consegue fazer o sol se levantar novamente com o poder da música.
Último Tango em Paris
3.5 569Certamente, um dos filmes mais polêmicos do Século XX, sobretudo com relação às denúncias de assédio sexual que permearam sua produção. Entretanto, baseando-se estritamente na fruição do filme, é possível extasiar-se com obra-prima que Bertolucci constrói em “Último Tango em Paris”. Excessivamente reconhecido por suas cenas de sexo até mesmo entre aqueles que nunca assistiram ao filme, “Último Tango em Paris” não é, ironicamente, uma obra que gira em torno disso; o sexo, para aquele casal – dois estranhos que se encontram por acaso num apartamento vazio e, imediatamente, se entregam a um relacionamento puramente sexual – funciona como sintoma de uma profunda inquietação e também como seu remédio. Mais importante que o sexo em si, é a dinâmica psicológica e emocional entre os dois e que já começa a se desenvolver no instante em que se encontram pela primeira vez: ele, enlutado e portando uma profunda necessidade de evadir, tenta se esconder na escuridão; enquanto ela, do alto de sua jovialidade e vigor, insiste em abrir as janelas, permitindo que a luz tome conta do ambiente (uma imagem que parece repercutir numa canção de Vinicius de Moraes – “quero as janelas abrir / para que o sol possa vir / iluminar nosso amor...”).
Estruturalmente, há que se notar o excepcional trabalho de atuação realizado por Marlon Brando; sem render-se a maneirismos, ele frequentemente evoca a condição emocional do protagonista Paul, através de suspiros, hesitações, pequenas exclamações ou movimentos com a cabeça. A estreante Maria Schneider, por sua vez, também permanece visível e apresenta atuação elogiável, mesmo contracenando com um ator da envergadura de Brando; sua Jeanne transita fluidamente de uma completa vulnerabilidade – sobretudo nas cenas em que se entrega sem resistência a Paul; ou quando assistimos ao seu inerte noivado com o cineasta Tom (Jean-Pierre Léaud) – a uma força incontestável, que certamente culminará na impactante sequência final. Bertolucci é quem concatena a força dessas duas atuações através de um enredo recheado de simbolismos e referências, e privilegiando mais a composição das cenas e a direção de atores que a palavra falada em si mesma.
⭐ 4.7 / 5.0
Confidence - O Golpe Perfeito
3.3 60Inscrevendo-se na mesma linhagem de filmes como “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998) e “Snatch: Porcos e Diamantes” (2000) – suspenses policiais repletos de reviravoltas e desfechos inesperados –, James Foley constrói “Confidence”, um filme povoado por personagens inteligentes, interpretados por um elenco de primeira categoria, mas que, entretanto, não alcança um resultado excepcional. Em alguns momentos, o filme até engrena num espetáculo mais bem elaborado, mas, lamentavelmente, o roteirista Doug Jung acabou cometendo um erro fulcral: debruçando-se imensamente na elaboração de uma trama cheia de surpresas e reviravoltas, o desenvolvimento dos personagens acaba passando ao largo. Consequentemente, admiramos a engenhosidade e surpreendemos com o tal “golpe perfeito”, mas não nos importamos muito com seus resultados, justamente porque os personagens envolvidos na trapaça não nos inspiram carisma ou admiração.
No filme, não faltam clichês: Jake Vig (Edward Burns) é um trapaceiro sedutor que, junto com sua gangue de ‘atuadores’, acabou de roubar milhares de dólares do contador Lionel Dolby (Leland Orser). Embora tudo pareça ter dado certo, tão cedo Jake descobrirá que o dinheiro pertencia a um chefão do crime organizado de Los Angeles, o excêntrico Winston King (Dustin Hoffman; sem dúvidas, o melhor do filme). Para tentar acertar as contas com King, Jake aceita liderar uma missão com o objetivo de roubar cinco milhões de dólares de Morgan Price (Robert Forster), um advogado e banqueiro ligado à máfia. Juntam-se ao bando Lupus (Franky G), um homem de confiança de King, e Lily (Rachel Weisz), uma femme fatale por quem Jake se apaixona. Porém, em sua cola, ressurge um incansável e igualmente excêntrico agente do FBI, Gunther Butan (Andy Garcia).
⭐ 3.4 / 5.0
Crime Delicado
3.1 23 Assista AgoraBaseando-se num romance de Sérgio Sant’Anna, Beto Brant entrega um drama potente no qual desenvolve uma reflexão muito pessoal acerca da arte e do ofício do artista, do desejo e do fetichismo. Tal como em seus filmes anteriores, a história parte de um ato de violência: porém, neste caso, não se trata de uma afirmação, mas de uma interrogação. Da mesma forma que o leitor de Sérgio Sant’Anna é conduzido através de um labirinto de dúvidas por um narrador em primeira pessoa, o motor do filme de Brant são as interrogações; embora, neste caso, o veredicto seja mostrado claramente numa cena que evidencia a violência sexual consumada. Estruturalmente, o filme é montado de modo a ressaltar as fronteiras: ficção e documentário, cor e P&B, teatro e cinema, desejo e controle, crime e delicadeza, etc. Numa das cenas que reproduzem peças teatrais, o personagem de Mateus Nachtergaele diz uma fala que talvez seja uma das chaves que melhor conduzem à interpretação do filme: “todo homem é um abismo; a gente fica tonto quando olha pra dentro dele”.
Em “Crime Delicado”, o jornalista Antônio Martins (Marco Ricca) é um respeitado crítico teatral que leva uma vida solitária e autossuficiente. Enquanto crítico, ele deve ter domínio sobre as artimanhas da narrativa, além de separar com destreza a realidade da ficção. Porém, certa noite num bar, ele conhece Inês (Lilian Taublib), uma mulher atraente, desinibida e sem uma das pernas. Desenvolve-se a partir deste momento, um envolvimento sexual entre os dois. Porém, a imagem de Inês transforma-se logo numa obsessão para Antônio; e quando ele descobre que ela serve de modelo às pinturas eróticas de José Torres Campana (Felipe Ehrenberg), um pintor mexicano radicado no Brasil, tem uma crise de ciúmes que o levará à ruína. Através da devoção à musa Inês, cada qual (Campana e Antônio) a seu modo fará entrever sua visão sobre a arte e o processo de gestação artística.
⭐ 3.7 / 5.0
Mais Que Amigos: Vizinhos
3.2 45A pandemia do novo coronavírus, decretada a nível global pela OMS em 2020, suspendeu a “ordem natural” das coisas, impondo restrições, isolamentos, além de perdas inesperadas e muito sofrimento. No começo, enquanto os cientistas e pesquisadores se desdobravam para determinar as melhores medidas sanitárias para se lidar com o vírus, além de debruçarem-se na busca pela vacina, a população cedia ao caos da desinformação e do medo. É justamente neste contexto espaço-temporal – os primeiros meses da pandemia, quando o lockdown foi decretado nas principais capitais do mundo – que se ambienta o novo filme de Dany Boon, uma comédia hilariante original da Netflix, que tem dividido opiniões entre o público e a crítica. O filme contempla o dia-a-dia de sete famílias que vivem num mesmo edifício em Paris; condenados ao isolamento, o lockdown revelará o que há de melhor e de pior entre eles.
Em defesa de “Mais que Amigos: Vizinhos”: no filme, a comédia de situações se vale do exagero como recurso narrativo para alcançar o elemento cômico. Dessa forma, uma série de estereótipos revelados durante a pandemia vem à tona de maneira muito convincente, justamente porque, da parte da audiência, é possível reconhecer tais estereótipos em nosso próprio círculo social: por exemplo, há o neurótico hipocondríaco que suspeita dos mínimos sintomas, o personal trainer que engordou excessivamente nos meses de isolamento, a senhora que foi obrigada a fechar o seu comércio, o sujeito que acredita em fake news e medicamentos sem eficácia comprovada (muito semelhante aquele tiozão bolsonarista que não se vacinou e que acredita na eficiência da hidroxicloroquina, ivermectina, etc.). Nesse sentido, o filme se apresenta como uma crônica bem-humorada e despretensiosa de um momento histórico muito recente, que embora ainda nos assombre, nos faz reconhecer nós mesmos nos personagens e nas situações de graça, ternura e emoção. Ao final do filme, ainda se ensaia uma lição moral: afinal, o isolamento, que colocou a todos na mesma situação, acabou aproximando vizinhos que, outrora, não conheciam nem o nome uns dos outros.
⭐ 3.8 / 5.0
Pink Flamingos
3.4 878O caráter de “Pink Flamingos” já vinha estampado em seu cartaz: “um exercício de mau gosto”. E é exatamente isto que John Waters e seu Dreamlanders (o grupo queer de amigos excêntricos que ele liderava em Baltimore) entregam e, assim, arrombam o esfíncter da “boa moral” estadunidense. O questionamento à cartilha do comportamento “normal” vem na forma da exacerbação do desvio: a perversão é a regra e o valor primordial diz respeito a ser considerada “a pessoa mais grotesca do mundo”. A musa desse universo desviante não poderia ser outra: Divine, uma travesti sem escrúpulos e orgulhosa de ostentar o referido título. A proposta estético-política de John Waters transcende as verdades heterosexistas que têm sustentado historicamente as relações entre corpo, gênero e sexualidade; assim, através do exploitation de temáticas-tabu, ele manda pelos ares a “boa” moral e os “bons” costumes.
Filmado nos arredores da cidade natal de Waters, Baltimore, “Pink Flamingos” descreve a vitória inevitável de Divine, que atende pelo pseudônimo de Babs Johnson e vive num trailer com sua família igualmente excêntrica – a qual inclui seu filho hippie e delinquente, Crackers (Danny Mills), sua mãe obesa que vive num berço e é obcecada por ovos, Edie (Edith Massey), e sua companheira de viagem, Cotton (Mary Vivian Pearce). A disputa é travada contra o casal Connie (Mink Stole) e Raymond Marble (David Lochary), conscientes e orgulhosamente anormais em termos de comportamento desviante e imoral, pela conquista do título de “a pessoa mais grotesca viva”. Obviamente, de ambos os lados, a defesa do argumento se dá através das práticas mais perversas, bizarras e nojentas que se possa imaginar.
A filmagem granulada e de aspecto caseiro ressalta a experiência de se ver o filme como uma obra-prima trash, talvez o “melhor pior” filme já feito.
⭐ 4.3 / 5.0
O Grande Motim
3.9 53 Assista AgoraCondensando o espírito hollywoodiano clássico, “O Grande Motim”, lançado pela MGM em 1935, é uma obra-prima do cinema de estúdio. O cuidado impecável com a cenografia, o caráter de diário de viagem e a moral resultante da ação central (a do enfrentamento à autocracia de um capitão tirânico e cruel) tornam-no em uma aventura de extraordinária beleza. O filme consiste numa adaptação do romance histórico escrito por Charles Nordhoff e James Norman Hall com base no famoso motim liderado pelo comandante Fletcher Christian contra Sir William Bligh, capitão do HMS Bounty, um pequeno navio mercante da Marinha Real Britânica, no final do século XVIII. Em 1936, este épico marítimo de Frank Lloyd venceu o Oscar de Melhor Filme, além de ter contabilizado 3 indicações ao prêmio de Melhor Ator (para Clark Gable, Charles Laughton e Franchot Tone) – feito jamais repetido posteriormente. Aqui, Clark Gable aparece despido de seu icônico bigode (a fim de realçar a verossimilhança, uma vez que a Marinha Britânica proibia o uso de pelagens faciais), e o olhar penetrante de Charles Laughton transmite a rígida disciplina da oficialidade britânica. Em meio a isso, existe ainda uma série de subtramas; porém, o aspecto mais memorável de “O Grande Motim” talvez seja o trabalho impecável da direção de arte, que reproduz com fidelidade a atmosfera nauseante das aventuras marítimas do Século XVIII.
No final do Século XVIII, auge do controle do Império Britânico sobre sua Marinha, a tripulação do HMS Bounty se amotina depois de meses de maus tratos. A verve tirânica do capitão Bligh (Charles Laughton) submetia seus subordinados a chibatadas, fome e morte por excesso de trabalho. Os amotinados são liderados pelo subcomandante Fletcher Christian (Clark Gable); eles atiram Bligh ao mar e assumem o controle da embarcação. Bligh, por sua vez, sobrevive e retorna a terra após meses navegando num pequeno bote, num esforço espetacular. Decidido, ele empreende uma nova jornada no encalço de Fletcher Christian, na intenção de captura-lo para seja condenado à morte por insubordinação.
⭐ 4.3 / 5.0
Cafundó
3.6 40Paulo Betti nasceu no interior de São Paulo, na zona rural; e passou a infância e adolescência em Sorocaba. Certamente, como boa parte dos habitantes dos confins do Brasil de dentro, vivenciou a devoção popular, baseada não em dogmas institucionalizados, mas na fé pura e simples. Não por acaso, seu debute na direção de longas-metragens (ao lado do também paulistano Clovis Bueno) se deu através da homenagem e devoção a João Camargo, um ex-escravizado baseado em Sorocaba que criou fama de preto velho milagreiro, conquistou fieis e atiçou a ira da Igreja Católica por professar uma crença sincrética (de santos, encantados e orixás) no final do Século XIX e início do XX. O título do filme, “Cafundó”, baseia-se na organização quilombola que nutriu João Camargo de dons, a “África imaginada” e resistente em território brasileiro.
Lázaro Ramos é quem interpreta João Camargo. A narrativa do filme tem início em suas vivências pré-messiânicas. Tropeiro e ex-escravizado, João se deslumbra com o mundo que se transforma em seu redor (Abolição, República, etc.). Após desiludir-se com o amor que nutria pela magnética Rosário (Leona Cavalli), chega ao fundo do poço. Derrotado, ele se abandona nos braços da inspiração e, num momento de alucinação, tem uma epifania; em sonho, o Padre João Soares (Luís Melo) lhe segreda uma missão: ir ao auxílio das pessoas. Uma visão em que se misturam a ancestralidade mágica de suas raízes africanas e o aporte glorioso do cristianismo. João se crê capaz de curar, e efetivamente cura. Sua morte, nos anos 40, transforma-o numa das lendas míticas que compõe a alma brasileira e, até hoje, nas lojas de produtos afro-religiosos, encontramos sua imagem: a do Preto Velho, João de Camargo.
Através de uma narrativa linear, o filme nos vai revelando a sacralidade de um santo de devoção popular. Lázaro Ramos entrega uma atuação magnética, que transmite a veracidade dos milagres do povo. As representações dos orixás – aparecem no filme, entre outros, Exu, Xangô e Omolu – estão entre as mais belas já registradas em filmes brasileiros.
⭐ 3.7 / 5.0
Marighella
3.9 1,1K Assista Agora“Marighella” é um filme histórico: não apenas por retratar com veracidade “uma página infeliz da nossa história”, mas também porque dialoga diretamente com nosso tempo presente e, mais do isso, nos conclama a reagir contra as arbitrariedades e as ameaças à democracia.
A escalação de Seu Jorge como Carlos Marighella funciona como uma transubstanciação: Marighella negro é Zumbi, é um filho de Oxóssi de corpo fechado, um verdadeiro herói brasileiro; um mártir da nossa liberdade, tão necessário em 1964 quanto no nosso tempo presente. A trilha sonora – potente – rasura a narrativa realçando o teor combativo: o “Monólogo ao Pé do Ouvido”, de Chico Science & Nação Zumbi inicia o filme com uma saudação aos revolucionários – "Viva' Zapata, Sandino, Lampião, Marighella, todos os Panteras Negras etc.; a “Pequena Memória para um Tempo sem Memórias”, de Gonzaguinha, ressalta a necessidade de não se esquecer daquele “tempo onde lutar por seus direitos é um defeito que mata”; as “Mil Faces de um Homem Leal”, do Racionais MC’s traça o perfil do “homem leal” segundo o evangelho negro-marginal e de periferia. Por fim, embora não esteja presente no filme, é Caetano quem nos diz que “os comunistas guardavam sonhos”.
Um Amor Quase Perfeito
3.8 42 Assista Agora"Não abandonarei jamais de-noite as tuas carícias,
De-dia não seremos nada e as ambições convulsivas
Nos turbilhonarão com as malícias da poeira
Em que o sol chapeará torvelins uniformes."
Esse filme me lembrou tanto esses versos de Mário de Andrade
Um Dia Especial
3.4 215Nova York debaixo de chuva deveria ser o cenário obrigatório de todas as comédias românticas estadunidenses!
Disque Butterfield 8
3.5 53 Assista AgoraÀ primeira vista, “Disque Butterfield 8” é um melodrama romântico que não resistiu bem ao teste do tempo. Apesar de operar com tópicas tabus para a época, como prostituição, machismo e abuso, o filme se coaduna a uma perspectiva predominantemente machista e conservadora, afinal ele é produto de seu tempo e espaço, o final da década de 1950 pré-revolução dos costumes. Considerando-o no âmbito de seu lançamento, pode-se identificar no filme um sentimento saudosista de uma forma de se fazer cinema que se anunciava obsoleta ante o prenuncio da renovação que os anos 1960 trariam às formas de se fazer filmes. E, nesse sentido, “Disque Butterfield 8” não teme o patético do folhetim, assumindo claramente essa forma e conquistando o espectador pela ternura aparentemente inocente (só aparentemente) e pela carga excessivamente dramática e trágica de sentimentos à flor da pele.
A trama gira em torno de Glória Wondrous (Elizabeth Taylor, esplêndida), uma mulher que aparentemente ganha a vida como acompanhante de luxo (embora o filme nos apresente isso subliminarmente; em partes, devido à censura corrente da época). Inserida, porém, num ambiente dominado e determinado pelo sexo masculino, Gloria tenta sobreviver às intempéries à custa de discriminação e desrespeito. Liz Taylor constrói uma personagem complexa, profundamente marcada pela tragédia do passado e que busca, pelas vias tortas (na perspectiva do filme, ressalta-se), um porto seguro que lhe permita apenas amar e ser amada. Ela acaba, porém, se apaixonando por Weston Ligget (Laurence Harvey, belíssimo), um homem rico e casado, mas que se encaixa perfeitamente no arquétipo do homem canalha e que somente acrescentará mais tragédia à vida de Gloria. Entre as idas e vindas da personagem, “Disque Butterfield 8” focaliza a jornada de uma mulher condenada por tudo e todos em seu redor. Ao final, o peso de uma revelação e a tragédia absoluta definem um desfecho desesperançoso e cruel.
⭐ 3.8 / 5.0
Dia dos Mortos
3.7 304 Assista AgoraEm 1969, George A. Romero nos apresentava ao alvorecer pandêmico da ressureição de mortos-vivos sedentos por carne humana fresca, era a madrugada dos mortos, o mundo ocidental sobrepujava covardemente o Oriente numa Guerra infame e na América, a reação conservadora resistia às conquistas dos Movimentos pelos Direitos Civis. O mundo em ebulição aparecia no écran filtrado e ressignificado pela lente de Romero: ao final do filme, os militares assassinavam o protagonista negro que havia bravamente resistido à madrugada dos mortos-vivos. Na sequência, em 1978, os zumbis despertados já haviam tomado toda a América e os poucos sobreviventes se enfrentavam e se destruíam no afã de sorver dos poucos recursos que restavam. Embora na ocasião Romero lançasse uma tentativa mítica de explicar o fenômeno, era no consumo desenfreado que consistiam os zumbis zanzando reificados pelos corredores de um shopping center.
No terceiro episódio da trilogia de Romero, “Dia dos Mortos”, de 1985, o autor embaralha os conceitos de morte e vida. Os “vivos” se protegem enterrados num bunker militar; enquanto os “mortos” formam a maioria que perambula sobre a terra. Dentre os viventes, um pequeno grupo de cientistas, liderados por um médico sugestivamente conhecido por Dr. Frankenstein, procura aferir as causas da epidemia num laboratório subterrâneo. Frankenstein, no entanto, acredita na possibilidade de educar os mortos-vivos para se adequarem a uma civilidade humana (o método que ele usa, aliás, tem muito em comum como o behaviorismo de Skinner). Romero, porém, subverte os papéis narrativos, uma vez que são os militares e não os zumbis os verdadeiros vilões da história. Enquanto os mortos-vivos agem por instinto, os militares deliberadamente se aproveitam da patente para impor um autoritarismo violento sobre os outros (bastante semelhante, inclusive, com a tendência militarista que assolava partes do mundo, apoiada financeira e ideologicamente pelos EUA, diga-se de passagem). Ao final do filme – o mais gore dentre os três, ressalta-se – o dia dos mortos chega ao fim, numa cena que simboliza uma espécie de retorno ao paraíso original.
⭐ 4.0 / 5.0
Despertar dos Mortos
3.9 318 Assista AgoraDez anos depois de ter rodado “A Noite dos Mortos-Vivos”, George A. Romero entregou uma espécie de sequência – mais estética e autoral que narrativa – do filme de 1968. Dessa vez, os mortos-vivos são nomeadamente referidos como “zumbis” e até existe uma tentativa de explicação que os associa diretamente à mitologia vodu de Trinidad e Tobago: um dos personagens menciona a crença de que “quando o inferno estivesse cheio, os mortos caminhariam sobre a terra”. Em “Despertar dos Mortos”, os zumbis continuam a se proliferarem, contaminando humanos vivos na sanha voraz pela carne fresca. Eles andam em bando e tomaram conta dos grandes centros urbanos. Os vivos, por sua vez, devido à incapacidade de organização coletiva, tentam fugir em grupos pequenos, mas acabam padecendo.
Logo no início do filme, Romero já alude a uma interessante oposição: enquanto a ciência intenciona esclarecer protocolos de sobrevivência, o respaldo crítico vai de encontro ao senso comum da população (qualquer semelhança com o Brasil de 2021 é mera coincidência). Os EUA estão consumidos pela epidemia e existem poucas possibilidades de sobrevivência. Nesse cenário, um grupo de quatro pessoas – os policiais Peter (Ken Foree) e Roger (Scott H. Reiniger), a jornalista Fran (Gaylen Ross) e seu namorado Stephen (David Emge) – encontra abrigo num shopping center tomado por zumbis. E eis que Romero se utiliza dessa premissa para desenvolver uma inteligente crítica à sociedade do consumo que reifica os seres humanos através de um mecanismo de sedução. A imagem do shopping center tomado por zumbis que vagam estupidamente pelos corredores ilustra metaforicamente esse processo de zumbificação do homem. Mas, não são apenas os mortos-vivos; os refugiados, que delimitaram uma área segura dentro do shopping, vivem também a sua espécie de “sonho americano”, podendo pilhar à vontade as lojas abandonadas e suprirem o fetiche pela mercadoria. A segurança do consumo, porém, é ilusória, porque do lado de fora do shopping cavernoso existe o perigo iminente, não apenas o da massa de mortos-vivos, mas também o da humanidade, capaz de devorar a si própria na ânsia de sobrevivência.
⭐ 4.2 / 5.0
Garotas Selvagens
3.1 357 Assista Agora“Garotas Selvagens” é uma história de personagens sórdidos. Assumindo a forma de um suspense erótico, o filme de John McNaughton, roteirizado por Stephen Peters, funciona como uma espécie de pastiche na medida em que joga o tempo todo com a presunção do espectador (explorando à exaustação as possibilidades do “whodunit”). A trama trabalha com a oposição entre aparência e realidade e se empenha o tempo todo em desconstruir deduções e intuições, acrescentando elementos surpreendentes ao núcleo da narrativa. Porém, “Garotas Selvagens” não vai além da camada mais superficial de significação (e, francamente, nem tem essa pretensão). É um filme que surpreende pelas incontáveis e inesperadas reviravoltas e, por isso mesmo, diverte a audiência, mas que dispensa qualquer olhar mais crítico ou reflexivo.
O Pecado Mora ao Lado
3.7 423 Assista AgoraNa história do cinema, a cena de Marilyn Monroe tendo seu vestido branco levantado pela refrescante brisa que saí do respiro do metrô é tão emblemática quanto Gene Kelly cantando e dançando na chuva ou Audrey Hepburn tomando seu desjejum diante da vitrina da Tiffany’s, por exemplo. A famosa cena de Monroe, de alguma forma habita o inconsciente coletivo ocidental, não apenas pela condição de Marilyn Monroe como sexy symbol absoluto e atemporal, mas também pela maneira simbólica como Billy Wilder apela para a imaginação do espectador e, em enfrentamento ao Código Hays (a autocensura hollywoodiana), nos brinda com uma deliciosa comédia romântica ousada e sensual sem revelar mais que as pernas da divina loura.
“O Pecado Mora ao Lado” (e, vale ressaltar, esse título brasileiro é horroroso e inadequado, na medida em que força uma associação entre o pecado e a figura da mulher) é, indiscutivelmente, uma comédia sobre desejo sexual. O título original – “The Seven Years Icht” (ou, “A coceira do sétimo ano”) – dialoga com a concepção de um personagem psicanalista que defende a tese de que o homem ao sétimo ano de matrimônio padece de um ímpeto de adultério. E é dessa tal “coceira” que sofre o protagonista do filme: o ordinário e patético Richard Sherman (Tom Ewell), um editor de livros de Manhattan, cuja imaginação frutífera o faz criar conjecturas e habitar um universo fantasioso muito particular. Durante um verão escaldante na ilha de Manhattan, ele despacha a esposa e o filho para as montanhas, sob o pretexto de permanecer na cidade a trabalho. Porém, na primeira noite de “solteiro de ocasião” ele se defronta com uma loura deslumbrante – ninguém menos que Marilyn Monroe – que acabara de se mudar para o mesmo prédio onde ele vive. A partir daí, a garota de Monroe transforma-se em mote para as maiores fantasias do Sr. Sherman, que se dividirá deliciosamente entre a vazão ao desejo e a culpa cristã.
Recheado de tiradas, frases e situações engraçadíssimas (beirando o pastelão em alguns momentos), além de uma sensualidade inerente à própria forma do filme, “O Pecado Mora ao Lado” é um filme divertidíssimo e que não perdeu o seu brilho com o passar do tempo.
⭐ 4.0 / 5.0
A Grande Ilusão
4.1 53 Assista AgoraA lição impressionista tomada desde a infância observando o trabalho do pai, o mestre Pierre Auguste Renoir, influenciou na concepção cinematográfica de Jean Renoir. A maneira como ele se vale de iluminações, fotografias e cenários naturais para construir significações que refletem e procuram interpretar o espírito humano é um belo exemplo da influência impressionista. Aproveitando-se da profunda desilusão que pairava no horizonte do entre-guerras – entre os destroços da Primeira e a iminência da Segunda – Jean Renoir construiu um dos mais belos e poéticos tratados de paz de todo o cinema, a obra-prima “A Grande Ilusão”. No contexto do filme, os sentidos de “ilusão” suscitados pelo título possibilitam inúmeras significações, a principal delas relaciona-se à ilusão maior de que, enfim, o mundo viveria em paz. Ponderação irônica e amarga ante o fato histórico de que, no futuro imediato, o terror maior do holocausto e da Segunda Grande Guerra assombraria o mundo.
Embora seja um filme de guerra, o interesse de Renoir não está no espaço do front em si, mas nos aspectos psicológicos e emocionais dos sujeitos que, voluntaria ou involuntariamente, ocupam esse espaço. Texto e câmera procuram se aprofundar nesses sujeitos explorando seus conflitos interiores e exteriores, buscando compreender seus papéis e interpretar a maneira como cada qual se adapta ou resiste à situação. Neste percurso, conflitos de classes e patentes vêm à tona; um oficial francês de alta-patente não é tão diferente de um oficial alemão de alta-patente: mas ambos são tornados inimigos pela imposição do dever militar. Sujeitos ordinários são vestidos de farda pelo amor à pátria ou cumprimento de protocolos militares impostos. E quando parece não haver espaço para a paz, Renoir nos brinda com a fraternidade entre sujeitos diferentes em suas vivências civis pré-guerra, mas equalizados pelo atual contexto bélico (enfim, outra grande ilusão).
“A Grande Ilusão” é uma obra absoluta não apenas pelo seu conteúdo, mas também pela primazia formal com que se nos apresenta. O filme é belíssimo em termos visuais e sonoros. Enfim, um libelo utópico pela paz que o peso da História espezinhou.
⭐ 4.8 / 5.0
Mamãezinha Querida
3.5 185Após descobrirem que não herdariam um centavo da herança da mãe adotiva, a magnânima realeza de Hollywood Joan Crawford, Christopher Crawford ponderou: “a última palavra sempre foi a dela”, ao que Christina Crawford respondeu numa interrogação um tanto quanto ressentida: “Será?”. O fato é que um ano após a morte de Joan, Christina publicou o polêmico “Mamãezinha Querida”, livro autobiográfico no qual desconstrói a imagem de “mãe cuidadosa e amorosa” construída por Joan frente às câmeras e a apresenta como uma mulher tirânica e autodestrutiva. Obviamente, o conteúdo do livro transformou-se numa enorme polêmica: muitas pessoas saíram em defesa de Joan Crawford alegando que Christina queria apenas lucrar com uma história sensacionalista e fantasiosa. Em 1981, o conteúdo do livro foi vertido ao cinema e o filme, protagonizado esplendidamente por Faye Dunaway no papel de Joan, foi um dos mais polêmicos da década de 1980 e um divisor de águas na carreira da atriz. Embora não tenha fracassado nas bilheterias, o filme foi malhado pela crítica, mais pelo aspecto ideológico ante a desconstrução de um mito que pela qualidade estética propriamente.
Polêmicas e fatos biográficos à parte, “Mamãezinha Querida”, o filme, perfaz um vigoroso e intenso estudo de personagem. Mesmo que não corresponda inteiramente à Joan Crawford factual, a personagem de Faye Dunaway se apresenta como uma mulher amarga, frágil, consumida pelo orgulho e megalomania e profundamente dependente de emoções e sentimentos. Embora tenha sido premiada com a Framboesa de Ouro (injustamente, devido ao ressentimento causado em Hollywood pela desconstrução do mito), Faye Dunaway se apropria devotamente de trejeitos e expressões de Crawford, num trabalho brilhante que se assemelha em muito ao de Gloria Swanson em “Crepúsculo dos Deuses”. A ausência deliberada, no filme, das outras duas filmes de Joan – as gêmeas Cindy e Cathy – respaldam o fato de que, afinal, os aspectos biográficos nem são tão relevantes para a história. Acreditando ou não na narrativa de Christina, o fato é que “Mamãezinha Querida” é um filme extremamente competente, mas que foi mal-visto e mal-compreendido pela crítica especializada à época de seu lançamento.
⭐ 4.4 / 5.0
Pearl Harbor
3.6 1,2K Assista AgoraO arco dramático / romântico da narrativa é muito bom e bem desenvolvido; o elenco principal não deixa por menos e entrega atuações satisfatórias. As cenas de batalha, com muitas explosões - no melhor estilho Michael Bay - tampouco decepcionam...
No entanto, o discurso celebratório que o filme assume com relação ao exército estadunidense é intragável. Aquele papo de que "vejam como o sofrimento pelas mortes em Pearl Harbor nos fizeram mais fortes e vitoriosos...", como se o sacrifício e a bravura de alguns "patriotas" tivesse valido à pena. Esse papo é um verdadeiro pé no saco... sem contar nos erros históricos pelos quais o enredo deliberadamente incursiona para reforçar maniqueísmos onde os EUA são sempre "mocinhos"...
O Caçador de Dragões
2.0 64 Assista AgoraAssistível somente pela trilha sonora e pela beleza do protagonista; de resto, o filme precisa melhorar uns 90% para começar a ficar ruim...
A trama até que não é de toda desinteressante, mas se perde num drama romântico totalmente sem química... e o que dizer daquele CGI sofrível?: efeitos do Instagram são melhores!
... e até agora eu estou aguardando os outros dragões, conforme sugerido no título do filme...
Assassin's Creed
2.9 948 Assista AgoraMichael Fassbender, Marion Cotillard, Jeremy Irons, Charlotte Rampling e Brendan Gleeson... QUE BAITA ELENCO DESPERDIÇADO...!!!
A Idade da Terra
3.6 52 Assista AgoraO profetismo barroco e (pós)tropicalista de Glauber Rocha prevê uma sublevação do terceiro mundo encabeçada pelos quatro cavaleiros do apocalipse: o redentor indígena-pescador (Jece Valadão), filho da mãe-Amazonas; Dom Sebastião encarnado no messias português (Tarcísio Meira); o belíssimo Cristo-Negro de Pitanga e o Ogum-Guerreiro de Geraldo del Rey.
A hermética resposta de Glauber ao belíssimo samba-enredo apresentado pela União da Ilha do Governador em 1978 (do qual, fragmentos do desfile são apresentados no início do filme).
Guerra de Canudos
3.2 164As entregas de José Wilker, Marieta Severo e Cláudia Abreu a seus respectivos personagens são verdadeiras aulas de atuação; Paulo Betti também está excelente.
A produção, seguramente pretensiosa, expõe-nos com convicção a uma das maiores covardias da República brasileira. O filme, de inclinação épica - o que, de certa maneira justifica a longa duração - apresenta todos os elementos de uma obra bem realizada. E uma menção especial à magnífica trilha sonora assinada por Edu Lobo.
Tróia
3.6 1,2K Assista AgoraA homoafetividade entre Aquiles e Pátroclo foi completamente ignorada pelo enredo do filme... é como se Hollywood não admitisse a possibilidade de que o guerreiro-mor da literatura ocidental tivesse um relacionamento afetivo-sexual com outro homem.
Pobre ocidentalismo cristão... tantos tabus por serem superados... tantas inspirações a serem tomadas das antigas civilizações...
Orfeu do Carnaval
3.7 123 Assista AgoraO professor e crítico musical Walter Garcia dizia em sala aula que o samba é uma experiência coletiva em que a dor e o sofrimento do povo negro se transubstanciam em música e dança. E é exatamente por isso que o samba é inerentemente triste - "mas pra fazer um samba com beleza / é preciso um bocado de tristeza...", ou ainda, "a tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim...", etc. Vinicius de Moraes, um dos grandes revolucionários da modernização do samba, apesar de branco, apreendia muito bem esta relação, que foi quase como que didatizada em "A Felicidade": "tristeza não tem fim... / felicidade sim /(...)/ a felicidade do pobre parece / a grande ilusão do carnaval... / a gente trabalha o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia / de rei ou de pirata ou jardineira / pra tudo se acabar na quarta-feira..." (composição de Vinicius e Tom Jobim). No argumento da peça "Orfeu da Conceição", escrita por Vinicius em 1954, a tragédia mitológica de Orfeu e Eurídice é transposta, espaço-temporalmente, para um morro carioca às vésperas do carnaval. Neste sentido, acompanhamos a organização coletiva de um desfile de escola de samba e a materialização imagética do sentido dos versos: "a gente trabalha o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia". Quando Marcel Camus, em 1959, vem ao Brasil para filmar a peça de Vinicius, além de toda a transposição do mito órfico, existe também um interesse antropológico, quase etnográfico, de representar experiências sociais a partir de uma visão estrangeira (Aí consiste, talvez, o único deslize do filme: o de generalizar sobre uma experiência social localizada). Isto fica claro, por exemplo, na cena em que Orfeu participa de um ritual religioso de matriz afro-brasileira - não por acaso, estabelecendo uma relação direta com o mito, Orfeu fora conduzido ao terreiro por uma espécie de transposição da personagem do barqueiro Caronte.
Tecnicamente, é necessário ressaltar a influência do neorrealismo italiano na produção do filme - muito bem aproveitada, por sinal: locações abertas, elenco amadorístico, etc. "Orfeu do Carnaval" também é revolucionário por ter sido um dos primeiros filmes de arte a ter todo o elenco composto por atores negros. A musicalização do filme também é um aspecto positivo: a maravilhosa voz de Agostinho dos Santos dublando o personagem principal nas cenas de cantoria provoca impacto, sobretudo quando canta "Manhã de Carnaval", na cena em que Orfeu faz o sol levantar apenas com o poder da música. E apesar de o enredo ser conhecido por todos:
Eurídice morre, Orfeu desce à morada de Hades para recuperar o corpo da amada e, desolado, é brutalmente assassinado pelas mênades enciumadas (as cabrochas do morro, numa livre transposição das figura das bacantes), o filme emociona ternamente. O final, no entanto, é esperançoso na medida em que um garotinho, possível sucessor de Orfeu, consegue fazer o sol se levantar novamente com o poder da música.
⭐4.6 / 5.0