“Lucidez é um dom e castigo; lúcido vem de lúcifer, o arcanjo rebelde, o demônio. Mas também a estrela d’alva, a mais brilhante, a última a se apagar. Lúcifer quer dizer aquele que faz a luz, a luz que permite a visão interior, o bem e o mal juntos, o prazer e a dor. Lucidez é dor, e o único prazer que se pode conhecer, o único que vagamente se parecerá com a alegria, será o prazer da consciência da própria lucidez”. - fala do personagem Fernando.
“Eu sei que existe a desordem, a decepção e a desarmonia. Existe um país nos destruindo, um mundo que nos expulsa, um assassino impreciso que nos mata dia após dia, sem que percebamos. Não tenho uma resposta. Escrevo do caos, da mais completa escuridão”. Estas são as primeiras palavras ditas em off pelo protagonista, enquanto escreve apontamentos na forma de crônicas em seu caderno de notas. Fernando (Federico Luppi) é um professor de literatura de uma universidade de Buenos Aires que acaba de receber uma ordem de aposentadoria compulsória. O ultimato o afeta profundamente na medida em que o lança no centro da catastrófica crise econômica argentina decorrente das políticas neoliberais de Carlos Menen. Desse ponto em diante, o filme passa a estabelecer paralelos entre a dimensão material – a crise econômica que assola o país –, e o plano metafísico: a consciência de um sujeito que percebe que os ideias humanistas da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade) jamais deixaram o plano das ideias.
Fernando é casado com Lili (Mercedes Sampietro), uma assistente social que acompanha de perto os efeitos da crise. Apegado ao pensamento crítico e ao Humanismo, ele ensina seus alunos a pensarem por si, afastando-os do dogmatismo. Porém, tudo se desmorona ao receber a ordem de aposentadoria compulsória. Os fatores econômicos não só determinam a sua aposentadora como também lhe obrigam a viver com uma remuneração ínfima. Isso significará a derrocada de sua vida social, pois a nova condição financeira determinará uma adaptação em seus hábitos; a entrada definitiva na velhice; e a consciência de esfacelamento dos ideais humanistas numa economia periférica de terceiro mundo. Além disso, o casal tem um filho: Pedro (Carlos Santamaría), que abandonou suas convicções em prol de uma vida confortável num autoexílio em Madrid. O relacionamento entre pai e filho é conflituoso, pois Fernando não admite que um filho seu possa vender-se impiedosamente.
Em “Lugares Comuns”, o pessoal e o político se somam como palavras num texto harmonioso. O filme comove secamente, sem partir para o melodrama. Convence como crônica na medida em que se aprofunda – suavemente – nas questões sociais argentinas do início do século.
Em 1975, a trágica história de duas mulheres chamadas Edith Bouvier Beale (mãe e filha) – respectivamente, tia e prima de Jacqueline Kennedy, ex-primeira-dama dos EUA – foi registrada num impressionante documentário dirigido pelos irmãos Albert e David Maysles et al. O filme obteve muito sucesso à época e hoje conserva o status de “cult”. As duas mulheres, egressas da aristocracia que padecera as agruras do crack da bolsa em 1929, encontram-se, na década de 1970, profundamente miseráveis e habitando uma propriedade decaída e sem a menor condição de salubridade. A propriedade, uma mansão que teve gloriosos dias no passado, emprestou seu nome ao filme: “Grey Gardens”. Da mesma forma, em 2009, o nome serviu de título a um telefilme de enredo produzido pela HBO, que conta a história real das duas mulheres, ao mesmo tempo em que reconstitui, com exatidão, cenas do documentário de 1975. Trata-se, portanto, de uma cinebiografia e de um exercício estilístico de metalinguagem.
A narrativa inicia-se com as duas – impecavelmente vividas por Jessica Lange (a mãe) e Drew Barrymore (a filha) – assistindo em primeira mão a excertos do documentário no salão da decadente Grey Gardens; paralelamente, imagens do passado aristocrático vêm à tona, reconstituindo a trajetória que as levou da luxúria à miséria. A recusa em aceitar a decadência marca com crueldade o destino dessas duas mulheres. A tentativa de se manter as aparências vai falhando miseravelmente sem que elas possam fazer qualquer coisa. A casa se deteriora, a sujeira toma conta, a ameaça de despejo atrai a atenção da mídia que as associa impiedosamente à parente mais rica – Jackie O (Jeanne Tripplehorn).
O filme é impressionante ao registrar um retrato cruel sobre a decadência. Bem acabado em quase todos os aspectos, e com uma excelente dupla de protagonistas, “Grey Gardens” é um desses telefilmes baseados em fatos que vale a pena ser assistido.
Embora seja um dos ‘pais’ do cinema estadunidense – e, indubitavelmente, o cineasta mais importante das primeiras décadas de cinema naquele país –, D.W. Griffith tem seu nome associado a um dos filmes mais ideologicamente repulsivos da história: “O Nascimento de uma Nação” (1915), um elogio impiedoso ao racismo e à Ku Klux Klan. Curiosamente, no ano seguinte, ele ensaiaria uma tentativa de redenção com o épico humanista “Intolerância” (1916), um filme segmentado que retrata casos históricos de intolerância através dos tempos. Nessa mesma linha, “Lírio Partido” surpreende como um drama lírico que condena veementemente a violência e a xenofobia, promovendo um retrato imaculado sobre as forças do amor. Publicamente, Griffith nunca se mostrou arrependido pela infâmia de “O Nascimento de uma Nação”; porém, os três filmes considerados em conjunto ressaltam a diversidade na cinematografia do diretor que, embora controverso, era extremamente talentoso. Em termos de montagem, movimentação de câmera, direção de atores, tratamento do roteiro etc., o cinema não seria o que é hoje sem a contribuição de Griffith.
Somente um diretor com seu talento poderia, em 1919, realizar um filme com tamanha dramaticidade, profundidade temática e virtuosismo técnico – isso tudo, muito antes do advento do som e do cinema em cores. Audacioso, “Lírio Partido” encanta pela beleza formidável ao mesmo tempo em que toca em temáticas socialmente complexas – violência, intolerância, xenofobia etc. Lilian Gish (atriz recorrente nos trabalhos de Griffith) e seu companheiro de cena, Richard Barthelmess, percorrem atormentados por uma paisagem londrina definida pela névoa, iluminações soturnas e cenários de inspiração orientalista – a ambientação realça a atmosfera melancólica consonante com o sofrimento da protagonista. Griffith utiliza-se ainda de close-ups para reforçar a dramaticidade e extrair o máximo do trabalho de seus atores. A história de carinho e gentiliza, embora pareça relativamente simplória, encaminha o filme para um desfecho trágico e desesperançoso: um imigrante chinês budista (Barthelmess) encanta-se por Lucy Burrows (Gish), uma garota constantemente maltratada pelo pai, Battling Burrows (Donald Crisp), um pugilista grosseiro, violento e repugnante. Ao final, nos parece impressionante que uma obra com mais de 100 anos ainda possa causar tamanho impacto.
Lançada em 1986, “Eduardo e Mônica” é uma das canções mais icônicas do rock brasileiro. Trata-se de uma balada romântica cuja estrutura atualiza a tópica de que “os opostos se atraem”. Valendo-se de um caráter imensamente figurativo, Renato Russo enumera contraposições de personalidades para ilustrar uma relação que, embora fictícia (porém, inspirada numa história real), é verossímil e fantástica. No conjunto da obra da Legião Urbana, a figurativização é um recurso narrativo recorrente, daí a possibilidade de transposição para o cinema. Em 2013, René Sampaio já havia levado “Faroeste Caboclo” às telonas num filme que, embora não seja estritamente fiel à narrativa da canção, condensa o espírito da banda e a atmosfera do rock nacional dos anos 1980, majoritariamente concentrado no Planalto Central do país. “Eduardo e Mônica”, o filme, também assinado por René Sampaio, segue tendência diversa: no caso, a letra da canção é transposta à risca para a tela, acrescentando-se, contudo, maior profundidade à dimensão humana do casal protagonista.
Partindo-se da famigerada “festa estranha com gente esquisita”, assistimos ao improvável romance entre um garoto de 16 anos e uma estudante de medicina com seus vinte e poucos anos. O componente geográfico não poderia ser outro: Brasília, nos tempos da reabertura democrática. O elemento adicional à narrativa se dá no campo da politização: Eduardo (Gabriel Leone), criado pelo avô militar (Otávio Augusto) veste o fato da classe média padrão brasileira – interessando num bom emprego e numa boa família, ele não pensa muito em política. Mônica (Alice Braga), por sua vez, abarca o lado do progressismo, toma partido em movimentos sociais e é filha de um artista comunista que fora exilado durante a Ditadura. O interesse desencadeado em um pelo outro (e vice-versa) e profundamente enraizado parece partir de um desejo de equilíbrio que, embora enfrente conflitos, resplandece incólume ao final.
Um dos telefilmes mais lembrados dos anos 1970, “O Rapaz da Bolha de Plástico” consolidou o estrelato de John Travolta num de seus primeiros papéis relevantes. O filme é livremente baseado nas histórias reais de David Vetter e Ted DeVita, que sofriam de uma imunodeficiência que os obrigava a viver confinados em tendas esterilizadas de isolamento. As experiências de vida dos dois garotos foram condensadas num único personagem, Tod Lubitch, precisamente vivido por um John Travolta no auge da beleza juvenil. Embora trate de uma história interessante, o filme contém muitos erros de continuidade, situações incongruentes e mal explicadas, além de um desfecho preguiçoso que o encerra sem nos dar satisfações. Tudo isso pode ser relativizado, contudo, por se tratar de uma produção menor feita para a televisão. “O Rapaz da Bolha de Plástico” opta por deixar em aberto o destino do personagem, atendendo aos propósitos melodramáticos do filme – aos quais se acrescentam boas doses de pieguice e romance adolescente, além de um visual kitsch que é a cara dos anos 1970.
Qualquer carisma que o filme possa ter deve-se, obviamente, ao carisma de John Travolta. E talvez, justamente por isso, tenha feito sucesso entre o público. A narrativa é simplória: Tod nasce com uma imunodeficiência grave que o obriga a isolar-se do mundo. Ele vive numa redoma, uma “bolha de plástico” montada em seu quarto. O sonho de romper a bolha se intensifica ainda mais na adolescência, quando ele se apaixona pela vizinha do lado, a jovem Gina (Glynnis O’Connor). A cenografia é bizarra. A direção de Randal Kleiser é incipiente – o diretor, contudo, teve sua chance de redenção dois anos depois, repetindo a parceria com Travolta no icônico “Grease: Nos Tempos da Brilhantina” (1978).
“Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”. Um romance que perdura ao longo de 600 anos de experiência brasileira só pode ser uma história de amor e fúria. É esta a premissa deste longa-metragem de animação: refletir sobre a história do Brasil tendo em primeiro plano uma mitológica história de amor que atravessa nosso passado, presente e futuro. Selton Mello e Camila Pitanga emprestam suas vozes aos protagonistas, um casal apaixonado em quatro épocas distintas de conflitos armados que marcaram – e marcarão, no caso do último segmento – a experiência histórica brasileira: em 1566, quando os índios tupinambás foram dizimados pelos portugueses, na Baía de Guanabara; duzentos anos depois, em 1838, durante a Balaiada no Maranhão – uma revolta de camponeses e escravos contida por soldados do futuro Duque de Caxias, o ‘pacificador’; entre 1968 e 1980, durante os arbítrios da Ditadura Militar; e num futuro distópico, em 2096, quando as milícias armadas particulares terão dominado o Rio de Janeiro e uma guerra por água potável determinará a rotina da cidade (este ‘futuro’, assustadoramente mais próximo do que supúnhamos).
O ponto de partida para o romance hexacentenário é o mito de Abeguar, um guerreiro imortal tupinambá escolhido por Munhã para liderar seu povo na eterna luta contra Anhangá. Ao tomar parte diretamente nos conflitos, o filme salta através de momentos decisivos da história brasileira. Nesse sentido, a narrativa acaba sendo didática na medida em que propõe um revisionismo histórico das lutas inglórias de nosso passado. Numa das falas do filme, o narrador que é o próprio guerreiro imortal em primeira pessoa, diz: “Meus heróis nunca viraram estátua. Morreram lutando contra os caras que viraram”. E é a partir da perspectiva dos que morreram lutando que “Uma História de Amor e Fúria” compõe sua narrativa; tomando parte na luta dos oprimidos e afirmando-se contra a opressão.
Além da precisão narrativa, “Uma História de Amor e Fúria” é também impressionante em termos visuais: os traços estilizados dos personagens e ambientes funcionam muito bem. A trilha sonora, enriquecida por uma interpretação original de Camila Pitanga, além de uma canção da Nação Zumbi, também é muito bem utilizada. Ao congregar mito, história e ficção, o filme de Luiz Bolognesi compõe um interessante mosaico da condição brasileira.
“Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor Pelo rádio, jornal, revista e outdoor Te oferece dinheiro, conversa com calma Contamina seu caráter, rouba sua alma Depois te joga na merda, sozinho Transforma um preto tipo A num neguinho (...) Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei Racionais, Capítulo 4, Versículo 3" – Mano Brown, “Capítulo 4, Versículo 3”.
A psicanalista Maria Rita Kell, em artigo publicado no final dos anos 1990, identifica a grande frátria alicerçada em torno da cultura do rap nas periferias paulistanas. Este fenômeno, que já havia sido identificado na periferia de grandes metrópoles estadunidenses, era responsável pela ressignificação de identidades sociais: o movimento hip hop congregava uma irmandade definida em termos de cor, classe social, atitude e distribuição espacial. Alguns anos antes, o DJ americano Afrika Bambaata havia definido o “quinto elemento da cultura hip hop” como uma espécie de chamado ao conhecimento. Segundo ele, a música – no caso o rap – deve funcionar como um elemento de transformação social. Estendendo a acepção de Bambaata a outro campo artístico, Spike Lee, desde o início de sua carreira cinematográfica, estabeleceu conexões muito íntimas com o universo do hip hop; em “Faça a Coisa Certa” (1989), por exemplo, convidou o grupo Public Enemy para compor uma música vinculada à trilha sonora. O rap “Fight the Power” concentrava sua potência ao rejeitar ícones brancos da cultura americana e proclamar “Cause I’m Black and I’m proud” – “porque eu sou negro e me orgulho disso”. Os filmes de Spike Lee de alguma maneira catalisam o universo cultural do hip hop filtrado por uma lente e com ênfase no quinto elemento. Além de conectarem-se aos debates acerca do racismo e da questão social dos afroamericanos, têm uma dimensão didática, na medida em que pronunciam um “chamamento” para que o povo negro saia da alienação e da condição de subalternidade – para que nenhum “preto tipo A” seja transformado num “neguinho” ao ser contaminado por um sistema que marginaliza e oprime pretos e pobres (para dialogar com os versos do Racionais MC’s).
“Irmãos de Sangue” é um filme que está dentro deste esquema de reflexão. Trata-se de uma narrativa complexa sobre drogas, violência urbana, violência na abordagem policial, relações familiares, etc. No período de lançamento do filme, as periferias enfrentavam uma guerra interna potencializada pelo advento do crack, pela epidemia de AIDS e o aumento da violência entre o próprio povo negro, ameaçados por rivalidades internas. Neste sentido, Spike Lee compreende muito bem o contexto e produz uma narrativa bastante estruturada e que não cede à tentação de depurar a complexidade social em termos maniqueístas. O filme, que tem produção de Martin Scorsese, traz um discurso inflamado de insatisfação, além de retratar com ganas de pertencimento a diversidade social e cultural desses espaços relegados à marginalidade.
Dirigido e roteirizado por Andrew Niccol, que é o nome por trás do roteiro de filmes como “Gattaca”, “O Show de Truman”, entre outros, “O Preço do Amanhã” é uma ficção-científica distópica que propõe, em alguma medida, uma crítica social que, no entanto, embora seja pertinente, acaba por ser ineficaz no resultado final da obra. A associação entre tempo, poder e dinheiro, num futuro em que os pobres trabalham para que os milionários possam experimentar a imortalidade, permite relacioná-lo à divisão capitalista do trabalho do nosso tempo presente. Entretanto, o potencial reflexivo da proposta é expressivamente relativizado numa trama que enfatiza a ação e perseguição a um casal anti-sistema – uma espécie de ‘justiceiros’ a lá Robin-Hood, que roubam o tempo dos ricos para distribuí-lo aos pobres.
O filme se passa em 2169, quando os seres-humanos param de envelhecer aos 25 anos de idade e, a partir daí, um relógio inscrito na pele inicia uma contagem regressiva. O tempo substituiu a moeda e, consequentemente, os ricos têm condições de armazená-lo, enquanto os pobres ganham apenas porções diárias. Neste universo distópico, Will Salas (Justin Timberlake) é um trabalhador pobre que recebe uma misteriosa doação e passa a ser perseguido pelos guardiões do tempo – liderados por Raymond Leon (Cillian Murphy) – por um crime que não cometeu. Porém, Will se associa a Sylvia Weis (Amanda Seyfried), a filha de um magnata que reconhece a injustiça dessa organização social; ambos passam a praticar ações que visam à desestabilização do sistema. Com os guardiões em seu encalço, a dupla se parece com uma projeção futurística de Bonnie & Clyde.
Apesar de algumas falhas pontuais e do apressamento do roteiro, “O Preço do Amanhã” cumpre muito bem a função de promover entretenimento e diversão. E ainda ensaia algum potencial de reflexão, mesmo que superficialmente.
Escandaloso, irreverente e, em alguma medida, divertido, “Casa Gucci” concentra-se na trágica história da disfuncional família por de trás da marca titular. Sem medo de assumir deliberadamente um formato próximo ao do folhetim, o filme de Ridley Scott aproxima-se da derrocada do Império Gucci através da conturbada relação entre Patrizia Reggiani (Lady Gaga) e Maurizio Gucci (Adam Driver). Maurizio é um dos herdeiros da marca; inicialmente, ele é rejeitado pelo pai (Jeremy Irons), que não concorda com seu casamento por identificar em Patrizia uma mulher ambiciosa e interesseira. Entretanto, o ganancioso Aldo Gucci (Al Pacino), tio de Maurizio, enxerga nele o potencial para liderar os negócios da família, diferentemente da inaptidão que vê em seu próprio filho, Paolo (Jared Leto). Transitando através desses personagens, a trama permite entrever uma rede complexa de traições, intrigas, remorsos e ambições. Tudo isto culminará no assassinato de Maurizio a 27 de março de 1995, aos 46 anos.
A história ambienta-se em Roma, Milão e Nova York, capitais mundiais da alta costura, o que realça a estética glamorosa do filme. Agregado à cinematografia épica de Ridley Scott, “Casa Gucci” se parece com um novelão épico. Nesse sentido, a atuação maneirista de Lady Gaga, exageradamente afetada e beirando à caricatura, funciona muito bem dentro da atmosfera constituída pela narrativa. Em seu segundo grande papel no cinema, Gaga não decepciona. Aliás, todo o elenco se equilibra muito bem entre a seriedade e o maneirismo de folhetim, o que acaba enriquecendo a experiência. Outro aspecto que realça essa dimensão exageradamente dramática do filme é sua trilha sonora, derramada em graves e agudos das canções italiana e americana.
Em suma, “Casa Gucci” apresenta um bom resultado ao assumir uma linguagem extravagante de dinâmicas familiares numa história sobre interesses e traições. Talvez pudesse ser um pouco mais enxuto, embora a extensa duração não prejudique a fruição da obra.
Lançado subsequentemente a “A.I.: Inteligência Artificial”, “Minority Report” é um neo-noir futurístico e estiloso de Steven Spielberg – e que se inscreve na melhor linhagem das ficções-científicas dirigidas por ele. Com base num conto de Philip K. Dick, Spielberg não apenas nos apresenta a uma visão preocupante de futuro (fictícia, obviamente, mas plausível dentro do universo narrativo criado pelo autor; e também com relativas e similares alusões à nossa realidade presente), como também o faz mesclando-a a uma aventura recheada de ação e contemplação, fotografada de forma a sugerir um visual soturno, meio enevoado, que engaja o público numa atmosfera que permanece constantemente em suspensão. Dessa forma, o caráter distópico da narrativa envolve-se numa dimensão sombria, constituindo uma ambientação ambígua, que ressalta os dois lados de um dilema ético.
O ano é 2054. O detetive-chefe John Anderton (Tom Cruise) – que sofre as dores de um passado de perdas pessoais – trabalha na divisão de Pré-Crime, uma tecnologia que permite identificar e punir responsáveis por assassinatos antes que eles possam acontecer. O sistema, aparentemente perfeito, erradicou a criminalidade na capital dos EUA e está prestes a ser proposto em escala nacional; seu responsável é o orgulhoso Lamar Burgess (Max von Sydow). Porém, em meio a uma investigação federal liderada pelo agente Danny Witwer (Colin Farrell), a Pré-Crime prevê um assassinato que será cometido por John Anderton. O justo detetive, no entanto, suspeita de armação contra sua reputação, e deverá correr contra o tempo para desfazer-se da armadilha e comprovar sua inocência. Todas as armas, contudo, estarão voltadas para si.
Ao final, o filme mostra-se como uma cativante e alucinante experiência cinematográfica. Ainda que as reflexões estejam mais subentendidas, dificilmente o espectador saíra imune da sessão.
Lançado em 1982, em plena ascensão do conservadorismo da era Reagan, “Victor ou Victória?” é uma comédia-musical à frente do seu tempo. Com leveza e bom humor, o filme aborda noções de gênero e sexualidade a partir de um ponto de vista subversivo sem ser agressivo. Elencando coerentemente elementos de comédia romântica, comédia pastelão, teatro vaudeville e teatro musical da Broadway, Blake Edwards entrega com “Victor ou Victória?” um espetáculo divertido e atraente – uma obra completa; sem dúvidas, na mesma altura de seu maior sucesso, “Bonequinha de Luxo” (1961).
De alguma forma, “Victor ou Victória?” se inscreve na mesma linhagem que “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), na medida em que ambos partilham da temática da troca de identidades feminina / masculina. A trama do filme de Edwards, com Julie Andrews no papel principal, ambienta-se em Paris, em 1934; Andrews vive Victoria Grant, uma excelente cantora lírica, porém desempregada. Depois de não conseguir emprego numa casa noturna, ela conhece Carroll Tody (Robert Preston, num desempenho irretocável), um cantor homossexual que acabara de perder o emprego no mesmo estabelecimento. A falta de dinheiro une os dois, que se tornam amigos e articulam um plano para saírem da miséria: transformá-la numa estrela. Para isso, Victória deverá se passar por um homem – o polonês Conde Victor Grezhinski – reconhecido por seu trabalho com transformismo (atualmente, o termo mais adequado é drag queen). Porém, as coisas ameaçarão sair do controle após Victória/Victor conhecer King Marchand (James Garner), um chefão da máfia de Chicago, por quem acaba se apaixonando.
Além da direção segura de Edwards, o filme conta com excelentes trabalhos de coreografia, fotografia, figurino e, claro, a trilha sonora de Henry Mancini. O trabalho de Julie Andrews, contudo, inspirado em performances de astros como David Bowie e Marlene Dietrich, é o grande concatenador de todos os elementos que fazem de “Victor ou Victória?” uma obra-prima dos musicais.
Um road movie do fim do mundo, “Vírus” é um filme sobre sobrevivência num cenário pandêmico-apocalíptico. Lançado em 2009, a obra se inspirou no potencial epidemiológico anunciado pela mídia acerca do vírus H1N1 e, nesse sentido, se inscreve num segmento cinematográfico bem estabelecido e já bastante explorado em filmes como “Extermínio” (2002), “Zumbilândia” (2009) etc. “Vírus”, entretanto, traz novos elementos ao formato: na trama escrita e dirigida pelos irmãos espanhóis Àlex e David Pastor, o foco da narrativa recai sobre a mudança estrutural nos relacionamentos humanos diante de situações extremas. Por isso, trata-se de um filme pessimista que mostra a desesperança de um mundo agonizante – é difícil não se sentir incomodado ao assistir algum personagem infectado sendo deixado para trás, abandonado à própria morte.
No filme, um grupo de quatro jovens – os irmãos Danny (Lou Taylor Pucci) e Brian (Chris Pine), e as garotas Bobby (Piper Perabo) e Kate (Emily VanCamp) – tentam sobreviver em meio ao caos instalado a partir da disseminação de uma doença infecciosa e mortal que está dizimando a humanidade. Eles decidem viajar até uma praia deserta a fim de encontrar refúgio, porém, no caminho, são confrontados por situações imprevistas que os fazem defenderem selvagemente suas vidas. Diante da iminência da morte, tornam-se capazes de assassinarem uns aos outros para defenderem a si mesmos. Nesse sentido, o filme promove uma reflexão acerca dos valores ligados à vida em sociedade. Ao suscitar questões, “Vírus” subverte o gênero e se desassocia das bases cristalizadas do “cinema pandêmico”. E, dessa forma, em sua simplicidade, acaba sendo mais profundo que muitas propostas hollywoodianas.
Após o sucesso do divertido “Coração de Cavaleiro”, o diretor Brian Helgland reuniu-se novamente com Heath Ledger e Shannyn Sossamon neste thriller gótico e sombrio que tem como motivo a presença do mal no âmbito da religiosidade. A atmosfera estabelecida em “Devorador de Pecados” considera penumbras e sombras na tentativa de emular uma ambientação medieval em plena contemporaneidade. E embora prometa sustos e suspense, o resultado final decepciona aqueles que buscam pelo franco efeito do terror. Nesse sentido, o filme vale mais pelo esforço em retratar, com certa originalidade, um tema recorrente na indústria cinematográfica: a conflituosa, mas tênue, relação entre o benigno e o maligno. O foco da narrativa é a presença de um devorador de pecados, figura mitológica que assumia os pecados de um moribundo, absolvendo-lhe a alma para que pudesse descansar na paz eterna.
A trama tem como ponto de partida um mistério: Dominic (Francesco Carnelutti), o líder da ordem religiosa dos carolíngios, morre em circunstâncias misteriosas em Roma. Posteriormente, o monge carolíngio Alex Bernier (Heath Ledger), discípulo de Dominic, é procurado em Nova York pelo cardeal Driscoll (Peter Weller), que o instiga a viajar até Roma para conduzir uma investigação acerca da morte de seu mentor. Ao defrontar-se com o cadáver de Dominic, Alex identifica estranhas marcas corporais que remetem a investigação para ações de um possível devorador de pecados. Porém, o cardeal também guarda seus segredos, revestido da ambição de tornar-se o próximo papa.
À parte a boa direção de fotografia, que se aproveita da penumbra e da cenografia romana para realçar a atmosfera de mistério, e a sempre boa atuação de Heath Ledger, o filme acaba pecando pela falta de ousadia e pelo roteiro sem carisma. Consequentemente, trata-se de uma obra facilmente esquecível.
“O Morro dos Ventos Uivantes”, o único romance da autora inglesa Emily Brontë, foi levado às telas de cinema inúmeras vezes. Ainda na era do cinema mudo, em 1920, o trágico romance imortal de Heathcliff e Catherine seria filmado pela primeira vez. Posteriormente, em 1939, William Wyler dirigiria a sua versão, com Laurence Olivier num dos papéis principais. Depois disso, muitas outras versões se seguiram, incluindo-se adaptações em francês, japonês e espanhol (esta, de 1953, dirigida por Luís Buñuel sob o título de “Escravos do Rancor”). Enfatizando a ambientação gótica e a atmosfera sombria da história, o filme de 1992, com Ralph Fiennes e Juliette Binoche nos papéis principais, por sua vez, está entre as adaptações mais fiéis à narrativa do romance. Apesar da qualidade do roteiro, alguns aspectos dificultam a plena compreensão da obra – direção e montagem, por exemplo –, principalmente para aqueles que desconhecem completamente a história. Mesmo assim, trata-se de uma obra memorável.
Ambientada numa área rural da Inglaterra, no final do século XVIII, a história tem início quando o Sr. Earnshaw (Jason Riddington), patriarca de uma rica família, adota um garoto cigano chamado Heathcliff. Com o tempo, desenvolve-se uma trágica e violenta paixão entre o cigano e Catherine Earnshaw (Juliette Binoche), sua irmã de criação. Crescidos juntos, eles são forçadamente separados após a morte do pai, e devido à crueldade de Hindley Earnshaw (Jeremy Northam), o filho mais velho que despreza e subjuga Heathcliff, relegando-o a viver com os animais no estábulo. Convenientemente, Catherine deve se casar com Edgar Linton (Simon Shepard), um nobre rico. Ao tomar conhecimento do casamento, Heathcliff desaparece, para retornar dois anos depois, rico, tomado de amargura e determinado a mover sua vingança pessoal contra Hindley e contra o abandono que Catherine lhe infligiu.
Produto do trabalho de dois perfeccionistas – o diretor William Wyler e o ator Gregory Peck, ambos produtores do longa –, “Da Terra Nascem os Homens” é um faroeste impecável. Tudo nele é grandioso: a direção cuidadosa e rigorosa de Wyler, marcada por inúmeras indisposições entre ele e o elenco, com relação às suas exigências a fim de extrair o trabalho perfeito de seus atores; o elenco ilustre, composto por nomes como os de Peck, Charlton Heston, Burl Ives, Jean Simmons etc.; a ambientação precisa, que prescindiu da construção de inúmeras locações e cenários que situassem – cena e audiência – no velho, árido e imenso Oeste, distante de qualquer norma regulamentar, aonde a lei é feita na base da palavra e da força dos homens; a trilha sonora memorável de Jerome Moross, que serviria de inspiração para a música de inúmeros faroestes lançados posteriormente; a belíssima fotografia de Fraz Planer, que extrai poesia e sensibilidade da imagem amarelada e poeirenta do Velho Oeste; além, é claro, da extensa duração da fita – 165 min.
De acordo com depoimento de Gregory Peck, William Wyler intencionou realizar uma alegoria à esquerda sobre a Guerra Fria; nesse sentido, o papel representado pelo ator, do pacifista e bem-educado John McKay, realça a dimensão simbólica da obra. Ele é um rico herdeiro de uma frota naval em Baltimore, que chega ao oeste para se casar com sua noiva Patricia (Carroll Baker). Tão logo ele chega, é recebido com certo estranhamento devido às diferenças culturais que o distancia dos hábitos do oeste, sobretudo em relação ao vigor da lei e da justiça, definido em termos pessoais e arbitrários. Imediatamente, McKay se vê imerso numa rivalidade entre duas famílias influentes na região, representadas por seus respectivos patriarcas: de um lado, o Major Terrill (Chuck Bickford), pai de Patricia, e de outro, Rufus Hannassey (Burl Ives); ambos faziam de sua família e seus empregados alvos e soldados de uma infame guerra sem razão de ser. A chegada de McKay, entretanto, exalta ainda mais os ânimos, pois devido à sua inclinação pacifista ganha fama de covarde, despertando o desprezo em sua noiva e seu sogro.
Embora o filme padeça dos inúmeros clichês que determinam o gênero das comédias-românticas, “Saindo do Armário” tem sua importância atestada em inúmeros aspectos. Primeiramente, ressalta-se que o filme foi rodado em 1998, no Reino Unido, país historicamente conservador e reconhecido por imputações legais à homossexualidade até meados da década de 1980. Nesse sentido, o discurso afirmativo, representativo e combativo da fita reverbera na vivência de inúmeros adolescentes que chegam à puberdade sem o direito de experimentarem naturalmente seus desejos, forçados a se esconder a fim de se resguardarem do preconceito e da não-aceitação por parte da família e da sociedade. Felizmente, muita coisa tem mudado desde então; e a representatividade encontra papel essencial nessa mudança em curso. Em segundo lugar, o filme não se exime em tratar com naturalidade o processo de iniciação sexual de um adolescente gay – coisa que, até então, no cinema, era abordada ora de maneira afetada, ora aproximando-se da comédia, ora buscando uma descrição que deixava tudo subentendido. O discurso do protagonista – o adolescente Steven Carter (Ben Silverstone) –, ao final do filme, surpreende a todos ante a potência de uma revelação necessária e que por anos a fio havia permanecido represada na angústia íntima de milhares de jovens que certamente o receberam como uma libertação.
Na trama, Steven é um estudante secundarista, interessado em jornalismo e fotografias, que confidencia seus desejos e emoções à sua melhor-amiga, Linda (Charlotte Brittain); ele é gay, sofre bullying no colégio e vive o dilema angustiante e solitário de estar escondido “no armário”. Surpreendentemente, John Dixon (Brad Gorton), um atleta admirado e popular na escola, acaba se apaixonando por Steven. O conflito de John, entretanto, é um tanto mais complexo, uma vez que ele próprio tem dificuldade em aceitar sua sexualidade. Ao redor do romance homoafetivo, amigos, colegas, professores e pais compõem a intricada teia de relacionamentos e conflitos que emoldura o drama de Steven e Johnny.
Este único filme da diretora e escritora Tiffanie DeBartolo é um dos poucos exemplos cuja adaptação do título em português funciona melhor – e é mais poética – que o título original (“Dream for an insomniac”, ou “sonhos para um insone”). “Alma de Poeta, Olhos de Sinatra” é um romance um tanto quanto água com açúcar, mas que encanta pela simplicidade e delicadeza; além de trazer enredo e formato bastante inusual para o gênero. O filme trata do amor em sua concepção mais fantástica – uma das frases dita pela protagonista Frankie (Ione Skye) sintetiza a versão de amor que o filme viabiliza: “existem tantas coisas medíocres na vida para se lidar, o amor não deve ser uma delas”. Ela é uma sonhadora, embora sofra de insônia. Só tem duas exigências para se apaixonar: o amor precisa ser intenso e ele deve ter os olhos de Frank Sinatra.
A história se passa quase toda em uma cafeteria, cujo dono italiano é o trio de Frankie, Leo (Seuymour Cassel). O ambiente amistoso do café faz lembrar o do seriado “Friends” – a comparação não é fortuita, uma vez que Jennifer Aniston também consta no elenco do filme. De início, somos surpreendidos pela fotografia em preto e branco que busca situar o espectador na atmosfera de depressão e desmotivação que cerca a jovem insone. Porém, quando ela conhece David Schrader (Mackenzie Astin), um aspirante a poeta que acaba de arranjar emprego na cafeteria e que tem os olhos claros de Sinatra, o universo de Frankie se transforma, iluminando inclusive a fotografia da imagem. Acontece, porém, que David tem uma namorada e Frankie deverá lutar para conquistá-lo. Paralelamente, o filme ainda desenvolve o drama de Rob (Michael Landes), primo de Frankie, um rapaz gay que está se preparando para assumir sua sexualidade ao pai aparentemente conservador. A questão é tratada com delicadeza e afirmatividade pelo roteiro de Tiffanie DeBartolo.
Apesar de ser perceptível a imaturidade artística da diretora, o filme promove um entretenimento gracioso ante a sua simplicidade e doçura.
Mágico e poético, “A Dupla Vida de Véronique” promove uma sensível experiência sensorial que não se responde completamente – o filme é escorregadio a qualquer tentativa de explicação lógica, muito embora, no âmbito de nossas sensações, seu sentido seja completado num diálogo íntimo entre o simbólico da narrativa e o âmago do espectador. O filme, de certa forma, cristaliza o tratamento de temas universais que Kieslowski vinha experimentando desde a série “O Decálogo” (1988), e desenvolve o experimentalismo da forma cinematográfica que reflete em sua capacidade de fazer filmes “aparentemente” vagos, cujos significados dizem respeito mais às sensações do que à lógica. Com relação à obra, ele mesmo diria: “O filme trata de sensibilidade, pressentimentos e relacionamentos que são difíceis de nomear, que são irracionais. É difícil mostrar isso no filme: se eu mostro demais o mistério desaparece; eu também não posso mostrar pouco porque então ninguém compreenderá nada. Minha procura pelo equilíbrio entre o misterioso e o óbvio é o motivo pelo qual foram feitas várias versões na sala de edição”.
O filme segue a vida de duas jovens interpretadas por Irène Jacob: uma polonesa chamada Weronika, e uma francesa, Véronique. Embora elas não se conheçam, suas vidas são marcadas por uma profunda relação de sincronia: ambas são idênticas, são cantoras talentosas, vivem relacionamentos efêmeros e são tomadas por intuições que parecem denunciar a presença de uma na vida da outra, embora estejam geograficamente distantes. Weronika sente que “não está sozinha no mundo”; e Véronique, por sua vez, tem a sensação de “estar em dois lugares ao mesmo tempo”. Apesar da sincronia quase siamesa que existe entre elas, suas vidas tomam rumos diferentes de acordo com as escolhas que fazem: Weronika tem um ataque cardíaco durante uma apresentação musical e morre. Sua morte, embora Véronique não saiba explicar, causa efeito profundo em sua símile francesa – que saíra à procura de respostas e encontrará Alexander, um manipulador de marionetes; e aí, Kieslowski encaixa um componente metalinguístico focalizando o titereiro como um alter-ego de si.
“Jovem e Inocente” é um dos últimos trabalhos rodados por Hitchcock em sua fase britânica (imediatamente anterior à “Dama Oculta”, talvez o mais completo dos trabalhos realizados por ele em sua terra natal). Nele, já é possível identificar a marca idiossincrática de um estilo que o mestre do suspense já vinha desenvolvendo com certa maturidade desde “Chantagem e Confissão”, de 1929. Protagonizado, majoritariamente, por um elenco jovem, a atmosfera de suspense em “Jovem e Inocente” – mantida até os momentos finais, quando Hitchcock nos surpreende com um travelling excepcional que percorre toda a extensão de um salão de danças e termina, em close, sobre a face de um vilão nervoso – pauta-se, sobretudo, na pouca experiência dos envolvidos na trama e em suas atitudes impulsivas e inocentes. E o desfecho, embora soe anacrônico e incompatível com a atual cartilha do bom-senso, funciona muito bem no filme – obviamente, isso deve ser relativizado em se considerando a distância temporal que o filme guarda com relação ao tempo presente.
A trama parte de uma tópica comum à filmografia de Hitchcock: a do protagonista inocente que é perseguido e responsabilizado por um crime que não cometeu. Porém, o filme se inicia mostrando a face do verdadeiro assassino – e enfatizando o tique nervoso que o caracteriza; e dessa forma, desde o começo, Hitchcock nos coloca na posição de cúmplices da inocência do jovem protagonista – o roteirista Robert Tisdall (Derrick De Marney). A vítima – uma estrela de cinema – foi encontrada morta na praia, com sinais de estrangulamento. A arma do crime: um cinto de casaco. O fato de Robert ter sido visto correndo na direção contrária à cena do crime, além de ser beneficiário do testamento da vítima, depõe contra ele. A jovem e bela Erica (Nova Pilbeam), filha do coronel de polícia que anda à procura do suspeito, acredita na inocência de Robert e decide ajudá-lo na busca pelo real assassino a fim de que o mal-entendido seja prontamente desfeito.
Nicolas Gage não é propriamente um ator ruim – haja vista seus desempenhos em filmes como “Coração Selvagem” (1990), “Despedida em Las Vegas” (1995) e “O Senhor das Armas” (2005), etc. –, porém, a partir de um período passou a desperdiçar seu talento em produções francamente ruins e que exigiam pouco ou quase nada de suas performances. “O Resgate” é um desses filmes: nenhum aspecto é capaz de fazer com que a obra saia do lugar comum e da excessiva quantidade de clichês: vilão com cara de mau, mocinho com cara de inocente (embora se trate de um ‘ex-ladrão’ de banco recém-egresso da cadeia), e um roteiro incrivelmente mal elaborado e que abusa de soluções fáceis e improváveis para resolver a problemática central do enredo (com direito, por exemplo, a um roubo de milhões em barras de ouro planejado em pouco mais que cinco minutos).
Na trama, Cage vive Will, um inteligente ex-ladrão de bancos que acaba de deixar a cadeira após ter passado oito anos preso; ele intenciona se reaproximar de sua filha Alison (Sami Gayle), embora a garota não dê abertura. Porém, um antigo comparsa de Will, Vincent (Josh Lucas), deseja vingar-se do colega por causa de um acidente ocorrido oito anos antes. Para isso, ele sequestra Alison e a mantém trancada no porta-malas de um táxi enquanto exige de Will uma quantia de 10 milhões de dólares em troca da vida da garota. Will vai ao FBI, mas os agentes não acreditam em sua história; consequentemente, ele se vê sozinho correndo contra o tempo para salvar a filha. Ou seja, trata-se de uma trama já muito explorada no cinema – com resultados bons, inclusive, como no caso de “Chamas da Vingança” (2004), por exemplo. Em “O Resgate”, no entanto, além de não haver nada de novo, o filme ainda parece ser vítima de uma total falta de vontade da produção. Mesmo assim, ainda garante uma certa diversão, mesmo que seja pouca.
Baseado num conto de Steven Milhauser, “O Ilusionista” é um suspense de época capaz de captar a audiência principalmente através dos truques de magia e ilusionismo que o protagonista realiza – e que a perspicácia do roteiro consegue captar de forma a sustentar a atmosfera de mistério até a sequência final. Na trama, um garoto plebeu (Aaron Taylor-Johnson), com inclinações à arte da magia e que vive nos arredores de Viena, conhece e se apaixona por Sophie (Eleanor Tomlinson), uma duquesa da aristocracia local. Interditado o romance entre classes sociais distintas, os dois são afastados. Depois de peregrinar durante anos, o garoto – agora adulto – retorna a Viena como o famoso ilusionista Eisenheim (Edward Norton, excelente). Suas apresentações atraem públicos e alcançam fama, despertando, inclusive, a curiosidade do cético Príncipe Leopold (Rufus Sewell). Numa das apresentações, a noiva de Leopold é chamada ao palco para servir de assistente à magia; Eisenhiem logo reconhece na futura princesa seu antigo amor, Sophie (Jessica Biel). Reacendida a chama, os dois iniciam um romance clandestino, o que despertará a atenção do Inspetor Uhl (Paulo Giametti), um espião subjugado ao poder imperial. A partir daí inicia-se um jogo de gato e rato entre os dois.
O diretor Neil Burger, da história original, aproveita apenas alguns elementos. A grande inspiração para seu filme pare ser o cinema de ilusão do começo do Século XX. Até mesmo a imagem de Eisenheim, devido à semelhança, nos remete à figura de Georges Méliès, o mágico que se tornou cineasta – e que revolucionou a forma do filme ao criar efeitos especiais a partir da montagem. Além disso, toda a estética de “O Ilusionista”, com cenas pouco iluminadas e etéreas, evoca a atmosfera do cinema mudo; com relação a esse aspecto, o trabalho de fotografia realizado por Dick Pope é elementar. A trilha sonora, de ninguém menos que Philip Glass, concatena perfeitamente a narrativa, alternando com primazia o mistério, o suspense, o romance e a dramaticidade.
Intencionando adaptar e representar o máximo de elementos que compõe a poesia épica de Homero, este telefilme é, sem dúvidas, uma grande produção – talvez a mais completa já realizada com base n’“A Odisseia”; desenvolvido pela BBC e tendo à frente o nome de Francis Ford Copolla como produtor, o filme foi originalmente exibido em duas partes em maio de 1997. O resultado final, entretanto, oscila entre aspectos positivos e negativos. O responsável pela direção foi o russo Andrei Konchalovsky, que também assinou a adaptação do roteiro (junto com Chris Solimine). O principal aspecto positivo talvez seja a fidelidade com que o roteiro se apropria do texto homérico: a trajetória de Odisseu (Armand Assante) – ou Ulisses, o mentor do cavalo de Tróia – é contemplada desde o momento em que deixa seu reino (Ítaca) até as agruras por que passa na desventurada viagem de retorno. Todos os momentos decisivos da Odisseia são apresentados na tela: a arrogância do herói glorioso frente ao imperativo dos deuses, o entreposto na ilha dos ciclopes, as temporadas sob as tutelas de Circe (Bernadette Peters) e Calipso (Vanessa Williams), e, paralelamente, as angústias de Penélope (Greta Scacchi) e Telêmaco (Alan Stenson), esposa e filho do herói, imobilizados em Ítaca, etc. Outro ponto positivo: destinado a um público mais amplo que o dos cinemas, o filme é suficientemente didático sem, no entanto, deixar de interessar àqueles que já são iniciados nos estudos clássicos.
Como aspectos negativos, no entanto, salta aos olhos a atuação um tanto quanto inexpressiva de Armand Assante no papel titular. O restante do elenco, contudo, se mostra bastante à vontade: Greta Scacchi, Geraldine Chaplin e Irene Papas, sobretudo. Além disso, os efeitos visuais são risíveis e exagerados em alguns momentos – embora isso deva ser relativizado em se tratado de uma produção televisiva e dos anos 1990. Enfim, sem deixar de focalizar as mensagens de Homero, fundantes da civilização ocidental, o filme se mostra um pouco exagerado, meio kitsch, é verdade, mas mesmo assim, bastante interessante.
Depois de filmar “Uma História Real” em moldes bastante tradicionais em termos de linearidade (e ironicamente, ele insere, no título do filme, um comentário metalinguístico sobre esse desvio em sua trajetória estética firmada até o momento: “The Straight Story”), David Lynch retorna ao Surrealismo e à inclinação psicanalítica para rodar esta que é considerada por muitos sua melhor obra – ou, pelo menos, a mais representativa de sua marca autoral. Valendo-se do legado de Buñuel, Lynch não apenas constrói um longa-metragem esteticamente surrealista, mas, principalmente, utiliza o estilo para submergir no inconsciente da protagonista, encaminhando-nos, junto com a câmera, para um labirinto onírico, meio noir, onde tudo é possível e, entretanto, desconfiável. Nesse sentido, não fosse pela execrável adaptação brasileira do título, que entrega de bandeja a principal chave de interpretação da narrativa, a quebra da zona de conforto proporcionada pelos últimos vinte minutos de exibição teria efeito ainda mais potencializado. Ainda assim, encontrar a saída deste pesadelo-noir é tarefa complexa, sobretudo porque o enredo de Lynch desafia a lógica da racionalidade. O autor nos coloca no âmbito dos sonhos; é como se Lynch nos imputasse o papel de psicanalistas a escutar o emaranhado narrativo dos sonhos de uma frustrada aspirante a atriz recém-chegada a Los Angeles (Naomi Watts).
A complexidade (e é necessário frisar: não se trata de um caso de pedantismo autoral) do roteiro de “Cidade dos Sonhos” coaduna-se à inegável qualidade dos demais elementos que compõem o filme. Destacam-se os movimentos de câmera, inegavelmente simbólicos em termos de significação; a construção e sustentação de uma atmosfera onírica-noir através do bom emprego dos recursos sonoros e de iluminação; a direção de elenco, que alcança desempenhos espetaculares, sobretudo o das protagonistas: Naomi Watts e Laura Elena Harring, etc. Além disso, o diretor também acerta ao compor, através da aparente não linearidade onírica, uma crítica ao funcionamento devorador da indústria cinematográfica, que não hesita em descartar aqueles que não acatam a imposição do capital.
Lançado apenas dois anos após o término da Segunda Guerra Mundial é natural que este filme de Elia Kazan, que expõe de forma tão franca e combativa o antissemitismo arraigado na sociedade americana, tenha causado enorme impacto social à época. Debruçando-se sobre os efeitos do preconceito contra judeus, “A Luz É para Todos” transcende as fronteiras do marcador social judaico e chega até nós – completamente atual e compatível com nossa realidade – como um libelo contra qualquer tipo de preconceito motivado pelo ódio às diferenças entre seres-humanos. Neste sentido, o filme é corajoso ao provocar altos escalões da sociedade civil que nem mesmo enrubesciam ao bradarem seu ódio racista. Porém, a atualidade do filme não reside apenas na validade e pertinência do discurso, mas, sobretudo, na combatividade e na afirmação de que apenas não ser preconceituoso não basta, é necessário tomar partido ativamente na luta contra o preconceito.
No filme, Gregory Peck vive o jornalista Phil Green, convidado por um editor de jornal a escrever uma reportagem em série sobre o antissemitismo. Porém, o solicitante impõe a condição de que a matéria deve ser original, sem restringir-se a enumeração de fatos e dados. Depois de refletir intensamente sobre a melhor maneira de se abordar o tema, Phil decide se passar por judeu durante algum tempo, a fim de sentir ele próprio as agruras por que passava o povo judeu. Surpreendentemente, ele descobrirá que o preconceito vai muito além daquilo que se manifesta na superfície. Mesmo entre aqueles que fazem parte de seu círculo social progressista e liberal, como sua noiva Kathy (Dorothy McGuire), por exemplo, o antissemitismo se manifesta de forma velada e disfarçada. É um mal que contamina a estrutura social como um todo.
Ao final do filme, nos assoma a incômoda sensação de que houve pouca mudança de lá pra cá, com relação à tolerância e empatia. A previsão da personagem de Anne Revere, mãe de Phil, de que num futuro breve sobressairia a igualdade e a liberdade, ainda não se concretizou. Resta-nos a pergunta: concretizará um dia?
Lugares Comuns
4.0 36“Lucidez é um dom e castigo; lúcido vem de lúcifer, o arcanjo rebelde, o demônio. Mas também a estrela d’alva, a mais brilhante, a última a se apagar. Lúcifer quer dizer aquele que faz a luz, a luz que permite a visão interior, o bem e o mal juntos, o prazer e a dor. Lucidez é dor, e o único prazer que se pode conhecer, o único que vagamente se parecerá com a alegria, será o prazer da consciência da própria lucidez”. - fala do personagem Fernando.
“Eu sei que existe a desordem, a decepção e a desarmonia. Existe um país nos destruindo, um mundo que nos expulsa, um assassino impreciso que nos mata dia após dia, sem que percebamos. Não tenho uma resposta. Escrevo do caos, da mais completa escuridão”. Estas são as primeiras palavras ditas em off pelo protagonista, enquanto escreve apontamentos na forma de crônicas em seu caderno de notas. Fernando (Federico Luppi) é um professor de literatura de uma universidade de Buenos Aires que acaba de receber uma ordem de aposentadoria compulsória. O ultimato o afeta profundamente na medida em que o lança no centro da catastrófica crise econômica argentina decorrente das políticas neoliberais de Carlos Menen. Desse ponto em diante, o filme passa a estabelecer paralelos entre a dimensão material – a crise econômica que assola o país –, e o plano metafísico: a consciência de um sujeito que percebe que os ideias humanistas da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade) jamais deixaram o plano das ideias.
Fernando é casado com Lili (Mercedes Sampietro), uma assistente social que acompanha de perto os efeitos da crise. Apegado ao pensamento crítico e ao Humanismo, ele ensina seus alunos a pensarem por si, afastando-os do dogmatismo. Porém, tudo se desmorona ao receber a ordem de aposentadoria compulsória. Os fatores econômicos não só determinam a sua aposentadora como também lhe obrigam a viver com uma remuneração ínfima. Isso significará a derrocada de sua vida social, pois a nova condição financeira determinará uma adaptação em seus hábitos; a entrada definitiva na velhice; e a consciência de esfacelamento dos ideais humanistas numa economia periférica de terceiro mundo. Além disso, o casal tem um filho: Pedro (Carlos Santamaría), que abandonou suas convicções em prol de uma vida confortável num autoexílio em Madrid. O relacionamento entre pai e filho é conflituoso, pois Fernando não admite que um filho seu possa vender-se impiedosamente.
Em “Lugares Comuns”, o pessoal e o político se somam como palavras num texto harmonioso. O filme comove secamente, sem partir para o melodrama. Convence como crônica na medida em que se aprofunda – suavemente – nas questões sociais argentinas do início do século.
⭐ 3.9 / 5.0
Grey Gardens: Do Luxo à Decadência
4.0 172 Assista AgoraEm 1975, a trágica história de duas mulheres chamadas Edith Bouvier Beale (mãe e filha) – respectivamente, tia e prima de Jacqueline Kennedy, ex-primeira-dama dos EUA – foi registrada num impressionante documentário dirigido pelos irmãos Albert e David Maysles et al. O filme obteve muito sucesso à época e hoje conserva o status de “cult”. As duas mulheres, egressas da aristocracia que padecera as agruras do crack da bolsa em 1929, encontram-se, na década de 1970, profundamente miseráveis e habitando uma propriedade decaída e sem a menor condição de salubridade. A propriedade, uma mansão que teve gloriosos dias no passado, emprestou seu nome ao filme: “Grey Gardens”. Da mesma forma, em 2009, o nome serviu de título a um telefilme de enredo produzido pela HBO, que conta a história real das duas mulheres, ao mesmo tempo em que reconstitui, com exatidão, cenas do documentário de 1975. Trata-se, portanto, de uma cinebiografia e de um exercício estilístico de metalinguagem.
A narrativa inicia-se com as duas – impecavelmente vividas por Jessica Lange (a mãe) e Drew Barrymore (a filha) – assistindo em primeira mão a excertos do documentário no salão da decadente Grey Gardens; paralelamente, imagens do passado aristocrático vêm à tona, reconstituindo a trajetória que as levou da luxúria à miséria. A recusa em aceitar a decadência marca com crueldade o destino dessas duas mulheres. A tentativa de se manter as aparências vai falhando miseravelmente sem que elas possam fazer qualquer coisa. A casa se deteriora, a sujeira toma conta, a ameaça de despejo atrai a atenção da mídia que as associa impiedosamente à parente mais rica – Jackie O (Jeanne Tripplehorn).
O filme é impressionante ao registrar um retrato cruel sobre a decadência. Bem acabado em quase todos os aspectos, e com uma excelente dupla de protagonistas, “Grey Gardens” é um desses telefilmes baseados em fatos que vale a pena ser assistido.
⭐ 3.8 / 5.0
Lírio Partido
4.0 97 Assista AgoraEmbora seja um dos ‘pais’ do cinema estadunidense – e, indubitavelmente, o cineasta mais importante das primeiras décadas de cinema naquele país –, D.W. Griffith tem seu nome associado a um dos filmes mais ideologicamente repulsivos da história: “O Nascimento de uma Nação” (1915), um elogio impiedoso ao racismo e à Ku Klux Klan. Curiosamente, no ano seguinte, ele ensaiaria uma tentativa de redenção com o épico humanista “Intolerância” (1916), um filme segmentado que retrata casos históricos de intolerância através dos tempos. Nessa mesma linha, “Lírio Partido” surpreende como um drama lírico que condena veementemente a violência e a xenofobia, promovendo um retrato imaculado sobre as forças do amor. Publicamente, Griffith nunca se mostrou arrependido pela infâmia de “O Nascimento de uma Nação”; porém, os três filmes considerados em conjunto ressaltam a diversidade na cinematografia do diretor que, embora controverso, era extremamente talentoso. Em termos de montagem, movimentação de câmera, direção de atores, tratamento do roteiro etc., o cinema não seria o que é hoje sem a contribuição de Griffith.
Somente um diretor com seu talento poderia, em 1919, realizar um filme com tamanha dramaticidade, profundidade temática e virtuosismo técnico – isso tudo, muito antes do advento do som e do cinema em cores. Audacioso, “Lírio Partido” encanta pela beleza formidável ao mesmo tempo em que toca em temáticas socialmente complexas – violência, intolerância, xenofobia etc. Lilian Gish (atriz recorrente nos trabalhos de Griffith) e seu companheiro de cena, Richard Barthelmess, percorrem atormentados por uma paisagem londrina definida pela névoa, iluminações soturnas e cenários de inspiração orientalista – a ambientação realça a atmosfera melancólica consonante com o sofrimento da protagonista. Griffith utiliza-se ainda de close-ups para reforçar a dramaticidade e extrair o máximo do trabalho de seus atores. A história de carinho e gentiliza, embora pareça relativamente simplória, encaminha o filme para um desfecho trágico e desesperançoso: um imigrante chinês budista (Barthelmess) encanta-se por Lucy Burrows (Gish), uma garota constantemente maltratada pelo pai, Battling Burrows (Donald Crisp), um pugilista grosseiro, violento e repugnante. Ao final, nos parece impressionante que uma obra com mais de 100 anos ainda possa causar tamanho impacto.
⭐ 3.9 / 5.0
Eduardo e Mônica
3.6 368Lançada em 1986, “Eduardo e Mônica” é uma das canções mais icônicas do rock brasileiro. Trata-se de uma balada romântica cuja estrutura atualiza a tópica de que “os opostos se atraem”. Valendo-se de um caráter imensamente figurativo, Renato Russo enumera contraposições de personalidades para ilustrar uma relação que, embora fictícia (porém, inspirada numa história real), é verossímil e fantástica. No conjunto da obra da Legião Urbana, a figurativização é um recurso narrativo recorrente, daí a possibilidade de transposição para o cinema. Em 2013, René Sampaio já havia levado “Faroeste Caboclo” às telonas num filme que, embora não seja estritamente fiel à narrativa da canção, condensa o espírito da banda e a atmosfera do rock nacional dos anos 1980, majoritariamente concentrado no Planalto Central do país. “Eduardo e Mônica”, o filme, também assinado por René Sampaio, segue tendência diversa: no caso, a letra da canção é transposta à risca para a tela, acrescentando-se, contudo, maior profundidade à dimensão humana do casal protagonista.
Partindo-se da famigerada “festa estranha com gente esquisita”, assistimos ao improvável romance entre um garoto de 16 anos e uma estudante de medicina com seus vinte e poucos anos. O componente geográfico não poderia ser outro: Brasília, nos tempos da reabertura democrática. O elemento adicional à narrativa se dá no campo da politização: Eduardo (Gabriel Leone), criado pelo avô militar (Otávio Augusto) veste o fato da classe média padrão brasileira – interessando num bom emprego e numa boa família, ele não pensa muito em política. Mônica (Alice Braga), por sua vez, abarca o lado do progressismo, toma partido em movimentos sociais e é filha de um artista comunista que fora exilado durante a Ditadura. O interesse desencadeado em um pelo outro (e vice-versa) e profundamente enraizado parece partir de um desejo de equilíbrio que, embora enfrente conflitos, resplandece incólume ao final.
⭐ 3.9 / 5.0
O Menino da Bolha de Plástico
3.0 78 Assista AgoraUm dos telefilmes mais lembrados dos anos 1970, “O Rapaz da Bolha de Plástico” consolidou o estrelato de John Travolta num de seus primeiros papéis relevantes. O filme é livremente baseado nas histórias reais de David Vetter e Ted DeVita, que sofriam de uma imunodeficiência que os obrigava a viver confinados em tendas esterilizadas de isolamento. As experiências de vida dos dois garotos foram condensadas num único personagem, Tod Lubitch, precisamente vivido por um John Travolta no auge da beleza juvenil. Embora trate de uma história interessante, o filme contém muitos erros de continuidade, situações incongruentes e mal explicadas, além de um desfecho preguiçoso que o encerra sem nos dar satisfações. Tudo isso pode ser relativizado, contudo, por se tratar de uma produção menor feita para a televisão. “O Rapaz da Bolha de Plástico” opta por deixar em aberto o destino do personagem, atendendo aos propósitos melodramáticos do filme – aos quais se acrescentam boas doses de pieguice e romance adolescente, além de um visual kitsch que é a cara dos anos 1970.
Qualquer carisma que o filme possa ter deve-se, obviamente, ao carisma de John Travolta. E talvez, justamente por isso, tenha feito sucesso entre o público. A narrativa é simplória: Tod nasce com uma imunodeficiência grave que o obriga a isolar-se do mundo. Ele vive numa redoma, uma “bolha de plástico” montada em seu quarto. O sonho de romper a bolha se intensifica ainda mais na adolescência, quando ele se apaixona pela vizinha do lado, a jovem Gina (Glynnis O’Connor). A cenografia é bizarra. A direção de Randal Kleiser é incipiente – o diretor, contudo, teve sua chance de redenção dois anos depois, repetindo a parceria com Travolta no icônico “Grease: Nos Tempos da Brilhantina” (1978).
⭐ 2.5 / 5.0
Uma História de Amor e Fúria
4.0 657“Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”. Um romance que perdura ao longo de 600 anos de experiência brasileira só pode ser uma história de amor e fúria. É esta a premissa deste longa-metragem de animação: refletir sobre a história do Brasil tendo em primeiro plano uma mitológica história de amor que atravessa nosso passado, presente e futuro. Selton Mello e Camila Pitanga emprestam suas vozes aos protagonistas, um casal apaixonado em quatro épocas distintas de conflitos armados que marcaram – e marcarão, no caso do último segmento – a experiência histórica brasileira: em 1566, quando os índios tupinambás foram dizimados pelos portugueses, na Baía de Guanabara; duzentos anos depois, em 1838, durante a Balaiada no Maranhão – uma revolta de camponeses e escravos contida por soldados do futuro Duque de Caxias, o ‘pacificador’; entre 1968 e 1980, durante os arbítrios da Ditadura Militar; e num futuro distópico, em 2096, quando as milícias armadas particulares terão dominado o Rio de Janeiro e uma guerra por água potável determinará a rotina da cidade (este ‘futuro’, assustadoramente mais próximo do que supúnhamos).
O ponto de partida para o romance hexacentenário é o mito de Abeguar, um guerreiro imortal tupinambá escolhido por Munhã para liderar seu povo na eterna luta contra Anhangá. Ao tomar parte diretamente nos conflitos, o filme salta através de momentos decisivos da história brasileira. Nesse sentido, a narrativa acaba sendo didática na medida em que propõe um revisionismo histórico das lutas inglórias de nosso passado. Numa das falas do filme, o narrador que é o próprio guerreiro imortal em primeira pessoa, diz: “Meus heróis nunca viraram estátua. Morreram lutando contra os caras que viraram”. E é a partir da perspectiva dos que morreram lutando que “Uma História de Amor e Fúria” compõe sua narrativa; tomando parte na luta dos oprimidos e afirmando-se contra a opressão.
Além da precisão narrativa, “Uma História de Amor e Fúria” é também impressionante em termos visuais: os traços estilizados dos personagens e ambientes funcionam muito bem. A trilha sonora, enriquecida por uma interpretação original de Camila Pitanga, além de uma canção da Nação Zumbi, também é muito bem utilizada. Ao congregar mito, história e ficção, o filme de Luiz Bolognesi compõe um interessante mosaico da condição brasileira.
⭐ 3.9 / 5.0
Irmãos de Sangue
3.6 23 Assista Agora“Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma
Depois te joga na merda, sozinho
Transforma um preto tipo A num neguinho
(...)
Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei
Racionais, Capítulo 4, Versículo 3"
– Mano Brown, “Capítulo 4, Versículo 3”.
A psicanalista Maria Rita Kell, em artigo publicado no final dos anos 1990, identifica a grande frátria alicerçada em torno da cultura do rap nas periferias paulistanas. Este fenômeno, que já havia sido identificado na periferia de grandes metrópoles estadunidenses, era responsável pela ressignificação de identidades sociais: o movimento hip hop congregava uma irmandade definida em termos de cor, classe social, atitude e distribuição espacial. Alguns anos antes, o DJ americano Afrika Bambaata havia definido o “quinto elemento da cultura hip hop” como uma espécie de chamado ao conhecimento. Segundo ele, a música – no caso o rap – deve funcionar como um elemento de transformação social. Estendendo a acepção de Bambaata a outro campo artístico, Spike Lee, desde o início de sua carreira cinematográfica, estabeleceu conexões muito íntimas com o universo do hip hop; em “Faça a Coisa Certa” (1989), por exemplo, convidou o grupo Public Enemy para compor uma música vinculada à trilha sonora. O rap “Fight the Power” concentrava sua potência ao rejeitar ícones brancos da cultura americana e proclamar “Cause I’m Black and I’m proud” – “porque eu sou negro e me orgulho disso”. Os filmes de Spike Lee de alguma maneira catalisam o universo cultural do hip hop filtrado por uma lente e com ênfase no quinto elemento. Além de conectarem-se aos debates acerca do racismo e da questão social dos afroamericanos, têm uma dimensão didática, na medida em que pronunciam um “chamamento” para que o povo negro saia da alienação e da condição de subalternidade – para que nenhum “preto tipo A” seja transformado num “neguinho” ao ser contaminado por um sistema que marginaliza e oprime pretos e pobres (para dialogar com os versos do Racionais MC’s).
“Irmãos de Sangue” é um filme que está dentro deste esquema de reflexão. Trata-se de uma narrativa complexa sobre drogas, violência urbana, violência na abordagem policial, relações familiares, etc. No período de lançamento do filme, as periferias enfrentavam uma guerra interna potencializada pelo advento do crack, pela epidemia de AIDS e o aumento da violência entre o próprio povo negro, ameaçados por rivalidades internas. Neste sentido, Spike Lee compreende muito bem o contexto e produz uma narrativa bastante estruturada e que não cede à tentação de depurar a complexidade social em termos maniqueístas. O filme, que tem produção de Martin Scorsese, traz um discurso inflamado de insatisfação, além de retratar com ganas de pertencimento a diversidade social e cultural desses espaços relegados à marginalidade.
⭐ 4.3 / 5.0
O Preço do Amanhã
3.6 2,9K Assista AgoraDirigido e roteirizado por Andrew Niccol, que é o nome por trás do roteiro de filmes como “Gattaca”, “O Show de Truman”, entre outros, “O Preço do Amanhã” é uma ficção-científica distópica que propõe, em alguma medida, uma crítica social que, no entanto, embora seja pertinente, acaba por ser ineficaz no resultado final da obra. A associação entre tempo, poder e dinheiro, num futuro em que os pobres trabalham para que os milionários possam experimentar a imortalidade, permite relacioná-lo à divisão capitalista do trabalho do nosso tempo presente. Entretanto, o potencial reflexivo da proposta é expressivamente relativizado numa trama que enfatiza a ação e perseguição a um casal anti-sistema – uma espécie de ‘justiceiros’ a lá Robin-Hood, que roubam o tempo dos ricos para distribuí-lo aos pobres.
O filme se passa em 2169, quando os seres-humanos param de envelhecer aos 25 anos de idade e, a partir daí, um relógio inscrito na pele inicia uma contagem regressiva. O tempo substituiu a moeda e, consequentemente, os ricos têm condições de armazená-lo, enquanto os pobres ganham apenas porções diárias. Neste universo distópico, Will Salas (Justin Timberlake) é um trabalhador pobre que recebe uma misteriosa doação e passa a ser perseguido pelos guardiões do tempo – liderados por Raymond Leon (Cillian Murphy) – por um crime que não cometeu. Porém, Will se associa a Sylvia Weis (Amanda Seyfried), a filha de um magnata que reconhece a injustiça dessa organização social; ambos passam a praticar ações que visam à desestabilização do sistema. Com os guardiões em seu encalço, a dupla se parece com uma projeção futurística de Bonnie & Clyde.
Apesar de algumas falhas pontuais e do apressamento do roteiro, “O Preço do Amanhã” cumpre muito bem a função de promover entretenimento e diversão. E ainda ensaia algum potencial de reflexão, mesmo que superficialmente.
⭐ 3.6 / 5.0
Casa Gucci
3.2 706 Assista AgoraEscandaloso, irreverente e, em alguma medida, divertido, “Casa Gucci” concentra-se na trágica história da disfuncional família por de trás da marca titular. Sem medo de assumir deliberadamente um formato próximo ao do folhetim, o filme de Ridley Scott aproxima-se da derrocada do Império Gucci através da conturbada relação entre Patrizia Reggiani (Lady Gaga) e Maurizio Gucci (Adam Driver). Maurizio é um dos herdeiros da marca; inicialmente, ele é rejeitado pelo pai (Jeremy Irons), que não concorda com seu casamento por identificar em Patrizia uma mulher ambiciosa e interesseira. Entretanto, o ganancioso Aldo Gucci (Al Pacino), tio de Maurizio, enxerga nele o potencial para liderar os negócios da família, diferentemente da inaptidão que vê em seu próprio filho, Paolo (Jared Leto). Transitando através desses personagens, a trama permite entrever uma rede complexa de traições, intrigas, remorsos e ambições. Tudo isto culminará no assassinato de Maurizio a 27 de março de 1995, aos 46 anos.
A história ambienta-se em Roma, Milão e Nova York, capitais mundiais da alta costura, o que realça a estética glamorosa do filme. Agregado à cinematografia épica de Ridley Scott, “Casa Gucci” se parece com um novelão épico. Nesse sentido, a atuação maneirista de Lady Gaga, exageradamente afetada e beirando à caricatura, funciona muito bem dentro da atmosfera constituída pela narrativa. Em seu segundo grande papel no cinema, Gaga não decepciona. Aliás, todo o elenco se equilibra muito bem entre a seriedade e o maneirismo de folhetim, o que acaba enriquecendo a experiência. Outro aspecto que realça essa dimensão exageradamente dramática do filme é sua trilha sonora, derramada em graves e agudos das canções italiana e americana.
Em suma, “Casa Gucci” apresenta um bom resultado ao assumir uma linguagem extravagante de dinâmicas familiares numa história sobre interesses e traições. Talvez pudesse ser um pouco mais enxuto, embora a extensa duração não prejudique a fruição da obra.
⭐ 4.0 / 5.0
Minority Report: A Nova Lei
3.7 750 Assista AgoraLançado subsequentemente a “A.I.: Inteligência Artificial”, “Minority Report” é um neo-noir futurístico e estiloso de Steven Spielberg – e que se inscreve na melhor linhagem das ficções-científicas dirigidas por ele. Com base num conto de Philip K. Dick, Spielberg não apenas nos apresenta a uma visão preocupante de futuro (fictícia, obviamente, mas plausível dentro do universo narrativo criado pelo autor; e também com relativas e similares alusões à nossa realidade presente), como também o faz mesclando-a a uma aventura recheada de ação e contemplação, fotografada de forma a sugerir um visual soturno, meio enevoado, que engaja o público numa atmosfera que permanece constantemente em suspensão. Dessa forma, o caráter distópico da narrativa envolve-se numa dimensão sombria, constituindo uma ambientação ambígua, que ressalta os dois lados de um dilema ético.
O ano é 2054. O detetive-chefe John Anderton (Tom Cruise) – que sofre as dores de um passado de perdas pessoais – trabalha na divisão de Pré-Crime, uma tecnologia que permite identificar e punir responsáveis por assassinatos antes que eles possam acontecer. O sistema, aparentemente perfeito, erradicou a criminalidade na capital dos EUA e está prestes a ser proposto em escala nacional; seu responsável é o orgulhoso Lamar Burgess (Max von Sydow). Porém, em meio a uma investigação federal liderada pelo agente Danny Witwer (Colin Farrell), a Pré-Crime prevê um assassinato que será cometido por John Anderton. O justo detetive, no entanto, suspeita de armação contra sua reputação, e deverá correr contra o tempo para desfazer-se da armadilha e comprovar sua inocência. Todas as armas, contudo, estarão voltadas para si.
Ao final, o filme mostra-se como uma cativante e alucinante experiência cinematográfica. Ainda que as reflexões estejam mais subentendidas, dificilmente o espectador saíra imune da sessão.
⭐ 3.9 / 5.0
Vítor ou Vitória?
4.0 101 Assista AgoraLançado em 1982, em plena ascensão do conservadorismo da era Reagan, “Victor ou Victória?” é uma comédia-musical à frente do seu tempo. Com leveza e bom humor, o filme aborda noções de gênero e sexualidade a partir de um ponto de vista subversivo sem ser agressivo. Elencando coerentemente elementos de comédia romântica, comédia pastelão, teatro vaudeville e teatro musical da Broadway, Blake Edwards entrega com “Victor ou Victória?” um espetáculo divertido e atraente – uma obra completa; sem dúvidas, na mesma altura de seu maior sucesso, “Bonequinha de Luxo” (1961).
De alguma forma, “Victor ou Victória?” se inscreve na mesma linhagem que “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), na medida em que ambos partilham da temática da troca de identidades feminina / masculina. A trama do filme de Edwards, com Julie Andrews no papel principal, ambienta-se em Paris, em 1934; Andrews vive Victoria Grant, uma excelente cantora lírica, porém desempregada. Depois de não conseguir emprego numa casa noturna, ela conhece Carroll Tody (Robert Preston, num desempenho irretocável), um cantor homossexual que acabara de perder o emprego no mesmo estabelecimento. A falta de dinheiro une os dois, que se tornam amigos e articulam um plano para saírem da miséria: transformá-la numa estrela. Para isso, Victória deverá se passar por um homem – o polonês Conde Victor Grezhinski – reconhecido por seu trabalho com transformismo (atualmente, o termo mais adequado é drag queen). Porém, as coisas ameaçarão sair do controle após Victória/Victor conhecer King Marchand (James Garner), um chefão da máfia de Chicago, por quem acaba se apaixonando.
Além da direção segura de Edwards, o filme conta com excelentes trabalhos de coreografia, fotografia, figurino e, claro, a trilha sonora de Henry Mancini. O trabalho de Julie Andrews, contudo, inspirado em performances de astros como David Bowie e Marlene Dietrich, é o grande concatenador de todos os elementos que fazem de “Victor ou Victória?” uma obra-prima dos musicais.
⭐ 4.7 / 5.0
Vírus
2.6 693Um road movie do fim do mundo, “Vírus” é um filme sobre sobrevivência num cenário pandêmico-apocalíptico. Lançado em 2009, a obra se inspirou no potencial epidemiológico anunciado pela mídia acerca do vírus H1N1 e, nesse sentido, se inscreve num segmento cinematográfico bem estabelecido e já bastante explorado em filmes como “Extermínio” (2002), “Zumbilândia” (2009) etc. “Vírus”, entretanto, traz novos elementos ao formato: na trama escrita e dirigida pelos irmãos espanhóis Àlex e David Pastor, o foco da narrativa recai sobre a mudança estrutural nos relacionamentos humanos diante de situações extremas. Por isso, trata-se de um filme pessimista que mostra a desesperança de um mundo agonizante – é difícil não se sentir incomodado ao assistir algum personagem infectado sendo deixado para trás, abandonado à própria morte.
No filme, um grupo de quatro jovens – os irmãos Danny (Lou Taylor Pucci) e Brian (Chris Pine), e as garotas Bobby (Piper Perabo) e Kate (Emily VanCamp) – tentam sobreviver em meio ao caos instalado a partir da disseminação de uma doença infecciosa e mortal que está dizimando a humanidade. Eles decidem viajar até uma praia deserta a fim de encontrar refúgio, porém, no caminho, são confrontados por situações imprevistas que os fazem defenderem selvagemente suas vidas. Diante da iminência da morte, tornam-se capazes de assassinarem uns aos outros para defenderem a si mesmos. Nesse sentido, o filme promove uma reflexão acerca dos valores ligados à vida em sociedade. Ao suscitar questões, “Vírus” subverte o gênero e se desassocia das bases cristalizadas do “cinema pandêmico”. E, dessa forma, em sua simplicidade, acaba sendo mais profundo que muitas propostas hollywoodianas.
⭐ 3.3 / 5.0
Devorador de Pecados
3.1 96 Assista AgoraApós o sucesso do divertido “Coração de Cavaleiro”, o diretor Brian Helgland reuniu-se novamente com Heath Ledger e Shannyn Sossamon neste thriller gótico e sombrio que tem como motivo a presença do mal no âmbito da religiosidade. A atmosfera estabelecida em “Devorador de Pecados” considera penumbras e sombras na tentativa de emular uma ambientação medieval em plena contemporaneidade. E embora prometa sustos e suspense, o resultado final decepciona aqueles que buscam pelo franco efeito do terror. Nesse sentido, o filme vale mais pelo esforço em retratar, com certa originalidade, um tema recorrente na indústria cinematográfica: a conflituosa, mas tênue, relação entre o benigno e o maligno. O foco da narrativa é a presença de um devorador de pecados, figura mitológica que assumia os pecados de um moribundo, absolvendo-lhe a alma para que pudesse descansar na paz eterna.
A trama tem como ponto de partida um mistério: Dominic (Francesco Carnelutti), o líder da ordem religiosa dos carolíngios, morre em circunstâncias misteriosas em Roma. Posteriormente, o monge carolíngio Alex Bernier (Heath Ledger), discípulo de Dominic, é procurado em Nova York pelo cardeal Driscoll (Peter Weller), que o instiga a viajar até Roma para conduzir uma investigação acerca da morte de seu mentor. Ao defrontar-se com o cadáver de Dominic, Alex identifica estranhas marcas corporais que remetem a investigação para ações de um possível devorador de pecados. Porém, o cardeal também guarda seus segredos, revestido da ambição de tornar-se o próximo papa.
À parte a boa direção de fotografia, que se aproveita da penumbra e da cenografia romana para realçar a atmosfera de mistério, e a sempre boa atuação de Heath Ledger, o filme acaba pecando pela falta de ousadia e pelo roteiro sem carisma. Consequentemente, trata-se de uma obra facilmente esquecível.
⭐ 2.8 / 5.0
O Morro dos Ventos Uivantes
3.7 361 Assista Agora“O Morro dos Ventos Uivantes”, o único romance da autora inglesa Emily Brontë, foi levado às telas de cinema inúmeras vezes. Ainda na era do cinema mudo, em 1920, o trágico romance imortal de Heathcliff e Catherine seria filmado pela primeira vez. Posteriormente, em 1939, William Wyler dirigiria a sua versão, com Laurence Olivier num dos papéis principais. Depois disso, muitas outras versões se seguiram, incluindo-se adaptações em francês, japonês e espanhol (esta, de 1953, dirigida por Luís Buñuel sob o título de “Escravos do Rancor”). Enfatizando a ambientação gótica e a atmosfera sombria da história, o filme de 1992, com Ralph Fiennes e Juliette Binoche nos papéis principais, por sua vez, está entre as adaptações mais fiéis à narrativa do romance. Apesar da qualidade do roteiro, alguns aspectos dificultam a plena compreensão da obra – direção e montagem, por exemplo –, principalmente para aqueles que desconhecem completamente a história. Mesmo assim, trata-se de uma obra memorável.
Ambientada numa área rural da Inglaterra, no final do século XVIII, a história tem início quando o Sr. Earnshaw (Jason Riddington), patriarca de uma rica família, adota um garoto cigano chamado Heathcliff. Com o tempo, desenvolve-se uma trágica e violenta paixão entre o cigano e Catherine Earnshaw (Juliette Binoche), sua irmã de criação. Crescidos juntos, eles são forçadamente separados após a morte do pai, e devido à crueldade de Hindley Earnshaw (Jeremy Northam), o filho mais velho que despreza e subjuga Heathcliff, relegando-o a viver com os animais no estábulo. Convenientemente, Catherine deve se casar com Edgar Linton (Simon Shepard), um nobre rico. Ao tomar conhecimento do casamento, Heathcliff desaparece, para retornar dois anos depois, rico, tomado de amargura e determinado a mover sua vingança pessoal contra Hindley e contra o abandono que Catherine lhe infligiu.
⭐ 3.8 / 5.0
Da Terra Nascem os Homens
4.2 66 Assista AgoraProduto do trabalho de dois perfeccionistas – o diretor William Wyler e o ator Gregory Peck, ambos produtores do longa –, “Da Terra Nascem os Homens” é um faroeste impecável. Tudo nele é grandioso: a direção cuidadosa e rigorosa de Wyler, marcada por inúmeras indisposições entre ele e o elenco, com relação às suas exigências a fim de extrair o trabalho perfeito de seus atores; o elenco ilustre, composto por nomes como os de Peck, Charlton Heston, Burl Ives, Jean Simmons etc.; a ambientação precisa, que prescindiu da construção de inúmeras locações e cenários que situassem – cena e audiência – no velho, árido e imenso Oeste, distante de qualquer norma regulamentar, aonde a lei é feita na base da palavra e da força dos homens; a trilha sonora memorável de Jerome Moross, que serviria de inspiração para a música de inúmeros faroestes lançados posteriormente; a belíssima fotografia de Fraz Planer, que extrai poesia e sensibilidade da imagem amarelada e poeirenta do Velho Oeste; além, é claro, da extensa duração da fita – 165 min.
De acordo com depoimento de Gregory Peck, William Wyler intencionou realizar uma alegoria à esquerda sobre a Guerra Fria; nesse sentido, o papel representado pelo ator, do pacifista e bem-educado John McKay, realça a dimensão simbólica da obra. Ele é um rico herdeiro de uma frota naval em Baltimore, que chega ao oeste para se casar com sua noiva Patricia (Carroll Baker). Tão logo ele chega, é recebido com certo estranhamento devido às diferenças culturais que o distancia dos hábitos do oeste, sobretudo em relação ao vigor da lei e da justiça, definido em termos pessoais e arbitrários. Imediatamente, McKay se vê imerso numa rivalidade entre duas famílias influentes na região, representadas por seus respectivos patriarcas: de um lado, o Major Terrill (Chuck Bickford), pai de Patricia, e de outro, Rufus Hannassey (Burl Ives); ambos faziam de sua família e seus empregados alvos e soldados de uma infame guerra sem razão de ser. A chegada de McKay, entretanto, exalta ainda mais os ânimos, pois devido à sua inclinação pacifista ganha fama de covarde, despertando o desprezo em sua noiva e seu sogro.
⭐ 4.7 / 5.0
Saindo do Armário
3.7 200Embora o filme padeça dos inúmeros clichês que determinam o gênero das comédias-românticas, “Saindo do Armário” tem sua importância atestada em inúmeros aspectos. Primeiramente, ressalta-se que o filme foi rodado em 1998, no Reino Unido, país historicamente conservador e reconhecido por imputações legais à homossexualidade até meados da década de 1980. Nesse sentido, o discurso afirmativo, representativo e combativo da fita reverbera na vivência de inúmeros adolescentes que chegam à puberdade sem o direito de experimentarem naturalmente seus desejos, forçados a se esconder a fim de se resguardarem do preconceito e da não-aceitação por parte da família e da sociedade. Felizmente, muita coisa tem mudado desde então; e a representatividade encontra papel essencial nessa mudança em curso. Em segundo lugar, o filme não se exime em tratar com naturalidade o processo de iniciação sexual de um adolescente gay – coisa que, até então, no cinema, era abordada ora de maneira afetada, ora aproximando-se da comédia, ora buscando uma descrição que deixava tudo subentendido. O discurso do protagonista – o adolescente Steven Carter (Ben Silverstone) –, ao final do filme, surpreende a todos ante a potência de uma revelação necessária e que por anos a fio havia permanecido represada na angústia íntima de milhares de jovens que certamente o receberam como uma libertação.
Na trama, Steven é um estudante secundarista, interessado em jornalismo e fotografias, que confidencia seus desejos e emoções à sua melhor-amiga, Linda (Charlotte Brittain); ele é gay, sofre bullying no colégio e vive o dilema angustiante e solitário de estar escondido “no armário”. Surpreendentemente, John Dixon (Brad Gorton), um atleta admirado e popular na escola, acaba se apaixonando por Steven. O conflito de John, entretanto, é um tanto mais complexo, uma vez que ele próprio tem dificuldade em aceitar sua sexualidade. Ao redor do romance homoafetivo, amigos, colegas, professores e pais compõem a intricada teia de relacionamentos e conflitos que emoldura o drama de Steven e Johnny.
⭐ 3.8 / 5.0
Alma De Poeta, Olhos De Sinatra
3.5 23 Assista AgoraEste único filme da diretora e escritora Tiffanie DeBartolo é um dos poucos exemplos cuja adaptação do título em português funciona melhor – e é mais poética – que o título original (“Dream for an insomniac”, ou “sonhos para um insone”). “Alma de Poeta, Olhos de Sinatra” é um romance um tanto quanto água com açúcar, mas que encanta pela simplicidade e delicadeza; além de trazer enredo e formato bastante inusual para o gênero. O filme trata do amor em sua concepção mais fantástica – uma das frases dita pela protagonista Frankie (Ione Skye) sintetiza a versão de amor que o filme viabiliza: “existem tantas coisas medíocres na vida para se lidar, o amor não deve ser uma delas”. Ela é uma sonhadora, embora sofra de insônia. Só tem duas exigências para se apaixonar: o amor precisa ser intenso e ele deve ter os olhos de Frank Sinatra.
A história se passa quase toda em uma cafeteria, cujo dono italiano é o trio de Frankie, Leo (Seuymour Cassel). O ambiente amistoso do café faz lembrar o do seriado “Friends” – a comparação não é fortuita, uma vez que Jennifer Aniston também consta no elenco do filme. De início, somos surpreendidos pela fotografia em preto e branco que busca situar o espectador na atmosfera de depressão e desmotivação que cerca a jovem insone. Porém, quando ela conhece David Schrader (Mackenzie Astin), um aspirante a poeta que acaba de arranjar emprego na cafeteria e que tem os olhos claros de Sinatra, o universo de Frankie se transforma, iluminando inclusive a fotografia da imagem. Acontece, porém, que David tem uma namorada e Frankie deverá lutar para conquistá-lo. Paralelamente, o filme ainda desenvolve o drama de Rob (Michael Landes), primo de Frankie, um rapaz gay que está se preparando para assumir sua sexualidade ao pai aparentemente conservador. A questão é tratada com delicadeza e afirmatividade pelo roteiro de Tiffanie DeBartolo.
Apesar de ser perceptível a imaturidade artística da diretora, o filme promove um entretenimento gracioso ante a sua simplicidade e doçura.
⭐ 2.9 / 5.0
A Dupla Vida de Véronique
4.1 275 Assista AgoraMágico e poético, “A Dupla Vida de Véronique” promove uma sensível experiência sensorial que não se responde completamente – o filme é escorregadio a qualquer tentativa de explicação lógica, muito embora, no âmbito de nossas sensações, seu sentido seja completado num diálogo íntimo entre o simbólico da narrativa e o âmago do espectador. O filme, de certa forma, cristaliza o tratamento de temas universais que Kieslowski vinha experimentando desde a série “O Decálogo” (1988), e desenvolve o experimentalismo da forma cinematográfica que reflete em sua capacidade de fazer filmes “aparentemente” vagos, cujos significados dizem respeito mais às sensações do que à lógica. Com relação à obra, ele mesmo diria: “O filme trata de sensibilidade, pressentimentos e relacionamentos que são difíceis de nomear, que são irracionais. É difícil mostrar isso no filme: se eu mostro demais o mistério desaparece; eu também não posso mostrar pouco porque então ninguém compreenderá nada. Minha procura pelo equilíbrio entre o misterioso e o óbvio é o motivo pelo qual foram feitas várias versões na sala de edição”.
O filme segue a vida de duas jovens interpretadas por Irène Jacob: uma polonesa chamada Weronika, e uma francesa, Véronique. Embora elas não se conheçam, suas vidas são marcadas por uma profunda relação de sincronia: ambas são idênticas, são cantoras talentosas, vivem relacionamentos efêmeros e são tomadas por intuições que parecem denunciar a presença de uma na vida da outra, embora estejam geograficamente distantes. Weronika sente que “não está sozinha no mundo”; e Véronique, por sua vez, tem a sensação de “estar em dois lugares ao mesmo tempo”. Apesar da sincronia quase siamesa que existe entre elas, suas vidas tomam rumos diferentes de acordo com as escolhas que fazem: Weronika tem um ataque cardíaco durante uma apresentação musical e morre. Sua morte, embora Véronique não saiba explicar, causa efeito profundo em sua símile francesa – que saíra à procura de respostas e encontrará Alexander, um manipulador de marionetes; e aí, Kieslowski encaixa um componente metalinguístico focalizando o titereiro como um alter-ego de si.
⭐ 4.3 / 5.0
Jovem e Inocente
3.6 48 Assista Agora“Jovem e Inocente” é um dos últimos trabalhos rodados por Hitchcock em sua fase britânica (imediatamente anterior à “Dama Oculta”, talvez o mais completo dos trabalhos realizados por ele em sua terra natal). Nele, já é possível identificar a marca idiossincrática de um estilo que o mestre do suspense já vinha desenvolvendo com certa maturidade desde “Chantagem e Confissão”, de 1929. Protagonizado, majoritariamente, por um elenco jovem, a atmosfera de suspense em “Jovem e Inocente” – mantida até os momentos finais, quando Hitchcock nos surpreende com um travelling excepcional que percorre toda a extensão de um salão de danças e termina, em close, sobre a face de um vilão nervoso – pauta-se, sobretudo, na pouca experiência dos envolvidos na trama e em suas atitudes impulsivas e inocentes. E o desfecho, embora soe anacrônico e incompatível com a atual cartilha do bom-senso, funciona muito bem no filme – obviamente, isso deve ser relativizado em se considerando a distância temporal que o filme guarda com relação ao tempo presente.
A trama parte de uma tópica comum à filmografia de Hitchcock: a do protagonista inocente que é perseguido e responsabilizado por um crime que não cometeu. Porém, o filme se inicia mostrando a face do verdadeiro assassino – e enfatizando o tique nervoso que o caracteriza; e dessa forma, desde o começo, Hitchcock nos coloca na posição de cúmplices da inocência do jovem protagonista – o roteirista Robert Tisdall (Derrick De Marney). A vítima – uma estrela de cinema – foi encontrada morta na praia, com sinais de estrangulamento. A arma do crime: um cinto de casaco. O fato de Robert ter sido visto correndo na direção contrária à cena do crime, além de ser beneficiário do testamento da vítima, depõe contra ele. A jovem e bela Erica (Nova Pilbeam), filha do coronel de polícia que anda à procura do suspeito, acredita na inocência de Robert e decide ajudá-lo na busca pelo real assassino a fim de que o mal-entendido seja prontamente desfeito.
⭐ 4.0 / 5.0
O Resgate
2.9 303 Assista AgoraNicolas Gage não é propriamente um ator ruim – haja vista seus desempenhos em filmes como “Coração Selvagem” (1990), “Despedida em Las Vegas” (1995) e “O Senhor das Armas” (2005), etc. –, porém, a partir de um período passou a desperdiçar seu talento em produções francamente ruins e que exigiam pouco ou quase nada de suas performances. “O Resgate” é um desses filmes: nenhum aspecto é capaz de fazer com que a obra saia do lugar comum e da excessiva quantidade de clichês: vilão com cara de mau, mocinho com cara de inocente (embora se trate de um ‘ex-ladrão’ de banco recém-egresso da cadeia), e um roteiro incrivelmente mal elaborado e que abusa de soluções fáceis e improváveis para resolver a problemática central do enredo (com direito, por exemplo, a um roubo de milhões em barras de ouro planejado em pouco mais que cinco minutos).
Na trama, Cage vive Will, um inteligente ex-ladrão de bancos que acaba de deixar a cadeira após ter passado oito anos preso; ele intenciona se reaproximar de sua filha Alison (Sami Gayle), embora a garota não dê abertura. Porém, um antigo comparsa de Will, Vincent (Josh Lucas), deseja vingar-se do colega por causa de um acidente ocorrido oito anos antes. Para isso, ele sequestra Alison e a mantém trancada no porta-malas de um táxi enquanto exige de Will uma quantia de 10 milhões de dólares em troca da vida da garota. Will vai ao FBI, mas os agentes não acreditam em sua história; consequentemente, ele se vê sozinho correndo contra o tempo para salvar a filha. Ou seja, trata-se de uma trama já muito explorada no cinema – com resultados bons, inclusive, como no caso de “Chamas da Vingança” (2004), por exemplo. Em “O Resgate”, no entanto, além de não haver nada de novo, o filme ainda parece ser vítima de uma total falta de vontade da produção. Mesmo assim, ainda garante uma certa diversão, mesmo que seja pouca.
⭐ 2.7 / 5.0
O Ilusionista
3.8 1,4K Assista AgoraBaseado num conto de Steven Milhauser, “O Ilusionista” é um suspense de época capaz de captar a audiência principalmente através dos truques de magia e ilusionismo que o protagonista realiza – e que a perspicácia do roteiro consegue captar de forma a sustentar a atmosfera de mistério até a sequência final. Na trama, um garoto plebeu (Aaron Taylor-Johnson), com inclinações à arte da magia e que vive nos arredores de Viena, conhece e se apaixona por Sophie (Eleanor Tomlinson), uma duquesa da aristocracia local. Interditado o romance entre classes sociais distintas, os dois são afastados. Depois de peregrinar durante anos, o garoto – agora adulto – retorna a Viena como o famoso ilusionista Eisenheim (Edward Norton, excelente). Suas apresentações atraem públicos e alcançam fama, despertando, inclusive, a curiosidade do cético Príncipe Leopold (Rufus Sewell). Numa das apresentações, a noiva de Leopold é chamada ao palco para servir de assistente à magia; Eisenhiem logo reconhece na futura princesa seu antigo amor, Sophie (Jessica Biel). Reacendida a chama, os dois iniciam um romance clandestino, o que despertará a atenção do Inspetor Uhl (Paulo Giametti), um espião subjugado ao poder imperial. A partir daí inicia-se um jogo de gato e rato entre os dois.
O diretor Neil Burger, da história original, aproveita apenas alguns elementos. A grande inspiração para seu filme pare ser o cinema de ilusão do começo do Século XX. Até mesmo a imagem de Eisenheim, devido à semelhança, nos remete à figura de Georges Méliès, o mágico que se tornou cineasta – e que revolucionou a forma do filme ao criar efeitos especiais a partir da montagem. Além disso, toda a estética de “O Ilusionista”, com cenas pouco iluminadas e etéreas, evoca a atmosfera do cinema mudo; com relação a esse aspecto, o trabalho de fotografia realizado por Dick Pope é elementar. A trilha sonora, de ninguém menos que Philip Glass, concatena perfeitamente a narrativa, alternando com primazia o mistério, o suspense, o romance e a dramaticidade.
⭐ 3.9 / 5.0
A Odisséia
3.7 178Intencionando adaptar e representar o máximo de elementos que compõe a poesia épica de Homero, este telefilme é, sem dúvidas, uma grande produção – talvez a mais completa já realizada com base n’“A Odisseia”; desenvolvido pela BBC e tendo à frente o nome de Francis Ford Copolla como produtor, o filme foi originalmente exibido em duas partes em maio de 1997. O resultado final, entretanto, oscila entre aspectos positivos e negativos. O responsável pela direção foi o russo Andrei Konchalovsky, que também assinou a adaptação do roteiro (junto com Chris Solimine). O principal aspecto positivo talvez seja a fidelidade com que o roteiro se apropria do texto homérico: a trajetória de Odisseu (Armand Assante) – ou Ulisses, o mentor do cavalo de Tróia – é contemplada desde o momento em que deixa seu reino (Ítaca) até as agruras por que passa na desventurada viagem de retorno. Todos os momentos decisivos da Odisseia são apresentados na tela: a arrogância do herói glorioso frente ao imperativo dos deuses, o entreposto na ilha dos ciclopes, as temporadas sob as tutelas de Circe (Bernadette Peters) e Calipso (Vanessa Williams), e, paralelamente, as angústias de Penélope (Greta Scacchi) e Telêmaco (Alan Stenson), esposa e filho do herói, imobilizados em Ítaca, etc. Outro ponto positivo: destinado a um público mais amplo que o dos cinemas, o filme é suficientemente didático sem, no entanto, deixar de interessar àqueles que já são iniciados nos estudos clássicos.
Como aspectos negativos, no entanto, salta aos olhos a atuação um tanto quanto inexpressiva de Armand Assante no papel titular. O restante do elenco, contudo, se mostra bastante à vontade: Greta Scacchi, Geraldine Chaplin e Irene Papas, sobretudo. Além disso, os efeitos visuais são risíveis e exagerados em alguns momentos – embora isso deva ser relativizado em se tratado de uma produção televisiva e dos anos 1990. Enfim, sem deixar de focalizar as mensagens de Homero, fundantes da civilização ocidental, o filme se mostra um pouco exagerado, meio kitsch, é verdade, mas mesmo assim, bastante interessante.
⭐ 3.4 / 5.0
Cidade dos Sonhos
4.2 1,7K Assista AgoraDepois de filmar “Uma História Real” em moldes bastante tradicionais em termos de linearidade (e ironicamente, ele insere, no título do filme, um comentário metalinguístico sobre esse desvio em sua trajetória estética firmada até o momento: “The Straight Story”), David Lynch retorna ao Surrealismo e à inclinação psicanalítica para rodar esta que é considerada por muitos sua melhor obra – ou, pelo menos, a mais representativa de sua marca autoral. Valendo-se do legado de Buñuel, Lynch não apenas constrói um longa-metragem esteticamente surrealista, mas, principalmente, utiliza o estilo para submergir no inconsciente da protagonista, encaminhando-nos, junto com a câmera, para um labirinto onírico, meio noir, onde tudo é possível e, entretanto, desconfiável. Nesse sentido, não fosse pela execrável adaptação brasileira do título, que entrega de bandeja a principal chave de interpretação da narrativa, a quebra da zona de conforto proporcionada pelos últimos vinte minutos de exibição teria efeito ainda mais potencializado. Ainda assim, encontrar a saída deste pesadelo-noir é tarefa complexa, sobretudo porque o enredo de Lynch desafia a lógica da racionalidade. O autor nos coloca no âmbito dos sonhos; é como se Lynch nos imputasse o papel de psicanalistas a escutar o emaranhado narrativo dos sonhos de uma frustrada aspirante a atriz recém-chegada a Los Angeles (Naomi Watts).
A complexidade (e é necessário frisar: não se trata de um caso de pedantismo autoral) do roteiro de “Cidade dos Sonhos” coaduna-se à inegável qualidade dos demais elementos que compõem o filme. Destacam-se os movimentos de câmera, inegavelmente simbólicos em termos de significação; a construção e sustentação de uma atmosfera onírica-noir através do bom emprego dos recursos sonoros e de iluminação; a direção de elenco, que alcança desempenhos espetaculares, sobretudo o das protagonistas: Naomi Watts e Laura Elena Harring, etc. Além disso, o diretor também acerta ao compor, através da aparente não linearidade onírica, uma crítica ao funcionamento devorador da indústria cinematográfica, que não hesita em descartar aqueles que não acatam a imposição do capital.
⭐ 4.8 / 5.0
A Luz é para Todos
3.8 62 Assista AgoraLançado apenas dois anos após o término da Segunda Guerra Mundial é natural que este filme de Elia Kazan, que expõe de forma tão franca e combativa o antissemitismo arraigado na sociedade americana, tenha causado enorme impacto social à época. Debruçando-se sobre os efeitos do preconceito contra judeus, “A Luz É para Todos” transcende as fronteiras do marcador social judaico e chega até nós – completamente atual e compatível com nossa realidade – como um libelo contra qualquer tipo de preconceito motivado pelo ódio às diferenças entre seres-humanos. Neste sentido, o filme é corajoso ao provocar altos escalões da sociedade civil que nem mesmo enrubesciam ao bradarem seu ódio racista. Porém, a atualidade do filme não reside apenas na validade e pertinência do discurso, mas, sobretudo, na combatividade e na afirmação de que apenas não ser preconceituoso não basta, é necessário tomar partido ativamente na luta contra o preconceito.
No filme, Gregory Peck vive o jornalista Phil Green, convidado por um editor de jornal a escrever uma reportagem em série sobre o antissemitismo. Porém, o solicitante impõe a condição de que a matéria deve ser original, sem restringir-se a enumeração de fatos e dados. Depois de refletir intensamente sobre a melhor maneira de se abordar o tema, Phil decide se passar por judeu durante algum tempo, a fim de sentir ele próprio as agruras por que passava o povo judeu. Surpreendentemente, ele descobrirá que o preconceito vai muito além daquilo que se manifesta na superfície. Mesmo entre aqueles que fazem parte de seu círculo social progressista e liberal, como sua noiva Kathy (Dorothy McGuire), por exemplo, o antissemitismo se manifesta de forma velada e disfarçada. É um mal que contamina a estrutura social como um todo.
Ao final do filme, nos assoma a incômoda sensação de que houve pouca mudança de lá pra cá, com relação à tolerância e empatia. A previsão da personagem de Anne Revere, mãe de Phil, de que num futuro breve sobressairia a igualdade e a liberdade, ainda não se concretizou. Resta-nos a pergunta: concretizará um dia?
⭐ 4.8 / 5.0